Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
114/22.6T8BJA.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA
JUÍZO CÍVEL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – Nas comarcas onde não exista juízo de comércio são da competência dos juízos cíveis a preparação e o julgamento das acções que caberiam ao juízo de comércio caso este existisse.
2 – Por força do art. 97º, n.º 2, do CPC, a arguição e o conhecimento da eventual incompetência material, estando em causa apenas tribunais judiciais, só pode ter lugar “até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final”.
3 - O recorrente que pretenda impugnar o julgamento da matéria de facto tem que obedecer imperativamente ao disposto no art. 640º do CPC.
4 – Não havendo fundamento para a sua modificação, ainda que oficiosa, como previsto no art. 662º do CPC, mantém-se intocada a fixação da matéria de facto feita na primeira instância.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
Os autores AA, BB, CC, DD, e EE, intentaram a presente acção declarativa comum contra as rés S..., Lda. e A..., Lda.
Peticionaram os autores a declaração da nulidade do contrato intitulado «aluguer de equipamento industrial» datado de 20 de Setembro de 2019, celebrado entre as ora rés, junto à petição inicial como documento n.º 5.
Alegam os autores, sócios da 1ª ré, que o contrato coloca na disponibilidade da 2.ª ré todos os meios de produção da 1.ª ré, sendo desequilibrado o preço acordado, que esse contrato não foi autorizado por assembleia geral de sócios, que o mesmo é posterior à data nele aposta, que não foi assinado por quem era gerente da 2.ª ré, e que em execução do mesmo nunca foi pago qualquer montante à 1.º ré pela 2.ª ré.
Concluem, portanto, que tal contrato traduz um negócio leonino, sem contrapartida séria para a 1.ª ré e que a impossibilita de laborar, em benefício exclusivo da 2.ª ré.
Na sequência da sua citação, as rés apresentaram contestação na qual impugnaram os factos não provados documentalmente e invocaram a ilegitimidade processual dos autores.
Responderam estes, defendendo a sua própria legitimidade, por serem sócios da 1ª ré e como tal terem interesse na preservação do património desta e nos seus eventuais lucros.
Prosseguindo os autos os seus trâmites, foi proferido despacho saneador, ficando fixado o valor da causa, estabelecido o objecto do litígio, indicados os temas da prova, admitida a prova indicada e designado dia para julgamento.
Nesse despacho saneador foi ainda conhecida a arguida excepção de ilegitimidade activa dos autores, tendo sido declarada a sua legitimidade para a causa.
Contra o decidido não houve qualquer reclamação nem foi interposto recurso.
Finalmente, procedeu-se à realização da audiência final, após o que foi proferida a sentença que veio a ser a recorrida.
Nesta, o tribunal concluiu declarando a nulidade do contrato intitulado «aluguer de equipamento industrial» datado de 20 de Setembro de 2019, celebrado entre as Rés, junto à petição como documento n.º 5 e constante de folhas 19 a 20-verso dos autos.
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II – A APELAÇÃO
Não se conformando com o decidido na sentença, as rés intentaram então o presente recurso de apelação, apresentando no final as seguintes conclusões, que transcrevemos:
I – Por violação das regras de competência material ínsitas na LOSJ, são inexistentes todos os actos judiciais desde a própria citação até à douta sentença aqui impugnada - artigo 128.º n.º 1al.s c) e d) da Lei da Organização do Sistema Judiciário e artigos 96.º al. a) e 97.º n.º 1 ambos do CPC.
II– Nenhuma prova produzida teve a virtualidade de se poder considerar provado os factos 8 e 9.
III – Foram os AA que se colocaram em posição (ainda que por omissão) de obstar a qualquer deliberação da primeira Ré para que sequer pudessem invocar falta de deliberação muito menos em matéria da qual se pretenderam aproveitar. Jamais podiam os Apelados beneficiar de uma situação de venire contra factum proprium contra qualquer uma das RR.
