Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | RENATO BARROSO | ||
Descritores: | CRIME ELEITORAL PRESIDENTE DA CÂMARA DEVERES FUNCIONAIS DEVER DE IMPARCIALIDADE DEVER DE NEUTRALIDADE | ||
Data do Acordão: | 07/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | Pratica o crime de crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, previsto no artigo 172.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade) o presidente da Câmara Municipal a pouco mais de um mês das eleições autárquicas às quais era recandidato, que faz publicar na página institucional da Câmara Municipal respetiva, uma nota pública do município na qual se exaltam os esforços do arguido e as suas reivindicações junto do Governo para obter fundos para a requalificação dos equipamentos de saúde no concelho, na qual se afirma que a Ministra já teria assegurado ao presidente da Câmara (ao arguido) um novo Centro de Saúde para o concelho, sendo as questões da saúde no concelho uma das bandeiras da sua campanha eleitoral, tendo em conta a situação de pandemia que então se viva em consequência da Covid-19. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA 1. RELATÓRIO A – Decisão Recorrida No processo nº 1319/21.2T9STR, perante tribunal singular, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo de Competência Genérica ..., foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, p.p., pelo Artº 172 da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), aprovada pela Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de Agosto, na redacção dada pela Lei Orgânica nº 5-A/2001, de 26 de Novembro, em conjugação com os Artsº 39 e 41 nº1 desse diploma, com a agravação prevista no Artº 162 al. f) em conjugação com o Artº 202 e punido, caso a sua gravidade o justifique, com a pena acessória prevista no Artº 164, todos deste diploma, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), o que perfaz o montante de € 3.600,00 (três mil e seiscentos euros) e na pena acessória de suspensão do direito de acesso a cargo público pelo período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses. B – Recurso Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo as suas motivações da seguinte forma (transcrição): 1º. Salvo o devido respeito e com toda a consideração o Tribunal a quo estribou a condenação do arguido nos presentes autos num erro manifesto de julgamento ao dar como provados os factos 7 a 10 e 12 e 13 dos factos provados; 2º. Tal erro assentou, essencialmente, no errado julgamento da matéria de facto nos presentes autos ao dar como provados grande parte dos factos que constam da matéria de facto dada como provada; 3º. Ao fazê-lo o Tribunal não apreciou de forma crítica, e de acordo com as regras da experiência comum a prova constante dos autos BB (inquirida na sessão de julgamento do dia 13 de dezembro de 2022, e cujas declarações estão gravadas no respetivo sistema informático de 11:39:45 a 12:16:32), CC (inquirida na sessão de julgamento do dia 13 de dezembro de 2022, e cujas declarações estão gravadas no respetivo sistema informático de 11:17:30 a 12:32:20) e DD (inquirida na sessão de julgamento do dia 13 de dezembro de 2022, e cujas declarações estão gravadas no respetivo sistema informático de 12:32:42 a 13:06:48); 4º. Testemunhas que depuseram de forma isenta e objetiva e que mantêm ainda hoje as mesmas funções que detinham em 16 de agosto de ... (respetivamente Chefe de Gabinete, Secretária e técnica superior com a responsabilidade de coordenar o serviço de imagem de comunicação da Câmara Municipal) são cargos de confiança pessoal do Presidente da Câmara; 5º. Resulta dos seus depoimentos que: - O procedimento quanto a Nota informativa que foi objeto de apreciação nos autos foi o mesmo que sempre foi usado; - O conteúdo da Nota Informativa, era, como o nome indica e resulta da sua leitura, meramente informativo e vinha no seguimento de outras notas informativas que davam nota dos contactos entre o Arguido, na sua qualidade de Presidente da Câmara ..., e a Ministra da Saúde, com vista aos objetivos que estão plasmados na própria Nota Informativa, e que já constavam, nomeadamente de uma outra junta pelo Arguido aquando da sua inquirição e que constará do processo depois de fls 97; - Esta Nota não surge do “nada”, antes sendo o culminar de uma série de pedidos de reunião todos eles devidamente tornados públicos pelo mesmo meio, pelo que não foi um ato de propaganda, mas antes a manutenção do que era o normal funcionamento do Gabinete de Comunicação da Câmara Municipal ...; - A própria Câmara Municipal, por iniciativa do Arguido tinha deixado de ter boletins informativos, apenas utilizando estas notas quando existem temas de relevância para o os Munícipes; - Sendo que o tema em causa tinha que ver com a situação pandémica relativa ao Covid, muito longe de estar resolvida em agosto de 2021 e que era, e se manteve, como uma matéria de prioridade máxima, e de máximo interesse para todos os Portugueses, dentro e fora do ...; - Confirmou-se a normalidade da emissão destas notas sempre que havia reuniões; - Sendo que se refere a uma reunião há muito solicitada pela Câmara Municipal e que ocorreu na data em causa fruto de reagendamentos sucessivos por parte do Ministério da Saúde; - O procedimento para a redação das notas informativas era sempre idêntico, independentemente de se estar ou não em Campanha Eleitoral, pois as notas eram meramente informativas e não havia qualquer contacto entre os Serviços Camarários para a área da comunicação e a campanha de qualquer dos candidatos; - O tema da nota era algo que vinha sendo falado e referido em outras notas há meses, e que o Arguido apenas centrou a sua preocupação na verificação da veracidade do compromisso do Ministério da Saúde, exigindo para tal que o seu conteúdo fosse validado pelo referido Ministério, fato que comprovadamente se verificou; - O impacto da publicação destas notas informativas era sempre muito reduzido. 6º. Bem como desvalorizou para além do que imporiam as regras de experiência comum, parte dos documentos juntos aos autos e que demonstram o que acima se refere; 7º. Porquanto a conjugação destes meios de prova, numa análise segundo as regras de experiência comum imporia um diferente julgamento da matéria de facto dada como provada, impondo que fossem dados como não provados os factos 7 a 10 e 12 e 13; 8º. O cotejo destes meios de prova, analisados segundo as regras de experiência comum imporia, numa primeira linha a verificação da inexistência do crime pelo qual o arguido acabou condenado; 9º. E, numa segunda linha, ainda que, erradamente, se considerasse ter sido praticado o crime, o que se alega sem conceder, a medida da pena acessória que lhe foi imposta foi-o em violação dos mais elementares princípios que determinam a determinação dessa medida, nomeadamente os do artigo 71.º do CP; 10º. A decisão em crise, apreciou a prova produzida, nomeadamente os meios de prova referidos acima de uma forma contrária às regras de experiência comum, assim violando o artigo 127.ºdo CPP, que impõe um critério muito claro para a livre apreciação da prova, que tem em vista afastar decisões arbitrárias; 11º. Sendo manifesto que tais meios de prova impunham decisão diversa quer no que respeita à verificação do crime, quer no que respeita á medida da pena acessória aplicada; 12º. A mesma conclusão impõe uma análise isenta e objetiva do texto da nota informativa, mormente nas passagens que constam da própria sentença em crise, porquanto não pode tal texto ser qualificado como um texto de propaganda, porquanto: - Em momento algum se enaltece a Câmara Municipal do ou o seu Presidente de então, o arguido, pois que se anuncia uma intenção do Ministério da Saúde; - Houve o cuidado de realçar que investimento aí referido era resultante do Plano de Recuperação e Resiliência sob alçada e gestão autónoma do Ministério da Saúde; - A decisão que se refere era do Governo e não do Arguido; - Apenas foram referidos os temas em discussão, sem que fosse referida qualquer decisão quanto a qualquer dos temas. 13º. A própria afirmação do Arguido de que o resultado da reunião teria sido uma boa noticia é proferida refere-se à saúde da população em agosto de 2021, época em que a pandemia de Covid 19 estava longe de ter terminada; 14º. Neste contexto, que a decisão em crise ignorou totalmente, não é possível afirmar-se, que a Saúde não fosse d capital importância para a população do ...; 15º. Sendo que também os resultados eleitorais afastam a tipificação da conduta em análise como um crime, na medida em que a conduta em causa ocorre menos de um mês e meio antes de umas eleições em que o arguido é derrotado por uma diferença de 17% dos votos, diferença já conhecida pelas sondagens nessa data, e de impossível recuperação no tempo de campanha que restava, 16º. Factos que o tribunal a quo ignorou igualmente, e por si só suficientes para afastar o dolo, seja em que forma for, da conduta do Arguido; 17º. A meritíssima Juiz a quo, com todo o respeito, violou com a sentença em crise, para lá dos critérios dos artigos 15.º do CP e 127.º do CPP, dos artigos 172.º, 39.º 41.º, 164.