Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2730/19.4T9PTM.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: NÃO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CUMPRIMENTO EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Encontra-se inevitavelmente prejudicado o juízo de prognose favorável relativamente à situação da arguida que, volvidos poucos meses após a extinção de anterior pena de prisão suspensa na sua execução, voltou a delinquir, não uma, mas três vezes,
praticando o mesmo tipo de crime pelo qual havia já sido condenada, falecendo, pois, o fundamento para lhe aplicar, de novo, a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.

II - Levando em consideração a idade da arguida – atualmente com 65 anos – e, bem assim, a circunstância de ter apenas um antecedente criminal e de nunca ter tido contacto com a prisão, afigura-se-nos que a sua ressocialização será ainda possível se a mesma se mantiver recluída junto da sua família, evitando-se o carácter estigmatizante do cumprimento da pena em meio prisional, mas restringindo-a, ainda assim, na sua liberdade e fazendo-a sentir a reprovação dos crimes praticados em razão do seu confinamento à habitação, pelo que, verificados os restantes requisitos de natureza formal, deverá a mesma cumprir a pena de prisão em regime de permanência na habitação, nos termos previstos no artigo 43º do CP.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo Local Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 2730/19.4T9PTM, foi a arguida AA, viúva, reformada, filha de BB e de CC, natural de …, nascida a …1958, residente na Rua da …, …, Lote …, em …, condenada da seguinte forma:

- Como autora material de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos artigos 255º alínea a) e 256º nº 1, alíneas d) e e) do C.P, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

- Como autora material de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos artigos 255º alínea a) e 256º nº 1, alíneas d) e e) do C.P, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

- Como autora material de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos artigos 255º alínea a) e 256º nº 1, alíneas a), c) e e) do C.P, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

- Em cúmulo jurídico, foi a arguida condenada na pena única de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 (dezoito) meses, com a advertência expressa de “que a prática de novos crimes no período da suspensão da execução da pena constitui fundamento para a revogação da suspensão e poderá determinar o cumprimento efetivo da pena de 18 meses de prisão em que foi condenada”.

***

Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

““I – Vem o presente recurso interposto da sentença proferida e depositada no dia 24 de Maio de 2022, no âmbito do Processo Comum, Tribunal Singular, que condenou a arguida AA, pela prática de:

- um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos arts. 255º alínea a) e 256º nº 1 alíneas d) e e) do C.Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

- um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos arts. 255º alínea a) e 256º nº 1 alíneas d) e e) do C.Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

e

- um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos arts. 255º alínea a) e 256º nº 1 alíneas a), c) e e) do C.Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão.

Assim, e após realização do cúmulo jurídico, foi a arguida condenada numa pena única de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

II - Analisada a sentença proferida nos autos, o Ministério Público não se pode conformar com a mesma, por duas ordens de razões:

- em primeiro lugar, por entender que as penas de em que o Douto Tribunal a quo condenou a arguida, em virtude dos crimes de falsificação de documentos cometidos por esta, não são proporcionais e adequadas à gravidade dos factos praticados pela arguida, nem têm em devida consideração os antecedentes criminais da mesma, não satisfazendo, em nosso entender, as necessidades de prevenção e a defesa do ordenamento jurídico;

- em segundo lugar, por entender que a pena de prisão em que a arguida deverá ser condenada, nos termos já peticionados, não deverá ser suspensa na sua execução, mas sim cumprida de modo efectivo (ainda que se admita que o possa fazer em regime de permanência na habitação).

III - (…) (não se transcreve o restante texto desta conclusão em virtude de o mesmo conter apenas a transcrição de parte da sentença condenatória)

VI – Ora, analisando a fundamentação da determinação concreta da medida da pena constante da douta sentença, sobressai desde logo a circunstância de a mesma mencionar a maioria das circunstâncias relevantes para a determinação concreta da pena – nomeadamente as que constam do artigo 71.º do Código penal -, mas não lhes dar a devida importância nem extrair as consequências que as mesmas necessariamente impõem;

VII - No caso dos autos, há que salientar, em primeiro lugar, a gravidade da ilicitude e da culpa da arguida, considerando, como muito bem refere o Tribunal, «o tipo de documentos adulterado e forjado e a circunstância de terem sido, sem qualquer pudor, apresentados em Tribunal, perante uma autoridade judiciária, em processo que corria termos contra a aqui arguida. Cumpre não esquecer o motivo que esteve subjacente às condutas da arguida, que simplesmente não desejava assumir qualquer responsabilidade pelos factos praticados e ainda ser desonerada do pagamento das multas processuais pelas faltas de comparência, absolutamente injustificadas».

VIII - Por outro lado, a culpa da arguida também se revela elevada, assumindo a modalidade de dolo directo, que é muito intenso - uma vez que a arguida quis praticar aqueles factos, agindo com absoluto desprezo e desrespeito pela autoridade dos Tribunais, que quis enganar, ao apresentar documentos médicos adulterados por sua ordem, sendo que, em nosso entender, a sua atitude revelou mesmo um desafio ao próprio Tribunal e à sua inteligência -, tendo o resultado por si previsto e querido sido alcançado; a arguida actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecedora que era, necessariamente, da potencialidade dos documentos utilizados para ludibriar o Tribunal, sendo certo que nem sequer se tratou de uma conduta isolada, que se possa dizer que foi um acto irreflectido e impulsivo, pois que se tratou de três documentos distintos, que foram utilizados em sessões de julgamento.

