Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1287/22.3T8FAR-A.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: PEDIDO RECONVENCIONAL
INADMISSIBILIDADE
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Considerando que, através da reconvenção se pretende obter decisão que avalie o Alvará de licença de utilização do Domínio Público Hídrico das AA., concedido ao abrigo do Regime de Utilização dos recursos Hídricos, ao abrigo do qual as AA. manter instalações/equipamentos de apoio de praia, com carácter precário em área de domínio público hídrico, nos termos do disposto no DL n.º 226-A/2007, de 31/05, tal implica a análise do procedimento administrativo, sujeito ao Código de Procedimento Administrativo, concedido pela Administração da Região Hidrográfica do Algarve, que integra a APA – Agência Portuguesa do Ambiente, entidade não privada, no exercício de prerrogativas de poder público e sujeita a princípios de direito administrativo, pelo que tal matéria da reconvenção está subtraída, ab initio, à competência da jurisdição comum, por estar legalmente atribuída à jurisdição administrativa, conforme resulta dos artigos 1.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, alínea b) e 5.º, n.º 1, do E.T.A.F. e dos artigos 13.º do CPTA, 148.º do CPA e 212.º, n.º 3, da CRP.
II – Tratando-se do despacho onde se aprecia a admissibilidade da reconvenção a solução passa, no nosso entender, pela rejeição dessa reconvenção pois embora a questão da incompetência material não se confunda com a da inadmissibilidade processual do pedido reconvencional, não deixam de estar ligadas.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Nesta acção declarativa de condenação que (…), SA e Marina de (…) intentaram contra (…), Unipessoal, Lda. em 22.11.22 foi proferida a seguinte decisão:
«Despacho saneador
Incompetência absoluta em razão da matéria
Na contestação a ré suscita a incompetência deste Tribunal para conhecer da existência e validade do alvará de licença de utilização do domínio público hídrico, do qual depende a apreciação dos pedidos, que versa matéria atribuída à competência dos Tribunais Administrativos.
As autoras pronunciaram-se pela improcedência da referida exceção dilatória de incompetência.
Apreciando.
Como é sabido, qualquer causa, por força da lei definidora dos pertinentes pressupostos de conexão, deve ser instruída e julgada por determinado Tribunal ou Juízo, do que resulta, entre um e outro, um nexo jurídico de competência.
Por outro lado, a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, salvo no caso de a alteração superveniente do valor da causa implicar a competência de outro Tribunal/Juízo Central.
Nos termos do artigo 211.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, "Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais".
No mesmo sentido, o artigo 64.° do Código de Processo Civil dispõe que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Por seu turno, o artigo 1.°, n.º 1, do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, estabelece que:
"Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4 o deste Estatuto".
Neste normativo reafirmar-se a cláusula geral estabelecida no artigo 212.°, n.º 3, da Constituição, que define a competência material dos Tribunais Administrativos, como dizendo respeito aos litígios emergentes das relações jurídico-administrativas.
A delimitação do poder jurisdicional atribuído aos tribunais administrativos faz-se, pois, segundo um critério material, ligado à natureza da questão a dirimir, tal como resulta deste preceito, nos termos do qual "compete aos tribunais administrativos (…) o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios das relações jurídicas administrativas (…)".
Por sua vez, o artigo 3.° do ETAF, estatui que "Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas e fiscais".
E, nos termos do artigo 4.° do ETAF veio o legislador indicar exemplificativamente os litígios que se encontram incluídos no âmbito da jurisdição administrativa, assim como aqueles que dela se encontram excluídos.
A decisão acerca da competência passará, pois, por saber se a situação em análise é integrável neste preceito e se serão competentes os tribunais administrativos ou se, antes, competirá à jurisdição comum o seu conhecimento.
No caso concreto, verificamos que a pretensão das autoras assenta no disposto nos artigos 432.°, 801.°, 817.° e 562.° do Código Civil, mormente no incumprimento das obrigações assumidas pela ré nos acordos celebrados, que lhes confere direito à resolução dos contratos firmados com a ré e o direito a serem indemnizadas pelos prejuízos sofridos e à restituição dos equipamentos entregues.
