Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
62/19.7MAPTM.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: CRIME DE INCÊNDIO
TENTATIVA IMPOSSÍVEL
MANIFESTA INEPTIDÃO DO MEIO
JUÍZO EX ANTE
PROGNOSE PÓSTUMA
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: I. Recorrendo a um juízo ex ante, de prognose póstuma, e do ponto de vista de um observador normal, colocado nas circunstâncias concretas, se a ação do arguido não se apresenta adequada, manifestamente, para colocar em perigo o resultado típico, ocorre tentativa impossível da prática do crime.
II. A tentativa impossível no caso não é, punível pois, muito embora os atos praticados pelo arguido sejam atos de execução (capazes de ofender o bem jurídico), é patente (objetivamente) que, naquelas concretas circunstâncias, tais atos não podiam ofender o bem jurídico.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Coletivo n.º 62/19.7MAPTM da Comarca ... Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., submetido a julgamento, foi o arguido AA[1] condenado pela prática de um crime de incêndio na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 272.º, n.º 1, alínea a) e 22.º do CP na pena de três anos de prisão.


2. Do recurso
2.1. Das conclusões do arguido
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“I. O recurso que agora se interpõe, visa toda a matéria de facto e de direito do acórdão proferido em primeira instância nos presentes autos, o qual condenou o recorrente/arguido como autor material de um crime de incêndio na forma tentada p. e p. pelo artigo 272.º/1-a) e 22.º ambos do CP.
II. O tribunal a quo, deu como provado que: “(…) o arguido retirou a mangueira do encaixe da bomba e acendeu um isqueiro junto à ponta da mangueira, ateando uma chama ao gasóleo (…)”. (facto provado n.º 5)
III. A convicção formada no tribunal e plasmada no aresto sub juditio, teve assento essencialmente no testemunho do funcionário da bomba BB, única pessoa a presenciar os factos e descrevê-los na audiência de julgamento, bem como no acervo documental.
IV. Assim, o depoimento da testemunha BB (gravado no sistema instalado no tribunal para o efeito, tem a referência n.º ………, com início ás 00,00h e finda ás 00,00h (duração – 00:00:01 a 00:00:02), por referência à ata da audiência de julgamento de 00/00/00, resulta que o recorrente/arguido, com o seu isqueiro, não ateou qualquer chama ao gasóleo, junto à ponta da mangueira, os pingos residuais de gasóleo que estavam na mangueira é que ao passarem pela chama do isqueiro, inflamaram-se tendo caído acesos no chão e extinguiram-se quase de imediato.
V. Relembre-se: “(…) a bomba estava trancada, mas ainda saíram algumas pingas que estavam retidas dentro da mangueira, está sempre algum resto que pinga, e quando passaram pelo lume do isqueiro, caíram no chão e ardeu, mas de resto não foi assim uma coisa, não chegou a causar perigo” (passagem registada das 14:30:40 h a 14:31:47h)
VI. O tribunal a quo deu como provado: “ (…) o arguido originou uma chama viva no chão.” (facto provado n.º 6)
VII. Não há qualquer prova que afira ter existido uma chama “viva” no chão.
VIII. Pelo contrário, o que se retira do testemunho do BB é: “(…) algum resto que pinga, e quando passaram pelo lume do isqueiro, caíram no chão e ardeu, mas de resto não foi assim uma coisa (…). (Passagem acima transcrita)
IX. Tanto mais, é do conhecimento geral, que o gasóleo não produz uma chama viva, mas sim uma chama lenta, pois nos motores a gasóleo o movimento destes é provocado por compressão do gasóleo e não por explosão, como sucede com os motores a gasolina.
X. O tribunal a quo deu como provado: “(…) o fluxo de combustível estava fechado através de um comando de controlo existente no computador no interior da loja e, consequentemente a chama existente no chão extinguiu-se.” (facto provado n.º 7)
XI. Como é bem de ver, não existiu qualquer relação entre o facto do fogo se ter extinguido e o facto da bomba estar trancada.
XII. A bomba estava trancada como sempre está, até ser destrancada no computador para permitir o seu uso pelos clientes (é a prática comum da empresa),
XIII. E o fogo exigiu-se, porque o combustível era muito pouco e rapidamente se acabou.
XIV. Não se pode é dizer, que o fogo se extinguiu pelo facto de a bomba estar trancada.
XV. O tribunal a quo deu como provado: “O arguido quis atear o fogo aquela bomba, conforme ateou, e o fogo só não se propagou a toda a bomba de combustível e aos tanques cheios de combustível, bem como aos veículos ali estacionados e aos que eventualmente ali pudessem entrar para abastecer, porque o fluxo de combustível estava normalmente fechado através do controlo remoto, e dessa forma evitou a propagação das chamas.” (facto provado n.º 8)
XVI. No acórdão decisório lemos: “(…) prática de um crime de incêndio na forma tentada, (…)”
XVII. No facto n.º 8, que fundamenta a decisão lemos: “O arguido quis atear o fogo aquela bomba, conforme ateou, (…)” assim sendo, estamos aqui estamos perante um crime de incêndio na forma consumada”
XVIII. Temos assim uma decisão num sentido contrário ao do facto dado como provado.
XIX. Quando foi questionada pela senhora Juiz Presidente do colectivo: “Haviam carros estacionados?”. (passagem acima registada)
XX. A testemunha BB respondeu: “Não, nesta altura a bomba estava vazia.” (cfr. transcrição supra)
XXI. Tendo insistido a senhora Juiz: “Está a dizer que não havia carros nem carros perto do restaurante”:
XXII. Voltando a testemunha a responder: “Que eu me lembre, ou que me tenha apercebido a bomba estava vazia porque já era bastante tarde na noite (…)”.
XXIII. Ora, se o testemunho do funcionário BB é perentório, quanto à inexistência de pessoas ou viaturas na bomba naquele espaço de tempo,
XXIV. Como pode ser dado como provado que os carros ali estacionados correram perigo?
XXV. Leia-se o facto provado n.º 8: “(…) só não se propagou a toda a bomba de combustível, bem como, aos veículos ali estacionados (…)”
XXVI. Efectivamente como se pode ouvir do testemunho, a bomba estava completamente vazia.
XXVII. Devia o facto nº 8 ter sido dado como não provado,
XXVIII. Tendo sido incorrectamente julgado, violando o disposto nos limites que balizam a livre apreciação da prova.
XXIX. Concluindo que a condenação do arguido assenta em factos dados como provados desconformes com a prova produzida em audiência!
XXX. O tribunal a quo, ao ter dados como provados, os factos 5,6,7,e 8, constantes no acórdão agora sob recurso, prova que não resultou da prova produzida em julgamento, viola o disposto nos artigos 127º e 355º/1 do CPP.
XXXI. Fossem estes factos dados como não provados, e a fundamentação do acórdão condenatório não existiria ou pelo menos estaria muito abalada. Por insuficiência.
XXXII. De todos os factos dados como provados ou não, em nenhum deles se retira que tenha havia qualquer manifestação de vontade ou intensão de incendiar a bomba de combustível,
XXXIII. Apenas se pode retirar que o arguido pretendia chamar a atenção sobre si, por estar doente, necessitado de socorro, mentalmente instável.
XXXIV. Que na eventualidade do incêndio da bomba se tornasse realidade, faria do arguido a primeira vítima.
XXXV. Que estando a bomba trancada o meio utilizado pelo arguido/recorrente para incendiar a bomba, era impossível de concretizar.
XXXVI. Caindo na figura da tentativa impossível do artigo 23º do CP, cuja punibilidade carece da existência de um dolo de duplo grau, cuja prova do mesmo não foi demonstrada suficientemente no acórdão apreciando. Muito menos ficando realizada a imputação objectiva dos factos ao agente.
XXXVII. O crime pelo qual o arguido foi condenado, incêndio, tem uma componente quantitativa, “incêndio de relevo”, e a prova produzida, não concretizou qualquer incêndio de relevo,
XXXVIII. mormente pela forma enferma como os factos que sustentaram a decisão, foram dados por provados.
Também já se viu que não houve qualquer viatura posta em perigo, mais uma vez existindo erro quanto à valoração da prova produzida em audiência.
Por tanto, a verdade material procurada, não terá sido alcançada, ou perdida no princípio in dubio pro reo.
Também, o fundamento que estribou a não suspensão da pena na sua execução, foi erradamente dado como provado, pois o recorrente confessou ter abandonado todas as drogas, à excepção do álcool, mantendo hoje um estilo de vida muito diferente daquele que praticava ao tempo dos factos pelos quais foi julgado.
XLI. Sem conceder, por razões de proporcionalidade, oportunidade, confissão, arrependimento, prevenção geral e especial, a suspensão da pena aplicada, na sua execução, parece ser aquela que melhor serve os fins das penas e a realização da melhor Justiça.
Termos em que, e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, o recorrente ser absolvido, ou caso assim se não entenda não punido pelo eventual crime praticado, ou se ainda assim se não entender, seja suspensa na sua execução a pena que lhe possa ser aplicada. (…)”.