IV – Enquanto não estivesse partilhada e registada a quota do sócio que representava 50% da primeira Ré, nem sequer podia esta ser admitida a intervir nos autos enquanto nem sequer pudesse deliberar sobre o próprio contrato aqui em causa.
Por todo o exposto, nos termos das demais razões e fundamentos bem como nos termos do sempre Mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser revogada a douta sentença aqui impugnada substituindo-se esta por Douto Acórdão que considere inexistentes todos os actos do processo incluindo a própria distribuição ou, acaso assim não se entenda, absolva in totum do pedido ambas as RR.
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III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
Os autores/recorridos apresentaram contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso, desde logo por não ocorrer qualquer incompetência em razão da matéria, e por outro lado sustentando que os factos dados como provados devem manter-se sem alteração e dos mesmos resulta bem fundamentada a sentença ora recorrida, que deverá ser mantida.
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IV - DOS FACTOS
Na sentença recorrida foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos, considerados de interesse para a decisão:
1. A 1.ª Ré encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de pessoa coletiva ...94, dando-se aqui por reproduzido o registo junto à petição como documento n.º 1 e constante de folhas 12 a 13 dos autos.
2. Do registo comercial supra aludido consta a seguinte inscrição AP. 173/20170502: «Objecto: Prestação de serviços relacionados com a indústria alimentar de extração de azeite; comércio por grosso e a retalho de produtos alimentares. Outras actividades de consultoria para negócios e para a gestão».
3. A 2.ª Ré encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de pessoa coletiva ...10, dando-se aqui por reproduzido o registo junto à petição como documento n.º 2 e constante de folhas 14 e 15 dos autos.
4. Do registo comercial supra aludido consta a seguinte inscrição AP. 1/20191018: «Objecto: Produção de azeite e embalamento; olivicultura; silvicultura; agricultura e produção animal combinadas; prestação de serviços relacionados com a agricultura e produção animal; comércio e distribuição de produtos alimentares; consultoria nas áreas agrícola e animal; prestação de serviços de veterinária; produção de eletricidade de origem eólica, geotérmica, solar e de outra origem; construção de edifícios (residenciais e não residenciais); alojamento de todos os tipos; turismo no espaço rural; transportes rodoviários de mercadorias; comércio a retalho de vestuário».
5. Do registo comercial supra aludido consta a seguinte inscrição AP. 1/20191204: «Órgão designado: Gerência: FF. Data da deliberação: 30 de outubro de 2019».
6. Com data aposta de 20 de setembro de 2019, entre a 1.ª Ré, na qualidade de primeira contratante, representada por GG, e a 2.ª Ré, na qualidade de segunda contratante, representada por FF, foi celebrado o contrato intitulado «aluguer de equipamento industrial», junto à petição como documento n.º 5 e constante de folhas 19 a 20-verso dos autos, aqui dado por integralmente reproduzido.
7. A celebração do contrato, identificado no ponto 6, não foi consentida pelos demais sócios da 1.ª Ré, nem sujeita a deliberação da assembleia geral.
8. O equipamento industrial abrangido pelo contrato identificado no ponto 6 corresponde ao estabelecimento fabril da 1.ª Ré, sem o qual a mesma não consegue laborar.
9. Até à data, não foi pago pela 2.ª Ré à 1.ª Ré qualquer contrapartida em execução do contrato identificado no ponto 6.
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V – DO OBJECTO DO RECURSO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, resumem-se não seguinte:
- apreciar a questão da alegada incompetência material para a causa do Juízo Cível a que pertence o processo;
- apreciar a discordância das recorrentes quanto ao julgado nos pontos que referem da matéria de facto dada como provada.
- apreciar do mérito da decisão final.