O que vale por dizer que, como as autoras configuram na petição inicial, encontra em discussão litígio emergente de relação jurídica privada, nomeadamente dos acordos de colaboração, respetivos pressupostos do incumprimento e do direito de resolução e de indemnização, os quais se encontram regulados na lei civil.
Pelo que, concluímos, o presente litígio não se compreende nas questões previstas no citado artigo 4.°, n.º 1, do ETAF, sendo competente para a sua apreciação a jurisdição comum.
Pelo exposto, ao abrigo dos citados preceitos legais, julgo improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria.»
Veio a Ré recorrer desta decisão com as seguintes conclusões:
«III. A determinação da competência do tribunal, em razão da matéria, deve ser fixada face ao teor da petição inicial e tomando em conta, por um lado, a pretensão formulada e, por outro, a relação jurídica ou situação factual descrita nessa peça processual.
IV. Aferindo-se a competência do Tribunal em razão da matéria em função do objeto do processo, delimitado pela causa de pedir e pelo pedido, nos termos conformados pelo autor.
V. Em sede de audiência prévia, que decorreu no dia 22 de novembro de 2022, no âmbito dos presentes autos, foi definido o seguinte objeto do litígio “Qualificação dos acordos celebrados entre autoras e ré; justa causa para a resolução desses acordos; consequências da resolução; caducidade das licenças e nulidade dos acordos; consequências da nulidade dos acordos; danos causados pelas autoras à ré; atuação da ré em abuso de direito; litigância de má-fé da ré.”
VI. Constituindo temas de prova:
“1- Localização dos equipamentos objeto dos acordos celebrados entre autoras e ré
2- Validade dos acordos celebrados entre autoras e ré
3- Incumprimento desses acordos pela ré
4- Reconhecimento da dívida pela ré
5- Plano de pagamento proposto pela ré
6- Causa da resolução realizada pelas autoras
7- Entrega por acordo das partes de um dos equipamentos
8- Caducidade das licenças concedidas às autoras
9- Consequências dessa caducidade
10- Danos causados pelas autoras à ré
11- Actuação da ré em abuso de direito
12- Litigância de má-fé da ré”
V. As Recorridas peticionam nos presentes autos a condenação da Ré em a) Reconhecer e decretar os acordos de colaboração e aditamentos relativos ao estabelecimento “Snack-Bar (…)” e “Quiosque (…)”, resolvidos com justa causa e com efeitos após notificação da Ré, promovida pela 2ª Autora; b) Reconhecer e decretar o termo por caducidade do acordo de colaboração relativo ao estabelecimento “Quiosque (…)” e respectivo aditamento, à data de 31-10-2021; c) Condenar a Ré a proceder à restituição imediata dos estabelecimentos “Snack-Bar (…)” e o “Quiosque (…)” que integram o apoio de praia simples sito na (…), praia de (…), freguesia de (…), concelho de Loulé, às AA; d) Condenar a Ré ao pagamento da quantia de € 122.277,16 (cento e vinte e dois mil, duzentos e setenta e sete euros e dezasseis cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos, custa e o que mais for de lei, até integral e efetivo pagamento.
VI. Fundando o seu pedido no facto da 1ª Autora ser titular do Alvará de Licença de Utilização do Domínio Público Hídrico n.º (…), emitido pela ARH – Administração da Região Hidrográfica do Algarve, que integra a APA – Agência Portuguesa do Ambiente, que lhe permite manter instalações com carácter precário em área de domínio público hídrico, na praia de (…), (…), freguesia de (…), concelho de Loulé, nomeadamente apoio de praia simples, ao abrigo do disposto no DL 226-A/2007, de 31/05.
VII. Ao contrário do que as Autoras referem, não resulta claro que os estabelecimentos em causa nos presentes autos, nomeadamente o “Snack-Bar (…)” e o “Quiosque (…)” se encontrem em área de domínio público hídrico.
VIII. Nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, a margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 metros.
IX. Referindo o n.º 5 do artigo 11.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro que, quando tiver natureza de praia em extensão superior à estabelecida nos números anteriores, a margem estende-se até onde o terreno apresentar tal natureza.
X. As instalações Snack-Bar (…) e Quiosque (…) encontram-se localizadas a mais de 50 metros da margem das águas do mar.
XI. Apesar disso as referidas instalações encontram-se classificadas, segundo a APA, como instalações de carácter precário situadas em área de domínio público hídrico.