º e 202º da LEOAL com uma a interpretação extensiva dos mesmos, muito para lá da letra e do espírito da Lei, que que imporia, se vingasse, um entendimento que impediria qualquer autarca em exercício de se recandidatar; 18º. Ou o forçaria a, fazendo-o suspender, as suas funções em período eleitoral; 19º. Bem como bloquearia a comunicação das Câmaras Municipais de todo o País com os seus Munícipes em tempo de campanha eleitoral; 20º. Sem conceder, andou mal igualmente a sentença em crise no que respeita aa determinação da medida da pena acessória, que foi determinada tendo em conta não a gravidade objetiva da conduta erradamente imputada ao Arguido, mas sim o facto de este ser que é; 21º. Isto porque, após considerar que as exigências de prevenção especial eram reduzidas, a meritíssima Juiz pretendeu fazer do arguido um exemplo, em violação clara dos princípios contidos no artigo 71.º do CP (frontalmente violado), aplicando-lhe uma pena acessória acima de metade do máximo legal, com o confessado intuito de impedir o Arguido de se candidatar à presidência da Câmara Municipal ... em 2025; 22º. Resulta do próprio texto da sentença em crise que a medida da pena foi determinada tendo conta o tempo que o processo demorou a ser decidido, de forma a impedir que o Arguido se candidatasse à Câmara Municipal ..., ou a qualquer outra em 2025; 23º. Tivesse o processo demorado mais ou menos a ser tramitado e a medida da pena seria outra, o que viola frontalmente todos os critérios legais para determinação das medidas das penas (acessórias ou não). Termos em que, revogando A Sentença, absolvendo o Arguido do crime que lhe é, erradamente, imputado, se respeitará o Direito, fazendo V. Exas. a habitual JUSTIÇA! C – Resposta ao Recurso O M. P, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição): 1. Inconformado com a decisão condenatória proferida em 10 de Janeiro de 2023, de fls. 170 e seguintes, na qual se julgou procedente a acusação pública deduzida contra o arguido e, em consequência, o condenou pela prática, na forma consumada, de um crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, previsto e punido pelo artigo 172.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, na redacção dada pela Lei Orgânica n.º 5-A/2001, de 26 de Novembro, além do mais, na pena acessória de suspensão do direito de acesso a cargo público pelo período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, dela veio recorrer. 2. Para o efeito, em síntese, sustenta o arguido que mal andou o Tribunal a quo ao dar como provados os factos 7 a 10, 12 e 13, violando os critérios do artigo 15.º do Código Penal (em diante designado pela sigla “CP”) e do artigo 127.º do Código de Processo Penal (doravante designado pela sigla “CPP”) e, se assim não se entender, ao aplicar uma pena acessória acima de metade do máximo legal, como aplicou, violou o disposto no artigo 71.º do CP. 3. Salvo o devido respeito, entendemos não assistir qualquer razão ao arguido, como de seguida procuraremos demonstrar. 4. O arguido manifesta tão singelamente o entendimento de que “o Tribunal não apreciou de forma crítica, e de acordo com as regras da experiência comum a prova constante dos autos (…)”. 5. Porém, considerando que a prova produzida se encontra toda ela sujeita à livre apreciação do julgador (não havendo qualquer meio de prova de valor vinculado), apenas uma apreciação manifestamente contrária à prova produzida e às regras da experiência à luz das quais a primeira tem de ser interpretada poderá ser sindicada pelos Tribunais superiores, sob pena de, de outra forma, se subverter o princípio da imediação e oralidade e a instância recursiva reconduzir-se a um novo (segundo) julgamento. 6. E não é, com certeza, o caso dos autos, porquanto, apesar das medidas provirem do Ministério da Saúde, o arguido congratula-se publicamente com as mesmas, referindo na “nota informativa” e no email enviado para a mailing list do Município ... (a qual integrava, de acordo com a testemunha EE “centenas de destinatários”), que se tratou de uma “reivindicação de muitos anos” do seu executivo, aproveitando para destacar os benefícios para a população do concelho e destacando ainda que, nessa reunião, “reivindicou” os reforçados meios de transportes e a requalificação do edifício da Unidade de Saúde Familiar .... 7. De facto, não se pode ignorar que o arguido destaca e enaltece os esforços por si assumidos como Presidente da Câmara Municipal ..., os quais são adequados a criar no espirito dos leitores/munícipes a sensação de sucesso do respectivo autarca e o mérito do mesmo na tomada e iniciativa de tais medidas, o que, obviamente, é também adequado, mesmo de forma velada, a influenciar no resultado das eleições agendadas, por se sustentar, mais do que em meras promessas, no exemplo concreto do trabalho já feito. 8. Por outro lado, relativamente ao dolo, importa destacar, como bem se faz na douta sentença recorrida, que o arguido não é leigo na matéria, exercendo funções de Presidente da Camara já desde 16-10-... (e, antes disso, ter também exercido funções executivas como vereador e vice-presidente durante vários anos), sendo que as aludidas publicações são o reflexo da maior bandeira da sua própria campanha. 9. De mais a mais, o arguido, como pessoa experiente e conhecedora dos meandros políticos e abrangência das redes sociais, teria de saber que as ditas publicações e emails teriam uma extensa abrangência de destinatários, mais do que qualquer outra, sendo facilmente dissemináveis, não havendo motivo que justificasse que o mesmo tivesse, quanto a estas, um entendimento diferente do aplicável aos outdoor e boletins distribuídos na rua, relativamente aos quais assumiu estar consciente da sua ilicitude. 10. Seria, pois, necessária uma “ inocência quase infantil” (como se considerou no douto despacho de pronúncia e na douta sentença) para que não se percebesse que tal “nota informativa” era enaltecedora do trabalho desenvolvido pelo arguido e, especificamente, do sucesso alcançado, porquanto grita o êxito das diligências que desenvolveu perante o Governo na obtenção de financiamento para a construção de um novo centro de saúde, aqui se salientando expressões como: “a nossa reivindicação de muitos anos foi, finalmente, acolhida pela administração central”, “enorme empenho da Câmara Municipal”, etc.) e o respectivo resultado final (a construção de um novo centro de saúde). 11. Não pode, pois, colher a alegação do arguido no sentido de que não tinha consciência de que a publicação e divulgação de tal nota informativa violava os deveres de neutralidade e imparcialidade ou tão pouco que a sua intenção fosse de favorecimento da sua candidatura em detrimento das demais. Se o arguido não tinha consciência de tal violação quem poderia então ter tal consciência? Aquele que se candidata pela primeira vez?! 12. Pelo que, não se mostrando a apreciação feita da prova produzida contrária às regras da experiência (e muito menos, manifestamente), forçoso será concluir, pela improcedência do recurso, mantendo-se como provados os factos 7 a 10, 12 e 13, nos moldes doutamente fixados pelo Tribunal a quo. 13. O arguido também não se conforma com a pena acessória que lhe foi aplicada pelo Tribunal a quo, defendendo, além do mais, que “(…) foi determinada tendo em conta não a gravidade objetiva da conduta erradamente imputada ao Arguido, mas sim o facto de este ser que é;” 14. Numa coisa o arguido tem razão, pois foi precisamente por ser (funcionalmente) quem era e por exercer as funções que exercia na data da prática dos factos que o mesmo foi condenado nos moldes sancionatórios (pena principal e pena acessória) em que o foi. 15. Preconizando a redução da pena acessória para, se bem entendemos, medida próxima do limite mínimo legal (6 meses), invoca também o arguido que se considerou na sentença que as “exigências de prevenção especial são reduzidas”. 16. Porém, olvida o (mesmo) arguido que naquela (mesma) sentença também se considerou que as exigências de prevenção geral são significativas, o que, estranhamento, não coloca em causa, parecendo ignorar ou pelo menos esquecendo que na determinação da medida concreta das pena, sejam elas principais ou acessórias, a doutrina sempre ensina que deve ser sopesado e considerado um mix compósito e integrador da prevenção geral (fundamentalmente no sentido da recuperação da estabilidade, confiança e assertividade normativa da ordem jurídica) e da prevenção especial (essencialmente de reintegração). 17. A pena em apreço, enfatize-se, como vem sendo pacificamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, justifica-se, deste modo, por exigências de prevenção geral e especial, encontrando-se a mesma quantitativamente concretizada no quadro legalmente definido da culpa, isto é, do juízo de censura in casu feito ao arguido, o qual era, à data dos factos, não só candidato a Presidente da Câmara Municipal ... como também Presidente eleito da mesma autarquia desde 16-10-... e, antes disso, ter também exercido funções executivas (vereador e vice-presidente) durante vários anos, factos que inapelavelmente robustecem a censurabilidade do comportamento do arguido e, nessa medida, a correspondente de uma sanção - ainda que acessória - adequada e proporcional à protecção dos bens visados pela incriminação prevista no 172.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto. 18. Sendo um crime de perigo abstracto, o legislador carreou para a previsão do crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade as razões de política criminal que impõem uma acrescida protecção do bem jurídico - bastando-se o tipo-de-crime com a colocação em perigo do bem jurídico protegido e não exigindo, pois, a sua efectiva danificação - e inerente à própria norma incriminatória, indissoluvelmente ligadas ao facto praticado e à culpa do agente. Atenta a sua natureza consequencial da prática de um crime, e como a generalidade das penas acessórias no nosso ordenamento jurídico-penal, é a dita sanção acessória adjuvante da função da pena principal, permitindo, desse modo, o reforço e a diversificação do conteúdo penal da condenação. 