2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1 – O arguido AA, vem recorrer do douto Acordão proferido nos autos à margem referenciados, que o condenou, pela prática pela prática de um crime de Incêndio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 272.º, n.º 1, alínea a) e 22.º, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.
2 – O recorrente entende que o Tribunal fez uma errada apreciação da prova já que não foi produzida prova suficiente que permita a sua condenação pela prática do referido crime.
3 – Em concreto considera que os factos provados em 6 a 8 foram mal julgados.
4 - Resulta claro da motivação do Acordão, que a sua convicção teve assento nas declarações prestadas pelo arguido, que confirmou ter estado no local, mas não se recordar dos factos, no depoimento da testemunha BB, funcionário da “Repsol” e de CC, agente da Polícia Marítima autuante.
5 - Desses depoimentos conjugados não restam dúvidas de que os factos dados em 6., 7. e 8. como provados tiveram pleno apoio na prova produzida em audiência sendo que as questões levantadas pelo recorrente são de mera semântica.
6 - Discorda que se haja referido que foi originada uma chama viva no chão, mas concorda que “um resto/pinga” de combustível caiu no chão e ardeu.
7 - Impugna o facto 7. Porque entende que não existiu qualquer relação entre o facto do fogo se ter extinguido e o facto da bomba estar trancada, mas depois refere que a razão da extinção foi a pequena quantidade de combustível existente na mangueira.
8 - Coloca em causa o facto 8. porque entende que do depoimento da testemunha BB resultou que não existiam quaisquer veículos estacionados nas imediações sendo que nesse mesmo facto o Tribunal textualmente considerou que o incêndio só não se propagou por uma série de razões, entre as quais a bomba estar trancada, não terem entrado veículos na bomba para abastecer.
9 - O recorrente não afirma que tais factos resultaram não provados mas apenas que deviam ter outra formulação que, mesmo a existir, em nada alteraria a qualificação jurídica ou a responsabilidade criminal do arguido.
10 - Assim, concluímos que a matéria de facto dada como provada está suportada pela prova produzida em audiência razões objectivas para que o tribunal de recurso modifique essa prova no sentido pretendido pelo recorrente.
11 - Nenhuma censura merece o Acordão recorrido quanto à qualificação jurídica pois não há dúvida que os factos provados são integradores do crime de incêndio tentado pelo qual o arguido foi condenado.
12 - O crime de incêndio, enquanto crime de perigo comum é um crime de perigo concreto em que a violação do bem jurídico está iniludivelmente ligada à ideia de dano – dano esse que enquanto realidade dogmática teria o mesmo valor de perigo – sendo, por isso, um crime de resultado.
13 - O mencionado perigo para bens patrimoniais de valor elevado, para a vida ou para a integridade física de outra pessoa existe a partir do momento em que não for possível assegurar a integridade do bem jurídico que entrou na esfera da acção típica, tendo a sua lesão ficado dependente do acaso" (vide Acordão do S.T.J., de 08-11-2018, in dgsi.pt).
14 - Quanto aos actos preparatórios verificamos que, na generalidade dos tipos legais de crime, não são puníveis (v.g. artigos 271.º, 275.º e 344.º, do Código Penal) - art. 21.º, do Código Penal.
15 - Já a tentativa, enquanto prática de actos de execução de um tipo de crime (sem que este chegue a consumar-se), em princípio, é punível.
16 – O n.º 2, do artigo 22.º, do Código Penal, enumera o que são actos de execução.
17 - In casu, o arguido munido de um isqueiro dirigiu-se a uma bomba de combustível, retirou a mangueira no suporte, carregou no manípulo e acendeu o isqueiro junto ao local onde sai o combustível.
18 - Assim, concluímos que o arguido preparou o crime quando se muniu do isqueiro, agarrou na mangueira e premiu o manípulo e acendeu o isqueiro junto à extremidade de onde verte combustível.
19 - Contrariamente ao sustentado pelo recorrente, a aludida conduta do arguido é idónea, é adequada, à realização do tipo de incêndio (art. 272.º Código Penal), constitui um acto de execução e foi, de facto, criado perigo para os bens jurídicos protegidos.
20 - No que respeita ao elemento subjectivo do crime, a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados.
21 - Daí que o tribunal a quo tenha considerado, na Motivação da decisão e nos factos provados, que “não ficou com quaisquer dúvidas que o arguido agiu livre e voluntariamente” e que “sabia que o fogo necessariamente se propagaria rápida e incontrolavelmente por toda a bomba de combustível, assim como aos tanques cheios de combustível, aos veículos estacionados e eventualmente aos veículos circundantes, casas circundantes e ainda pôr em perigo a vida e a integridade física dos funcionários e clientes do posto de combustível, e bens patrimoniais de valor avultado, o que quis e que só não conseguiu por razões alheias à sua vontade.”
22 - O tribunal não errou no doseamento da pena.
23 - O crime de incêndio tentado é punido com pena de prisão de sete meses e seis dias a seis anos e quatro meses e o arguido foi condenado na pena de 3 anos de prisão.
24 - O Acórdão a quo tomou em linha de conta todas as circunstâncias impostas: o grau de ilicitude acentuado, atento nomeadamente aos estragos que poderiam ser provocados pelo arguido, as elevadas necessidades de prevenção especial, uma vez que o arguido possui antecedentes criminais, “passou parte da sua vida privado da liberdade o que não o demoveu de adoptar esta conduta.”
25 - Mais analisou o Acórdão a personalidade demonstrada pelo arguido e a falta de inserção social e a ausência de interiorização da gravidade das suas condutas.
26 - Para além destes aspectos, não podem também deixar de se considerar, como fez o tribunal, as fortíssimas exigências ao nível da prevenção geral.
27 - No que concerne à eventual suspensão da pena, apesar do pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão se encontrar verificado, já que o arguido foi condenado na pena de 3 anos de prisão, entendemos que o pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição não se verifica, tendo em conta a factualidade dada como provada no Acórdão.
28 – A ausência de inserção social do arguido, o seu percurso de vida criminal, os seus excessivos consumos de álcool e total ausência de apoio familiar, somos conduzidos, inevitavelmente, ao juízo que esteve na base da d. decisão recorrida, de que a simples ameaça da prisão já não se mostra suficiente para realizar as finalidades da punição.
29 - Não existindo um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não violou o Tribunal a quo o disposto no art. 50.º, n.º 1 do Código Penal, ao não suspender a execução da pena aplicada ao arguido.
30 - Só esta decisão permite manter o sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada pelo arguido, sentimento que ficaria afetado pela substituição da pena pela suspensão de execução, mesmo que sujeita a condições.
Pelo exposto, julgamos não merecer censura a decisão recorrida, por obedecer a todos os requisitos legais e não ter violado qualquer norma.”.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo arguido.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são:
2.1. Impugnação da matéria de facto:
2.1.1. Por verificação de erro de julgamento quanto aos factos provados (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP);
2.1.2. Por verificação dos vícios da sentença previstos nas alíneas b) e c) do artigo 410.º, n.º 2 do CPP;
2.2. Impugnação da matéria de direito por erro de julgamento quanto à matéria de direito (artigo 412.º, n.º 2 do CPP) em virtude:
2.2.1. Da falta de preenchimento dos elementos do tipo do crime de incêndio;
2.2.2. De a ação do arguido configurar uma tentativa impossível de incêndio;
2.2.3. Da não aplicação da suspensão da execução da pena de prisão.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“1. No dia 10 de Dezembro de 2019, no início da noite, a PSP foi chamada ao posto de combustível “Repsol” sito no Largo ... em ..., porque o arguido havia atirado pinos sinalizadores contra o vidro da loja daquele posto de combustível.
2. Depois de a PSP se inteirar da situação, o arguido acabou por sair do local.
3. Pouco depois, pelas 23 horas, o arguido regressou aquele local, tendo atirado uma garrafa de cerveja ao vidro da loja do posto de combustível, rachando-o.
4. Acto contínuo, o funcionário de serviço na loja daquele posto de combustível, BB, solicitou de novo a comparência da PSP no local e, enquanto aquele se encontrava a realizar o telefonema, o arguido, munido de um isqueiro, deslocou-se até à bomba de gasóleo,
5. Acto contínuo, o arguido retirou a mangueira do encaixe da bomba e acendeu o isqueiro junto à ponta da mangueira, ateando uma chama ao gasóleo, para que este se propagasse, por via das suas características altamente inflamáveis, à bomba de combustível e, eventualmente, aos veículos que ali se encontravam.
6. Ao atear aquele fogo, e por existir combustível na mangueira, o arguido originou uma chama viva no chão.
7. Porém, o fluxo de combustível estava fechado através de um comando de controlo existente no computador no interior da loja e, consequentemente a chama existente no chão, extinguiu-se.
8. O arguido quis atear o fogo aquela bomba, conforme ateou, e o fogo só não se propagou a toda a bomba de combustível e aos tanques cheios de combustível, bem como, aos veículos ali estacionados e aos que eventualmente pudessem entrar para abastecer, porque o fluxo de combustível estava normalmente fechado através do controlo remoto, e dessa forma evitou a propagação das chamas.
9. Ao actuar da forma descrita, o arguido sabia que o fogo necessariamente se propagaria rápida e incontrolavelmente por toda a bomba de combustível, assim como aos tanques cheios de combustível, aos veículos estacionados e eventualmente aos veículos circundantes, casas circundantes e ainda pôr em perigo a vida e a integridade física dos funcionários e clientes do posto de combustível, e bens patrimoniais de valor avultado, o que quis e que só não conseguiu por razões alheias à sua vontade.
10. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que aqueles bens não lhe pertenciam e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se apurou,
Na altura da ocorrência dos factos que estão na origem deste processo (10/12/2019) o arguido já se encontrava numa situação de exclusão social, sem abrigo e qualquer tipo de ocupação laboral, tal como sucede no presente. Nessa data estava ainda em liberdade condicional, medida que viria a ser revogada, determinando o cumprimento do remanescente de uma pena de prisão entre 10/11/2020 e 08/07/2022 no Estabelecimento Prisional ....
Desde que foi colocado em liberdade AA tem passado os últimos 6 meses a viver sem abrigo na zona ribeirinha de ..., onde ocasionalmente é visto a arrumar carros. Sem enquadramento familiar e ausência de contactos com a mãe e irmãos, subsiste com o rendimento social e inserção e tem ajuda alimentar por parte de instituições da cidade - ..., ..., ... e ....
Oriundo de uma família numerosa de ... (5 irmãos), AA cresceu num contexto familiar marcado pela problemática de alcoolismo do pai (já falecido), fator que levou à separação dos progenitores quando o arguido tinha 15 anos. Frequentou o sistema formal de ensino até aos 16 anos, desistindo dos estudos apenas com o 2º ciclo do ensino básico concluído. Viria mais tarde a terminar o 9º ano de escolaridade em meio prisional.
Depois de abandonar os estudos começou a trabalhar na construção civil, mas o seu percurso laboral foi caracterizado pela irregularidade e longos períodos de inatividade, sobretudo pelo acentuar da dependência das drogas, consumos iniciados em meio escolar.
AA começou ainda jovem a ter questões de saúde associadas à sua toxicodependência (problemas hepáticos, doença infetocontagiosa, doença pulmonar) e os seus comportamentos aditivos foram-no afastando da família. Nas fases mais ativas de consumos adotava condutas criminais para obter receitas para a aquisição de estupefacientes, pelo que em 2000 já tinha sido condenado a uma primeira pena efetiva de prisão. Em 2007 foi colocado em liberdade e voltou para junto da família, mas acabou por retomar o padrão de vida anterior à prisão (consumos de drogas, bebidas alcoólicas e psicofármacos), ainda que tenha feito tratamento com metadona no ex-CAT de ....
Durante o período que esteve em liberdade manteve uma relação com uma companheira também toxicodependente e reincidiu em comportamentos criminais, tendo estado 10 anos (2009/19) no sistema prisional. Colocado em liberdade condicional em março de 2019, AA contou durante os primeiros meses desse ano com o apoio da irmã DD, mas a persistência de consumos de substâncias psicoativas e o desemprego levou o arguido a uma situação de vivência de rua e à revogação da liberdade condicional, como já se referiu.
O arguido parece ter adotado este modo de vida marginal, marcado pelo alcoolismo, relacionando-se com outras pessoas na mesma situação e na dependência de instituição de apoio social.
Sobre os factos de que vem acusado neste processo (crime de incêndio na forma tentada) AA refere não ter memória da ocorrência, mas manifesta preocupação com o julgamento face aos seus antecedentes criminais, ainda que não apresente capacidade de reflexão crítica sobre os seus atos.
Dos antecedentes criminais.
No âmbito do processo n.º 778/99...., foi o arguido condenado pela prática em 13.04.1994, de um crime de dano simples e de um crime de ofensas à Integridade Física simples na pena única de 150 dias de multa. Tal pena foi convertida em prisão.
No âmbito do processo n.º 221/00...., foi o arguido condenado pela prática em 19.02.2000, de um crime de furto qualificado na pena de dois anos e quatro meses de prisão, inicialmente suspensa na sua execução.
No âmbito do processo n.º 445/08...., foi o arguido condenado pela prática em 29.02.2008, de um crime de resistência e coação sobre funcionário na pena de um ano de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade.
No âmbito do processo n.º 252/08...., foi o arguido condenado pela prática em 03.02.2008, de um crime de roubo, um crime de resistência e coação, um crime de ameaça agravada e de um crime s de injuria agravada na pena única de seis anos e seis meses de prisão.
No âmbito do processo n.º 2825/08...., foi o arguido condenado pela prática em 29.12.2008, de um crime de resistência e coação sobre funcionário na pena dezoito meses de prisão.
No âmbito do processo n.º 2/09...., foi o arguido condenado pela prática em 01.01.2009, de um crime de roubo na pena de cinco anos e seis meses de prisão.”.