XII. Ao contrário do que ocorre com outras instalações, situadas no mesmo concelho e freguesia, que por se encontrarem a uma distância superior a 50 metro da margem da água do mar, segundo a mesma entidade administrativa, estão classificadas pela mesma entidade como zonas excluídas da área de domínio público hídrico.
XIII. Questão que se impõe definir segundo os critérios definidos na Lei 54/2005, de 15 de novembro e em obediência aos princípios constitucionalmente consagrados da igualdade e da universalidade, previstos nos artigos 12.º e 13.º da CRP.
XIV. Matéria esta da competência dos Tribunais Administrativos, de acordo com o artigo 4.º do ETAF.
XV.Além do mais, para apreciação dos pedidos realizados nos presentes autos impõe-se a verificação da existência de Alvará de Licença de Utilização do Domínio Público Hídrico n.º 21 DTHL, emitido pela ARH – Administração da Região Hidrográfica do Algarve, que integra a APA – Agência Portuguesa do Ambiente, a favor das Recorridas, relativamente aos estabelecimentos “Snack-Bar (…)” e “Quiosque (…)”, emitida.
XVI. Sendo da competência dos órgãos municipais no domínio da gestão das praias marítimas, fluviais e lacustres integradas no domínio público hídrico do Estado, segundo o Decreto-Lei n.º 97/2018, de 27 de novembro.
XVII. Matéria que compete aos Tribunais da jurisdição administrativa, nos termos do disposto no artigo 4.º do ETAF.
XVIII. Verificando-se a incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, em função da matéria, para conhecer das referidas questões.
XIX. Incompetência esta que pode ser arguida pelas partes ao abrigo do disposto no artigo 97.º, n.º 1, do CPC.
XX. Constituindo a incompetência absoluta do Tribunal em função da matéria uma exceção dilatória, nos termos do disposto no artigo 577.º, alínea a), do CPC.
XXI. A qual determina a absolvição da instância nos termos do disposto nos artigos 278.º e 279.º do CPC.
XXII. Tendo o Tribunal a quo no douto despacho saneador, violado as supracitadas disposições legais.
XXIII. As licenças referentes aos estabelecimentos Snack-Bar (…) e Quiosque (…) foram emitidas a favor da (…) – Empreendimentos (…) e Turísticos S. A., com o prazo de 31/12/2017.
XXIV. Tendo a sua validade sido prorrogada, segundo o teor do documento n.º 6 junto pelas Autoras com a petição inicial “...até à decisão final do procedimento concursal com o prazo máximo de dois anos após o término da licença”.
XXV. Ou seja, até 31 de dezembro de 2019.
XXVI. Encontrando-se caducado o referido título de utilização, nos termos do disposto no artigo 33.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, que regula o regime de utilização dos regimes hídricos.
XXVII. De acordo com o qual os títulos de utilização caducam com o decurso do prazo fixado.
XXVIII. Pelo que, não são as Autoras atualmente titulares de quaisquer licenças relativas aos estabelecimentos “(…) Beach Bar” e “Quiosque (…)” que lhes atribua legitimidade para peticionar a condenação da Ré a proceder à restituição às mesmas dos referidos estabelecimentos, que integram o apoio de praia simples sito na (…), praia de (…), freguesia de (…), concelho de Loulé.
XXIX. Situação que, como se referiu, ocorre desde 31/12/2019.
XXX. Nos termos do disposto nos artigos 576.º e 577.º, e), do CPC, a ilegitimidade constitui exceção dilatória, a qual é de conhecimento oficioso pelo Tribunal e importa a absolvição da instância, segundo o disposto nos artigos 278.º e 279.º do referido diploma legal.
XXXI. A ilegitimidade das partes constitui exceção dilatória prevista no artigo 577.º, e), do CPC, tendo a referida exceção como consequência a absolvição da instância nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, d) e 279.º do CPC.
XXXII. Termos em que, deveria o tribunal a quo ter julgado procedente a exceção de ilegitimidade das partes invocada, em cumprimentos das supracitadas disposições legais, com as consequências legais nelas previstas.