19. Sendo a legalidade e a transparência do exercício de cargos públicos, muito em especial, de cargos políticos, o bem jurídico protegido com a incriminação, compreensível e justificado é o sancionamento do agente em suspensão do direito de acesso a cargos políticos, para que, além do mais, interiorize adequadamente o desvalor da conduta e veja nisso uma especial advertência pelo comportamento potencialmente perigoso praticado, embora a sanção esteja limitada, nos seus pressupostos, pela sua culpa e só se colocando a perigosidade como concreto parâmetro referencial da punição. 20. As exigências de prevenção geral relacionadas com o tipo legal em causa são (manifestamente) significativas, atentas as repercussões que o crime gera na confiança no sistema eleitoral e no parâmetro de igualdade dos candidatos, tanto mais que o arguido era à data dos factos Presidente da Câmara Municipal ..., requerendo, assim, punição consentânea, emergindo, pois, com acuidade, a necessidade de acautelar essa finalidade de protecção como garantia da validade da norma e de confiança da comunidade, devendo ainda aquela ser confrontada com outros valores relevantes, nos quais se incluem as exigências de integração pressupostas pelo legislador, porquanto a determinação da pena acessória se rege pelos critérios definidos pelos artigos 40.º e 71.º, ambos do CP, em obediência ao princípio “acessorium principale sequitur”. 21. Bem andou, assim, o Tribunal a quo, já que a medida da pena há-de ser dada por considerações de prevenção geral positiva - isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos e que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, fornecendo uma “moldura de prevenção” consubstanciada num “quantum” de pena que varia entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias - em função da qual a medida da pena não pode vir a situar-se abaixo do limiar comunitariamente suportável em ordem à manutenção da sua finalidade tutelar, isto é, a resposta punitiva exigida tem de merecer a aceitação da comunidade e ser adequada a que o arguido sinta censura suficiente ao seu comportamento, com efeito útil de dissuasão de reiteração da conduta. 22. Como entenderia a comunidade uma pena acessória que permitisse a um autarca com anos e anos e anos de exercício de funções executivas (vereador, vice-presidente e presidente) numa câmara municipal e condenado pelo crime aqui em causa voltar a candidatar-se logo nas eleições autárquicas imediatamente subsequentes àquelas no contexto do qual o crime foi praticado? 23. Como sairia a ordem jurídica e, em especial, as finalidades das penas (na lógica do mix prevenção geral / prevenção especial) se a pena acessória efectivamente aplicada se auto frustrasse e se inibisse a si própria de ter qualquer efeito útil perceptível pela comunidade a qual é, no limite, a titular dos bens jurídicos protegidos? 24. Provou-se que o arguido entre 16-10-... e 18-10-... desempenhou funções de Presidente da Câmara ... e que o arguido apresentou candidatura para o dito cargo, recandidatando-se ao mesmo encabeçando a mesma força partidária (i. é, com a natural máquina de propaganda), com grau de ilicitude e intensidade do dolo elevados, conforme bem salientado pelo Tribunal a quo, circunstâncias que não podem deixar de ser valoradas na sua dimensão como factores que tornam o seu comportamento mais censurável. 25. Por todo o exposto, bem andou também o Tribunal a quo ao aplicar ao arguido uma pena acessória de suspensão do direito de acesso a cargo público pelo período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, devendo manter-se a sentença recorrida nos seus precisos termos em que foi proferida. D – Tramitação subsequente Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora-Geral Adjunta, que emitiu parecer no sentido do insucesso do recurso. Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta. Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO A – Objecto do recurso De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, impostas pelos Artsº 410 e 379 do CPP. Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito. As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal. O objecto do recurso cinge-se, às conclusões do recorrente, nas quais alega, por um lado, o erro de julgamento em relação a alguns artigos da matéria de facto dada como provada pela instância recorrida e por outro, defende que a pena acessória que lhe foi aplicada é excessiva. B – Apreciação Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida. Ali, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição): II – DOS FACTOS A) Factos provados: Em julgamento e com relevo para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade: 1. O Arguido, entre 16.10.... e 18.10...., desempenhou as funções de Presidente da Câmara Municipal ..., tendo tomado posse no dia 16.10.... para o mandato .../..., cargo a que foi reeleito no dia 11.10...., para o mandato .../..., e do qual cessou funções em 18.10..... 2. Por Decreto n.º 18-A/..., da Presidência do Conselho de Ministros, publicado, em 07.07...., no Diário da República, n.º ..., 1.ª série, página 128, foram convocadas para dia 26.09...., eleições autárquicas, designadamente para o cargo de Presidente da Câmara Municipal .... 3. O Arguido apresentou candidatura para o dito cargo, tendo-se recandidatado ao mesmo, ao encabeçar a lista do .... 4. Para eleição para a Câmara Municipal ..., foram ainda apresentadas e admitidas definitivamente as listas dos seguintes partidos políticos: ..., ..., ... e .... 5. Por ordem do Arguido, que aí atuou no exercício das suas funções de Presidente da Câmara Municipal ..., com o seu consentimento e concordância, no dia 16.08...., pelas 17h:35m, foi publicada na página institucional da Câmara Municipal ..., na rede social Facebook, perfil com o link ..., publicação com o seguinte título: “MINISTRA FF ASSEGURA A AA QUE O ... VAI TER NOVO CENTRO DE SAÚDE”, onde é referido, entre o mais, que “o Presidente da Câmara considera ‘o resultado desta reunião com a Ministra da Saúde, como uma das melhores notícias que poderíamos receber para melhorar a vida das pessoas, particularmente de todas aquelas que recorrem ao Serviço Nacional de Saúde no nosso concelho’. Para além deste investimento financiado pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). AA defendeu a urgência de ‘requalificar a Unidade de Saúde ... e a extensão de ..., assim como, o urgente reforço de profissionais de saúde para o nosso concelho, em especial, ao nível de médicos de família’. (…) AA congratulou-se com a decisão do Governo, destacando que ‘a nossa reivindicação de muitos anos foi, finalmente, acolhida pela administração central, o que vai permitir à população do concelho passar a contar com uma infraestrutura nova, criada de raiz para dar resposta às novas exigências regulamentares e às novas necessidades dos mais de 15 mil utentes ali inscritos e proporcionar aos profissionais de saúde, a quem tanto devemos, condições dignas para o exercício das suas funções’. O autarca acrescentou que ‘qualificar os equipamentos de saúde pública é a melhor forma de dignificar e proteger o direito à saúde, o direito à vida de cada ser humano, é a melhor forma de dignificar o SNS e os seus extraordinários profissionais’. Entre as reivindicações que AA levou à Ministra da Saúde, esteve também a requalificação do edifício que acolhe a Unidade de Saúde Familiar Unidade de Saúde Familiar ..., em ..., assim como, a sua extensão em .... AA informou a Ministra da Saúde do ‘enorme empenho da Câmara Municipal na concretização desta requalificação. (...)’ Na reunião com a Ministra da Saúde o presidente da Câmara Municipal reivindicou ainda‘o reforço de meios de transporte e o reforço do número de médicos de família no nosso concelho, essenciais para garantir os cuidados de saúde a cada concidadã e cada concidadão da nossa terra.”. 6. No mesmo dia, pelas 18h:25m, também por ordem e com o consentimento do Arguido que aí atuou no exercício das suas funções de Presidente da Camara Municipal ..., foi remetida, do endereço eletrónico ... - um dos endereços institucionais da Câmara Municipal ..., mais concretamente do Gabinete de comunicação da Câmara Municipal - para várias entidades, designadamente para o endereço de email: ..., mensagem de correio eletrónico também com o mesmo texto e com os excertos transcritos em 5.º. 7. As informações veiculadas por tal publicação e email (meios suscetíveis de serem partilhados e reencaminhados a um universo extenso e indefinido de munícipes) não eram essenciais, nem imprescindíveis para a população do ..., inexistindo motivo de grave e urgente necessidade pública que as justificassem. 8. Com tal publicação e mensagem o Arguido, enquanto Presidente da Câmara Municipal ..., em e no exercício de tais funções, chamou a si e ao seu executivo, o mérito e a autoria de obras e medidas adotadas ou a realizar no futuro (como seja, o reforço em profissionais de Saúde no Centro de Saúde ... e reforço de meios de transporte, já realizados, e a instalação de um novo Centro de Saúde, a concretizar), as quais apresentou como benéficas para os munícipes do ... e, assim, eleitores das eleições autárquicas já agendadas. 