3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou não se terem provado quaisquer outros factos com interesse para a presente causa nomeadamente que (transcrição):
“Que o funcionário BB tivesse fechado o fluxo de combustível apenas após o arguido ter retirado a mangueira do encaixe da bomba de combustível.”.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição):
“Dispõe o artº 374º, nº 2 do CPP, na parte em que estabelece os requisitos da fundamentação da decisão da matéria de facto, que “a fundamentação” deve conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de factos (…) que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Deste modo, passamos a fazer uma exposição concisa, mas completa, dos motivos que levaram o Tribunal a dar como provados e como não provados os factos supra referidos, indicando os meios de prova que serviram para formar a convicção do colectivo de julgadores e fazendo o seu exame crítico, cabendo neste, a razão de ciência das testemunhas (em que o Tribunal se baseou), a forma como depuseram e a sua relação com o litígio, os tipos de documentos em que o Tribunal se baseou, seu valor e origem, bem como o valor, origem e credibilidade da demais prova que acudiu à formação da convicção dos julgadores, sem esquecer o recurso às regras da experiência comum.
Evitaremos reproduzir o teor da prova, uma vez que, tal não constitui requisito legal para a fundamentação da decisão da matéria de facto, sendo o seu conteúdo sindicável, não por via da motivação da decisão da matéria de facto, mas sim pela leitura dos documentos e relatórios periciais e pela audição das gravações dos depoimentos prestados.
O Tribunal fundou a sua convicção, quanto aos factos que resultaram provados constantes da acusação, na conjugação dos depoimentos prestados em audiência pela arguida e pelas testemunhas, bem como, na cabal prova documental.
Na verdade, o arguido referiu não se lembrara em concreto da situação porquanto estava embriagado e tomava comprimidos para uma depressão. Mas admite ter estado na bomba de combustível ainda que não se lembre do que fez em concreto.
Foi relevante o depoimento da testemunha BB que referiu que estava de serviço na bomba de combustível nesse dia, sendo que o arguido apareceu lá uma primeira vez, atirou um dos pinos sinalizadores contra o vidro da loja e entrou a pedir para chamar uma ambulância pois estava a sentir-se mal. O depoente ligou para o 112, referiu o que se passava e o apoio medico referiu que não se deslocaria ao local pois não se tratava de qualquer emergência medica, ao que o arguido se ausentou do local. Volvido algum tempo, o arguido regressou e atirou com uma garrafa de cerveja ao vidro da loja. Quando a testemunha estava novamente a telefonar para a polícia, o arguido foi retirar a mangueira de uma das bombas de gasolina e ateou-lhe fogo com um isqueiro. Ainda fez labareda, mas prontamente se extinguiu porquanto as bombas estavam todas trancadas pois são bombas em pré-pagamento. A PSP chegou novamente ao local e tomou conta da ocorrência. Mais referiu que na altura dos factos não se encontravam carros na gasolineira, mas a bomba de combustível esta situada ao lado de um fast food que se encontrava aberto e bem assim muito perto de prédios de habitação. Finalmente, referiu que as bombas tinham os depósitos com combustível.
A testemunha CC, Agente da Polícia Marítima, referiu ter sido o autuante do processo, sendo que quando chegou ao local o arguido estava muito agitado pois queria tratamento medico.
O Tribunal teve ainda em atenção a prova documental, a saber,
O Auto de notícia de fls. 65;
A fotografia de fls. 27 e o documento de fls. 26
Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal tomou em consideração o certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.
No que concerne aos factos atinentes à situação económica e pessoal do arguido baseou-se o Tribunal no relatório social do arguido, junto aos autos, cuja finalidade é precisamente o apuramento da situação pessoal e social do arguido, é proveniente de entidade isenta, elaborado com recurso a conjunto de fontes e diligências aptas ao apuramento dos factos referidos, e nenhum outro elemento de prova constante dos autos contraria ou infirma os factos que o Tribunal deu como provados com base no referido relatório, pelo que o mesmo nos mereceu credibilidade.
Ora, perante a prova supra referida, o Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas que o arguido agiu libre e voluntariamente, querendo atear fogo à Bomba de combustível.
b) Quanto aos factos não provados:
No que tange aos factos não provados, tal deveu-se à circunstância de ter sido feita prova do contrario como agora ficou provado, face ao depoimento da testemunha.”.