Nestes termos e nos mais e melhor de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, substituir-se o douto despacho recorrido por outro que julgue procedentes as exceções de incompetência absoluta do Tribunal em função da matéria e de ilegitimidade das partes invocadas, assim se fazendo Justiça.»
Não há contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos relevantes constam deste relatório.

2 – Objecto do recurso.

Questão a decidir, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
Saber se é o tribunal comum ou o administrativo o materialmente competente para julgar a acção.


3 - Análise do recurso.

O poder jurisdicional encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas suscitadas perante eles – cfr. artigos 209.º e segs. da Constituição da República Portuguesa.
Para além do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, a CRP consagra a existência, na ordem jurídica portuguesa, de uma dualidade de jurisdições: a jurisdição comum e a jurisdição administrativa [cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Anotada, Tomo III, 2007, pág. 143].
Na sequência destes princípios programáticos, também o legislador ordinário, nos artigo 64.º do CPC e n.º 1 do artigo 40.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, estabeleceu que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, estabelecendo o artigo 144.º da referida Lei que aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
O disposto no artigo 212.º, n.º 3, da CRP, encontra-se transposto para o artigo 1.º e concretizado no artigo 4.º do ETAF, sendo, portanto, à luz daquela norma constitucional, que hão-de ser interpretados os correspondentes preceitos do ETAF e, também, da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Da conjugação dos normativos legais acabados de citar, resulta que os tribunais administrativos e fiscais constituem a jurisdição ordinária da justiça administrativa, não apresentando a respectiva competência natureza excepcional, em relação aos tribunais comuns.
Temos, pois, que a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.
Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal não judicial. Isto é, são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual.
A competência em razão da matéria é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, “seja quanto aos seus elementos objectivos (v.g. natureza da providência ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputantum (quid decidendum, em antíntese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”. (…) É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, compreendidos aí os respectivos fundamentos”, ou seja, em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o Tribunal, a competência afere-se pelo quid disputatum ou quid decidendum, em antítese com o que, mais tarde, será o quid decisum. Em suma, a competência determina-se pelo pedido do autor, e tal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da ação, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objetivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjectivos.
Segundo Manuel de Andrade, a competência em razão da matéria atribuída aos tribunais, baseia-se na matéria da causa, no seu objecto, "encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada."
É, pois, pacífico o entendimento de que o pressuposto processual da competência se determina em função da acção proposta, tanto na vertente objectiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjectiva, respeitante às partes, importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.
A competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos, ou seja, a articulação com a causa de pedir.
Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, à relação jurídica tal como o autor a configura.
Ora, no caso dos autos, a delimitação do litígio tal como é configurado na PI não oferece dúvidas quanto à sua natureza não administrativa, nem o recorrente defende o contrário.
Com efeito, na PI pede-se que se:
«a) Reconheça e decrete os acordos de colaboração e aditamentos relativos estabelecimento “Snack-bar (…)e “Quiosque (…)”, resolvidos com justa causa, e com efeitos após notificação da R. promovida pela 2ª A.;
b) Reconheça e decrete o termo, por caducidade, do acordo de colaboração relativo ao estabelecimento “Quiosque (…)” e respetivo aditamento, à data de 31/10/2021;
c) Condene a R. a proceder à restituição imediata dos estabelecimentos “Snack-Bar (…)” e o “Quiosque (…)”, que integram o apoio de praia simples sito na (…), praia da (…), freguesia de (…), concelho de Loulé, às A.A.;
d) Condene a R. ao pagamento da quantia de € 122.277,16 (cento e vinte e dois mil, duzentos e setenta e sete euros e dezasseis cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos, custas e o que mais for de lei, até integral e efetivo pagamento.»
As AA. apresentam-se nos autos com proprietárias de equipamentos (apoio) de praia, quiosques e snack bar, objecto dos acordos de exploração celebrados com a ré e invocam o seu incumprimento por violação das obrigações de pagamentos devidas pela ré, inexistindo qualquer facto ligado ao uso de poderes de autoridade ou de função administrativa, mas apenas obrigações no âmbito da sua autonomia negocial.
O litígio discutido nos autos refere-se ao exercício de direitos decorrentes de contratos privados.
