Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2875/22.3T8LLE.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ASSINATURA
DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO NO SANEADOR
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Não enferma da causa de nulidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC a sentença que contém a assinatura do juiz, aposta por meios eletrónicos, conforme certificação constante do canto superior esquerdo da primeira folha do documento;
II – Não enferma da causa de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do citado preceito a decisão que especifica a matéria de facto e a matéria de direito em que se baseia;
III - A alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º do CPC prevê o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, se o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas;
IV - Esta desnecessidade de mais provas verificar-se-á, entre outras situações, quando não existam factos controvertidos, estando em causa unicamente matéria de direito, mas também nos casos em que da factualidade controvertida não resulte o efeito jurídico pretendido pela parte que a alegou, não assumindo tal matéria de facto relevo à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito, assim se mostrando inútil a produção de prova sobre a mesma;
V – Se os apelantes defendem o prosseguimento dos autos para produção de prova, mas não elencam os concretos factos sobre os quais entendem necessária a produção de prova, tal omissão impede se aprecie a argumentação apresentada, na parte relativa à invocada necessidade de mais provas previamente à apreciação do mérito da causa;
VI - Se os recorrentes não especificam, designadamente nas conclusões, os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, não cumprem o ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2875/22.3T8LLE.E1
Juízo Local Cível de Loulé
Tribunal Judicial da Comarca de Faro


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

(…), Unipessoal, Lda. e (…) intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra Companhia de Seguros (…), S.A., formulando o pedido que se transcreve:
«A) Seja considerada EXCLUÍDA/NULA/INEFICAZ, a cláusula 2.ª da Apólice – “Exclusões” – nomeadamente o seu n.º 6, pois nunca a(s) mesma(s) foram explicadas ou dadas a conhecer ao gerente da A. à A., e pelas razões supra enunciadas;
B) Seja a R. condenada a realizar as obras referentes aos danos causados no âmbito da empreitada levada a acabo pela A. na sua atividade profissional, por ter havido transmissão da responsabilidade para a seguradora, após perícia judicial que identifique concretamente danos e valores.
B2) Subsidiariamente a esta cláusula B) requer a condenação da R. no pagamento de indemnização correspondente ao valor que vier a resultar da perícia a realizar aos danos causados que se irá requerer.
Mais requer, em qualquer das hipóteses pedidas, a condenação da R. em custas e em demais procuradoria, e nos dois pedidos que se seguem:
C) Mais requer a condenação da R. no pagamento do valor de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos morais pelas razões supra explicadas.
D) Mais requer o pagamento no montante de € 500,00 (quinhentos) euros correspondentes aos gastos com pagamento de serviços jurídicos que foram gastos com a instauração da presente ação devido à conduta da R.».
A justificar o pedido, invocam, em síntese, a celebração em 11-02-2022 de um contrato de seguro entre a autora e a ré, através da qual a primeira transferiu para a segunda a responsabilidade civil decorrente de danos causados pelo exercício da atividade profissional de prestação de serviços de construção e remodelação de edifícios, a que se dedica; alegam que, no dia 30-03-2022, quando 2.º autor, gerente da 1.ª autora, efetuava uma obra de remodelação do apartamento que identificam, ocorreu o sinistro que descrevem, o qual causou estragos num apartamento localizado no piso inferior; acrescentam que, participado o sinistro à ré, esta declinou a respetiva responsabilidade invocando uma cláusula de exclusão da responsabilidade que não fora anteriormente dada a conhecer à autora; sustentam, ainda, que tal atuação causou danos não patrimoniais ao 2.º autor, como tudo melhor consta da petição inicial.
A ré contestou, aceitando a transferência da responsabilidade civil em causa, arguindo a ilegitimidade ativa, invocando a falta de enquadramento do sinistro no âmbito das coberturas da apólice e a verificação de causas de exclusão da cobertura, bem como impugnando parte da factualidade alegada na petição inicial.