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VI – DA COMPETÊNCIA MATERIAL
Dizem as recorrentes, a abrir o seu requerimento de recurso, o seguinte:
- “Os presentes autos configuram-se como acção relativa ao exercício de direitos sociais e/ou acção de suspensão e de anulação de deliberações sociais que, nos termos do artigo 128.º n.º 1 als. c) e d) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, tinha e tem que correr termos pelo Tribunal de Comércio territorialmente competente.”
- “Temos portanto, in casu, uma excepção peremptória e de conhecimento até oficioso de incompetência absoluta do tribunal (art. 96.º, al. a), do CPC.”
- “Esta incompetência, além de poder ser arguida pelas partes, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer fase do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (n.º 1 do art. 97.ºdo CPC).”
Sobre esta questão levantada no recurso em apreço (nunca tinha sido colocada ao longo do processo), observa-se desde logo que só a circunstância de se tratar de matéria de conhecimento oficioso permitiria eventualmente o seu conhecimento nesta instância.
Efectivamente, os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas, e só não será assim quando a própria lei estabeleça uma excepção a essa regra, ou quando esteja em causa matéria de conhecimento oficioso.
Contudo, verifica-se que o art. 97º, n.º 1, do Código de Processo Civil, invocado pelas recorrentes, consagra a regra do conhecimento oficioso da matéria da incompetência absoluta (excepção dilatória, cfr. art. 577º, al. a), do CPC), mas logo a seguir o seu n.º 2 estabelece por seu turno um limite a essa possibilidade: “a violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final.
Por conseguinte, surgem-nos dois regimes diferentes para a arguição da incompetência material, conforme estejam em causa tribunais de diferente categoria (v. g. administrativos e judiciais) ou tão somente os tribunais judiciais.
Estando em causa tão só a violação de regras de competência entre tribunais judiciais, a possibilidade do seu conhecimento tem um termo assinalado, que inviabiliza a sua arguição apenas em sede de recurso da sentença final.
Não oferece dúvidas que tanto os juízos cíveis como os juízos do comércio mencionados pelas recorrentes integram a categoria mais geral dos tribunais judiciais de primeira instância, previstos na Lei de Organização do Sistema Judiciário (v. a este respeito o art. 81º da LOSJ, sobre o desdobramento dos tribunais de comarca em juízos de competência especializada, nomeadamente os indicados juízos de comércio a par dos juízos cíveis).
Assim, afigura-se que a discussão sobre a competência material na causa sempre estaria já precludida, e fixada no juízo onde a mesma foi intentada, julgada e decidida, mesmo aceitando a natureza comercial do seu objecto (cfr. acórdão do STJ de 22-02-2017, no processo n.º 1519/15.4T8LSB.L1.S1, relator Ribeiro Cardoso, disponível em www.dgsi.pt).
Todavia, ainda que se assentasse na tempestividade da questão, sempre haveria que dizer que a arguição assenta num equívoco notório.
Com efeito, não se discutindo a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o que as recorrentes não discutem (aliás, no contrato em apreço ficou convencionado o foro da Comarca de Beja), resta constatar que nesse tribunal não existe nenhum juízo de comércio (v. art. 70º do RLOSJ - DL n.º 49/2014, de 27 de Março).
Ora, de acordo com o art. 117º, n.ºs 1 e 2, da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), nas comarcas onde não exista juízo de comércio são da competência dos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das acções que caberiam aos juízos de comércio caso existissem.
Em conclusão: afigura-se que, não havendo dúvidas sobre a competência em razão do território, e não se discutindo o valor da causa, nem a natureza comercial do litígio, a competência para a preparação e julgamento dos presentes autos sempre competiria ao Juízo Central Cível de Beja, não existindo qualquer incompetência material.
E em qualquer caso, discutindo-se apenas a competência entre tribunais judiciais, o momento final para a arguição ou conhecimento oficioso dessa excepção está limitado pela disposição contida no n.º 2 do art. 97º do CPC, o que inviabilizaria a pretensão das recorrentes.
Rejeita-se, portanto, a arguição de incompetência em razão da matéria deduzida pelas apelantes.