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição):
“Vem o arguido acusado de
- Um crime de incêndio na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 272.º, n.º 1, al. a) do Código Penal;
Do Crime de incêndio:
O crime de incêndio abre o capítulo dos crimes de perigo comum do nosso Código Penal (Livro II, título IV, Capítulo III).
Os crimes de perigo representam, em termos de percepção do momento de tutela, uma antecipação da defesa do bem jurídico. Fala-se, assim - ao antecipar a intervenção preventiva e repressiva do direito penal para um momento anterior ao da ocorrência do sacrifício ou da lesão do bem jurídico - da criação de uma área avançada de tutela que significa o recuo da consumação, com o objectivo fundamental de evitar a produção do dano.
Perigo comum é o perigo que tem a ver com o “público”, com a colectividade, consistindo esta na multiplicidade de indivíduos, mas também na indeterminação da individualidade.
Entrando na análise do tipo de crime de incêndio do artigo 272.º do Código Penal verifica-se que estamos perante um crime de perigo comum, pertencente à categoria dos crimes de perigo concreto, onde se contempla a protecção, de forma disjuntiva, vários bens jurídicos: a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Sob influência germânica, o legislador português construiu o tipo legal de crime de incêndio descrevendo o comportamento proibido através da técnica da vinculação e também a circunscrição do resultado, isto é, do perigo relativamente a certos e determinados bens jurídicos.
Noutro plano, o legislador desenvolve um recorte subjectivo tripartido, característico destes tipos de crimes.
Ao analisar a proposição normativa somos determinados pelo verbo provocar.
Provocar significa causar, no âmbito de uma causação normativamente orientada.
É necessário, porém, que com a sua acção o agente origine um incêndio de relevo. Isto é, exige-se um incêndio com uma extensão ou com uma intensidade que se devam considerar, à luz das regras da experiência, como manifestas, indiscutíveis ou relevantes. Todavia, o legislador foi mais longe e deu exemplos, através da referência legal, a incêndio provocado em edifício ou construção, meio de transporte ou floresta, mata, arvoredo ou seara. Também é de considerar incêndio de relevo o que causa alarme social, nomeadamente aquele que não consiga ser apagado por intervenção de bombeiros destinada a evitar a sua propagação.
Por outro lado, e como já se salientou, com o incêndio de relevo tem de concretizar-se, ainda que por breves instantes, um perigo para a vida ou integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado .
Ao nível do esquema subjectivo, o legislador adoptou uma técnica própria:
N.º 1 – (tipo fundamental) acção dolosa e criação dolosa de perigo;
N.º 2 – acção dolosa e criação de perigo negligente;
N.º 3 – acção negligente e criação de perigo negligente.
Olhando para o texto-norma verifica-se que o crime é essencialmente doloso, admitindo o dolo em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
Compreendendo o dolo como uma entidade complexa portadora de diversos sentidos, consoante a sua valoração seja objecto da ilicitude ou da culpa: como forma de realização do tipo de ilícito, o dolo traduz-se no “conhecimento e vontade de realização daquele tipo de crime” ; ao passo que, como forma de culpa, o dolo é um modo de formação da vontade que conduz ao facto, sendo, portanto, portador do desvalor de uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever ser jurídico-penal.
Assim, o dolo decompõe-se em três elementos ou perspectivas: a do conhecimento, que configura o elemento intelectual; a da vontade ou elemento volitivo; e a da atitude, para a qual se utiliza também a designação de elemento emocional, a valorar em sede de culpa, como expressão documentada no ilícito-típico, de uma atitude contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal.
Da análise da norma resulta, no n.º 1 do preceito incriminador, - atendendo à forma complexa como está construído o tipo objectivo (definição vinculada da conduta e determinação do resultado de perigo de violação) – que o agente tem não só de querer e representar uma das condutas descritas no enunciado legal como querer e representar o resultado de perigo de violação referente aos bens jurídicos determinados no tipo.
No n.º 2 do texto legal, à actuação do agente envolvida pelo dolo tem de corresponder uma convicção firme de que não criaria nenhum resultado de perigo-violação. Sucede, porém, que este convencimento se baseia num juízo pouco prudente. Vale por assim dizer: o resultado de perigo-violação foi representado e querido de maneira negligente.
Finalmente, o legislador eleva à dignidade penal no n.º 3 a actuação de quem agiu de forma negligente e pôs em perigo os bens jurídicos visados pela protecção penal, representando esse perigo também a título de negligência.
No artigo 15.º do Código Penal dispõe-se que “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz:
a) representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização;
b) não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto.”
Na negligência, censura-se o agente, na medida em que este omitiu aqueles deveres de diligência a que, segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos e capacidades pessoais, era obrigado, e que em consequência disso não previu – como podia – aquela realização do crime (negligência inconsciente), ou, tendo-a previsto, confiou em que ela não teria lugar (negligência consciente).
Esta censura dirigida ao agente funda-se na “expressão, documentada no ilícito típico, de uma atitude descuidada ou leviana em face das exigências” do dever-ser jurídico-penal.
Segundo se provou, o arguido, munido de um isqueiro, deslocou-se até à bomba de gasóleo,
5. Acto contínuo, o arguido retirou a mangueira do encaixe da bomba e acendeu o isqueiro junto à ponta da mangueira, ateando uma chama ao gasóleo, para que este se propagasse, por via das suas características altamente inflamáveis, à bomba de combustível e, eventualmente, aos veículos que ali se encontravam.
6. Ao atear aquele fogo, e por existir combustível na mangueira, o arguido originou uma chama viva no chão.
7. Porém, o fluxo de combustível estava fechado através de um comando de controlo existente no computador no interior da loja e, consequentemente a chama existente no chão, extinguiu-se.
8. O arguido quis atear o fogo aquela bomba, conforme ateou, e o fogo só não se propagou a toda a bomba de combustível e aos tanques cheios de combustível, bem como, aos veículos ali estacionados e aos que eventualmente pudessem entrar para abastecer, porque o fluxo de combustível estava normalmente fechado através do controlo remoto, e dessa forma evitou a propagação das chamas.
9. Ao actuar da forma descrita, o arguido sabia que o fogo necessariamente se propagaria rápida e incontrolavelmente por toda a bomba de combustível, assim como aos tanques cheios de combustível, aos veículos estacionados e eventualmente aos veículos circundantes, casas circundantes e ainda pôr em perigo a vida e a integridade física dos funcionários e clientes do posto de combustível, e bens patrimoniais de valor avultado, o que quis e que só não conseguiu por razões alheias à sua vontade.
10. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que aqueles bens não lhe pertenciam e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A nosso ver, a descrição desta materialidade provada preenche todos os elementos típicos do crime de incêndio de que o arguido vem acusado.
De facto, através do comportamento que adoptou, o arguido queria deflagrar um incêndio de relevo que colocou em causa bens patrimoniais alheios, o que não sucedeu por razões que lhe foram alheias.
Esses bens que potencialmente danificados pelo fogo atingem um valor elevado, conforme é exigido pelo tipo legal e resulta da definição legal consagrada do artigo 202.º, al. a), do Código Penal.
Por outro lado, conforme se disse, também se mostram presentes os elementos subjectivos do crime em causa.
Assim sendo, por inexistir qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, entende-se que o arguido cometeu um crime de incêndio, previsto e punido no artigo 272.º, n.º 1, al. a) e b), do Código Penal, na sua forma tentada, pelo qual deve ser condenada.
5. ESCOLHA E MEDIDA DA PENA
O crime de incêndio é punido com pena de prisão de 3 (três) a 10 (dez) anos, nos termos dos arts 272º, nº 1, do Código Penal.
Nos termos do disposto no artigo 23º e 73º do Código Penal, sendo o crime tentado é punível com pena de prisão de sete meses e seis dias a seis anos e quatro meses.
Na determinação da medida concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (artº 71º do C.P.).
Pela via da culpa, segundo refere o Prof. Figueiredo Dias (“As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pág. 239), releva para a medida da pena a consideração do ilícito típico, ou seja, “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, conforme prevê o artº 71º, nº 2, al. a) do C.P.
A culpa, como fundamento último da pena, funcionará como limite máximo inultrapassável da pena a determinar (artº 40º, nº 2 do C.P.). A prevenção geral positiva (“protecção de bens jurídicos”), fornecerá o limite mínimo que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada. Por último, é dentro daqueles li.mites que devem actuar considerações de prevenção especial, isto é, de ressocialização do agente (F. Dias, ob. cit., págs. 227 e segs.; Anabela Rodrigues, in R.P.C.C., 2, 1991, pág. 248 e segs.; e Ac. S.T.J. de 9/11/94, B.M.J. nº 441, pág. 145).
No caso em análise,
Assim, partindo desta moldura, atendendo aos estragos que poderiam ser provocados pelo arguido, atendendo ao modo de execução dos factos, ao desvalor da sua conduta e devendo-se ter presente que a elasticidade da pena decorre quanto ao crime de incêndio, não só da extenção dos bens danificados, mas também da multiplicidade das condutas que se compreendem na previsão da norma incriminadora.
Por outro lado, os antecedentes criminais do arguido assumem particular relevo pois que já passou parte da sua vida privado da liberdade o que não o demoveu de adoptar esta conduta. Ademais, o facto de o arguido por em perigo pessoas e bens só porque precisava de ir ao hospital faz concluir que o arguido não olha a meios para atingir os seus fins, que in casu, passaria por um incêndio na parte ribeirinha de ... com todas as consequências que dai adviessem, sem que o arguido se preocupasse com as mesmas, mas apenas com o seu bem-estar. Não olvidemos que o arguido continua a não estar inserido socialmente, e a ausência de interiorização da gravidade das suas condutas, fazem concluir que não são despiciendas as exigências de prevenção especial.
Nestes termos, e à luz do disposto nos arts 272º, nº 1 e 73º do Código Penal, todos do Código Penal, entendemos adequado e proporcional aplicar ao arguido:
a) pelo crime de incêndio na forma tentada, a pena de três anos de prisão;
*
Nos termos do artigo 50º, nº 1 do Código Penal, o Tribunal só suspende a execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Tal norma, conforme se retira da sua leitura, exige a verificação de um pressuposto de aplicabilidade e de um requisito para a efectiva suspensão.
Assim, é pressuposto de aplicabilidade do regime da suspensão, ser a pena aplicada não superior a 5 anos.
Verificado tal pressuposto, exige a lei, para que a pena possa ser suspensa na sua execução, que o Tribunal conclua que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Ou seja, não basta que a pena concreta seja não superior a 5 anos, sendo ainda necessário que o Tribunal formule um concreto e positivo juízo de prognose favorável, no sentido de que, a simples ameaça da pena seja suficiente para satisfazer as necessidades da punição, ou seja, que seja suficiente para a protecção dos bens jurídicos e para a reintegração do agente na comunidade (cfr. artº 40º, nº 1 do Código Penal).
Deste modo, não pretende o legislador que, em penas de prisão até 5 anos, a suspensão seja quase automática, devendo o Tribunal, quando não determine a suspensão, fundamentar, explicando os motivos que o levam a não suspender, tais penas, na sua execução.
É que, a lei não diz que, as penas de prisão não superiores a 5 anos são suspensas na sua execução, salvo se o Tribunal concluir que tal suspensão é insuficiente para as finalidades das penas. O que a lei estabelece é precisamente o contrário, ou seja, que, a suspensão só tem lugar, quando o Tribunal formule um juízo de prognose favorável. Assim sendo, sempre que o Tribunal decida suspender a pena, na sua execução, terá de explicar, com factos concretos, porque é que formula o tal juízo de prognose favorável, que o leva a suspender a pena, na sua execução.
Os critérios a que o Tribunal se há-de recorrer, em ordem a formular o referido juízo de prognose favorável, hão-de ser, segundo se retira do disposto no artigo 50º, nº 1 do Código Penal, a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste.
De tal conjunto de critérios, retirará o Tribunal a conclusão de que, a simples censura do facto e a ameaça da pena servirão para afastar o arguido da criminalidade e para censurar o facto, cumprindo, assim, a pena, as suas finalidades de protecção de bens jurídicos e de reintegração do agente na comunidade. Em suma, satisfazendo, a pena, as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.
Vertendo ao caso concreto, temos que, a pena aplicada é de suspensão, por não ultrapassar 5 anos.
O arguido regista antecedentes criminais. Ainda que o arguido tenha mostrado uma atitude contrita em tribunal, na verdade nem se lembra dos factos. Não podemos esquecer o seu percurso de vida e de toxicodependência, alicerçado ao facto de se encontrar exactamente com as mesmas condições de vida de há quatro anos quando os factos ocorreram. Continua nos consumos de álcool e sem qualquer apoio familiar.
Assim, o Tribunal não consegue efectuar um juízo de prognose favorável em relação ao arguido, considerando que a ameaça desta prisão não é suficiente para o afastar da prática de novos crimes, pelo que a pena será efectiva.”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo arguido