Notificados, os autores apresentaram articulado de resposta à matéria de exceção.
Notificados para aperfeiçoarem a petição inicial, os autores apresentaram articulado aperfeiçoado.
A ré exerceu o contraditório.
Foi realizada audiência prévia, na qual, após comunicação de que o estado do processo permitia conhecer do mérito da causa sem necessidade da produção de outras provas, as partes declararam nada terem a requerer, conforme consta da ata da diligência.
Foi proferida decisão, na qual se fixou o valor à causa, se proferiu despacho saneador, se discriminou os factos considerados provados e se conheceu do mérito da causa, tendo a ação sido julgada improcedente e a ré absolvida dos pedidos, sendo os autores condenados nas custas.

Inconformados, os autores interpuseram recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra que condene a ré a pagar à autora «a indemnização pedida na primeira instância, com fim a ressarcir os lesados», terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«I. A Decisão Judicial deve ser datada e assinada pelo Juiz. A falta de assinatura do Juiz (615.º, n.º 1, alínea a); e 613.º, n.º 3, do CPC) gera a Nulidade da Decisão.
II. Ora, conforme se verifica na douta Sentença (Saneador Sentença), a mesma carece de assinatura.
III. Acresce, que inconformada com a decisão que julgou parte ilegítima a Autora construtora, em folhas 4 de 5 da douta Sentença, vem apresentar Apelação, tendo o Venerado Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 14 de junho de 2018, julgado procedente tal recurso, com as mesmas características.
IV. Ora, nestes termos, não assiste razão à MMª Juiz a quo.
V. Na Fundamentação – 607.º, n.º 3, 4 e 5 – o juiz vai julgar quais os factos que julga provados e os factos que julga não provados – decide a matéria de facto.
VI. Na fundamentação de facto o que o Juiz vai ter de indicar em primeiro lugar os factos provados e os factos não provados. Em segundo lugar, analisa criticamente as provas.
VII. Ora, a MMª Juiz não logrou em cumprir os termos legais exigíveis para a conformidade da Sentença – o que gera a sua NULIDADE.
VIII. A sociedade Autora tem como objeto social a prestação de serviços de construção e remodelação e que contratou com a Ré um seguro de cobertura dos riscos decorrentes dessa sua atividade (inundações, danos contra terceiros, danos em bens móveis e imóveis e situações similares).
IX. O Autor (…), gerente da sociedade Autora, quando no âmbito da sua atividade se encontrava a efetuar obras de remodelação num prédio provocou danos materiais no andar debaixo em relação ao qual se encontrava a trabalhar.
X. A Autora participou o sinistro à Ré e esta declinou a sua responsabilidade, alegando que os danos em causa se encontram excluídos da cobertura da apólice, invocando a cláusula 2.ª, n.º 6, das Condições Particulares da Apólice.
XI. Assim, e alegando a violação do dever de comunicação de tal cláusula, a Autora pugna pela sua nulidade/ineficácia e consequente exclusão do contrato e pela condenação da Ré na reparação dos danos ou no pagamento do valor correspondente.
XII. Quanto à eficácia do seguro de responsabilidade civil do industrial de construção civil, objeto do presente litigio, cuja obrigatoriedade foi consagrada nos termos conjugados dos artigos 15.º/1, alínea e), 21º/2 e 70.º/2, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de novembro e do Decreto-Regulamentar n.º 11/92, de 16 de maio, alterado pelo Decreto-Regulamentar n.º 32/92, de 28 de novembro, passou a facultativo com as alterações introduzidas ao Decreto-Lei n.º 445/91 pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de outubro, caducando, assim, os decretos regulamentares n.ºs 11/92 e 32/92 que davam execução às disposições do Decreto-Lei que instituiu o referido seguro obrigatório.