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VII - DA MATÉRIA DE FACTO
Da leitura das conclusões acima transcritas, bem como da motivação que as antecede, extrai-se a conclusão de que as recorrentes discordam do julgamento feito na primeira instância quanto à matéria de facto.
Com efeito, nas conclusões pode ler-se que “nenhuma prova produzida teve a virtualidade de se poder considerar provado os factos 8 e 9”, e no corpo das alegações refere-se ainda a pretensão de “impugnação do facto provado 7”.
Estão em causa, nessa factualidade, em suma, três questões, que a sentença impugnada sintetiza da seguinte forma:
- A falta de consentimento dos demais sócios [que não GG] para o contrato aqui em causa, e a falta de deliberação da assembleia geral [pontos 18 e 22 da petição].
- A alocação/afetação à 2ª ré, de todo o material que permitia a laboração da 1.ª ré [ponto 19 da petição].
- A falta de pagamento à 1.ª ré de quantias monetárias pela execução do contrato [ponto 24 da petição].
Perante tal factualidade, raciocina o julgador, constata-se que tais factos dizem respeito directamente às rés, sendo necessariamente do seu conhecimento, e sobre essa matéria deviam as rés tomar posição definida, sob pena de não cumprimento do ónus de impugnação.
E o que as rés fizeram na contestação foi simplesmente afirmar que “é tudo falso”, sem nada mais especificar (artigo 4 da contestação).
Assim sendo, concluiu a primeira instância que não se mostra cumprido o ónus de impugnação que impendia sobre as rés, pois esta impugnação carece de uma posição definida perante os factos invocados pelo autor, como resulta do art. 574.º, n.º 1 do C.P.C.
Nesse entendimento, nem se pode considerar que tais factos se apresentam controvertidos; não tendo sido satisfeito o ónus de impugnação, a factualidade ficou admitida por acordo (artigo 574.º, n.º 2 do C.P.C.).
Porém, ainda que não se perfilhasse essa conclusão, acrescenta a sentença em análise, “sempre se diria por último que a matéria em causa, na ausência de qualquer contraprova a considerar [artigo 346.º do C.C.], também resultaria, pacificamente, assim o consideramos, da prova conhecida, que foi aquela, ainda que escassa, efetivamente produzida em julgamento, sejam as declarações de parte [EE] sejam depoimentos de testemunhas [HH; II; JJ].”
“Toda a prova [valorada positivamente, posto que nada nos faz duvidar da respetiva sinceridade] seguindo num mesmo sentido e sem contraindícios a ponderar: que não são conhecidos concretos benefícios económicos para a sociedade nem para os sócios [designadamente, para aquela, atividade atual, para estes, dividendos], que nunca os sócios foram informados/inteirados da execução do contrato.”
Em suma, da globalidade da prova não subsistiram para o julgador dúvidas quanto à realidade dos factos que declarou como provados nesses pontos 7, 8 e 9.
O que dizer da “impugnação” apresentada pelas recorrentes?
Recordamos que a reapreciação da matéria de facto só pode ser exercida pelo Tribunal da Relação nos termos referidos no art. 662º do Código de Processo Civil, sendo que nos termos do n.º 1 da referida disposição legal a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Todavia, a impugnação da matéria de facto não importa a realização de um novo julgamento global [n.º 3 al. a) do art. 662º do CPC] nem afasta o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador da primeira instância, que é indissociável da oralidade e imediação em que decorre a audiência.
No caso em apreço, a discordância do recorrente parece situar-se no âmbito da livre apreciação da prova concedida ao tribunal, por força do disposto no art. 607º nº 5, CPC, nos termos do qual o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (ficando fora do âmbito da livre apreciação apenas os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial e aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes).
Com efeito, em face da argumentação das rés, conclui-se que no seu entender os factos em referência não pertencem ao número daqueles subtraídos à livre apreciação do julgador por estarem admitidos por acordo, contrariamente ao que entendeu a sentença recorrida. Por isso mesmo o argumento esgrimido é a inexistência de prova produzida que tenha confirmado tais factos.