O que está em causa é o incumprimento das obrigações decorrentes desses acordos de natureza privada: montantes mínimos garantidos que a R. deveria entregar à 2ª A., a obrigação da Ré assegurar todos os pagamentos inerentes à atividade e funcionamento de todos os estabelecimentos, nomeadamente e para o que interessa nos presentes autos, os consumos de electricidade e água, cujo fornecimento junto das entidades fornecedoras dos mesmos é assegurado pela 1ª A., e debitado à R., em conformidade com o estabelecido.
É, pois, com base na responsabilidade civil contratual (artigo 483.º e seguintes do CC) que a Autora reclama a indemnização.
O litígio configurado pelas AA. refere-se ao exercício de direitos decorrentes de contratos privados, sem que esteja em causa qualquer situação disciplinada por normas de direito administrativo.
A questão colocada no recurso emerge apenas do “objecto” introduzido pelo pedido reconvencional.
A ré vem pôr em causa a competência material do tribunal comum, invocando para o efeito que, se impõe a verificação da existência de Alvará de Licença de Utilização do Domínio Público Hídrico n.º 21 DTHL, emitido pela ARH – Administração da Região Hidrográfica do Algarve, que integra a APA – Agência Portuguesa do Ambiente, a favor das Recorridas, relativamente aos estabelecimentos “Snack-Bar (…)” e “Quiosque (…)”, emitida, o que é da competência dos órgãos municipais no domínio da gestão das praias marítimas, fluviais e lacustres integradas no domínio público hídrico do Estado, segundo o Decreto-Lei n.º 97/2018, de 27 de Novembro, matéria que compete aos Tribunais da jurisdição administrativa, nos termos do disposto no artigo 4.º do ETAF.
Ou seja, defende no recurso que a apreciação e julgamento da matéria da reconvenção está subtraída, ab initio, à competência da jurisdição comum, por estar legalmente atribuída à jurisdição administrativa.
Resulta dos autos que a Ré deduziu pedido reconvencional pedindo:
«a condenação das AA. a pagar à Ré 1.575.817,97 euros a título de restituição das quantias entregues pela ré às AA. na sequência da declaração de nulidade dos “Acordos de colaboração” celebrados ao abrigo do disposto no artigo 289.º do CC ou, caso assim não se entenda, alternativamente a restituição da referida quantia a título de enriquecimento sem causa nos termos do disposto no artigo 473.º do CC.; 3.384,56 euros e juros legais desde a citação, a titulo de indemnização civil pelos danos patrimoniais causados e ainda 1.000,00 euros e juros legais desde a citação a titulo de indemnização civil pelos danos morais causados.»
A Ré alicerça este pedido reconvencional alegando em síntese que os “acordos de colaboração” celebrados com a Autora, em causa na PI, contrariavam o Alvará de licença de utilização do Domínio Público Hídrico das AA., concedido ao abrigo do Regime de Utilização dos recursos Hídricos previsto no DL. 226-A/2007, situação que a Ré desconhecia, concluindo que tais acordos são nulos e devem ser restituídas à Ré as quantias entregues às AA. com base nos acordos nulos, ou subsidiariamente por enriquecimento sem causa, atenta a invalidade do negócio jurídico.
O legislador da reforma de 2015 concentrou a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, aí enumerando os litígios cuja resolução lhe é confiada. Fá-lo de forma que, a partir da entrada em vigor do ETAF, se deve ter por taxativa, reservando um papel subsidiário ao critério constitucional, ainda que se possa afirmar que a maioria das normas nele contidas se limitam a concretizá-lo em face de determinadas matérias e questões.
É a essa luz que se deve entender a previsão do artigo 4.º do ETAF.
Estatui-se no artigo 4.º do ETAF que:
“1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de actos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
[…]
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes acções de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. […]”.
Relevante é o conceito de relação jurídica administrativa.
A competência em causa decorrerá de o litígio emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa, máxime de um contrato administrativo, ou seja, não será apenas a qualidade pessoal de uma das partes – ser ou não um ente público – nem o tipo de interesses que ela defende na relação conflitual que será decisivo na determinação do tribunal competente.