Cumpriria agora conhecer, pela ordem enunciada em II. ponto 2. deste Acórdão, todas as questões colocadas pelo arguido. Atento, todavia, o princípio da economia processual[2] analisaremos a impugnação da matéria de direito quanto à questão da punibilidade ou não da tentativa impossível[3] por virtude de a mesma afetar em toda a extensão o destino do recurso interposto, tornando inútil o conhecimento dos demais temas suscitados em sede recursória, como passaremos a expor.

Face à factualidade dada como provada, e em resumo, verifica-se que o arguido (alcoólico, toxicodependente e “sem abrigo”), pelas 23:00 horas, não estando a abastecer um qualquer veículo, após atirar objetos contra as instalações da bomba de combustível, dirigiu-se a uma mangueira de gasóleo, retirou-a do encaixe, e acendeu um isqueiro na ponta da mesma (caindo uns pingos de gasóleo, a arder, no chão). Originou pequenas chamas (no chão - pingos de gasóleo incandescentes), as quais se extinguiram, de imediato (quando caíram ao chão), não tendo pegado fogo à mangueira nem ao combustível, e sendo certo que o fluxo de combustível estava fechado, o que acontece sempre em tais circunstâncias (o fluxo tem de ser desbloqueado, através de controlo remoto, a partir do interior do posto de abastecimento).

