Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
984/22.8T8EVR.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
CUMPRIMENTO
INCOMPATIBILIDADE
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A alegação do devedor na contestação de que a dívida reclamada é exagerada, não discrimina serviços e que dera como pagos os serviços com o adiantamento realizado, configura atos “incompatíveis com a presunção de cumprimento”, logo, confessado o não pagamento nos termos do artigo 314.º do Código Civil, não há lugar à prescrição presuntiva.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 984/22.8T8EVR.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I

Em 19/12/2019, a Autora (…) e Associados – Sociedade de Advogados, SP, RL, com sede na Av. (…), 15, 7.º, 1050-115 Lisboa, intentou a presente ação de honorários contra (…), (…), (…), (…) e (…), melhor identificados nos autos, alegando, em síntese, que prestou serviços de advocacia à Autora do processo n.º 1102/13.9TBEVR, Srª (…), de quem os Réus são os únicos herdeiros e, prestou igualmente serviços aos Réus a solicitação destes.

Mais alegou que tais serviços profissionais de advocacia foram prestados entre 24/09/2012 e 28/10/2016.

Tendo tais serviços sido discriminados e esclarecidos na nota de despesas e honorários enviada à 1.ª Ré em 05/01/2018, encontra-se em dívida o valor de 5.082,75 Euros, a título de honorários e despesas.

Concluiu pedindo a condenação dos Réus no pagamento de tal quantia acrescida de juros legais vincendos até integral pagamento.

Apenas os Réus (…) e (…) apresentaram contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação.

No âmbito da defesa por exceção invocaram a ilegitimidade do Réu … (exceção dilatória), e invocaram a prescrição do crédito de honorários peticionado pela Autora (exceção perentória), pois que, tendo a presente ação dado entrada em Juízo no dia 19/12/2019, encontra-se prescrito qualquer direito que a sociedade Autora pretenda reclamar nestes autos por via do decurso do prazo prescricional de dois anos, sem vislumbre de algum facto que concorresse para a sua interrupção.

Para o efeito, alegaram, em síntese, que:

- A 1.ª Ré considerou que os serviços prestados se encontravam pagos através das quantias por si entregues na qualidade de tutora da sua falecida mãe, uma vez que a sociedade de advogados A. cessou a sua intervenção de modo voluntário em 17/10/2016;

- A 1ª Ré desconhecia o valor/hora, não tendo sido acordada a Tabela de Preços ora reclamada;

- A nota de despesas e honorários não é rigorosa nem explícita, não discriminando a dupla qualidade da R., inicialmente como tutora e depois cabeça de casal da herança de sua falecida mãe, pois a herança indivisa tem personalidade judiciária, distinta e assaz diferenciada, tendo os serviços sido prestados nesse cenário formal;

- Sem prejuízo da prescrição que se invoca, a intervenção técnica em si mesma e os resultados obtidos foram nulos face ao óbvio pedido formulado e aos resultados obtidos;

- O desempenho processual evidenciado não podia ter gerado valor tão exuberante como o faturado, tendo em conta o menor grau de dificuldade técnica, a verificada eficácia da intervenção e os costumes da comarca de Évora, em que os serviços foram prestados.

Peticionaram pela improcedência da presente ação.

Em resposta, a Autora respondeu às exceções, referindo relativamente à prescrição que:

A prescrição prevista no artigo 317.º, alínea c), do Código Civil refere-se aos créditos pelos serviços prestados e reembolso das despesas verificadas. Tal só se verifica com a apresentação da correspondente nota de despesas e honorários e não antes, período em que tais créditos são desconhecidos dos R.R. e até em valores concretos e definitivos da A.; Ora, a nota de despesas e honorários em causa foi enviada à Ré (…) em 08/01/2018, através de registo dos CTT.

Por despacho autónomo foram as partes convidadas a discutirem por escrito querendo, a exceção invocada na contestação”.

Os Réus reiteraram a ilegitimidade do Réu (…) e a prescrição.