9. Tais comunicações e reivindicações, da forma como foram apresentadas, destacaram e relembraram aos munícipes do ... e eleitores, as obras e medidas favoráveis aos mesmos já realizadas pelo, à data, presidente da Câmara Municipal ... e recandidato à Câmara Municipal, bem com a sua intervenção em obras, da mesma natureza, projetadas para um futuro próximo, sendo, por tal, idóneas a criar a convicção de um bom desempenho funcional do aqui Arguido, então candidato, e do seu executivo. 10. O que era suscetível de interferir no ato eleitoral em curso, favorecendo a sua campanha eleitoral, em detrimento das demais candidaturas, correspondendo a um ato de propaganda eleitoral, por apropriado a persuadir, direta ou indiretamente e de forma sub-reptícia, os eleitores a votarem na sua recandidatura ao cargo de Presidente da Câmara ..., em violação dos deveres de neutralidade e de imparcialidade que sobre este incidiam, enquanto presidente da Câmara e no exercício de tais funções (artigo 39.º e 41.º da Lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, na redação dada pela Lei Orgânica n.º 5-A/2001, de 26 de Novembro). 11. O Arguido, enquanto presidente da Câmara municipal, tinha perfeito conhecimento dos deveres de neutralidade e imparcialidade que, relativamente às candidaturas às eleições (e inclusive à sua), sobre si recaiam, quando se encontrasse no exercício de tais funções. 12. Ao atuar ou mandar atuar da forma supra descrita, o Arguido quis e conseguiu violar os deveres de, no desempenho das suas funções, se abster de praticar atos ou proferir palavras sua própria candidatura, com o inerente prejuízo das candidaturas apresentadas às eleições, nomeadamente ao evidenciar, de forma elogiosa, a obra já realizada e a realizar com o seu contributo e do seu executivo, enquanto presidente da Câmara Municipal. 13. Todavia, mesmo assim, quis agir e agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que, com tais condutas, se aproveitava da visibilidade inerente à sua qualidade de membro de órgão autárquico e que, no exercício de tais funções, autopromovia a sua própria candidatura em detrimento das demais, bem como, subsequentemente, violava os deveres de neutralidade e imparcialidade que sobre si recaiam, praticando conduta proibida e punida por lei penal, como quis e conseguiu. Mais se provou que: 14 – A reunião com a Ministra da Saúde FF encontrava-se agendada para o dia 16 de junho de ..., tendo sido adiada por impedimento daquela. 15 – Um dos pontos essenciais da candidatura do Arguido às eleições autárquicas de ... era a saúde. 16 – As eleições foram ganhas pelo .... (Das condições socioeconómicas) 17 – O Arguido é licenciado em economia. 18 – O Arguido dedica-se à vida política há vários anos, tendo assumido cargos de vice-presidente e de vereador antes de ser Presidente da Camara. 19 – O Arguido desempenha atualmente funções de assessor do Primeiro Ministro, pelas quais aufere o rendimento mensal de 2.600,00€ 20 – O Arguido vive sozinho em casa própria, pela qual paga uma prestação de crédito habitação de 600,00€ mensais. 21 – (…) tem um filho, a quem paga uma pensão de 450,00€, gastando, ainda, com a ajuda de outros familiares a quantia mensal de 500,00€. (Dos antecedentes criminais) 22 – Do certificado de Registo Criminal do Arguido não constam quaisquer condenações. * B) Factos não provados: Com interesse para a boa decisão da causa, inexistem factos não provados. Aferindo agora da bondade do peticionado pela recorrente: B.1. Erro de julgamento Invoca o arguido o erro de julgamento por parte do tribunal recorrido, por ter dado como provados os factos nsº 7 a 10, 12 e 13. Impugna o recorrente tal factualidade, alegando que a mesma não se poderia ter como adquirida tendo em conta os testemunhos de BB, CC e DD, que depuseram de forma isenta e objetiva e que mantêm ainda hoje as mesmas funções que detinham em 16/08/21, respetivamente, Chefe de Gabinete, Secretária e técnica superior com a responsabilidade de coordenar o serviço de imagem de comunicação da Câmara Municipal .... Invoca, pois, o recorrente, no que respeita à factualidade que levou à sua condenação, o erro de julgamento decorrente do Artº 412 nº3 do CPP, e não, um erro/vício da sentença previsto no nº2 do Artº 410 do mesmo diploma legal. O seu recurso reporta-se, única e exclusivamente, à matéria de facto, alegando uma incorrecta e deficiente apreciação da prova testemunhal que foi produzida em Audiência de Julgamento. É sabido que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no Artº 428 do CPP, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro, da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no Artº 412 nsº3 e 4 do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410 nº2 do aludido Código. O erro de julgamento, ínsito no Artº 412 nº3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nsº3 e 4 do Artº 412 do CPP. É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes, um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que se impõe, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº3 do Artº 412 do CPP. Assim, impõe-se-lhe a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado. Mais se lhe atribui, a explicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, acrescendo a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considera mal julgado. Por fim, é-lhe ainda assacada a pormenorização das provas que devem ser renovadas, o que só se compraz com a informação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em sede de 1ª instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº2 do artº 410 do CPP e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo (Cf. Artº 430 nº1 do citado diploma). No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto, é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente. Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/03/12, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18/04/12: «Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório. A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas. O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto. Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.». Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, importa dizer, desde já, que o recorrente não deu cumprimento, de forma rigorosa, à referida tripla exigência do nº3 do Artº 412 do CPP, ainda que se entenda o ataque factual que deduz à decisão sindicada. Atente-se, antes de mais, na motivação factual constante da decisão sindicada (transcrição): C) Motivação da matéria de facto: A convicção deste Tribunal quanto à matéria de facto provada fundou-se na análise crítica e conjugada da globalidade da prova, quer a que resulta dos autos, como a produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência comum e com a livre convicção do julgador, com destaque para: - Imagem da página pessoal do Arguido, na qual apresenta o cartaz e reivindicações marcantes da campanha para reeleição como presidente da Câmara Municipal de fls. 24. - Prova produzida em julgamento. Concretizando. Relevaram, sobretudo, as declarações do Arguido em audiência que consubstanciaram uma confissão quanto à realização da publicação no perfil de facebook da Câmara Municipal, bem como à sua divulgação através do correio eletrónico institucional da Câmara Municipal. Quanto ao conteúdo da publicação, apesar de não ter sido escrita pelo Arguido, este reconheceu que teve a iniciativa da publicação dos resultados da reunião com a Ministra da Saúde. Após elaborado o texto pela pessoa responsável (a testemunha DD), foi- lhe dado conhecimento do mesmo, tendo-o aprovado. Assumiu, pois, toda a responsabilidade inerente à realização e publicação de tal texto, que qualifica como uma nota informativa (fazendo-o, inclusive, por referência ao pelouro da comunicação, que assumia). Assim, das declarações do Arguido resultaram o cargo exercido pelo mesmo, bem como o período dos respetivos mandatos, a publicação da página da Câmara Municipal ... no Facebook, a sua divulgação através do e-mail institucional da Câmara Municipal, bem como o seu conteúdo, em complemento aliás dos documentos juntos aos autos. O decreto que convocou as eleições foi publicado em diário da República, sendo, pois, do conhecimento geral. Encontra-se ainda junto aos autos o Edital da Câmara Municipal ..., quanto às candidaturas definitivamente admitidas a tais eleições (fls. 100 e 101). O Arguido negou, contudo, que tivesse consciência de que a publicação e divulgação de tal nota informativa violava os deveres de neutralidade e imparcialidade. Negou, ainda, que tivesse qualquer intenção de favorecimento da sua candidatura em detrimento das demais. Afirmou, neste ponto, que a reunião com a Ministra da Saúde já estava agendada em momento anterior à publicação da convocação das eleições, tendo sofrido vários adiamentos por impedimento da Ministra da Saúde. Por esse motivo, a reunião acabou por se realizar naquela data, em período de campanha eleitoral, reiterando que tal ocorreu por motivos que lhe são alheios. No final da reunião, atendendo ao período de pandemia vivida, considerou de toda a relevância dar conhecimento aos munícipes do resultado da reunião, por ser uma questão da preocupação da generalidade das pessoas. Tais declarações foram, no essencial, corroboradas pelas testemunhas BB, CC e DD, as quais prestaram o seu depoimento de forma coerente e clara. Estas testemunhas destacaram que a publicação se tratou de uma nota informativa normal, não tendo sido pedido parecer jurídico, uma vez que nada lhes despertou qualquer alerta, tendo sido partilhada pelos meios habituais (publicada no perfil de facebook da Câmara Municipal e enviada pelo e-mail institucional para a mailing list ou na forma de newsletter), nenhuma testemunha conseguindo indicar o número concreto de destinatários, indicando EE que se cifraria nas centenas. Neste ponto, o Arguido afirmou que estariam, com toda a certeza, na lista rádios e outros órgãos de comunicação local, recordando-se mesmo de ver a notícia em algum meio de comunicação social que indicava como fonte a agência Lusa. Ora, cremos desde logo que a versão do Arguido de que não tinha conhecimento de que tal nota, apesar do conteúdo claramente enaltecedor do trabalho pessoal do mesmo (o que reconheceu, dizendo que era procedimento habitual), violava os deveres de imparcialidade e neutralidade enquanto presidente da Câmara Municipal, não nos mereceu credibilidade. Evidentemente que a questão, alegada, da falta de consciência da ilicitude por parte Arguido, se relaciona com o íntimo de cada um. Contudo, a prova dessa mesma consciência decorre da conjugação da restante factualidade com as regras de normalidade e experiência comum. Com efeito, o Arguido afirmou que desconhecia que tal nota informativa institucional poderia ser considerada como integrante da norma em causa e que consagra aqueles deveres, julgando que apenas o seriam os outdoors publicitários ou boletins/brochuras – casos de que tinha conhecimento através dos meios de comunicação social, relativamente a anteriores períodos eleitorais. Por um lado, é de ter em consideração que os meios utilizados para divulgação da nota informativa permitiam que a mesma chegasse ao conhecimento de um número indeterminado de pessoas (nomeadamente pela possibilidade de partilhar tal texto em várias outras páginas e perfis daquela rede social, bem como de reencaminhar o e-mail por inúmeros outros destinatários), além de que foi remetido para órgãos de comunicação social, podendo, pois, chegar a ainda mais munícipes do que se fosse feita na forma de outdoor publicitário ou distribuída como boletim/brochura. Por outro lado, atendendo a que uma das principais bandeiras da campanha do Arguido, enquanto candidato ao cargo de Presidente da Câmara Municipal, passava precisamente pela defesa da requalificação dos equipamentos de saúde locais, parece-nos evidente que aquela nota informativa pretendia demonstrar o trabalho feito pelo candidato nessa mesma área. Tal bandeira da campanha de reeleição do Arguido é visível, com completa clareza, na publicação efetuada na sua página de perfil pessoal a 04.08...., junta a fls. 24 dos autos e onde se lê: “PRIORIDADE: CUIDAR DAS PESSOAS 1. A pandemia reforçou, em cada um de nós, a convicção da importância do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e dos seus dedicados profissionais. (…) 3. Precisamos de mais profissionais de saúde e precisamos urgentemente de melhores equipamentos de saúde. Por isso, reivindicamos junto do Ministério da Saúde de um novo Centro de Saúde para o ... e de obras de requalificação quer na Unidade de Saúde ... quer na .... 4. Neste mandato a Câmara Municipal substituiu-se ao Ministério da Saúde e requalificou a ... para que esta pudesse continuar aberta. 5. Hoje é tempo do Ministério assumir s suas responsabilidades e financiar estas importantes obras para o nosso concelho.” A tal publicação seguia-se uma imagem da campanha do Arguido, com a frase “exigimos novo centro de saúde”. Ora, 12 dias após tal publicação, que fazia parte da sua campanha eleitoral, é publicada na página de perfil de facebook da Câmara Municipal, bem como divulgado através do e-mail institucional desta (que chega a centenas de pessoas, incluindo órgãos de comunicação social) uma nota informativa dos resultados da reunião com a Ministra da Saúde, a Dra. FF, precisamente na linha daquela que era a campanha de AA. Basta atentar na expressão daquela nota: “AA defendeu a urgência de ‘requalificar a Unidade de Saúde ... e a extensão de ..., assim como, o urgente reforço de profissionais de saúde para o nosso concelho, em especial, ao nível de médicos de família’”; ou no seguinte ponto da mesma: “O autarca acrescentou que ‘qualificar os equipamentos de saúde pública é a melhor forma de dignificar e proteger o direito à saúde, o direito à vida de cada ser humano, é a melhor forma de dignificar o SNS e os seus extraordinários profissionais’. O texto desta nota informativa é, obviamente, suscetível de favorecer a campanha eleitoral que vinha sendo feita pelo Arguido. Seria, pois, necessária uma inocência quase infantil (tal como considerado pelo no despacho de pronúncia) para que não se percebesse que tal nota é enaltecedora do Arguido, na sua própria pessoa e não propriamente a pessoa ou o órgão de presidente da Câmara Municipal, e que a mesma vai precisamente ao encontro da campanha eleitoral que o Arguido vinha efetuando com vista à sua reeleição como Presidente da Câmara Municipal (exaltando o êxito das diligências do mesmo junto do Governo tendo em vista a obtenção de financiamento para a construção de novo centro de saúde, ressaltando expressões como: “a nossa reivindicação de muitos anos foi, finalmente, acolhida pela administração central”, “enorme empenho da Câmara Municipal”, etc.). Esta nota informativa corresponde, sem grande esforço interpretativo, àquela que era a campanha eleitoral do Arguido. Acresce que nada da nota resulta de urgente ou essencial para os munícipes do .... Não há nenhuma indicação concreta quanto às medidas de controlo da pandemia por Covid-19, nenhuma medida de execução imediata quanto à área da saúde, destacando-se apenas planos de execução futura e reivindicações quanto a outros equipamentos de saúde do concelho, como tal não imprescindíveis ou essenciais. Assim, não é de forma nenhuma verosímil que o Arguido não tivesse consciência de que com tal publicação (que, reiteramos, nada de essencial, imprescindível ou urgente transmite aos munícipes e eleitores do ...) beneficiaria a sua campanha ou, pelo menos, reforçaria aquela que era a sua principal bandeira da campanha de reeleição – a saúde e o reforço dos equipamentos de saúde local – demonstrando um trabalho efetivo para conseguir aquilo que anunciava aos eleitores. O Arguido dedica-se à vida pública há inúmeros anos, exerceu vários cargos além do cargo de Presidente da Câmara, por dois mandatos. Tinha, pois, de ter conhecimento de que tal publicação não apresentava o cariz neutro que se exigia face às eleições que se aproximavam, bem como da inexistência de qualquer motivo ponderoso que impusesse a sua publicação, e, em consequência, tinha consciência da ilicitude da sua conduta. Se o Arguido tinha conhecimento, como admitiu, quanto à publicação do resultado da reunião em outdoor ou boletins distribuídos pela rua, não entenderia que a finalidade que se pretende alcançar através daqueles instrumentos é igualmente alcançada - diga-se, mesmo, que de uma forma mais ampla quanto ao número de destinatários - através da comunicação de tal reunião na forma de nota informativa divulgada pelos meios em causa? É evidente que, mesmo que se admita que tal publicação tinha o teor enaltecedor normal das publicações do género, durante o período de campanha eleitoral, se exige a quem exerce o cargo e é visado por uma publicação desta natureza que consiga separar aquele que é o papel de Presidente da Câmara e o papel de candidato à reeleição para esse mesmo cargo. Se é natural que enquanto recandidato já tem, em relação aos demais candidatos, provas dadas aos munícipes, naturalmente que durante o período eleitoral não pode utilizar do exercício dessas funções em seu benefício – o que não podemos negar que aconteceu (o candidato à reeleição divulgou os seus principais objetivos e projetos aos eleitores e poucos dias depois, no exercício das funções inerentes ao cargo de Presidente da Câmara, demonstrou publicamente reivindicar essas obras e trabalhar nesses mesmos objetivos e projetos), bem como que não fosse precisamente essa a intenção do Arguido – a de reforçar/impulsionar a sua campanha. Trata-se, pois, o período de campanha eleitoral de um período especial ou excecional no que respeita à comunicação/publicidade por parte das autarquias, não devendo qualquer comunicação desrespeitar o dever de neutralidade e imparcialidade em relação a qualquer candidatura. Cremos, na verdade, que o Arguido tinha consciência disso mesmo, razão pela qual tenta transmitir a ideia de que tal nota informativa se justificava pela sua essencialidade – sendo que não se vislumbra, reiterámos, de tal nota qualquer conteúdo útil, essencial ou urgente para qualquer cidadão. E se, efetivamente não tivesse tal intenção e consciência (que, como vimos dizendo, não se mostra credível), deveria, atendendo ao período eleitoral em causa e ao conhecimento genérico de situações de violação destes deveres, bem como à área a que respeitava tal nota (que muito se relacionava com a sua própria campanha eleitoral), aconselhar-se junto da Comissão Nacional de Eleições ou do departamento jurídico da Câmara Municipal – o que não fez. Acrescente-se, ainda, que tal conclusão não é afastada pela circunstância de a reunião se encontrar anteriormente agendada para uma data, até anterior ao início do período de campanha eleitoral – o que o Tribunal deu como provado em 14. Não está, pois, em causa que o Arguido tenha agendado tal reunião precisamente em período de campanha eleitoral com vista a beneficiar da mesma, mas simplesmente a circunstância de, tendo participado na reunião no exercício das suas funções enquanto Presidente da Câmara Municipal, ter utilizado dessa participação e dos resultados da mesma em prol da campanha que vinha fazendo com vista à sua reeleição, sendo irrelevante que tenha, ou não, alcançado efetivos benefícios dessa conduta. Acresce que tal norma é já de 2001 e não sofreu alterações desde então. Sendo que, estando o Arguido na vida política há vários anos (esta era, na verdade, a terceira vez que se recandidatava ao cargo de Presidente da Câmara Municipal), tendo conhecimento de outros casos de violação desta mesma norma, independentemente da sua formação superior não ser na área jurídica, tinha necessariamente conhecimento da existência de deveres de neutralidade e imparcialidade e que de a sua conduta implicava a violação dos mesmos. Assim, deu-se como provada a factualidade descrita em 1 a 13, tal como constava da acusação. Mais se deu como provado, por ser um facto de conhecimento público, que as eleições autárquicas de ... foram ganhas, no ..., pelo ... (facto provado n.º 16). Quanto à situação pessoal e económica do Arguido, o Tribunal teve em conta as declarações do próprio que, ante a forma espontânea e coerente como foram prestadas, mereceram credibilidade. Relativamente à ausência de antecedentes criminais, o Tribunal atendeu no teor do certificado do registo criminal do Arguido, junto aos autos a 13.12.2022. Não se valorou o depoimento de GG, uma vez que não tinha conhecimentos diretos sobre a factualidade em causa, tendo tido intervenção apenas no processo que decorreu na Comissão Nacional de Eleições, após a apresentação de, pelo menos, duas queixas de partidos políticos quanto à divulgação efetuada pelos meios institucionais. Como se vê, a motivação factual da decisão recorrida é lógica, sequencial e inatacável, produzindo as conclusões que se impunham, atenta a prova efectuada, sendo certo que esta deve ser apreciada criticamente, de acordo com as regras da experiência, a normalidade da vida e a razoabilidade das coisas. Alega o recorrente que dos depoimentos das citadas testemunhas se deveria inferir que a nota em causa foi objecto do mesmo procedimento habitual a tantas outras anteriores, destinada, tão-somente, a informar os munícipes do resultado de uma reunião há muito solicitada pela Câmara Municipal e que ocorreu na data em causa fruto de reagendamentos sucessivos por parte do Ministério da Saúde, sobre matéria que os interessava, atenta a situação pandémica que então se vivia, pelo que a mesma não constitui um acto de propaganda, mas antes, a manutenção do que era o normal funcionamento do Gabinete de Comunicação da Câmara Municipal ..., sendo que em momento algum da mesma se enaltece a Câmara Municipal ... ou o seu Presidente de então, o arguido, anunciando-se apenas uma intenção do Ministério da Saúde em relação a investimentos resultantes do Plano de Recuperação e Resiliência. Com o devido respeito por opinião contrária, não lhe assiste razão, já que a apreciação da prova efectuada pelo tribunal recorrido, ao contrário do que afirma, foi realizada de acordo com as regras de experiência comum, não merecendo a censura que lhe é votada por parte do recorrente. Na verdade, uma análise isenta e objetiva do texto da nota informativa, mormente nas passagens que constam da própria sentença em crise, não poderá deixar de concluir, como muito acertadamente fez o tribunal a quo, que a mesma se traduz num acto de propaganda, tal como este está definido nos termos do artº 41 da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), aprovada pela Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de Agosto, na redacção dada pela Lei Orgânica nº 5-A/2001, de 26 de Novembro. Antes de mais, importa dizer que é irrelevante saber se a reunião com a Ministra da Saúde estava ou não agendada para data anterior àquela em que teve lugar, na medida em que ao arguido não é imputado o facto de ter agendado essa reunião para data próxima das eleições para deste modo poder fazer o anúncio nessa data, mas apenas, a efectiva realização dessa comunicação aos munícipes pelos canais próprios da autarquia. De igual modo, é irrelevante saber se a conduta do arguido teve, ou não, consequências no acto eleitoral – e é sabido que não teve já que perdeu as respectivas eleições autárquicas – na medida em que estamos na presença de um crime de perigo e de mera actividade, que se consuma pelo simples acto violador das condições de neutralidade e imparcialidade que sobre si impendiam, independentemente de ter beneficiado com tal conduta. Ainda despiciendo, salvo melhor opinião, é saber qual o procedimento normal da autarquia no tratamento das suas habituais notas informativas que enviava aos munícipes, já que o que está em causa é o concreto conteúdo de uma que foi enviada nas vésperas de uma eleição autárquica, em que o arguido, na qualidade de Presidente em exercício, se recandidatava a um novo mandato, em concorrência com outras listas, de outros partidos, sendo que desse período eleitoral resultam, como é bom de ver, particulares restrições às acções de publicidade institucional por parte das autarquias. Ora, em bom rigor, os aludidos depoimentos testemunhais, de modo objectivo, pronunciam-se apenas sobre estas matérias, ou seja, em relação ao modo como eram, habitualmente, tratadas as notas informativas da Câmara Municipal ... e como, em concreto, nesta se procedeu, fazendo-se ainda referência à circunstância de a mesma ter sido antecedida de uma prévia aprovação por parte do Ministério da Saúde, já que ali se faziam referências a declarações da respectiva Ministra. No mais, limitam-se a exprimir opiniões que, como é evidente, sendo respeitáveis, não têm qualquer virtualidade probatória. A verdade é que lido, com atenção, objectiva e desapaixonada, o texto da nota em causa, reproduzido na factualidade apurada, é muito difícil não concluir que o mesmo exalta os esforços do arguido e as suas reivindicações junto do Governo para obter fundos para a requalificação dos equipamentos de saúde no concelho ... – “a nossa reivindicação de muitos anos foi, finalmente, acolhida pela administração central, o que vai permitir à população do concelho passar a contar com uma infraestrutura nova, criada de raiz para dar resposta às novas exigências regulamentares e às novas necessidades dos mais de 15 mil utentes ali inscritos e proporcionar aos profissionais de saúde, a quem tanto devemos, condições dignas para o exercício das suas funções” – informando ainda do “enorme empenho” da Câmara Municipal (ou seja, do executivo em funções liderado pelo arguido), ressaltando expressões como “a nossa reivindicação de muitos anos foi finalmente acolhida pela administração central” e na “requalificação do edifício que acolhe a Unidade de Saúde Familiar Unidade de Saúde Familiar ..., em ..., assim como, a sua extensão em ...” e da reivindicação daquele arguido junto da Ministra da Saúde pelo “reforço de meios de transporte e o reforço do número de médicos de família no nosso concelho, essenciais para garantir os cuidados de saúde a cada concidadã e cada concidadão da nossa terra.” É assim claro que estas menções facilmente se podiam enquadrar numa campanha eleitoral – “qualificar os equipamentos de saúde pública é a melhor forma de dignificar e proteger o direito à saúde, o direito à vida de cada ser humano, é a melhor forma de dignificar o SNS e os seus extraordinários profissionais” – o que, in casu é ainda mais verdadeiro quando pelo próprio arguido foi reconhecido que uma das bandeiras sua campanha eleitoral era, precisamente, a saúde no concelho, tendo em conta a situação de pandemia que se viva em consequência da Covid-19. Ora, se o tema central do texto supra reproduzido é, como parece evidente, o enaltecimento do sucesso das diligências do então Presidente da Câmara ... - e candidato às eleições autárquicas que se realizavam no mês seguinte – junto do Ministério da Saúde no sentido de obter financiamento para a construção de um novo centro de saúde e as demais reivindicações que apresentou junto da tutela em relação a outros equipamentos de saúde no concelho, é inevitável concluir que o mesmo tinha potencial para afectar os resultados eleitorais, favorecendo a recandidatura do ora recorrente em relação às restantes. Como bem se notou no despacho de pronúncia: “Não podemos ser alheios ao facto de que o Governo da República à data foi formado pelo ... e que o arguido se candidatou e se ia recandidatar pelo mesmo partido. Um tema recorrente das eleições autárquicas é a possibilidade dos candidatos do partido do governo, se eleitos, terem melhores condições para reivindicar fundos do poder central, o que seguramente é do conhecimento do arguido. (…) É preciso uma inocência quase infantil para não ler neste texto o veemente louvor ao trabalho do executivo camarário então em funções e do arguido em particular, na sua intervenção junto do poder central a favor do município. À luz das regras da experiência comum, não podia o arguido ignorar que este comunicado não era neutro em relação às eleições que se avizinhavam e nas quais se recandidatou para o cargo de Presidente da Câmara e que não existia qualquer motivo ponderoso que impusesse a sua publicação, por via de meios institucionais da autarquia.” A este propósito, cumpre ainda anotar que não é possível acreditar que um Presidente da Câmara em exercício de funções, já no seu segundo mandato – pois tinha sido eleito em ... e ... - e que antes tinha desempenhado as funções de Vereador e de Vice-Presidente, pudesse desconhecer as regras básicas que presidem à publicidade institucional de um autarquia em pleno período eleitoral, e à necessidade de neste serem observados os deveres de imparcialidade e neutralidade. É precisamente esse grau de experiência adquirido pelo arguido, em virtude das sua, já longa, experiência autárquica, que torna irrazoável admitir que o mesmo não vislumbrasse que o texto em causa era susceptível de favorecer a sua candidatura em detrimento das demais - ainda que tal não tenha sucedido pela significativa derrota que sofreu, o que, como vimos, é irrelevante para o preenchimento do crime em causa – não se podendo justificar a sua publicação com a circunstância de estarmos numa situação de pandemia e o mesmo se relacionar com questões de saúde, já que, como cristalinamente decorre do seu conteúdo, ali não se plasma qualquer informação alusiva ou que se relacionasse com a Covid-19 que se mostrasse necessária ao quotidiano dos residentes no concelho .... Nada ali se reporta a questões essenciais, urgentes, ou imprescindíveis para os munícipes do Concelho, não há nenhuma indicação concreta quanto às medidas de controlo da pandemia por Covid-19, nenhuma medida de execução instantânea em relação à área da saúde, antes se aludindo a eventos futuros, a médio ou longo prazo, sem eficácia prática imediata. Recorde-se o que, justamente, se escreveu na decisão recorrida: “É evidente que, mesmo que se admita que tal publicação tinha o teor enaltecedor normal das publicações do género, durante o período de campanha eleitoral, se exige a quem exerce o cargo e é visado por uma publicação desta natureza que consiga separar aquele que é o papel de Presidente da Câmara e o papel de candidato à reeleição para esse mesmo cargo. Se é natural que enquanto recandidato já tem, em relação aos demais candidatos, provas dadas aos munícipes, naturalmente que durante o período eleitoral não pode utilizar do exercício dessas funções em seu benefício – o que não podemos negar que aconteceu (o candidato à reeleição divulgou os seus principais objetivos e projetos aos eleitores e poucos dias depois, no exercício das funções inerentes ao cargo de Presidente da Câmara, demonstrou publicamente reivindicar essas obras e trabalhar nesses mesmos objetivos e projetos), bem como que não fosse precisamente essa a intenção do Arguido – a de reforçar/impulsionar a sua campanha. Trata-se, pois, o período de campanha eleitoral de um período especial ou excecional no que respeita à comunicação/publicidade por parte das autarquias, não devendo qualquer comunicação desrespeitar o dever de neutralidade e imparcialidade em relação a qualquer candidatura. Cremos, na verdade, que o Arguido tinha consciência disso mesmo, razão pela qual tenta transmitir a ideia de que tal nota informativa se justificava pela sua essencialidade – sendo que não se vislumbra, reiterámos, de tal nota qualquer conteúdo útil, essencial ou urgente para qualquer cidadão. E se, efetivamente não tivesse tal intenção e consciência (que, como vimos dizendo, não se mostra credível), deveria, atendendo ao período eleitoral em causa e ao conhecimento genérico de situações de violação destes deveres, bem como à área a que respeitava tal nota (que muito se relacionava com a sua própria campanha eleitoral), aconselhar-se junto da Comissão Nacional de Eleições ou do departamento jurídico da Câmara Municipal – o que não fez.” É pois evidente que o tribunal recorrido não poderia deixar de dar com assente a factualidade agora impugnada pelo recorrente, já que tal conclusão se impunha, pela apreciação crítica e concatenada de toda a prova produzida, sob pena de se decidir ao arrepio das regras da experiência comum, da normalidade da vida e do sentido das coisas. Por outro, há que não olvidar que no nosso ordenamento jurídico, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada, inexistindo regras de valoração probatória que vinculem o julgador, pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com o princípio da livre convicção do julgador. O recorrente, nesta sede, mais não faz do que atentar contra a apreciação da prova, livremente feita pelo tribunal, e segundo a convicção alcançada pelo respectivo julgador, como lho permite o Artº 127 do CPP - princípio da livre apreciação da prova – onde se estipula que: Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal princípio assenta, fundamentalmente, em duas premissas: A de que o juiz decide de forma livre e de acordo com a sua íntima convicção, formada a partir do confronto das provas produzidas em audiência. E que tal convicção há-de ser formada com base em regras de experiência comum. Na verdade, livre convicção não pode ser sinónimo de arbitrariedade. Ou seja, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração "racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (…), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo, porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo. «A sentença, para além dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência» - Ac. do STJ de 13/02/92, CJ Tomo I, pág. 36. O que o juiz não pode fazer nunca é decidir de forma imotivada ou seja, decidir sem indicar o iter formativo da sua convicção, «é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir (…) comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi racional ou absurdo» (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 126 e sgs.). Como diz o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, 1974, págs. 202/203, «a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». Por outro lado, e segundo o mesmo, «a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. (...). Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável». Também o Prof. Cavaleiro Ferreira, in «Curso de Processo Penal», 1986, 1° Vol., pág. 211, diz que o julgador, sem ser arbitrário, é livre na apreciação que faz das provas, contudo, aquela é sempre «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório». Directamente ligada a esta apreciação livre das provas, e determinante na formação da convicção do julgador, está o princípio da imediação, que Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 232, define como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão». «(...). Só estes princípios (também o da oralidade) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso». Nessa avaliação probatória e na aferição global de toda a prova produzida, designadamente, como a da situação sub judice, o juiz deve fazer essa exegese segundo as regras da experiência comum, com bom senso e de acordo a normalidade da vida e o sentido das coisas. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste qualquer razão ao recorrente, atenta a forma clara e isenta de dúvidas pelas quais foi definido o cenário factual dos autos, num processo explicativo que se mostra suficientemente objectivado e motivado, capaz, portanto, de se impor aos outros. O que se impunha ao tribunal recorrido é que explicasse e fundamentasse a sua decisão, pois só assim seria possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada. E isso foi feito, poder-se-á dizer, de modo perfeitamente inteligível para qualquer leitor, que logo compreenderá o modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição efectuado pelo tribunal a quo, sendo manifesto que as razões que presidiram à motivação da prova se apresentam como lógicas, racionais e coerentes com o conjunto da prova produzida. O modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição, efectuado pelo tribunal a quo, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa e nas consequências que daí derivam, não traduz, face ao que se expôs, qualquer erro ou vício, concluindo-se que o recorrente apenas pretende criticar o processo de formação da convicção do tribunal a quo. Importa ainda trazer à colação o já afirmado em Acórdão deste Tribunal da Relação, em 03/05/07, proferido no processo n.