Mas, sendo assim, o bom sucesso da pretensão das recorrentes, quanto ao julgamento da matéria de facto, está dependente não apenas da consideração de que tais factos não podem ser dados como assentes por acordo mas também da eficaz impugnação do julgamento dessa matéria de facto, julgamento que o julgador da primeira instância acabou por fazer, como se patenteia na fundamentação acima transcrita.
Todavia, a pretensão de impugnação da matéria de facto por alegado erro de julgamento deve obedecer às especificações obrigatórias impostas pelo art. 640º do Código de Processo Civil, sendo que no caso concreto, manifestamente, tal não se verifica, cingindo-se a impugnação a uma atitude de mera discordância com o julgado.
O juiz da primeira instância consignou que esses factos resultaram pacificamente confirmados pelos meios de prova que indica, e as recorrentes afirmam que nenhuma prova existe para os confirmar, sem mais nenhuma especificação. Não há, nomeadamente, e por exemplo, nem sequer a tentativa de demonstrar que os meios probatórios mencionados pelo juiz na fundamentação não corroboram o entendimento por ele seguido, ou que apontam num sentido contrário.
Recordamos a este propósito que o art. 640º, n.º 1, do CPC, dispõe que:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
E o nº 2 refere:
“No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
Assim, como emerge das conclusões apresentadas, bem como das próprias alegações, as recorrentes não cumpriram minimamente o disposto na al. b) do n.º 1 do artº 640º do CPC.
É certo que indicam quais os pontos que consideram incorrectamente julgados (7, 8 e 9) e qual a resposta pretendida (não provado) mas falta de todo a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Deste modo, as apelantes limitam-se a manifestar o seu inconformismo sobre o julgado, procurando substituir a convicção formada pelo julgador, a quem compete tal tarefa, pela sua própria convicção, mas sem impugnar adequadamente o julgamento efectuado.
E o não cumprimento dos ónus que são impostos pelo artº 640º do CPC, designadamente pela al. b) do n.º 1, importa a rejeição do recurso nessa parte.
Nestes termos, rejeita-se o recurso da decisão relativa à matéria de facto (vem sendo entendimento do STJ, ao que cremos reiterado, que a rejeição da impugnação da matéria de facto não está dependente da observância prévia do contraditório) pelo que nenhuma alteração se introduzirá nos factos dados como provados.
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VIII – DO MÉRITO DA CAUSA
Para fundamentar a sua decisão sobre a nulidade do contrato em análise nos autos, a sentença recorrida apontou sumariamente o que se lhe afigurou relevar para o efeito, tendo em conta o seu conteúdo.
Em síntese, considerou o seguinte:
Do contrato resulta apenas que a 1.ª ré declara arrendar à 2.ª Ré um seu lagar de azeite, com todos os seus equipamentos industriais, mediante uma contrapartida monetária calculada por uma percentagem sobre os quilos de azeitona aí trabalhados.
Consequentemente, raciocina o julgador, o contrato revela um dado economicamente insustentável para a 1.ª Ré: é esta, em rigor, que suporta todo o risco contratual sem nenhum benefício certo, uma vez que, por força do contrato, todo o equipamento do lagar fica à disposição da 2.ª Ré, e esta, por seu turno, tampouco se vincula a utilizá-lo efetivamente, com qualquer número, mínimo que fosse, de azeitonas a serem obrigatoriamente trabalhadas no mesmo.
“Ou seja, a 2.ª Ré tem o lagar à sua inteira disposição, podendo ou não vir a utilizá-lo.
Se o utilizar, pagará nos termos da percentagem acordada.
Se não o utilizar, nada pagará.
E nesta hipótese, nada perde, pois que tem a disponibilização do equipamento sem nada ter de pagar e, correlativamente, a 1.ª Ré tudo perde, porque não dispõe do equipamento nem do mesmo retira frutos.”