Quanto a esta reafirmam que, os serviços prestados pela Autora cessaram em 17/10/2016, procederam a todos os pagamentos devidos pelos serviços prestados pela Autora, nada mais lhe devendo, a ação foi instaurada mais de três anos depois de a Autora ter cessado de prestar qualquer serviço jurídico, o prazo de prescrição presuntiva de um crédito de honorários relativos a um mandato forense e de reembolso de despesas realizadas na execução desse mandato, inicia a sua contagem quando, por qualquer causa, cessa a prestação do mandatário, a partir desse momento e durante um prazo de dois anos, presume a lei que o credor procurou obter, enviando a nota de honorários e o devedor pagou a retribuição dos serviços prestados e o reembolso das despesas efetuadas, se o prazo de prescrição se iniciasse apenas na data da emissão das faturas, seria muito fácil “contornar” o regime previsto no artigo 317.º do Código Civil, ainda assim, uma das faturas remonta a 24/04/2014.

A A. remeteu para a sua resposta à contestação.

Tendo sido dado prévio conhecimento às partes de que os autos poderiam estar em condições conhecimento de mérito, sem necessidade de realização de audiência final, veio a ser proferido saneador sentença que julgou procedente a invocada exceção de prescrição e, em consequência absolveu os Réus do pedido.

Inconformado com tal decisão veio o Autor recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

1. A sentença proferida não está juridicamente correta;

2. A causa não devia ter sido julgada no despacho saneador, porquanto o estado dos autos não habilitara o Meritíssimo Juiz ao conhecimento imediato da causa;

3. Deviam os autos prosseguir a sua tramitação com realização de audiência de discussão e julgamento;

4. A invocada exceção perentória não devia ter sido julgada procedente e provada nos termos em que o foi, porquanto

5. Estamos perante um exceção presuntiva, que é o caso concreto previsto no artigo 317.º do Código Civil,

6. O que é reconhecido pela inúmera Jurisprudência publicada;

7. A A., ora Apelante, prestou serviços profissionais aos RR., conforme consta do processo principal apenso aos autos e dos presentes autos;

8. Esses serviços constam da Nota de Despesa e Honorários anexa à petição inicial, tendo sido devidamente descriminados;

9. Segundo a A., ora Apelante, tais serviços corresponderam ao montante em dívida de € 5.082,75;

10. Os RR., ora Apelados, pagaram à A., ora Apelante, o montante de € 2.000,00 a título de provisão em 20.05.2013, que foram considerados e abatidos no valor apurado pela A., correspondente aos serviços que prestou;

11. Os RR., ora Apelados, reconheceram a prestação de serviços, mas consideram que o resultado dos mesmos foi nulo; e

12. Impugnaram o valor/hora dos serviços prestados pelos Advogados, reconhecendo que houve serviços prestados;

13. Também solicitaram uma descriminação diferente no tempo, dos serviços prestados em função da data do falecimento da referida (…) em 04.06.2016, reconhecendo ter havido serviços prestados;

14. Os RR., ora Apelados, consideraram face ao desempenho da A., ora Apelante, que o valor faturado era exuberante, reconhecendo que houve serviços realizados e faturados;

15. Os RR., ora Apelados, consideraram os serviços desenvolvidos pela A. até 04.06.2016 pagos através da provisão de € 2.000,00 paga em 20.05.2013, reconhecendo ter havido serviços realizados e faturados pela A., ora Apelante;

16. 0 credor deve provar nos autos que o devedor não pagou os serviços prestados;

17. 0 que a A realizou desde logo na petição inicial;

18. Os RR não alegaram, nem provaram nos autos o pagamento dos serviços prestados e do crédito peticionado;

19. 0 artigo 312.º do Código Civil estipula que a presunção prevista no artigo 317.º do mesmo Código Civil se funda na presunção do cumprimento;

20. Os RR. reconhecem nos autos o não pagamento do montante devido à A., ora Apelante, nem que seja parcialmente;

21 . O pagamento parcial do crédito afasta a presunção de pagamento,

22. O que se verifica nos presentes autos;

23. A confissão de dívida – mesmo parcial – também afasta a presunção de pagamento,

24. O que se verifica nos presentes autos;

25. 0 questionamento da dívida quanto ao seu montante também afasta a presunção de cumprimento da dívida à A., ora Apelante;

