Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3464/22.8T8STR.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: FACTOS ESSENCIAIS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DOS ARTICULADOS
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - ao demandante cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir;
- os factos essenciais têm a natureza de factos essenciais nucleares se são aqueles que identificam ou individualizam o direito que se pretende exercer; se, não desempenhando tal função, se revelam imprescindíveis para que a ação proceda, são factos essenciais complementares;
- a falta destes últimos implica numa petição deficiente ou insuficiente, a carecer de convite ao aperfeiçoamento que permita suprir as falhas da exposição ou da concretização da matéria de facto;
- tendo sido alegado pelos AA terem arrendado imóvel ao R, que este abandonou o locado sem pagar rendas, que as rendas em mora que traduzem prejuízo no valor de € 47.400,00, impõe-se a prolação do despacho vinculado de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Aurores: (…), (…) e (…)
Recorrido / Réu: (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual os AA peticionaram a condenação do R a pagar-lhes € 47.400,00 acrescida de juros de mora desde a citação.
A petição inicial apresenta o seguinte teor:
«1. Os AA. arrendaram ao R. o imóvel melhor descrito no documento 1.
2. O R., abandonou o locado, sem pagar rendas.
3. Rendas essa em mora que traduzem um prejuízo no valor de € 47.400,00.
4. Valor este que terá que ser ressarcido.»

Regularmente citado, o R apresentou-se a contestar sustentando que deve ser absolvido e a ação deve ser julgada improcedente. Invoca, designadamente, que:
- os AA. não mencionam o facto correspondente ao eventual abandono do locado pois bem sabem que nunca ocorreu o abandono do locado, uma vez que o locado foi entregue aos AA. pelo menos há cerca de 1 ano atrás, sendo certo que nos dias seguintes fizeram arrendamento com outros inquilinos;
- os AA. não tem direito a qualquer valor nem a PI nem sequer identifica qualquer renda em dívida;
- a petição praticamente não contem factos e os que tem nem sequer tem determinação temporal;
- este processo não é mais que uma retaliação por os AA. nunca terem participado às Finanças as rendas pagas pelo R. e o R. os ter interpelado sobre isso, pois não pode incluir tais valores em sede de IRS;
- deve ser notificada a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para vir comunicar aos autos se o contrato de arrendamento foi comunicado às Finanças (em que data) e se os AA. comunicaram as rendas pagas (e em que datas);
- atendendo a que a Petição Inicial prima por uma ausência de factos em termos de causa de pedir, poderá ser proferido despacho saneador sentença e consequentemente o R. ser absolvido do pedido.

II – O Objeto do Recurso
Foi, de imediato, proferido despacho saneador absolvendo o R da instância atenta a nulidade do processo decorrente da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.
Inconformados, os AA apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que determine seja proferido despacho de aperfeiçoamento da petição inicial. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos, a qual, decidiu julgar nulo todo o processo, por ineptidão da petição inicial, e desse modo absolver o réu (…) da instância.
2. Discorda-se por completo do doutamente sentenciado, porquanto o R. na sua douta contestação, afirma que não deve qualquer quantia aos RR. após a desocupação do imóvel.
3. Mais afirma que cumpriu todas as obrigações decorrentes do contrato de arrendamento. Logo,
4. Percebeu perfeitamente o que se pedia com a presente ação.
5. Tanto assim é que o R., nem tal exceção invocou.
6. Caso dúvidas houvesse, deveriam os AA. serem convidados a aperfeiçoar a sua p.i.
7. Ao não fazê-lo o douto tribunal a quo violou o disposto no artigo 186.º, n.º 3, do CPC.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se a petição inicial não enferma de ineptidão, se em face dela é pertinente a prolação de despacho de aperfeiçoamento.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os supramencionados.

B – A questão do Recurso
Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CPC, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
Diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do CPC.
Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do numero anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial – artigo 186.º, n.º 3, do CPC.
Por via do princípio do dispositivo consagrado no artigo 5.º do CPC, “a iniciativa do processo e a conformação do respetivo objeto incumbem às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respetivo pedido, ou seja, indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de ação proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida.”[1]
Na verdade, ao demandante cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir – artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Temos, por um lado, os factos essenciais nucleares, aqueles que identificam ou individualizam o direito que se pretende exercer. Outros há que, “não desempenhando tal função, se revelam, contudo, imprescindíveis para que a ação proceda, por também serem constitutivos do direito invocado”[2] – são os factos essenciais complementares. “A falta destes últimos revelará uma petição deficiente ou insuficiente, a carecer de convite ao aperfeiçoamento que permita suprir as falhas da exposição ou da concretização da matéria de facto.”[3]
A causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão deduzida (artigo 581.º/4, do CPC), cumprindo ao autor que invoca a titularidade de um direito alegar os factos cuja prova permita concluir pela existência desse direito. Acolhida que foi, no nosso ordenamento jurídico, a teoria da substanciação, cabe ao autor “articular os factos dos quais deriva a sua pretensão, constituindo-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado apenas sobre os factos integradores dessa concreta causa de pedir. (…) A causa de pedir, servindo de suporte ao pedido, é integrada pelos factos (por todos os factos) de cuja verificação depende o reconhecimento da pretensão deduzida, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), (…).”[4]
Quando a narração fáctica inserta na petição inicial não permite alcançar qual é o fundamento de facto da pretensão de tutela jurisdicional formulada, não se identificando o tipo legal em que se alicerça o pedido por ter sido omitida a alegação de factos essenciais nucleares cuja função é a de individualizar a causa de pedir, ocorre ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir. Se a alegação, embora deficiente por ter sido omitida a alegação de factos complementares ou concretizadores que relevam para a procedência da ação, permite essa identificação, resultando dela a individualização da causa de pedir, a petição inicial não enferma de ineptidão, reclamando antes a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento fáctico do articulado, conforme previsto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC.[5]
Ora, por força do disposto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC, sobre o juiz recai o dever legal de, findos os articulados (cfr. n.º 2, alínea b), convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido. “O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos.”[6]
É o que sucede no caso em apreço.
O teor da petição inicial revela que a pretensão dos AA a obter a condenação do R a pagar a quantia de € 47.400,00, acrescida de juros de mora, radica na falta de pagamento de rendas devidas por força do contrato de arrendamento versado no documento junto com o referido articulado. Por conseguinte, apresenta-se individualizada a causa de pedir.
No entanto, omitiram os AA factos essenciais complementares, relevantes para a procedência da pretensão deduzida, impondo-se sejam concretizados a data de abandono do locado, o valor mensal devido a título de renda e os meses a que respeitam as rendas cujo pagamento alegadamente está em falta.
Impõe-se, por isso, a prolação do despacho de aperfeiçoamento vinculado.

Procedem, assim, as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre o Recorrido, na vertente de custas de parte – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando-se a prolação do despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial com vista a serem concretizados, designadamente, a data de abandono do locado, o valor mensal da renda e os meses a que respeitam as rendas cujo pagamento alegadamente está em falta.

Custas pelo Recorrido, na vertente de custas de parte.

*

Évora, 26 de outubro de 2023
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos
Cristina Maria Dá Mesquita

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[1] Lopes do Rego, O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Feitas, vol. I, pág. 789.
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição, pág. 30.
[3] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, ob. cit., pág. 30.
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 26.
[5] Seguindo de perto o exarado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Pires de Sousa, ob. cit., págs. 233 e 630.
[6] Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 704.