º 80/07-3 disponível no sítio da internet www.dgsi.pt: «O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) deveriam conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente; se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior; a decisão proferida com base numa interpretação e valoração (ainda que discutíveis) fundamentadas nas provas produzidas contida no espaço definido pela livre apreciação das provas e pela convicção por elas criada no espírito do juiz, não pode ser alterada, a menos que contra ela se apresentem provas irrefutáveis, já existentes nos autos e desconsideradas ou supervenientes. Por outras palavras: a sindicância da decisão de facto deve limitar-se à aferição da sua razoabilidade em face das provas produzidas … … A segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas tão só apreciar se a convicção expressa pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto tem suporte razoável …» A decisão, nesta matéria, do tribunal recorrido, foi proferida com base numa interpretação e valoração que se mostra suficientemente fundamentada, quer nas provas produzidas, quer pela livre convicção por elas criada no espírito do julgador, só podendo ser alterada, se contra si se configurassem meios de prova irrefutáveis, existentes nos autos e que tivessem sido desconsiderados, ou se a mesma se desenhasse como totalmente irrazoável, contrária às mais elementares regras de experiência ou ao sentido das coisas. Mas nenhuma destas condições é o caso sub júdice, em que o decidido pelo tribunal recorrido, se desenha com lógica e razoabilidade necessárias, de modo que se deve concluir como no aresto citado: «… se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior. » Discordar, sem qualquer fundamento legal, leva simplesmente à sua improcedência, como já por este Tribunal foi afirmado em Acórdão de 23/03/01 : «A divergência quanto à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto será relevante na Relação apenas quando resultar demonstrada pelos meios de prova indicados pelo recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário para que ele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente». O presente tribunal só poderia assim alterar o decidido factualmente pela 1ª instância se existissem provas nos autos que impusessem decisão diferente e in casu, embora a prova produzida, eventualmente e no entender do recorrente, permitisse uma decisão de facto em sentido diverso, ela não impunha decisão distinta, pelo que o pretendido por aquele está destinado ao fracasso. Inexistindo qualquer erro na avaliação da prova por banda do tribunal a quo, o recurso terá de improceder, nesta parte. B.2. Alteração da pena acessória Invoca depois o recorrente que a pena acessória que lhe foi aplicada é excessiva. Nesta sede, escreveu-se na decisão recorrida (transcrição): c) Da pena acessória Este crime é ainda punido com pena acessória, caso a sua gravidade o justifique, de prevista no artigo 164.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais. Dispõe o referido artigo: “À prática de crimes eleitorais pode corresponder, para além das penas especialmente previstas na presente lei, a aplicação da pena acessória de suspensão, de 6 meses a 5 anos, dos direitos consignados nos artigos 49.º e 50.º, no n.º 3 do artigo 52.º, no n.º 1 do artigo 124.º e no artigo 207.º da Constituição da República Portuguesa, atenta a concreta gravidade do facto”. Ora, no caso dos autos, atendendo ao que se disse ao grau de ilicitude do facto, considerando que não havia qualquer interesse público na publicação e divulgação do texto em causa, nada tendo de relevante ou essencial para os munícipes. Não havia, pois, qualquer contexto global que justificasse, sequer, a necessidade de publicação do resultado da reunião, muito menos nos termos efetuados de promoção das diligências e trabalho do Arguido. Daqui, resulta que a única finalidade de tal publicação e divulgação apenas se relaciona com a exaltação e enaltecer as diligências e trabalho do Arguido, promovendo, ainda que indiretamente, a campanha do mesmo, em natural e automático detrimento dos demais, sendo suscetível de influenciar as eleições. Acresce, ainda, tal texto foi divulgado por meios que permitem a sua divulgação a um número indeterminado de pessoas e pelos meios institucionais da Câmara Municipal e ainda para órgãos de comunicação social. Entendemos, pois, que a gravidade do facto violador dos deveres de neutralidade e imparcialidade apresenta gravidade suficiente que justifique a aplicação da pena acessória. Naturalmente que atendendo ao cargo de Presidente da Câmara que o Arguido exercia à data, bem como a qualidade de candidato, apenas se justifica a suspensão do direito de acesso a cargo públicos, consagrado no artigo 50.º do Constituição da República Portuguesa, sendo desproporcional a suspensão de quaisquer dos outros direitos previstos no artigo 164.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais. Quanto à medida concreta desta pena acessória de suspensão do direito de acesso a cargos públicos, que deve ser graduada dentro dos limites legais de 6 meses até 5 anos, atento os critérios de fixação da pena, nomeadamente a culpa e as exigências de prevenção. Além disso, atenta a natureza da pena acessória em causa devemos ter, também, em consideração a data das próximas eleições autárquicas, sob pena de esvaziar de eficácia e sentido útil tal pena acessória. Recorde-se que todas as penas devem constituir um verdadeiro e real sacrifício para o condenado. Assim, considerando que as próximas eleições autárquicas ocorrerão em setembro/outubro de 2025 (cf. indicação da Comissão de Nacional de Eleições), de forma a ter real e verdadeira eficácia, terá a pena acessória de ser fixada de forma a atingir tal data. Não cremos, contudo, que se justifique, face a todo o contexto em que o crime foi praticado, uma vez que a gravidade concreta de tal conduta não o impõe, a aplicação de pena acessória para lá dessa mesma data. Assim, o Tribunal considera justo e adequado a aplicação de uma pena acessória de suspensão do direito de acesso a cargo público pelo período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses. O que se decidirá. É sabido que a condenação numa pena acessória apenas terá lugar se o arguido for condenado na pena principal, pelo que aquela se encontra na dependência desta, devendo obedecer, como referido na sentença recorrida, aos princípios constitucionais da necessidade, proporcionalidade e da não automaticidade dos efeitos das penas e ainda, porque está directamente relacionada com a prática dos factos, com a própria pena principal, no sentido de existir uma proporcionalidade entre uma e outra. Afirma o arguido que a pena acessória que lhe foi fixada é manifestamente excessiva e que teve apenas como propósito impedi-lo de se candidatar à Câmara Municipal ..., ou a qualquer outra, nas eleições autárquicas de 2025. Confessa-se que mal se percebe este argumento, na medida em que isso mesmo foi assumido pela instância recorrida, como resulta do que atrás se transcreveu, o que bem se compreende, tendo em conta a real e verdadeira eficácia da aplicação de uma pena acessória de suspensão do direito de acesso de um autarca a cargo público, depois de ter sido condenado pelo crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade nas eleições anteriores. Nesta medida, concorda-se por inteiro com o que consta da resposta do MP ao presente recurso: “A resposta punitiva exigida tem de merecer a aceitação da comunidade e ser adequada a que o arguido sinta censura suficiente ao seu comportamento, com efeito útil de dissuasão de reiteração da conduta. Como entenderia a comunidade uma pena acessória que permitisse a um autarca com anos e anos e anos de exercício de funções executivas (vereador, vice-presidente e presidente) numa Câmara Municipal e condenado pelo crime aqui em causa voltar a candidatar-se logo nas eleições autárquicas imediatamente subsequentes àquelas no contexto do qual o crime foi praticado? Como sairia a ordem jurídica e, em especial, as finalidades das penas (na lógica do mix prevenção geral / prevenção especial) se a pena acessória efectivamente aplicada se auto frustrasse e se inibisse a si própria de ter qualquer efeito útil perceptível pela comunidade a qual é, no limite, a titular dos bens jurídicos protegidos?” A pena determinada pelo tribunal recorrido encontra eco na combinação das significativas razões de prevenção geral, atentas as repercussões que o crime gera na confiança no sistema eleitoral, com a forma – já de si, muito negativa - como a generalidade dos cidadãos olha para os seus políticos, o que é muito preocupante, pelo que isso revela da saúde da nossa democracia, inestimável valor que daqueles deveria merecer um particular cuidado no modo como regem os seus comportamentos aquando do exercício dos respectivos cargos. Daí que se conclua que a pena acessória encontrada pela instância recorrida – mau grado, em sede de pena principal, se terem consideradas como reduzidas as exigências de prevenção especial – se mostra estruturalmente adequada à situação sub judice, tendo sido fixada, tal como a pena principal, ligeiramente acima do meio da respectiva moldura abstracta, não se mostrando, nessa medida, excessiva ou desproporcional, atenta a natureza do crime, a gravidade dos factos, o grau de ilicitude, a medida da culpa do arguido e a necessidade de ter alguma eficiência, sob pena de perder a sua virtualidade sancionatória. Importa assim que o arguido nela reconheça a necessidade de interiorizar, devidamente, a censurabilidade da sua conduta delitiva, razão pela qual, no seu quantum, deve também reflectir a expectativa da comunidade no reforço da norma violada, pelo que, acreditando-se nada haver a censurar ao decidido, neste domínio, como nos demais, pelo tribunal a quo, ter-se-á de finalizar pela improcedência do recurso. 3. DECISÃO Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, confirmar a decisão recorrida. Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Arts 513 nº 1 e 514 nº 1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa. xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº 2 do CPP, que a presente decisão foi elaborada pelo relator e integralmente revista pelos signatários. xxx Évora, 12 de Julho de 2023 Renato Barroso (Relator) Beatriz Marques Borges (Adjunta) João Carrola (Adjunto) |