IX - Já no que concerne às exigências de prevenção geral do crime de falsificação de documentos, revelam-se as mesmas muito elevadas, atenta a frequência com que se verificam factos semelhantes”, sendo que se trata de crimes que “abalam fortemente a confiança nos documentos e afetam o comércio jurídico”.

X - Por último, há que salientar evidentemente as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir, que também se nos afiguram “muito elevadas” – pois que do certificado de registo criminal da arguida constam condenações por crimes de auxílio à imigração ilegal e falsificação de documento, numa pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, sendo certo que, como muito bem salientou o Tribunal a quo, a arguida praticou os factos aqui em causa escassos meses após o termo da referida suspensão.

XI - Tal retrata uma personalidade particularmente avessa ao Direito, concluindo-se que tal pena não surtiu qualquer efeito no sentido da arguida adequar a sua conduta às regras do direito penal… não se pode olvidar que a arguida, ao usar atestados médicos adulrados, fê-lo para se furtar à responsabilidade pelos factos pelos quais estava a ser julgada naquele processo e ainda para se eximir ao pagamento de multas processuais, por ter faltado injustificadamente às sessões de julgamento que tiveram lugar no referido processo, ludibriando o próprio Tribunal que a estava a julgar, o que importa uma motivação altamente desvaliosa!!

XII - Assim e considerando as molduras penais abstractamente aplicáveis aos crimes em apreço e o teor da própria fundamentação para a determinação da medida concreta das penas, não podemos concordar com estas.

XIII - Na verdade e desde logo, o Tribunal a quo fixou uma pena muito próxima do mínimo legal, quando os factos foram praticados pouquíssimo tempo depois do termo da suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenada, no âmbito do Proc. 124/10.6…, pela prática de um crime de falsificação de documentos e um crime de auxilio à emigração ilegal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, e desatendendo a todas as outras circunstâncias supra mencionadas e às quais a medida concreta da pena deve sempre atender - a culpa com que a arguida actuou, o bem jurídico violado, a gravidade das circunstâncias, as necessidades de prevenção geral e especial e as finalidades da punição.

XIV - Ora, sendo a moldura penal a aplicar à arguida pela prática do crime de de falsificação de documentos de 1 mês a 3 anos, deveria o Tribunal ter condenado a mesma, pelo menos, em 20 meses de prisão, por cada um deles, sob pena de não se assegurarem as elevadas necessidades de prevenção geral e elevadíssimas necessidades de prevenção especial que, no caso, se fazem sentir.

XV - O Por tudo o exposto, com o devido respeito e salvo melhor opinião, o Tribunal a quo ao aplicar pena de 7 (sete) meses de prisão em que condenou a arguida, por cada um dos crimes de falsificação de documentos, violou o disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.

XVI - Assim sendo, tudo ponderado, atendendo aos limites abstractos das penas, afigura-se adequado aplicar à arguida AA, pela prática de cada um dos crimes de falsificação de documentos, dois deles previstos e punidos pelos arts. 255º alínea a) e 256º nº 1 alíneas d) e e) do C.Penal, e o outro p. e p. pelos arts. 255º alínea a) e 256º nº 1 alíneas a), c) e e) do C.Penal, a pena de 20 meses de prisão por cada um deles.

XVII – Atendendo ao disposto no artigo 77.º, n.º 2, do C. Penal, a pena única aplicada à arguida AA situar-se-á entre os 20 meses de prisão (mais alta das penas parcelares) e os 5 anos de prisão (soma da totalidade das penas aplicadas).

XVIII - De acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 1, do Código penal, na determinação da pena única a aplicar ao agente dos crimes são considerados, em conjunto, os factos e a sua personalidade.

XIX - Tendo em atenção as considerações expendidas sobre a determinação das penas parcelares, e analisando a globalidade da factualidade que se deu como provada, revelando a conduta da arguida uma acentuada ilicitude, anti-socialidade e danosidade social, devendo a medida da pena única reflectir também a natureza contra a sociedade e patrimonial dos crimes, a que acresce a personalidade da arguida e o juízo de prognose que não se pode fazer favoravelmente para o futuro, entende-se adequado fixar a pena única da arguida AA em 3 anos e 6 meses de prisão.

XX - Assim e caso o recurso tenha provimento, a pena única em que a arguida AA foi condenada também deverá ser reformulada.

XXI - Resta avaliar se a pena de prisão em que a arguida deve ser condenada deve ou não ser suspensa na sua execução.

XX – Para além disso, e não podemos também concordar com a decisão de suspender a execução da pena de prisão em que a arguida foi condenada.