26. O que se verifica nos presentes autos;

27. O Douto Tribunal a quo não teve em consideração os factos e pontos anteriores;

28. Os RR deduziram defesa incompatível com a prescrição presuntiva que invocaram;

29. O que devia ter determinado a improcedência da exceção de prescrição presuntiva alegada do artigo 317.º do Código Civil;

30. Há manifesto erro de julgamento, tendo

31. Sido violado o disposto nos artigos 312.º a 314.º do Código Civil e os artigos 592.º, 593.º, 595.º, 607.º, nºs 3 a 5 e 616.º do C.P.C.;

32. A douta Sentença a quo deve ser revogada, porquanto

33. Arredada a prescrição presuntiva, fica a prescrição ordinária,

34. Que ainda não ocorreu;

35. 0 Venerando Tribunal Superior deve determinar o prosseguimento dos autos e o julgamento dos RR, ora Apelados, tendo em vista a factualidade da douta Contestação e determinar a sua condenação, uma vez que a dívida em causa não está prescrita;

36.0 que o Venerando Tribunal Superior deve reconhecer, com todas as consequências legais.

A final requer que seja revogada a sentença, reconhecendo-se que o crédito em causa peticionado pela ora Apelante não está prescrito, determinando-se a continuação dos autos, tendo em vista a realização da audiência de discussão e julgamento.

Não foram apresentadas contra-alegações.


II

Do objeto do recurso:

Considerando a delimitação que decorre das conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), os pontos em discussão são os seguintes:

- Saber se os RR deduziram defesa incompatível com a prescrição presuntiva que invocaram.

- Em caso afirmativo, se devem os autos prosseguir para audiência de julgamento.


III

Os Factos:

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma Sociedade de Advogados que tem por objeto a prestação de serviços profissionais de advocacia;

2. No exercício da sua atividade profissional a Autora prestou serviços de advocacia a (…), no âmbito do processo 1102/13.9TBEVR; bem como, prestou serviços profissionais aos Réus, que sucederam àquela no passivo; nomeadamente, à 1.ª Ré na qualidade de representante legal da sua mãe (…);

3. Os referidos serviços profissionais foram prestados à falecida (…) e aos Réus entre 24-09-2012 e 28-10-2016;

4. A nota de despesas e honorários foi enviada pela Autora à 1.ª Ré em 05-01-2018;

5. A presente ação deu entrada em Juízo em 19-12-2019;

6. Os Réus, na presente ação, invocaram que procederam a todos os pagamentos devidos pelos serviços prestados pela Autora.

Para a resolução do litígio, importa ainda considerar na factualidade provada, a defesa dos Réus na contestação (pois que é nos articulados que o conflito de interesses se define) e consta do relatório supra, nomeadamente que:

Se impõe que a nota de despesas e honorários em apreço seja rigorosa nesse parâmetro, e explícita, ao contrário do que consta nestes autos, bem como devidamente discriminativa dessa dupla qualidade da R., inicialmente como tutora e depois cabeça de casal da herança de sua falecida mãe”.

O desempenho processual evidenciado não podia ter gerado valor tão exuberante como o faturado, tendo em conta o menor grau de dificuldade técnica, a verificada eficácia da intervenção e os costumes da comarca de Évora, em que os serviços foram prestados”.

Tendo a sociedade de advogados A. cessado intervenção de modo voluntário em 17.10.2016, conforme alegado e comprovado no processo principal, considerou a R. que os serviços prestados se encontravam pagos através das quantias por si entregues na qualidade de tutora da sua falecida mãe”.


IV

O Direito aplicável

Na presente ação a Autora peticiona uma dívida de honorários e despesas por serviços profissionais de advocacia.

Alegou na petição inicial que os referidos serviços profissionais foram prestados à falecida A. e aos RR. entre 24.09.2012 e 28.10.2016, tendo como finalidade obter o reembolso das rendas respeitantes ao arrendamento da Herdade da (…) desde 15.11.2013 no montante de € 180.000,00, conforme processo principal, cuja apensação solicita”.

Os Réus invocaram o pagamento da dívida reclamada, alegando a sua prescrição presuntiva.

Dispõe o artigo 312.º do Código Civil, a propósito do fundamento das prescrições presuntivas que:

As prescrições de que trata a presente subsecção fundam-se na presunção de cumprimento”.