Seguimos de perto o Ac. do STJ de 8.10.2015, proc. n.º 1085/14.8TBCTB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, para cujos argumentos remetemos e onde se pode ler o seguinte:
«Com a reforma do contencioso administrativo, a pedra de toque para a atribuição da competência em razão da matéria aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais deixou de ser a distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada, para passar a ser o conceito de relação jurídica administrativa, considerado um conceito quadro muito mais amplo do que o de gestão pública. A jurisdição administrativa para além de abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado, passou também a abarcar a responsabilidade das pessoas colectivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».
Aqui chegados, reportando-nos ao caso apreço, e na ponderação dos normativos legais e de tudo o mais que que supra deixámos exarado, concretizando diremos o seguinte:
Considerando que os Réus/Reconvintes, aqui Recorrentes, pretendem, através da reconvenção obter decisão que avalie o Alvará de licença de utilização do Domínio Público Hídrico das AA., concedido ao abrigo do Regime de Utilização dos recursos Hídricos, ao abrigo do qual as AA. manter instalações/equipamentos de apoio de praia, com carácter precário em área de domínio público hídrico, nos termos do disposto no DL n.º 226-A/2007, de 31/05, tal implica a análise do procedimento administrativo, sujeito ao Código de Procedimento Administrativo, concedido pela Administração da Região Hidrográfica do Algarve, que integra a APA – Agência Portuguesa do Ambiente, entidade não privada, no exercício de prerrogativas de poder público e sujeita a princípios de direito administrativo.
Entendemos, pois, que a apreciação e julgamento da matéria da reconvenção está subtraída, ab initio, à competência da jurisdição comum, por estar legalmente atribuída à jurisdição administrativa, conforme resulta dos artigos 1.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, alínea b) e 5.º, n.º 1, do E.T.A.F. e dos artigos 13.º do CPTA, 148.º do CPA e 212.º, n.º 3, da CRP.
Este tribunal comum carece, assim, de competência material para o conhecimento do pedido reconvencional.
A incompetência (absoluta) em razão da matéria constitui uma excepção dilatória insanável, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância – artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 98.º, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a), do Código de Processo Civil , pelo que verificando-se a excepção de incompetência da jurisdição comum, em razão da matéria, para apreciar e julgar a reconvenção, impõe-se absolver a Autora / Recorrida da instância reconvencional.
Mas tratando-se do despacho onde se aprecia a admissibilidade da reconvenção a solução passa, no nosso entender, pela rejeição dessa reconvenção.
Embora a questão da incompetência material não se confunda com a da inadmissibilidade processual do pedido reconvencional, não deixam de estar ligadas.
Tratando-se, ambas, de excepções dilatórias, colocam-se, no entanto, em momentos distintos, havendo, primeiro, que averiguar da competência material e, só após, da admissibilidade da reconvenção, sendo certo que poderá o tribunal ser materialmente competente, mas não ser a reconvenção admissível.
Com efeito, com a reconvenção passaria a haver duas acções cruzadas no mesmo processo. E esse cruzamento de acções só pode ser admitido em certos termos, sob pena de se poder facilmente subverter toda a disciplina do processo.
Há pressupostos de admissibilidade da reconvenção de carácter processual e de carácter substancial, sendo um dos requisitos de natureza adjectiva a competência do tribunal em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia (artigo 98.º) e a compatibilidade processual exigida pelo n.º 3 do artigo 274.º.
Desta forma, a admissão da reconvenção tem subjacente a afirmação da competência material para a mesma (só aparentemente são questões distintas).
Essa decisão não é tabelar, antes implica um juízo de conformidade com a sua inserção na acção que corria seus termos.
Aliás, o que se estranha é que a ré tenha deduzido a reconvenção em causa e em simultâneo tenha vindo defender a competência em razão da matéria, o que se afigura contraditório.
Em suma.
Discordamos deste modo da decisão recorrida, ao concluir pela competência do tribunal, em razão da matéria e admitir a reconvenção, que, antes, deve ser objecto de rejeição, com base na incompetência exposta.

Sumário: (…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida rejeitando-se a reconvenção, pela verificada incompetência material à mesma inerente.
Custas conforme vencimento a final.
Évora, 07.11.2023
Elisabete Valente
José António Moita
Manuel Bargado