XXI - Na verdade, e atento o teor da própria fundamentação para a determinação da medida concreta da pena, não podemos concordar com o juízo de prognose favorável efectuado pelo Tribunal a quo, quando é a própria arguida que, poucos meses depois de terminar a suspensão de execução de pena de prisão por factos da mesma natureza, volta a incidir na mesma actividade criminosa.

XXII - Refira-se ainda que a arguida revelou de forma manifesta não ter interiorizado minimamente o desvalor da conduta, não podendo assim o Tribunal a quo acreditar que a simples censura do facto e ameaça de prisão são suficientes para inibir o arguido de voltar a praticar factos de idêntica natureza, porquanto tal possibilidade já lhe foi dada no processo n.º 124/10.6… e decorridos cerca de 6 meses após o termo em julgado da suspensão de execução de pena de prisão que ali lhe foi aplicada voltou a reincidir na prática de factos da mesma natureza, com a particularidade de ter utilizado documentos médicos, que mandou falsificar/adulterar, para depois os apresentar perante um Tribunal, no âmbito de outro processo pelo qual também foi julgada pela prática de crimes de auxílio à imigração ilegal e falsificação de documentos!!!

XXIII - A tudo isso acresce a gravidade da conduta praticada pela arguida, como muito bem se fundamenta na sentença recorrida, revelando-se as necessidades de prevenção geral elevadas e as de prevenção especial, igualmente, muito elevadas, sendo evidente a completa ausência de interiorização da gravidade dos actos perpetrados por parte da arguida, a qual demonstra falta de espírito crítico e de motivação para adoptar um comportamento normativamente adequado, sendo tal persistência relevante para aferir do pronóstico sobre a insuficiência da suspensão da execução da pena para acautelar os fins da punição.

XXIV - Contudo, pese embora todos os factores supra enunciados, o Tribunal entendeu, ainda assim, suspender a execução da pena de prisão em que condenou a arguida, sem sequer a condicionar a qualquer regime de prova ou outra imposição.

XXV - Ora, é certo que a prognose de ressocialização tem por parâmetros a ideia de que, por um lado, a reclusão constitui a última ratio da política criminal, mas, por outro, a de que a comunidade persegue a garantia, a protecção e a promoção dos direitos das pessoas, sem o sentido de missão socializadora através de métodos de coacção próprios do controlo social.

XXVI - O que significa que deve negar-se a possibilidade de suspensão se os factos provados justificarem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de reinserção que a sociedade lhe oferece, ou seja, se o juiz não estiver convicto desse prognóstico (favorável).

XXVII - Ora, como já resulta de todo o supra exposto, no caso dos autos, a personalidade desta arguida contraindica a suspensão, pois os factos apontam para que a sua conduta, objecto agora destes autos, não foi um incidente ocasional.

XXVIII - Portanto, ponderando tudo o exposto, constatamos que os elementos fornecidos nos autos não fundam qualquer esperança no êxito do processo de reinserção social da arguida em liberdade, por não permitirem acreditar que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, razão pela qual a execução da pena de prisão aplicada é exigida pela necessidade de prevenir o cometimento pelo arguido de futuros crimes.

XXIX - Por tudo o exposto, com o devido respeito e salvo melhor opinião, o Tribunal a quo, ao suspender a execução da pena única de 18 (dezoito) meses de prisão em que condenou a arguida - que, em nosso entender, deverá ser alterada para 3 anos e 6 meses de prisão -, violou o disposto no artigo 50º do Código Penal, não devendo a mesma ser suspensa na sua execução.”

Termina pedindo a alteração das penas impostas à arguida, solicitando que se lhe apliquem as penas parcelares de 20 meses de prisão pela prática de cada crime de falsificação e a pena única de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, a arguida respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela consequente manutenção das penas aplicadas na decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“a) A sentença ora recorrida encontra-se devidamente fundamentada de forma criteriosa e real, quer de facto, quer de Direito.

b) A sentença ora recorrida, não merece qualquer reparo, não se verificando a violação de qualquer dispositivo legal.

c) A motivação apresentada pelo Recorrente, é desprovida de fundamentação legal, dos factos e do direito.

d) A prognose do Tribunal a quo não poderia deixar de estar mais correcta e a qual aqui acompanhamos.

e) O Tribunal a quo ponderou devidamente a sua convicção em todas as circunstâncias da conduta e das condições de vida da Recorrida.

f) Andou bem o Tribunal a quo ao valorar as condições da vida da Recorrida para a formação da sua convicção e, logo, ao suspender na sua execução a pena em que esta foi condenada.

g) Suspensão que se deverá manter, atento o disposto nos nºs 1 e 5 do artº 50º do C.P.

h) Nos termos do nº 1 do art. 57º do C.P., quando, decorrido o período da suspensão da execução da pena, não existam motivos que possam determinar a sua revogação, pois a pena é (e foi) declarada extinta.”

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O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso, defendendo a alteração das penas nos termos propugnados no recurso.

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber: - Apurar se os critérios e os parâmetros utilizados pelo tribunal “a quo” para determinar as medidas concretas das penas aplicadas à recorrente se revelam legalmente fundados, ou se, ao invés, os critérios legais, aplicados à situação daquela, imporiam a aplicação de penas mais gravosas.