Refere o artigo 313.º que:

1. A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão”.

Esclarecendo o artigo 314.º que:

Considera-se confessada a dívida, se o devedor (…) praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento”.

Por sua vez o artigo 317.º dispõe que:

Prescrevem no prazo de dois anos:

c) Os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes”.

Dúvidas não há que o prazo de prescrição por dívida de honorários prescreve no prazo de dois anos.

Baseia-se esta presunção legal, no facto de se reportar a créditos gerados pelo exercício de uma atividade profissional, cujos pagamentos são usualmente reclamados pelos credores em prazos curtos, e em que os devedores, por regra, cumprem a sua obrigação também em prazo curto e sem exigirem recibo de quitação ou não guardando tal recibo durante muito tempo.

O prazo de prescrição deste tipo de crédito inicia a sua contagem quando, por qualquer causa, cessa a prestação do mandatário.

A partir desse momento e durante um prazo de dois anos, presume-se que o credor procurou obter, enviando a nota de honorários, e o devedor pagou a retribuição dos serviços prestados e o reembolso das despesas efetuadas.

Nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29-01-2013, Processo nº 593/09.7TBCTB.C1, in www.dgsi.pt, assim sumariado:

I – O prazo de prescrição presuntiva de um crédito de honorários relativos a um mandato forense e de reembolso de despesas realizadas na execução desse mandato, inicia a sua contagem quando, por qualquer causa, cessa a prestação do mandatário.

II – A partir desse momento e durante um prazo de dois anos, presume a lei que o credor procurou obter, enviando a nota de honorários, e o devedor pagou a retribuição dos serviços prestados e o reembolso das despesas efetuadas”.

Da matéria de facto provada resulta que os serviços profissionais foram prestados à falecida (…) e aos Réus entre 24-09-2012 e 28-10-2016.

Em 2016 cessaram os serviços profissionais, logo, tendo a ação sido intentada apenas em 19/12/2019, tal prazo havia já decorrido.

O que importa ora apreciar é se os Réus praticaram atos suscetíveis de excluir a eficácia liberatória da prescrição presuntiva.

Em concreto, importa apreciar se o terem alegado na contestação que a dívida reclamada é exagerada, não discrimina serviços e que os Réus deram como pagos os serviços com o adiantamento realizado, configura atos “incompatíveis com a presunção de cumprimento”.

Concluímos que sim, pois que, de tal conduta extrai-se que ocorreu apenas um adiantamento, logo, tal valor não cobre o montante reclamado, não o aceitando os Réus, que o consideram exagerado, além de não lhes permitir perceber a que específico serviço ou despesa se refere.

Com tal defesa deixa de ser possível presumir o pagamento do montante reclamado, que tendo sido impugnado deve ser sujeito a probatório. Saber se tal montante se mostra devidamente liquidado, logo, se é devido, importa a produção de prova, cujo ónus incumbe ao credor.

Aceitamos assim a doutrina, entre outros, do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27/06/2019, Proc. n.º 448/17.1T8MNC.G1, in www.dgsi.pt, que sintetiza:

Constituindo uma mera presunção de pagamento pelo decurso do prazo, a prescrição presuntiva não poderá aproveitar a quem tenha uma atuação em juízo que logicamente a exclua, designadamente quando o devedor discute a existência, o montante, o vencimento ou outras características dos honorários reclamados, como seja o número de horas despendidas no estudo da causa e preparação da petição inicial (artigo 314.º do CC)”.

Por isso, face à defesa dos Réus, não é possível presumir que o pagamento foi efetuado.

Concordamos, pois, com a apelante quando pretende ter-se verificado um ato incompatível com a presunção de cumprimento.

Devendo a ação prosseguir para julgamento.

Em suma: (…)


V

Termos em que, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que se substitui por outra que, não reconhecendo a prescrição presuntiva, ordena o prosseguimento dos autos.

Custas do recurso pela apelante, que dele tirou proveito, sem oposição (artigo 527.º, n.º 1, do CC).

Évora, 07 de novembro de 2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Rui Machado e Moura (1º Adjunto)

Isabel Imaginário (2ª Adjunta)