Assim a tentativa do arguido, relativamente ao crime de incêndio, é inidónea (ou impossível), porquanto é manifesta a inaptidão do meio empregado (artigo 23.º, n.º 3 do CP).

Qualquer Homem médio, de são entendimento, e raciocinando alguns segundos, logo constataria que aquele fogo não se propagaria à bomba de combustível, nem aos respetivos tanques, nem a quaisquer edifícios, pessoas ou veículos ali eventualmente parados.

É que, no caso específico em análise, para além de já passar das 23:00 horas, as bombas estavam em pré-pagamento (cf. motivação da decisão recorrida) e por isso trancadas, e o arguido que ali se encontrava não o fazia para abastecer qualquer veículo (que pudesse ter conduzido o funcionário a desbloquear a bomba, por precipitação, mesmo sem ter ocorrido pagamento prévio do preço do combustível), aliás face ao estado de indigência do agente tudo indica que nem teria viatura.

O meio utilizado pelo arguido para praticar o crime é inepto, o que se conclui de modo claro, ostensivo, público e evidente. E embora tal conclusão não seja válida para o arguido[4], ela é irrelevante para a situação em apreciação, pois para a generalidade das pessoas tal meio era inepto e esse é o critério definidor da idoneidade da tentativa.

Por outras palavras a atuação do arguido, objetivamente analisada, não podia conduzir à consumação do crime de incêndio pelo qual foi condenado.