* II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados, com relevo para a apreciação da situação do arguido recorrente, os seguintes factos:

“II. FACTOS PROVADOS

Da discussão da matéria de facto, resultaram provados os seguintes factos:

1. A arguida AA foi julgada no decurso do ano de 2019 no Processo Comum Colectivo 41/17.9… do Juízo Central Criminal de … – Juiz ….

2. No âmbito desses autos, foi regularmente notificada para comparecer na sessão da audiência de julgamento agendada para o dia 07.03.2019, pelas 15:00.

3. No dia 07.03.2019, por intermédio da sua mandatária, a arguida fez chegar aos autos um requerimento a informar da sua impossibilidade de estar presente na referida audiência, por se encontrar doente, protestando juntar o respectivo atestado médico.

4. Nessa sequência, juntou um atestado médico emitido e assinado pela Dra. DD, no CHU… – Unidade de …, datado de 07.03.2019, no qual se refere que a arguida foi atendida no Serviço de Urgência daquela unidade hospitalar nessa mesma data.

5. Mais se encontra assinalado o campo onde se refere que a utente “se encontra incapacitado(a) de comparecer ao serviço por motivo de doença e pelo período de 12 dias, contados desde 07-Mar-2019”.

6. Sucede que a menção a “12 dias” constante desse campo não foi efectuada pela médica subscritora do referido atestado, mas antes por individuo cuja identidade não se logrou apurar, a mando da arguida.

7. Ainda nesses autos, a arguida foi novamente notificada para comparecer na sessão da audiência de julgamento agendada para o dia 01.04.2019.

8. Contudo, no dia 31.03.2019, por intermédio da sua mandatária, a arguida fez chegar aos autos um requerimento a informar da sua impossibilidade de estar presente na referida audiência, por se encontrar doente, juntando dois documentos comprovativos da sua incapacidade.

9. Assim, a arguida juntou um documento denominado “Dispensa”, do Ministério … – Hospital …, datado de 28.03.2019 e assinado pela Dra. EE, no qual consta a proposta de que a mesma permaneça em casa, de convalescença, durante o período de 28 dias.

10. Sucede que a aludida menção a “28 dias” não foi efectuada pela médica subscritora do referido atestado, que no documento original fez constar um período de convalescença, não de 28, mas de 8 dias.

11. Com efeito, individuo cuja identidade não se logrou apurar alterou o referido atestado, a mando da arguida AA, apondo no mesmo um “2” antes do “8”.

12. A arguida juntou ainda ao referido processo um documento denominado “atestado médico”, do Hospital … de …, datado de 29.03.2019, alegadamente subscrito pela médica FF, no qual se declara que AA “se encontra doente e por isso incapacitado(a) a partir do dia 29.03.2019 e por um período previsível de 25 dias.”

13. No entanto, tal documento não foi emitido nem assinado pela Dra. FF que, na data em apreço, já não exercia funções naquele hospital, tendo-as cessado em 31.12.2018.

14. Individuo cuja identidade não se logrou apurar, a mando da arguida, elaborou o referido documento e, pelo seu punho, assinou o nome de FF como se da mesma se tratasse.

15. Apesar das patologias de que padece, a arguida nunca foi portadora de problema de saúde que a impossibilitasse de se locomover, ainda que com condicionalismos e de, consequentemente, comparecer em Tribunal nas datas indicadas.

16. A arguida receava, não obstante, comparecer em Tribunal no âmbito do aludido julgamento e de prestar declarações enquanto arguida.

17. A arguida, por intermédio da sua advogada, fez chegar aos autos os referidos documentos, dos quais constavam factos não correspondentes à realidade, nomeadamente no que se refere aos períodos de incapacidade decorrente de doença, com o propósito de justificar a sua ausência nas sessões da audiência de julgamento do processo 41/17.9… e evitar, assim, uma eventual condenação em multa por faltas injustificadas.

18. A arguida agiu com o propósito concretizado de usar os documentos referidos em 4. e 9., sabendo que o seu teor não era correspondente à realidade, no que se refere aos períodos de incapacidade deles constantes, os quais foram por si alterados.

19. Alguém a mando da arguida forjou o atestado médico referido em 12., elaborando o referido documento e fazendo constar do mesmo factos falsos, apondo uma assinatura com os dizeres “FF” como se da mesma se tratasse.

20. A arguida remeteu tais documentos ao Tribunal, ciente de que os mesmos eram necessários ao deferimento das suas pretensões.

21. Com tal comportamento, a arguida colocou em crise a credibilidade, confiança e fé pública merecidas por tal tipo de documentos.

22. Agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de obter vantagens que bem sabia não lhe serem devidas, designadamente a justificação das suas faltas às mencionadas audiências de julgamento, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.

*

Provaram-se, ainda, os seguintes factos relativos à situação pessoal da arguida, com relevo para a determinação da sanção:

23. É reformada, mas não tratou da documentação necessária à obtenção de reforma por invalidez.

24. Aufere uma pensão por viuvez no valor de € 300,00.

25. Reside com os filhos de … e … anos e os netos de … e … anos, em casa cedida pela Câmara Municipal de …, pela qual paga uma renda mensal no valor de € 83,00.

26. Suporta as despesas normais do agregado familiar e as referentes à medicação para os seus problemas de saúde.

27. Estudou até ao 12º ano de escolaridade.

28. Por acórdão proferido em 11.06.2013, no âmbito do Proc. 124/10.6…, foi a arguida condenada pela prática, em 2009, de um crime de falsificação de documentos e um crime de auxilio à emigração ilegal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.

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III. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram quaisquer outros factos, sendo certo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.”

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

O recorrente não impugna os factos que determinaram a condenação da arguida, nem questiona a qualificação jurídica dos mesmos. O que põe em causa são as medidas concretas

das penas parcelares de prisão fixadas pela prática dos crimes de falsificação de documentos p.e p. pelos artigos 255º alínea a) e 256º nº 1, alíneas a), c), d) e e) do C.P e da pena única que foi aplicada em resultado do cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, o que vale por dizer que, no seu entender, uma boa aplicação do direito ao caso determinaria a aplicação de penas mais gravosas. Preconiza concretamente que as referidas penas deveriam fixar-se em 20 meses de prisão para cada um dos crimes de falsificação de documentos, devendo a pena única corresponder a 3 anos e 6 meses de prisão efetiva.

Analisemos então se lhe assiste razão.

Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ainda ter presente que no caso dos recursos sobre a pena ou sobre a medida da pena aplicada na decisão recorrida, ao tribunal ad quem caberá verificar o respeito pelas normas e pelos princípios gerais que regulam tal matéria. E tão somente isso. Conforme é amplamente aceite pela jurisprudência dos tribunais superiores, o sistema de recursos no processo penal português tem como escopo a correção dos erros ocorridos na primeira apreciação judicial dos factos e na sua subsunção ao direito. Daqui resulta que o tribunal de recurso só deve intervir na escolha da pena e da sua medida concreta quando detetar incorreções no processo da sua determinação, quer ao nível da valoração factual, quer no que diz respeito à aplicação das normas legais que regem a matéria em causa. Tal sindicância não abrange, pois, a fiscalização do quantum exato de pena, na perspetiva da realização de uma nova determinação da mesma, devendo manter-se a pena concretamente aplicada sempre que se verifique que a sua fixação assentou numa correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais e que, consequentemente, não se revela desajustada, nem desproporcionada. Estabelecida a margem de atuação deste tribunal da Relação no presente recurso, será importante recordar os princípios basilares e orientadores da matéria que temos em análise. Assim, estabelece o artigo 40º do CP que a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º e 40.º do CP, se os crimes forem puníveis alternativamente com pena de prisão ou com pena de multa – o que sucede no caso dos autos – o tribunal deve dar preferência à pena de multa, desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP. Tendo como balizas a culpa – que constitui o limite máximo – e a prevenção geral – que coincide com o limite mínimo – a medida concreta da pena determinar-se-á de acordo com as necessidades de prevenção especial. Assim, dentro da moldura abstrata da pena deverá encontrar-se a medida da culpa, que fixará o seu limite máximo. Após o que, entre o mínimo legal e o limite máximo dado pela medida da culpa se formará a “moldura da prevenção geral de integração” – em obediência à ideia de que o fim da punição reside na defesa dos bens jurídicos e das legítimas expectativas da comunidade com vista ao restabelecimento da paz jurídica e cujo limite mínimo é dado pela defesa do ordenamento jurídico, o ponto abaixo do qual não é socialmente admissível a fixação da pena sem pôr em causa a sua função de tutelar bens jurídicos – dentro da qual a medida da pena será concretizada em função das exigências de prevenção especial: prevenção positiva ou de socialização e, excecionalmente, prevenção negativa de intimidação ou de segurança individuais (1).

“A decisão sobre a pena pressupõe uma relação não linear entre a pena e a prevenção do crime, em que na avaliação do efeito de desmotivação se pondera também a igualdade e a responsabilidade da sociedade na crimogénese. (...) A medida da igualdade e da justiça no que respeita à censura do comportamento criminoso só pode radicar no conhecimento da pessoa e na sua compreensão", isto é, a censura penal tem de atender ao agente concreto do crime e às suas circunstâncias envolventes.” (2)

A determinação da medida da pena deverá, pois, ser feita tendo em conta a culpa do agente, observadas as exigências de proporcionalidade entre a pena e o crime, o princípio de necessidade e dignidade penal, bem como as finalidades de prevenção específica e geral, tutelando de forma efetiva o bem jurídico.

Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço e, bem assim, o processo de determinação da pena concreta realizado pelo tribunal a quo, na perspetiva da realização da sindicância com a abrangência acima delineada. Pela prática de cada um dos crimes de falsificação de documentos p. e p. pelos artigos 255º alínea a) e 256º nº 1, alíneas a), c), d) e e) do C.P, a sentença recorrida optou pela aplicação das penas parcelares de 7 meses de prisão – situadas, portanto, no primeiro terço da respetiva moldura abstrata estabelecida entre 1 mês e 3 anos de prisão – e da pena única de 18 meses de prisão.

Entende, porém, o Ministério Público, que aqui assume a qualidade de recorrente, que não o fez com justificação bastante.

Vejamos.

Devemos em primeiro lugar atentar na factualidade provada, não questionada pelo recorrente – que acima transcrevemos e para a qual remetemos – na qual se descrevem as atuações da arguida, as consequências das mesmas, o contexto em que ocorreram e as suas motivações e, bem assim, os elementos relativos às condições pessoais e aos antecedentes criminais daquela. Dando aplicação aos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP, temos que, no que diz respeito à culpa, tal como nos explica Figueiredo Dias, a mesma se reporta à censura dirigida ao agente por referência à prática do facto ilícito, consistindo na desaprovação da sua atitude face às exigências do dever ser sociocomunitário. Colocando o maior enfoque do seu recurso na invocada falta de ponderação adequada das circunstâncias referentes ao tipo de crimes praticados e ao passado criminal da arguida e atinentes às exigências de prevenção geral – decorrentes da gravidade e da frequência com que se têm vindo a praticar factos de natureza semelhante, integradores de crimes que “abalam fortemente a confiança nos documentos e afetam o comércio jurídico” – e especial – relacionadas com o facto de a anterior suspensão na execução da pena de prisão aplicada à arguida não ter surtido qualquer efeito ressocializador, tendo a mesma reiterado as condutas criminosas volvidos poucos meses após a extinção daquela pena – alega o recorrente, que: “(…) no caso dos autos, apesar de o Tribunal ter sido assertivo quanto à maioria dos factos a ter em conta na medida da pena, depois a sua excessiva e inadmissível brandura, quer em termos concretos, quer em termos comparativos e de proporcionalidade, gera um sentimento de profunda injustiça e é simultaneamente potenciadora de um sentimento de impunidade que não pode vingar, sob pena de se desacreditar todo o sistema repressivo penal, violando-se assim as legítimas expectativas da comunidade. (…)” E não temos dúvida que lhe assiste razão. Efetivamente, tal como se afirma no recurso, cremos que as circunstâncias acima enunciadas, designadamente as atinentes às fortes exigências de prevenção geral e especial, e também as relativas à intensidade da culpa da arguida, não foram adequadamente sopesadas nem no juízo do tribunal recorrido determinativo das dosimetrias das penas, nem na fundamentação da decisão de aplicação da pena substitutiva de suspensão da execução da pena única de prisão. Com efeito, haverá que conferir o devido peso à intensidade da ilicitude e da culpa da arguida, considerando, como aliás se refere na sentença, que a arguida falsificou documentos que, “sem qualquer pudor”, apresentou perante uma autoridade judiciária com vista a eximir-se à ação da justiça, agindo com absoluto desprezo e desrespeito pela autoridade dos Tribunais, que quis e conseguiu enganar. Já no que concerne às exigências de prevenção geral do crime de falsificação de documentos, tal como refere o Ministério Público e atendendo às razões invocadas no recurso, as mesmas não poderão deixar de reputar-se muito elevadas. Assim, a censurabilidade que nos merecem as condutas da arguida – a sua culpa, que funciona como limite máximo inultrapassável – associada à elevada ilicitude dos factos e às também elevadas necessidades de prevenção geral e especial, sustentam totalmente aplicação de penas parcelares de prisão mais elevadas. Com efeito, sopesadas todas as circunstâncias referidas e realizada uma adequada valoração e ponderação dos factos à luz das regras e dos princípios que regem a determinação da medida concreta da pena, entendemos mostrarem-se proporcionais as penas parcelares de 10 meses de prisão para cada um dos crimes de falsificação de documentos pelos quais a arguida foi condenada.

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Encontradas as penas parcelares, realizemos as operações legalmente impostas pelo artigo 77º do CP para a realização do cúmulo jurídico das mesmas, atendendo à sua relação de concurso efetivo.

A fixação da moldura penal do concurso efetivo e real, de acordo com as regras doutrinárias e jurisprudências, no caso subjudice encontra-se possibilitada pela igual natureza das penas a considerar no concurso – 3 penas parcelares de prisão – devendo ter como limite mínimo a pena parcelar mais grave – 10 meses de prisão – e como limite máximo a soma aritmética das penas parcelares – 30 meses de prisão.

Os crimes em concurso real e efetivo preenchem o mesmo tipo penal, afetando, pois, o mesmo bem jurídico. Pese embora tenham sido cometidos em ocasiões diferentes, ocorreram com proximidade temporal e mediante um modus operandi semelhante, o que revela uma resolução criminosa reiterada. Tais circunstâncias, associadas à prática anterior de um crime de natureza semelhante e de outro de diversa natureza – conforme resulta do facto provado relativo à anterior condenação da arguida acima consignado – revelam, a nosso ver, um quadro global de ilicitude e gravidade, que se manifesta numa atuação criminógena e persistente, superior a uma mera e coincidente ocasionalidade no cometimento dos crimes.

Assim, atendendo à gravidade e às circunstâncias atinentes à globalidade dos factos praticados, à natureza dos crimes e à personalidade refletida nos mesmos e no mais que evidencia o percurso de vida da arguida, entendemos adequado fixar a pena única em 20 meses de prisão.

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E o que dizer da suspensão da pena única de prisão aplicada pelo tribunal “a quo”?

De acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 50.º do CP, a suspensão da execução da pena de prisão assenta no pressuposto formal de não ser aplicada pena de prisão superior a 5 anos, o que sucede na situação dos autos. Porém, tendo presentes as considerações de natureza jurídica que antecedem, importa ponderar se a factualidade provada na sentença recorrida, em especial no que diz respeito aos antecedentes criminais da arguida e aos tipos de crimes praticados, suporta a aplicação da pena de substituição nos termos decididos pelo tribunal “a quo”. Desde já adiantamos que, quanto a nós, a resposta a tal questão não poderá deixar de ser negativa. Tal como a decisão recorrida consagra no elenco dos factos provados, a arguida foi já condenada, por acórdão proferido em 11.06.2013, pela prática, em 2009, dos crimes de auxílio à imigração legal e de falsificação de documento, numa pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, condenação que não se revelou suficiente para a afastar da criminalidade. De facto, após tal condenação, volvidos poucos meses após a extinção da referida pena, a arguida voltou a delinquir, não uma, mas três vezes, praticando o mesmo tipo de crime pelo qual havia já sido condenada. Ora, a factualidade acima descrita demonstra, a nosso ver, e conforme propugna o Ministério Público nas suas alegações de recurso, encontrar-se inevitavelmente prejudicado o juízo de prognose favorável relativamente à situação da arguida, falecendo o fundamento para a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão nos termos decididos na sentença recorrida.

De facto, em nosso entender, não poderá sustentar-se – como sustenta a sentença recorrida – que “(…) Ponderadas todas as circunstâncias supra referidas a respeito da medida concreta da pena aplicada e, bem assim, as finalidades pedagógicas e de ressocialização inerentes à aplicação e execução das penas e que privilegiam a opção pelas medidas não institucionais, entende-se que, no caso concreto, a ameaça de prisão ainda se mostra suficiente para a afastar da criminalidade e, desse modo, assegurar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.(…)”

De outra sorte, diremos que o comportamento global da arguida, claramente revelador de um total desrespeito pelas normas jurídicas, pelas decisões judiciais, pelo sistema judiciário e pela organização da vida em sociedade, não deixa margem para se equacionar a aplicação da pena de substituição aplicada na sentença recorrida. O percurso da arguida, mostra-se, pois, a nosso ver, inconciliável com as finalidades que estão na base da suspensão, revelando com mediana evidência, que a ameaça da prisão não será suficiente para a afastar da criminalidade e para a reintegrar na comunidade.

Estamos, aliás, convictos, que a mesma comunidade que, através do Tribunal, depositou na arguida a confiança suficiente para fundamentar a anterior suspensão da execução da pena de prisão, não compreenderia que, perante a violação de tal confiança – espelhada nos comportamentos da arguida subjacentes à condenação em causa no presente recurso – não se fizessem ceder as razões de prevenção especial subjacentes à suspensão e não se determinasse o cumprimento da prisão. A propósito dos critérios de escolha das penas de substituição, nos “Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia”, refere Anabela Rodrigues “(…) quanto à prevenção geral, resulta do facto de nenhum ordenamento jurídico suportar pôr-se a si próprio em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa perda do efeito preventivo geral - isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas, quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão” (3).

Concluímos assim que o percurso da arguida é revelador de uma prognose negativa relativa ao seu comportamento futuro impeditiva da aplicação da suspensão da execução da pena única de prisão, pelo que o recurso procederá também nesta parte.

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Concluindo-se pela aplicação da pena única de 20 meses de prisão e pela não aplicação da pena substitutiva de suspensão da sua execução, impõe-se ponderar a adequação da determinação do cumprimento da pena de prisão em Regime de Permanência na Habitação. O Regime de Permanência na Habitação encontra a sua previsão legal no artigo 43º do CP, sendo que com a atual redação de tal norma penal, conferida pela Lei nº 94/2017 de 23.08, o referido regime veio a consagrar-se também como forma de execução da pena, e não apenas como pena de substituição, sendo esta última a única natureza que resultava da anterior redação do mencionado preceito. Com efeito, dogmaticamente, o Regime de Permanência na Habitação assume atualmente uma natureza mista: de pena de substituição em sentido amplo ou impróprio – na medida em que, tendo natureza privativa da liberdade, pode ser decidida na sentença condenatória em alternativa ao cumprimento da pena de prisão em meio prisional – e de mera modalidade ou forma de execução da pena de prisão – uma vez que pode ser aplicada na fase de cumprimento de pena em consequência da revogação de pena não privativa da liberdade aplicada em substituição da pena de prisão, nos termos do artigo 43º, nº 1, al. c), do Código Penal.

Na situação vertente, encontramo-nos perante a apreciação deste regime na sua vertente de pena de substituição em sentido amplo ou impróprio, uma vez que avaliamos a possibilidade de substituir o cumprimento efetivo da pena de prisão pelo mencionado Regime de Permanência na Habitação.

Ora, dispõe, então, o artigo 43º do Código Penal, que: “Artigo 43.º Regime de permanência na habitação 1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos; b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º; c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º 2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas. 3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado. 4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente: a) Frequentar certos programas ou atividades; b) Cumprir determinadas obrigações; c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado; d) Não exercer determinadas profissões; e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas; f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.”

A norma transcrita – à qual subjaz o entendimento de que o cumprimento em meio prisional das penas curtas de prisão deve ser evitado por não contribuir necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado – admite expressamente que o condenado em pena de prisão efetiva não superior a dois anos possa cumprir a pena em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, regime que se situa a meio caminho entre a suspensão da execução da pena de prisão e a reclusão efetiva do condenado.

Como pressupostos formais deste regime, exige-se que a condenação em pena de prisão efetiva não seja superior a dois anos (artigo 43.º, n.º 1, al. a) do CP) e, bem assim, o consentimento do condenado e das pessoas maiores de 16 anos que com ele coabitem (artigo 43.º, n.º 1, do CP e artigo 4.º, n.ºs 1, 2 e 7, da Lei n.º 33/2010, de 02.09).

Como pressuposto material, o artigo 43.º, n.º 1 do CP exige que o tribunal conclua que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão, ou seja, finalidades preventivo-especiais, no sentido da reintegração social do recluso, “preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”, sem prejuízo de satisfazer também exigências de prevenção geral positiva, “servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes” (artigo 42.º, n.º 1, do CP).

Tendo presentes as considerações de natureza jurídica que antecedem, importa ponderar se a factualidade provada na decisão recorrida, suporta a aplicação do regime de permanência na habitação. Pensamos que sim.

Com efeito, está em causa pena de prisão efetiva não superior a dois anos, sendo que, não se encontrando prestados os devidos consentimentos, a averiguação de tal requisito formal, bem como da verificação das demais condições materiais para instalação da vigilância eletrónica caberá ao tribunal recorrido.

Quanto ao requisito material, levando em consideração a idade da arguida – atualmente com 65 anos – e, bem assim, a circunstância de a mesma não ter outros antecedentes criminais para além do acima referido e de nunca ter tido contacto com a prisão, não se vislumbra que apenas o cumprimento efetivo da pena em estabelecimento prisional satisfaça de forma adequada as necessidades preventivas que o caso reclama. Pelo contrário, o contacto da condenada com o nocivo ambiente do meio prisional sempre será de evitar caso aquela reúna as condições necessárias ao cumprimento da pena de prisão em regime domiciliário devidamente controlado por meios de controlo à distância. Nestes termos, afigura-se-nos que a ressocialização da arguida será ainda possível se a mesma se mantiver recluída junto da sua família, evitando-se o carácter estigmatizante do cumprimento da pena em meio prisional, mas restringindo-a, ainda assim, na sua liberdade e fazendo-a sentir a reprovação dos crimes praticados em razão do seu confinamento à habitação.

Conclui-se, assim, que se encontra verificado o requisito material do qual a lei faz depender a aplicação do cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, com meios de fiscalização de controlo à distância, o que se determinará na condição de vir a atestar-se a verificação dos requisitos formais acima enunciados, o que deverá ser, de imediato, averiguado pelo tribunal recorrido.

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Atendendo a todas as razões enunciadas, o recurso merece provimento, pelo que se decidirá alterar a decisão recorrida em conformidade.

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III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, decidindo, consequentemente, revogar a decisão recorrida no que tange às penas concretamente aplicadas, que se fixam da seguinte forma:

- Pena de 10 (dez) meses de prisão por cada um dos três crimes de falsificação de documentos pelos quais a arguida foi condenada;

- Pena única de 20 (vinte) meses de prisão resultante do cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, pena que a arguida cumprirá em regime de permanência na habitação, desde que seja prestado o seu consentimento, bem como das restantes pessoas que o devam prestar e desde que se verifiquem as condições materiais e técnicas necessárias à instalação dos meios de vigilância e controlo eletrónico.

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Em conformidade com o decidido, deverá o tribunal de primeira instância dar cumprimento ao disposto nos artigos 4º nºs 1 a 5 e 7º n.º 2 todos da Lei nº 33/2010 de 2 de setembro, consignando-se que a falta de algum dos consentimentos legalmente exigidos ou das condições materiais e técnicas necessárias à instalação dos meios de vigilância e controlo eletrónico determinará o cumprimento da pena em meio prisional.

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Sem custas (artigo 522º, nº 1 do CPP).

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 7 de novembro de 2023.

Maria Clara Figueiredo

Maria Margarida Bacelar

Artur Vargues

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1 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 3.ª ed., pp. 96 e Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, pp. 114 e segs.

2 Fernanda Palma, in Jornadas sobre a revisão do Código Penal, AAFDL, 1998, pág. 35.

3 Prof. Anabela Miranda Rodrigues, “Critérios de escolha das penas de substituição no Código Penal Português”, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, “Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia”, Coimbra, 1988.