Ou seja, “a contrapartida a favor da 2.ª Ré é certa [a disposição do lagar] enquanto que a da 1.ª Ré é meramente eventual e dependente da vontade da 2.ª Ré.”
Isto quando, como resulta da factualidade apurada, a 1.ª Ré, sem o lagar em causa, fica impossibilitada de laborar.
Conclui a primeira instância, prosseguindo a análise, que o contrato não contém contrapartida séria para a 1.ª Ré, apenas beneficiando economicamente a 2.ª Ré, porquanto a 1.ª Ré deixa de poder ter atividade, afectando os seus meios de produção à 2.ª Ré, e não sabe se terá, sequer, pagamento.
“Tendo-o, não sabe quanto, porque a 2.ª Ré não se vincula a um determinado nível de azeitonas a serem trabalhadas no lagar.”
“O que, aliás, tem sucedido, uma vez que ainda não ocorreu qualquer pagamento desde então [ponto 9].”
Acrescentamos nós que, conforme a cláusula 7ª, se a 1ª ré operar a resolução do contrato sem justa causa sujeita-se a pagar à 2ª ré o montante de €500.000 (quinhentos mil euros), enquanto nada se estipula a respeito de eventual resolução pela contraparte.
Conclui, pelo exposto, a primeira instância, aplicando o direito pertinente, que tal contrato é nulo por contrariar o princípio da especialidade previsto no artigo 6.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais.
Reza esta disposição que “A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.
Por seu turno, o art. 294º do Código Civil estatui que “Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.”
Por outras palavras, tendo uma sociedade comercial por escopo necessário o lucro (art. 980º Código Civil), sendo esse o seu objecto mediato, serão actos contrários ao seu fim, e logo contrários à lei, aqueles que se situem fora desse âmbito.
Ou seja, o artigo 6.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais consagra o princípio da especialidade relativamente à capacidade de gozo das sociedades comerciais; a apreciação dessa capacidade de gozo das sociedades comerciais, ou da violação desse princípio, em especial quanto aos actos praticados aparentemente fora do âmbito da prossecução dos seus fins lucrativos estabelecidos na lei, depende da avaliação das concretas circunstâncias em que os actos em causa tiveram lugar e da conclusão que se tirar a partir deles sobre se são contrários aos seus fins.
Assim, qualquer contrato que não vise o lucro societário, por atentar contra a própria natureza jurídica da personalidade coletiva comercial, manifestada na configuração da sua capacidade de direito, será nulo por não se enquadrar dentro da respetiva capacidade limitada.
Mostra-se por isso pertinente a citação feita na sentença recorrida do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de novembro de 2017 [relatora Graça Amaral; processo n.º 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1; disponível em www.dgsi.pt]:
“Sendo o lucro o fim da sociedade comercial (cfr. artigo 980.º, do Código Civil) e uma vez que a lei, imperativamente, faz aferir e limitar a capacidade da mesma pelo fim lucrativo que lhe é inerente, a prática de um acto fora das condições legalmente prescritas (que não seja necessário nem conveniente à prossecução do seu fim) mostra-se ferido de nulidade, nos termos do artigo 294.º, do Código Civil.”
Salientamos que no caso vertente não se apresentam como necessárias as considerações, habitualmente controversas, sobre a distribuição do ónus da prova quando esteja em causa a violação do princípio da especialidade.
Na verdade, a factualidade provada, desde logo o teor do contrato em causa, permite realmente afirmar que “atentando no seu clausulado, tal é a desproporção do risco assumido pelas duas partes, que implica, sem margem para estados dubitativos, que visa o lucro da 2.ª Ré e despreza o da 1.ª Ré.”
Entende-se vulgarmente por lucro uma vantagem ou benefício económico; e bem pode dizer-se que o negócio em análise representa indiscutível desvalor para a sociedade de que os autores são sócios.