O juízo sobre a aptidão ou inaptidão do meio é primacialmente, um juízo objetivo, não relevando o considerado pelo arguido como apto ou inapto. Esse “juízo objetivo” deve assentar em considerações razoáveis, aceites pela generalidade das pessoas, ou, pelo menos, aceites por um círculo de pessoas que detenham especiais conhecimentos na matéria (no caso pessoas familiarizadas com o ato de, numa bomba de gasolina, ser colocado combustível no depósito de um veículo).

A questão, analisada de outro modo, reconduz-se a saber se, do ponto de vista do cidadão comum (do Homem médio suposto pela ordem jurídica), existe, ou não, causalidade adequada daquela concreta ação do arguido, para, naquelas específicas circunstâncias, alcançar ou colocar em perigo o resultado previsto no tipo de crime de incêndio.

Resultando da matéria de facto provada ter o arguido acendido o isqueiro na ponta da mangueira quando não se encontrava a abastecer combustível (nem ia abastecer), e seguindo um juízo objetivo de normalidade (juízo apreensível por qualquer cidadão minimamente atento), não era possível, manifestamente, provocar o incêndio que lhe vem assacado, pois estando as bombas àquela hora da noite (após 23:00 horas) em pré-pagamento estavam necessariamente trancadas e o fluxo de combustível bloqueado.

Recorrendo a esse juízo ex ante, de prognose póstuma, e do ponto de vista de um observador normal, colocado naquelas circunstâncias, a ação do arguido não se apresenta adequada, manifestamente, para colocar em perigo o resultado típico.

A tentativa do arguido não é punível, pois que, muito embora os seus atos sejam atos de execução (capazes de ofender o bem jurídico), é patente (objetivamente) que, naquelas concretas circunstâncias, tais atos não podiam ofender o bem jurídico.

Em resumo: perante a matéria de facto provada, a tentativa do arguido não é punível, nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 3 do CP.

Daí independentemente da matéria de facto ter sido ou não impugnada em conformidade com o disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP e de se verificarem ou não os vícios da sentença do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP, a materialidade dada como assente teria sempre de conduzir à absolvição do arguido, sendo irrelevante o conhecimento de todas as outras questões jurídicas suscitadas pelo recorrente e assinaladas em II. ponto 2. deste Acórdão.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Concede-se provimento ao recurso interposto pelo arguido e em consequência, revoga-se a sentença recorrida absolvendo-se o arguido AA do crime de incêndio na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 272.º, n.º 1, alínea a) e 22.º do CP.
2. Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 12 de setembro de 2023.

Beatriz Marques Borges - Relatora
Carlos Campos Lobo *
Renato Barroso

* Voto Vencido a presente decisão, pois, no meu modesto entender, não se configuram, in casu, os pressupostos necessários ao retrato da figura da tentativa impossível, tal como esta se mostra espelhada/desenhada no ordenamento jurídico português.
Com efeito, ao que se pensa, lendo o preceito respeitante à punibilidade da tentativa, particularmente em relação à tentativa impossível, mormente o que consta do nº 3 do artigo 23º do CPenal, crê-se que quando a lei refere a inaptidão do meio ou inexistência do objeto aponta/exige/denota que tal se assuma como manifesto, ou seja, que não é qualquer nota/dificuldade/defeito, mas sim todos aqueles quadros em que objetivamente e de acordo com os critérios de aferimento da generalidade das pessoas se mostrem evidentes/claros/seguros e sem qualquer hipótese de dúvida de que com o comportamento tido não será possível, por alguma forma, violar o(s) be(ns) jurídico (s) que a norma incriminadora visa proteger.
Ao que parece ser assente, tem-se entendido quer na doutrina, quer na jurisprudência, que o manifesto deve ser lido como claro, ostensivo, público, evidente, imediatamente notório.
Ora, no caso aqui em análise o mero e simples facto de a bomba estar trancada e o fluxo normal de combustível estar bloqueado, facto que nem todos os clientes sabem/conhecem, não sendo de apreensão imediata da generalidade dos cidadãos, pensa-se, singela e isoladamente ponderado, é notoriamente insuficiente para preencher a exigência “manifesto”.
Com efeito, todos têm noção e já experienciaram, como aqui no caso terá acontecido, que bastas vezes, para não dizer sempre, existem restos de combustível na "ponta da manete da mangueira" da bomba que se utiliza no abastecimento, ainda que esta trancada/bloqueada.
Por outro lado, coisa que todos sabem/conhecem, é que é completamente proibido, havendo visível e espalhada sinalefa disso, acionar fogo, fumar e até usar telemóveis nas bombas e zonas circundantes. Existindo tal sinalização, e para a mesma fazer sentido, crê-se que está totalmente vedado a todos, e todos o sabem, foguear e/ou usar qualquer ignição nesse sentido, precisamente por existir um real perigo de incêndio.
Diga-se, também, que é frequente, para não dizer constante, haver produtos inflamáveis no solo, zonas circundantes das bombas, sendo que é normal/comum/frequente estarem várias pessoas abastecer, ainda que à noite.
Nessa medida, pensa-se, que o isolado e único facto, aqui tido em atenção, de o fluxo de combustível estar fechado/bloqueado, é claramente escasso/parco/frágil para sem mais se concluir pelo preenchimento da exigência "manifesto".
Assim, não se segue por esta via, entendendo-se que face à factualidade dada como provada, não há tentativa impossível.

_________________________
[1] Filho de EE e de FF, natural de ..., nascido em .../.../1977, solteiro, residente na Rua ..., em ....
[2] O artigo 137.º do CPC que prevê o princípio da economia processual é aplicável ao processo penal por força do artigo 4.º do CPP.
[3] Sobre esta matéria pode ser consultada a tese de mestrado da autoria de Maria João Carvalho Vaz sob o título “A punibilidade da tentativa impossível por inexistência (ou ausência) do objeto: Um problema de (in)validade material”, de setembro de 2014, Universidade de Coimbra apresentada sob a orientação do Professor Doutor José Francisco de Faria Costa e disponível para consulta em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/34884/1/A%20Punibilidade%20da%20Tentativa%20Impossivel%20por%20Inexistencia%20(ou%20Ausencia)%20do%20Objeto%20Um%20problema%20de%20(in)validade%20material.pdf.
[4] Aliás nem o poderia ser, pois a tentativa da prática do crime de incêndio sempre exigiria uma atuação dolosa.