XIII. Assumindo a seguradora no âmbito de contrato de seguro sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais, que consta do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, a indemnização pelos danos materiais causados em propriedades contíguas ao local de trabalho da empreitada – empreitada que tinha por objeto a demolição de edifício e a edificação de um novo suportado em alicerces instalados após trabalhos de escavação no subsolo –, danos devidos à execução dos trabalhos seguros, a inclusão de cláusula limitativa, que pela sua amplitude retira utilidade prática à cláusula geral de responsabilidade, traduz desrespeito das regras de boa fé e dos deveres de informação referenciados nos artigos 5.º, 6.º, 15.º, 16.º e 18.º, alínea b), daquele diploma, constituindo uma limitação desproporcionada à responsabilidade assumida de indemnização de terceiros pelos danos resultantes da execução da empreitada.
XIV. É o que sucede com a cláusula limitativa da responsabilidade por via da qual a seguradora não se responsabiliza pelos danos causados nos termos da cláusula 2.ª da Apólice – “Exclusões” nomeadamente o seu n.º 6.
XV. Desrespeita-se a boa fé e o dever de informação que se impõe à Ré seguradora, nos termos das mencionadas disposições do Decreto-Lei nº 446/85, de 20 de outubro, considerando que esta, no caso de a contraparte omitir a especificação das condições em que as propriedades se encontravam, entende que tal omissão basta para ela se poder eximir à responsabilidade assumida contra terceiros pelos danos resultantes da empreitada na base da cláusula limitativa que impõe à contraparte nos termos da cláusula 2.ª da Apólice – “Exclusões” nomeadamente o seu n.º 6.
Nestes termos e demais de Direito, é ferida de NULIDADE por falta de assinatura do Juiz (615.º, n.º 1, alínea a); e 613.º, n.º 3, do CPC);
É também ferida de Nulidade por falta de Fundamentação – 607.º, n.º 3, 4 e 5 – não esclarecendo os factos que julga provados e os factos que julga não provados;
Deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a condenação da Ré seguradora a pagar à Autora construtora a indemnização pedida na primeira instância, com fim a ressarcir os lesados através da eliminação dos defeitos ou nova construção (artigo 1221.º do CC) e indemnização nos termos gerais (artigo 1223.º do CC) dando como procedente o pedido da P.I.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações dos recorrentes e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- nulidade da decisão recorrida;
- oportunidade do conhecimento do mérito da causa no despacho saneador;
- reapreciação da decisão relativa à matéria de facto;
- reapreciação do mérito da causa.
A título de questão prévia, impõe-se apreciar a questão da eventual existência de erro no nome próprio do 2.º autor consignado em determinados pontos de facto.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto
A 1.ª instância considerou assentes, com fundamento no teor dos documentos juntos aos autos e no acordo das partes, os factos seguintes:
1) A Autora (…), Unipessoal, Lda. tem como objecto social a prestação de serviços de construção civil.
2) O Autor (…) é sócio gerente da sociedade Autora.
3) A sociedade Autora celebrou com a Ré, na qualidade de segurada e tomadora do seguro, contrato de seguro de responsabilidade civil no ramo construção civil com cobertura do risco de exploração e proprietário de imóvel, titulado pela Apólice n.º (…).
4) No capítulo VI das Condições Gerais da apólice de seguro, sob a epígrafe “Obrigações e direitos das partes” no artigo 19.º consta “1. Em caso de sinistro coberto pelo presente contrato, o tomador do seguro ou o segurado obrigam-se: (…) e) dar conhecimento dos lesados da existência do presente seguro, indicando-lhe o número da Apólice, e informá-los que deverão dirigir a sua reclamação de indemnização, por escrito, ao Segurador;
f) Dar pronto conhecimento ao Segurador de quaisquer citações ou notificações judiciais que receba, em consequência do sinistro; (…).
5) O Autor (…) celebrou com (…), através de escrito particular, um contrato de empreitada para realização de obras de remodelação de uma fracção autónoma.
6) Aquando da execução dos trabalhos no âmbito da empreitada referida em 5) foram causados danos num roupeiro do andar inferior e peças de vestuário que se encontravam no seu interior.
8) O sinistro foi participado à Ré, a qual respondeu que não aceitava cobrir os danos por ausência de enquadramento nas garantias da apólice contratada.
9) O lesado ainda não foi ressarcido dos alegados danos.
10) O Autor (…) sofreu danos morais pelo facto de a Ré não ter assumido a responsabilidade pela regularização do sinistro.

2.2. Questão prévia: erro no nome próprio do 2.º autor consignado na decisão de facto
Conforme decorre da identificação das partes constante do relatório supra, bem como da identificação das partes consignada no relatório da decisão recorrida, a presente ação foi intentada por (…), Unipessoal, Lda., 1.ª autora, e por (…), 2.º autor.
Ora, analisando a factualidade tida por provada pela 1.ª instância, verifica-se que o primeiro nome próprio do 2.º autor se encontra incorretamente indicado nos pontos 2, 5 e 10, em que, por evidente erro de escrita, se fez constar (…) em vez de (…).
Face à invocação dos apelantes, impõe-se determinar a retificação do detetado erro de escrita, nos termos seguintes: nos pontos 2, 5 e 10 de 2.1., onde se lê (…) deverá ler-se (…).

2.3. Apreciação do objeto do recurso

2.3.1. Nulidade da decisão recorrida
Na apelação que interpuseram, os autores arguiram a nulidade da decisão recorrida, imputando-lhe a falta da assinatura do juiz e a total ausência da indicação de factos provados e não provados.
As causas de nulidade da sentença encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual é nula a sentença quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
A primeira causa de nulidade invocada pelos recorrentes, prevista na alínea a) do n.º 1 do citado preceito, ocorre quando a sentença não contenha a assinatura do juiz; acrescenta o n.º 2 do preceito que tal omissão é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura; esclarece o n.º 3 que, quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
No caso presente, verifica-se que a sentença contém a assinatura do juiz, aposta por meios eletrónicos, conforme certificação constante do canto superior esquerdo da primeira folha do documento, pelo que não se verifica a omissão prevista na alínea a) do n.º 1 do preceito.
Os apelantes invocam, ainda, como causa de nulidade da sentença, a total ausência da indicação de factos provados e não provados.
O vício de falta de fundamentação de facto e de direito configura a causa de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do citado preceito, a qual ocorre quando a sentença não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, assim incumprindo o dever de fundamentação da decisão previsto no artigo 154.º do CPC.
A nulidade em causa pressupõe se omita completamente o cumprimento deste dever de fundamentação, o que requer a total ausência de fundamentação de facto ou de direito, não se verificando perante uma fundamentação meramente deficiente.
Tal omissão não se verifica no caso presente, dado que consta da decisão recorrida a indicação da matéria de facto e da matéria de direito em que se baseia, conforme decorre da própria alegação dos recorrentes, que manifestam discordância relativamente a tal fundamentação.
Em conclusão, não enferma a sentença recorrida de qualquer das causas de nulidade arguidas pelos recorrentes.

2.3.2. Oportunidade do conhecimento do mérito da causa no despacho saneador
A 1.ª instância conheceu do mérito da causa no despacho saneador, o que vem questionado na apelação, defendendo os recorrentes que deveria ter sido determinado o prosseguimento dos autos com vista à produção de outros meios de prova.
Vejamos se lhes assiste razão.
Definindo as finalidades do despacho saneador, dispõe o n.º 1 do artigo 595.º do CPC que se destina a: a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Prevê a alínea b) do citado preceito o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, se o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas.
Esta desnecessidade de mais provas verificar-se-á, entre outras situações, quando não existam factos controvertidos, estando em causa unicamente matéria de direito, mas também nos casos em que da factualidade controvertida não resulte o efeito jurídico pretendido pela parte que a alegou, não assumindo tal matéria de facto relevo à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito, assim se mostrando inútil a produção de prova sobre a mesma. Nestes casos, perante a inconcludência do pedido, não se podendo retirar da matéria de facto alegada o efeito jurídico pretendido, esclarece José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág. 183) que “é inútil produzir prova sobre os factos alegados, visto que eles nunca serão suficientes para a procedência do pedido”.
No caso presente, foi comunicado às partes, na audiência prévia, o entendimento do Tribunal no sentido de que o estado do processo permitia conhecer do mérito da causa sem necessidade da produção de outras provas, não tendo as partes apresentado qualquer requerimento ou alegação.
Na apelação interposta, os recorrentes sustentam que se mostra necessária a produção de prova sobre a factualidade que alegaram. Porém, não especificam os concretos factos que entendem controvertidos, não esclarecendo a factualidade que integra o objeto da prova que pretendem produzir, o que impede se considere necessária a produção de outras provas antes da apreciação do mérito da causa.
Os apelantes, apesar de defenderem nas alegações de recurso o prosseguimento dos autos para produção de prova, não elencam quaisquer concretos factos anteriormente alegados sobre os quais entendam necessária a produção de prova, o que não permite se reaprecie a argumentação apresentada, na parte relativa à invocada necessidade de mais provas previamente à apreciação do mérito da causa.
Improcede, assim, nesta parte, a argumentação dos apelantes.

2.3.3. Reapreciação da decisão relativa à matéria de facto
Os apelantes, apesar de não impugnarem expressamente a decisão sobre a matéria de facto, põem em causa tal decisão, tecendo considerandos sobre ausência de produção de prova.
Porém, o artigo 640.º do Código de Processo Civil impõe ónus ao apelante que pretenda obter a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto, pelo que cumpre verificar se foram cumpridos os requisitos impostos pelo indicado preceito.
Sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o citado artigo 640.º o seguinte: 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Explicando o sistema vigente quando o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, afirma António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 165-166), além do mais, o seguinte: “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)”.
Em anotação ao citado preceito, explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 770) que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objeto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões”.
Analisando as alegações de recurso, verifica-se que os recorrentes não especificam nas respetivas conclusões quaisquer pontos de facto que considerem incorretamente julgados, não incluindo nas conclusões a menção à respetiva discordância relativamente à decisão de facto.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de a falta de indicação, nas conclusões da alegação, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, importar o incumprimento do ónus de alegação a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, podem indicar-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 05-01-2016, proferido na revista n.º 36/09.6TBLMG.C1.S1 - 6.ª Secção, de 21-01-2016, proferido na revista n.º 145/11.1TCFUN.L1.S1 - 2.ª Secção, de 02-02-2016, proferido na revista n.º 2000/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, de 03-05-2016, proferido na revista n.º 145/11.1TNLSB.L1.S1 - 6.ª Secção, de 31-05-2016, proferido na revista n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1 - 1.ª Secção, de 02-06-2016, proferido na revista n.º 781/07.0TYLSB.L1.S1 - 7.ª Secção, de 05-08-2016, proferido na revista n.º 221/13.6TBPRD-A.P1.S1, de 14-02-2017, proferido na revista n.º 1260/07,1TBLLE.E1.S1 - 1.ª Secção, de 14-02-2017, proferido na revista n.º 462/13.6TBPTL.G1.S1 - 6.ª Secção, e de 02-03-2017, proferido na revista n.º 1574/11.6TBFLG.P1.S1 - 7.ª Secção, cujos sumários se encontram disponíveis para consulta em www.stj.pt.
Tendo-se constatado que os recorrentes não especificaram nas conclusões os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, verifica-se que não cumpriram o ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do mencionado artigo 640.º.
O incumprimento, pelo recorrente, do ónus previsto na citada alínea a) é cominado com a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º, assim se encontrando afastada a possibilidade de a Relação convidar ao aperfeiçoamento das alegações, de forma a suprir tal omissão.
No caso presente, verificado o incumprimento pelos recorrentes deste ónus – indicação nas conclusões dos concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados –, sempre seria de rejeitar o recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, caso tivesse sido expressamente deduzida.
Verificada a falta de expressa impugnação da decisão de facto, impõe-se rejeitar a apreciação da argumentação dos apelantes, na parte em que põem em causa a decisão de facto.

2.3.4. Reapreciação do mérito da causa
Vem impugnada na apelação a decisão que, conhecendo do mérito da causa no despacho saneador, julgou improcedente a ação, absolvendo a ré dos pedidos e condenando os autores nas custas.
Extrai-se da respetiva fundamentação que a decisão proferida se baseou nos motivos seguintes:
Pretendem os Autores, por via da presente acção e invocando o contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré, referido em 3), que esta seja condenada a assumir a responsabilidade pela reparação de danos materiais alegadamente causados a terceiros aquando da execução de trabalhos no âmbito da empreitada referida em 5) bem como de danos morais sofridos pelo Autor por esta ter declinado a sua responsabilidade.
De acordo com o disposto no artigo 137.º e no artigo 138.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL. n.º 72/2008, de 16.04) no seguro de responsabilidade civil o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros, garantindo esta obrigação até ao montante do capital seguro por sinistro.
Ora, conforme resulta dos factos assentes, o contrato de seguro foi celebrado entre a sociedade Autora, tomadora do seguro, e a Ré seguradora, para cobertura de danos causados no âmbito da actividade desenvolvida pela primeira.
E, mostra-se assente, em face do documento junto pelos Autores – documento n.º 3 –, que os danos alegadamente causados na fracção inferior e cuja reparação se pretende que a Ré seja condenada a suportar não foram causados aquando da execução de trabalhos no âmbito de contrato de empreitada celebrado com Autor, pessoa singular e também ele empresário em nome individual.
Pelo que, considerando que o direito que se pretende fazer valer assenta no contrato de seguro celebrado entre a sociedade Autora, segurada, e a Ré, não tendo os alegados danos sido causados pela actividade da segurada é quanto basta para se conclua pela inexistência de qualquer obrigação de indemnização por parte da Ré, atento o princípio da relatividade dos contratos.
Porém, e ainda que assim não fosse, sempre se dirá que a acção também teria de improceder.
Como efeito, quanto ao Autor pessoa singular o mesmo carece de legitimidade para demandar a Ré porquanto não é parte no contrato de seguro nem terceiro lesado pela actividade da segurada (aqui Autora).
Quanto à sociedade Autora, atenta a forma como configura a acção e em face da factualidade alegada e assente, a mesma não é titular de qualquer direito que lhe permita demandar a Ré nos termos em que o faz, porquanto, a ter-se verificado o evento em causa nos autos gerador de responsabilidade civil extra-contratual e da obrigação de indemnizar, o titular do direito de indemnização seria o terceiro lesado e não a segurada (aqui Autora).
E, mostrando-se assente que a Autora não pagou qualquer indemnização ao pretenso lesado, também não existe na sua esfera jurídica qualquer direito de reembolso. Assim, não sendo a Autora titular do direito que invoca sobre a Ré, verifica-se uma situação de ilegitimidade substantiva.
Acresce que, e conforme ficou previsto no contrato de seguro, no artigo 19.º do Capítulo VI das Condições Gerais, sob a epígrafe Obrigações e direitos das partes “1. Em caso de sinistro coberto pelo presente contrato, o tomador do seguro ou o segurado obrigam-se:
(…)
e) dar conhecimento dos lesados da existência do presente seguro, indicando-lhe o número da Apólice, e informá-los que deverão dirigir a sua reclamação de indemnização, por escrito, ao Segurador;”.
Pelo que, ao invés de demandar a Ré Seguradora, incumbia à Autora, por assim estar vinculada contratualmente, dar conhecimento ao lesado da existência do seguro para que este reclamasse junto da Ré a eventual indemnização que tivesse direito, estabelecendo-se negociações directas entre aqueles e daqui decorrendo a possibilidade de, se necessário, pretenso lesado recorrer à via judicial e demandar directamente a seguradora, atento o disposto no artigo 140.º, n.º 3, do Regime do Contrato de Seguro.
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Considerando o supra exposto, mostra-se prejudicada a apreciação de quaisquer outras questões.
Decorre deste excerto que a 1.ª instância concluiu que não assiste à ré a obrigação de indemnização do prejuízo decorrente dos danos invocados – por se ter entendido que os mesmos não foram causados pela atividade da sociedade segurada, ora 1.ª autora, sendo que o direito que se pretende fazer valer assenta no contrato de seguro celebrado entre a sociedade autora, segurada, e a seguradora ré –, o que constituiu o fundamento da decisão proferida. Mais se considerou que, ainda que assim não fosse, sempre seria de concluir que os autores não são os titulares do direito à indemnização peticionada na presente ação, direito que, a existir, caberia ao terceiro lesado, assente que a autora lhe não pagou indemnização e que não está em causa qualquer reembolso. Consignou-se, ainda, que a apreciação das demais questões suscitadas se mostra prejudicada pelo entendimento exposto.
Os apelantes, nas alegações de recurso, não obstante manifestarem discordância relativamente à decisão que julgou a ação totalmente improcedente, preconizando seja substituída por decisão que condene a ré a pagar à autora «a indemnização pedida na primeira instância, com fim a ressarcir os lesados», modificação que pressuporia a revogação parcial da sentença recorrida, não demonstram o desacerto da fundamentação que baseia o segmento decisório que impugnam, limitando-se a repetir a argumentação anteriormente apresentada relativamente à invocada invalidade de determinada cláusula contratual e respetivas consequências, matéria que não baseou a decisão proferida e cujo conhecimento foi considerado prejudicado pela solução dada a questão anterior.
Analisadas as alegações de recurso, verifica-se que os recorrentes não apresentam qualquer argumentação, jurídica ou fáctica, destinada a pôr em causa o fundamento da decisão recorrida, a saber, a inexistência da invocada obrigação de indemnização pela ré do prejuízo decorrente dos danos alegados, por se ter entendido que os mesmos não foram causados pela atividade da sociedade segurada. No que respeita a esta questão, os recorrentes não têm em conta o conteúdo da decisão recorrida, designadamente os fundamentos pelos quais foi julgado improcedente o pedido cuja procedência preconizam na apelação, os quais permanecem intocados, considerando que não são indicados os motivos pelos quais defendem a alteração desta parte da decisão, assim não deduzindo uma verdadeira oposição à decisão que impugnam.
As questões a decidir serão, além das de conhecimento oficioso, apenas as que constarem das conclusões, cabendo ao recorrente o ónus de as formular e de nelas incluir as questões que pretenda ver reapreciadas. Não tendo os apelantes especificado, nas conclusões ou no corpo da alegação, qualquer argumento, jurídico ou fáctico, que ponha em causa a decisão recorrida, na parte relativa à supra referida obrigação que imputam à ré e à consequente inexistência do direito que com base nela pretendem exercer, não indicando os motivos pelos quais consideram incorretamente julgada a questão em causa, não se tratando de questão de conhecimento oficioso, mostra-se o recurso, nesta parte, manifestamente infundado.
Acresce que também não vem posta em causa na apelação a parte da decisão em que, após se ter concluído que não incumbe à ré a obrigação de indemnizar danos que não foram causados pela atividade da sociedade segurada e que tal impõe a improcedência do pedido indemnizatório formulado, se considerou que prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, juízo que não se encontra questionado no recurso.
Nesta conformidade, mostra-se o recurso totalmente improcedente.


Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique.
Évora, 26-10-2023
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
José Manuel Tomé de Carvalho (1.º Adjunto)
Eduarda Branquinho (2.ª Adjunta)