Neste quadro, conclui-se inevitavelmente, como o fez a primeira instância, pela nulidade do acto jurídico em apreço, por violação do princípio da especialidade.
Esse princípio da especialidade afere-se pelo objecto mediato das sociedades que é a actividade lucrativa, não se confundindo com o seu objecto imediato, definido pelos respectivos estatutos e que mais não é do que a actividade comercial concreta que a sociedade se propõe exercer.
Enquanto este delimita os poderes de representação dos administradores, órgãos da sociedade, aquele limita a própria capacidade jurídica das pessoas colectivas.
Como explica Pereira de Almeida, no excerto citado na sentença impugnada:
“A capacidade de direito das sociedades comerciais, como pessoas coletivas, está delimitada pelo seu objecto (art. 160.º do C.Civ.). Mas, aqui há que distinguir o objecto mediato, que é a realização de lucros – necessário para todas as sociedades (art. 980.º do C.Civ.) – do objecto imediato, a actividade comercial concreta que a sociedade se propõe exercer e que deve constar dos estatutos (arts. 9.º, n.º 1, al. d), e 11.º). Esta distinção é importante, porque o princípio da especialidade, que limita a capacidade jurídica das pessoas coletivas aos actos necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins (art. 160.º do C.Civ.) só tem aplicação, nas sociedades comerciais, ao objecto mediato – finalidade lucrativa – servindo o objecto imediato apenas para limitar os poderes de representação dos administradores e, mesmo assim, só verificadas certas condições. Temos, assim, em termos gerais, que se o acto for uma liberalidade é nulo por falta de capacidade da sociedade, mesmo que aprovado ou ratificado pela assembleia geral; se, pelo contrário, não respeitar o objecto imediato – actividade social estatutária – a questão que se coloca já não é a de falta de capacidade da sociedade, pessoa jurídica, mas dos limites aos poderes de representação dos administradores, órgãos da sociedade (art. 6.º, n.º 4). (…) Também se deverão considerar contrárias ao fim mediato da sociedade e, por conseguinte, nulas as garantias pessoais ou reais prestadas a favor dos sócios ou de terceiros ou os empréstimos a título gratuito, salvo se a sociedade tiver nisso interesse justificado, ou se o terceiro for uma sociedade em relação de domínio ou de grupo (art. 6.º, n.º 3)” ((Sociedades Comerciais, 4.ª Edição, Coimbra Editoria, 2006, pp. 31 a 33).
Dito de outra forma, os actos contrários ao fim ou escopo lucrativo extravasam a capacidade jurídica da sociedade e são, por isso, nulos (cfr. art. 6.º, n.º 1 e art. 294.º do Código Civil).
Não ignoramos as dificuldades suscitadas pela própria noção de lucro; mas, ainda que se perfilhe “a tese, segundo a qual, o escopo teleológico do contrato de sociedade, definidor do tipo, não ser o lucro e a sua repartição, mas sim a atividade produtiva suscetível de gerar lucros (como consequência natural, mas não necessária de tal atividade)” em contraponto ao entendimento mais vulgar de que “o fim referido pelo artigo 6.º da LSC é a obtenção de lucros através do objeto e a sua posterior repartição pelos sócios” (v. Fortunato Paixão, in A capacidade das Sociedades Comerciais para a prática de atos gratuitos, publicado em Revistas Científicas da UCP, disponível online) mesmo assim haveria que julgar no caso presente verificadas as circunstâncias determinantes da nulidade, pois que estamos perante uma situação em que uma sociedade na prática renunciou à sua actividade produtiva em benefício de uma outra.
Tal é o caso do negócio sub judice, como bem entendeu a sentença recorrida, a qual não merece qualquer censura.
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VII - DECISÃO
Por todo o exposto, julgamos improcedente a apelação, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pelas rés/recorrentes, dado o seu decaimento (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).

Évora, 26 de Outubro de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso