Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2600/21.6T8FAR-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
DÍVIDA DE CÔNJUGES
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Não são de relacionar no inventário, na sequência de divórcio, os créditos de um dos cônjuges sobre o outro por ter suportado com bens próprios dívidas da responsabilidade exclusiva deste último.
II. Como não é de relacionar como passivo uma dívida que não seja do ex-casal mas que apenas é garantida por hipoteca incidente sobre um seu bem comum.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I- RELATÓRIO

1. F..., cabeça-de-casal nos autos à margem identificados, nos quais é co-interessada AA, dissentindo do despacho proferido em 29.5.2023 dele veio recorrer, formulando, na sua apelação as seguintes conclusões:

a) O recurso incide sobre a decisão de saneamento do Tribunal a quo que decidiu excluir as verbas 1 a 7 da rubrica “Créditos”, indicada na sua Relação de bens pelo Cabeça de Casal;

b) O Tribunal “a quo” também decidiu excluir a verba n.º1 da rubrica“Passivo”.

c) A decisão e a sua falta de fundamentação, não justificam exclusão da totalidade da rubrica créditos e do passivo.

d) Salvo o devido respeito, os autos e as provas carreadas para o mesmo merecem uma fundamentação mais elaborada e sem que se justifique a totalidade da decisão formulada.

e) Pelo que se recorre desta decisão, para que se analise a documentação e os argumentos formulados nos presentes autos.

f) Ora o douto Tribunal a quo decidiu, de forma resumida, em sede de saneamento do processo o seguinte:

“Sendo as dívidas em apreço, nas verbas n.ºs 1 a 7, da responsabilidade exclusiva da requerente, por incidirem sobre bens imóveis próprios, uma vez que foram adquiridos antes da celebração do casamento, e tendo (alegadamente) sido pagas através de bens próprios do cabeça de casal, é inaplicável o disposto no artigo 1697.º, do Código Civil, não podendo o cabeça de casal, neste âmbito, recorrer ao presente processo de inventário para proceder à compensação daquilo que despendeu.

Assim sendo, nos termos e com os fundamentos supra expostos, o Tribunal decide excluir as verbas n.ºs 1 a 7 relacionadas pelo cabeça de casal na rubrica “Créditos”.”

g) O recorrente não pode concordar com a exclusão integral da rubrica “Créditos” e das 7 verbas que o compõem.

h) Ora, os dois imóveis identificados e as despesas com os mesmos devem ser suportadas e compensadas pelos bens que compõem a relação de bens e no caso da sua inexistência, pela recorrida.

i) A douta decisão saneadora olvidou que a moradia identificada na verba 5 era a casa de morada de família do casal até à rutura do casal em 2019.

j) Todos os valores despendidos antes e de depois do casamento, foi em proveito comum do casal, pois sempre viveram na moradia.

k) Por sua vez as despesas com a fração “E”, também foram suportadas em proveito do casal, pois seria património que poderia gerar rentabilidade no futuro.

l) Pelo que não é correto que o recorrente não tenha alegado quaisquer factos que possam consubstanciar o descrito no art. 1691.º do Código Civil.

m) O Recorrente foi casado com a Recorrida, pelo que pagava todas as despesas em proveito do casal e assumiu dívidas com o seu consentimento, em conformidade com os documentos que juntou.

n) Ora, todas as despesas eram efetuadas pelo Recorrente em proveito do casal, pelo que alegou que assim fosse e, mesmo que não o fizesse, deduz-se que seria dessa forma, pois sempre pagou tudo o que foi necessário durante a vida em comum com a Recorrida.

o) Por esse motivo a compensação é devida, nos termos do art. 1697.º do Código Civil.

p) Caso o douto Tribunal considerasse que não há matéria suficiente para considerar as dívidas assumidas em proveito do casal, seria sempre necessária prova a produzir.

q) Contudo nem mesmo o Tribunal considerou esta possibilidade, optando por excluir as verbas em prejuízo do cabeça de casal.

r) Pelo que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao excluir as verbas, pelo que as mesmas devem manter-se na relação de bens.

s) Ora, o douto Tribunal a quo decidiu, de forma resumida, em sede de saneamento do processo o seguinte:

“Desta forma, a dívida em apreço constante da verba n.º 1 da rubrica“Passivo” não pertence ao ex-casal, só respondendo os mesmos diretamente, em caso de incumprimento da sociedade por quotas “Construções Civis F..., Unipessoal, Lda.”, pelas prestações já vencidas (vide, neste sentido, o teor do despacho saneador sentença proferido no processo n.º 1376/17.6T8OLH-B).

Assim sendo, o Tribunal decide excluir a verba n.º 1 da rubrica “Passivo” e, consequentemente, retificar a descrição da verba n.º1 da rubrica“Ativo:

Bem Imóvel”, nos seguintes termos (…)”

t) Neste caso a decisão de saneamento excluiu a verba do passivo e alterou a verba única do ativo:

u) Ora, o casal assumiu a divida hipotecária durante o casamento, pelo que são devedores solidários da mesma não podendo excluir-se uma dívida assumida por ambos durante o casamento.

v) Neste sentido a verba do passivo não poderia ter sido excluída, nem a verba do ativo ter sido alterada pelo que o douto Tribunal incorreu em erro de julgamento, devendo proceder à anulação da douta decisão.

Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável, deverá o presente recurso ser julgado procedente, dando-se-lhe, assim, o respetivo provimento e, em consequência deverá a douta decisão de saneamento ser revogada e substituída por outra que que mantenha as verbas indicadas pelo Recorrente procedendo-se à produção de prova caso seja necessário, devido ao Tribunal a quo ter incorrido em erro de julgamento pelos motivos supra explanados, assim fazendo a costumada JUSTIÇA!”.

2. Contra-alegou a recorrida defendendo a manutenção do decidido.

3. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à questão de saber se as verbas 1 a 7 relacionadas na rúbrica “Créditos” devem, ou não, ser excluídas e, bem assim, se a verba única do passivo deve, ou não, ser eliminada.

II. FUNDAMENTAÇÃO

4. É o seguinte o teor da decisão recorrida:

“Dos créditos relacionados pelo cabeça de casal

Nos presentes autos, veio o cabeça de casal, pelo requerimento, datado de 28.02.2022, apresentar a relação dos bens comuns, relacionando, neste âmbito e no que aqui releva, sete verbas, às quais denominou “Créditos”, que alega deter sobre a requerente, por pagamentos que efetuou antes, e durante, o casamento de ambos, relativamente a dois bens imóveis propriedade da requerente (a fração autónoma designada pela letra “E” e a moradia sita na Avenida ..., em Faro).

Por seu turno, a requerente, neste âmbito, pelo requerimento, datado de 14.03.2022, veio pugnar pela exclusão das verbas um a sete da rubrica “Créditos”, relacionadas pelo cabeça de casal.

Para tanto, alega a requerente que viveu com o cabeça de casal em união de facto, entre 12.04.1997 e 31.10.2009, sendo que os pagamentos respeitantes às verbas n.ºs 1, 2, 3 (desde abril de 2001 a 31.10.2009), 5 (desde fevereiro de 2003 até 31.10.2009), 6 e 7, foram efetuados antes do casamento, razão pela qual entende que o cabeça de casal não pode valer-se do presente inventário para partilha dos bens na sequência do divórcio, porquanto tais dívidas não foram constituídas na constância do matrimónio, não pertencendo ao património comum do ex-casal.

Ademais, no que concerne à verba n.º 4, apesar de a reabilitação da fração ter ocorrido em 2017, alega a requerente que os gastos com a mão de obra e com a aquisição de materiais foram integralmente suportados pela sociedade comercial por quotas “Construções Civis F..., Unipessoal, Lda.” e, já não, através de valores próprios do cabeça de casal.

O cabeça de casal, por sua vez, exerceu o contraditório, pelo requerimento, datado de 21.04.2022, no qual pugna pela manutenção da relação de bens tal como indicada previamente, sem exclusão das verbas n.ºs um a sete da rubrica “Créditos”.

Neste âmbito, o cabeça de casal, apesar de confirmar que, relativamente às verbas n.ºs 1, 2, 6 e 7, efetuou os respetivos pagamentos em data anterior à celebração do casamento, alega que todos os pagamentos foram efetuados com dinheiro próprio, pelo que sempre devem ser considerados, para efeito de compensações, os pagamentos efetuados desde 31.10.2009 (data do casamento) até 03.12.2020 (data do divórcio).

Alega, ainda, o cabeça de casal, que suportou os gastos com as obras de reabilitação da fração autónoma, com a letra “E”, inteiramente com recurso a dinheiro próprio.

Por fim, no que respeita às obras de remodelação da moradia, o cabeça de casal impugnou as respetivas datas de início e de termo alegadas pela requerente, e alegou que foi o próprio a pagar, em exclusivo, as respetivas faturas, emitidas em data anterior e posterior ao casamento.

Cumpre apreciar e decidir.

Seguindo o entendimento do Ac. do TRL de 28.02.2023 Rel. Cristina Silva Maximiano, de acordo com o disposto no artigo 1688.º, do Código Civil, as relações patrimoniais entre os cônjuges cessam, entre outras causas, pelo divórcio.

A partilha dos bens comuns do casal é uma consequência, um efeito, dessa cessação, sendo que, em tal partilha, cada cônjuge receberá os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, conferindo previamente cada um deles o que dever a este património (cfr. artigo 1689.º n.º 1, do Código Civil).

A “partilha do casal” (cfr. epígrafe do último preceito citado) desdobra-se em três operações distintas: a) a entrega a cada um dos cônjuges dos seus bens próprios; b) a conferência das dívidas dos cônjuges à massa comum, apurando, desta forma, o valor ativo comum líquido, aqui se procedendo ao cálculo de compensações e de contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges; c) a partilha do ativo comum líquido assim apurado. As operações devem processar-se por esta ordem (neste âmbito, vide Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. IV, 2.ª ed. revista e atualizada, Coimbra Editora, 1992, pág. 322).

Simultaneamente com a reposição do que cada um dos cônjuges estiver a dever ao património comum, havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum (sendo, pois, tais dívidas pagas à custa da massa dos bens comuns), e só depois de liquidadas as dívidas comunicáveis poderão ser pagas, à custa dos bens comuns, as dívidas restantes (cfr. artigo 1689.º n.º 2, do Código Civil).

As dívidas (“créditos”) dos cônjuges entre si são pagas pela meação do cônjuge devedor no património comum; na falta ou insuficiência desta meação, responderão os bens próprios do mesmo cônjuge (cfr. artigo 1689.º n.º 3, do Código Civil).

Estes créditos dos cônjuges entre si resultam, principalmente, da situação prevista no artigo 1697.º n.º 1, do Código Civil, ou seja, da circunstância de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges terem sido pagas com bens próprios de um deles, caso em que o cônjuge à custa do qual o pagamento se efetuou, torna-se credor do outro por tudo quanto pagou além do que lhe competia. Com efeito, sendo uma dívida comum do casal paga por um dos cônjuges, aquele que a solveu torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer. É a consagração legal do direito à compensação favor do cônjuge que prestou mais do que aquilo que era sua obrigação em relação às dívidas comuns, diferindo, contudo, a exigibilidade desse crédito para a partilha.

Cristina Manuela Araújo Dias, in “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, Coimbra Editora, 2009, páginas 774 a 792, esclarece que, na situação em que um dos cônjuges paga uma dívida comum com bens próprios, existe uma “compensação do património comum ao património do cônjuge que pagou dívidas comuns com bens próprios, ainda que tal crédito passe pelo aumento da sua meação no património comum e por uma diminuição da meação do outro cônjuge como se este fosse o devedor, atendendo ao disposto no art.º 1689º, nº 3”. Mais aduzindo a este propósito que “o n.º 1 do art.º 1697.º regula as compensações devidas pela comunhão a favor de um dos cônjuges, quando este respondeu por dívidas comuns. (…) Pretende-se que o cônjuge que pagou mais do que devia tenha sempre o direito a ser compensado daquilo que pagou a mais.”. Concluindo: “No final, a compensação devida a um dos cônjuges pela comunhão será paga por um acréscimo da meação do cônjuge credor nos bens comuns, de valor igual ao da compensação devida e, necessariamente, por uma diminuição, na mesma proporção, na meação do outro cônjuge.”.

Por sua vez, o passivo que onera o património comum, da responsabilidade de ambos os cônjuges, é o enunciado nos artigos 1691.º, 1693.º n.º 2 e 1694.º n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil.

Revertendo ao caso dos presentes autos, dúvidas não restam (e o próprio cabeça de casal afirma-o) que os dois bens imóveis em apreço (a fração autónoma designada com a letra “E” e a moradia, em Faro) são propriedade da requerente, tendo-os adquirido antes da celebração do casamento, pelo que são, igualmente, bens próprios da requerente (cfr. artigo 1722.º n.º 1 al. a), do Código Civil).

As verbas n.ºs 1 a 7, relacionadas pelo cabeça de casal, correspondem a despesas, sinal, reforço do sinal e, ainda, a prestações bancárias decorrentes dos empréstimos para a aquisição dos referidos imóveis, sendo que todas respeitam a esses imóveis.

Sendo os mencionados imóveis bens próprios da requerente, e considerando que em verbas em apreço respeitam a dívidas constituídas antes da celebração do casamento entre a requerente e o cabeça de casal (à exceção da verba n.º 4, constituída em 2017, e da verba n.º 7, cujas respetivas data de início e de termo se encontram controvertidas), é manifesto que tais dívidas são próprias da requerente, em conformidade com o disposto nos artigos 1694.º n.º 2 e 1692.º alínea a), ambos do Código Civil.

Tendo alegado o cabeça de casal que efetuou os pagamentos das verbas n.ºs 1 a 7 (as quais constituem dívidas da responsabilidade exclusiva da requerente) sempre com dinheiro próprio – facto que foi impugnado, subsidiariamente, pela requerente, tendo a mesma pugnado, antes, pela exclusão das respetivas verbas, por não integrarem o património comum

do ex-casal e, consequentemente, não poderem ser relacionadas – mostra-se inaplicável, in casu, o disposto no artigo 1697.º, do Código Civil, o qual respeita unicamente ao pagamento de dívidas da responsabilidade exclusiva de um dos cônjuges, através de bens comuns.

Por seu turno, no que respeita às verbas n.ºs 4 e 7, importa tecer algumas considerações.

É certo que a requerente alega que a despesa com as obras de reabilitação da fração autónoma designada com a letra “E” ocorreu no ano de 2017, ou seja, na constância do casamento (facto impugnado, no entanto, pelo cabeça de casal) e que o cabeça de casal alega que foram emitidas faturas respeitantes às obras realizadas na moradia (verba n.º 7), após a celebração do casamento.

Todavia, tais dívidas não podem ser consideradas da responsabilidade de ambos os cônjuges, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1691.º n.ºs 1 alíneas a) e c) e 3, do Código Civil, uma vez que nada foi alegado que consubstancie a verificação, em concreto, dos pressupostos aí previstos, pelo que, consequentemente, no que respeita às verbas n.ºs 4 e 7, consideramos ser inaplicável o disposto no artigo 1697.º, do Código Civil.

Sendo as dívidas em apreço, nas verbas n.ºs 1 a 7, da responsabilidade exclusiva da requerente, por incidirem sobre bens imóveis próprios, uma vez que foram adquiridos antes da celebração do casamento, e tendo (alegadamente) sido pagas através de bens próprios do cabeça de casal, é inaplicável o disposto no artigo 1697.º, do Código Civil, não podendo o cabeça de casal, neste âmbito, recorrer ao presente processo de inventário para proceder à compensação daquilo que despendeu.

Assim sendo, nos termos e com os fundamentos supra expostos, o Tribunal decide excluir as verbas n.ºs 1 a 7 relacionadas pelo cabeça de casal na rubrica “Créditos”.

(…)

Do relacionamento da verba n.º 1 da rubrica “Ativo: Bem Imóvel” e da verba n.º 1 da rubrica “Passivo”

A requerente, na reclamação à relação de bens alega que a dívida à E..., S. A., não é do ex-casal, mas, antes, da sociedade comercial unipessoal por quotas “Construções Civis F... Unipessoal, Lda.”, razão pela qual entende que a verba n.º 1 da rubrica “Passivo” deve ser excluída da relação de bens e ser retificada a descrição do bem imóvel que corresponde à verba n.º 1 da rubrica “Ativo”, nos seguintes termos:

“Prédio urbano, destinado a comércio, sito no ..., Moncarapacho, freguesia de Moncarapacho e Fuseta, concelho de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º ...09, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo n.º ...73, com o valor patrimonial € 81.955,28, onerado com uma hipoteca a favor de E..., S.A., com o capital de € 168.000,00 e o montante máximo assegurado de € 225.120,00, para garantia das obrigações assumidas pela sociedade devedora Construções Civis F..., Unipessoal, Lda. e uma penhora efetuada no âmbito do processo executivo n.º 1376/17.6T8OLH-A – Juiz 2, do Juízo de Comércio de Olhão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com a quantia exequenda no valor de € 153.666,29, em que é exequente a referida sociedade E..., S.A.”

Por seu turno, o cabeça de casal impugna a pretensão do requerente, porquanto alega que o ex-casal, ao constituir uma hipoteca voluntária sobre o imóvel sito no ..., em Moncarapacho, que é seu bem comum, onerou o mesmo para garantia do valor em dívida, responsabilizando-se, dessa forma, pelo pagamento da dívida à sociedade “E..., S.A.”, em caso de incumprimento, com o seu património comum.

Encontra-se junta aos autos a certidão da sentença homologatória da transação alcançada no processo n.º 1376/17.6T8OLH e, ainda, do despacho saneador sentença proferido no processo n.º 1376/17.6T8OLH-B.

Cumpre apreciar e decidir.

Após a análise dos presentes autos, em particular do teor da sentença proferida no processo n.º 1376/17.6T8OLH-B, e do alegado pelo cabeça de casal, verifica-se que o bem imóvel que constitui a verba n.º 1 do ativo foi, efetivamente, onerado com uma hipoteca voluntária, para garantia do valor em dívida à sociedade “E..., S.A.”, em caso de incumprimento.

Desta forma, a dívida em apreço constante da verba n.º 1 da rubrica “Passivo” não pertence ao ex-casal, só respondendo os mesmos diretamente, em caso de incumprimento da sociedade por quotas “Construções Civis F..., Unipessoal, Lda.”, pelas prestações já vencidas (vide, neste sentido, o teor do despacho saneador sentença proferido no processo n.º 1376/17.6T8OLH-B).

Assim sendo, o Tribunal decide excluir a verba n.º 1 da rubrica “Passivo” e, consequentemente, retificar a descrição da verba n.º 1 da rubrica “Ativo: Bem Imóvel”, nos seguintes termos:

“Prédio urbano, destinado a comércio, sito no ..., Moncarapacho, freguesia de Moncarapacho e Fuseta, concelho de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º ...09, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo n.º ...73, com o valor patrimonial € 81.955,28, onerado com uma hipoteca a favor de E..., S.A., com o capital de € 168.000,00 e o montante máximo assegurado de € 225.120,00, para garantia das obrigações assumidas pela sociedade devedora “Construções Civis F..., Unipessoal, Lda.” e uma penhora efetuada no âmbito do processo executivo n.º 1376/17.6T8OLH-A – Juiz 2, do Juízo de Comércio de Olhão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com a quantia exequenda no valor de € 153.666,29, em que é exequente a referida sociedade E..., S.A.”.

5. Do mérito do recurso

5.1. Estamos em presença de um inventário para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio; neste caso, o inventário visa pôr termo à comunhão de bens do ex-casal F... e AA.

O processo de inventário destina-se a regular a partilha desses bens comuns, incluindo as dívidas que são comuns, não servindo para fazer valer direitos de qualquer dos cônjuges que não estejam conexionados com o património comum do casal.

No caso, o cabeça de casal relacionou ( em 28.2.2022) sob a rúbrica “ créditos” sete verbas respeitantes a quantias pelo mesmo ( alegadamente) despendidas com a aquisição, reabilitação de uma fracção de exclusiva propriedade da sua ex-mulher, assim como com o pagamento de prestações de um empréstimo pela mesma contraído para aquisição e despesas de reabilitação de um outro prédio da sua exclusiva propriedade.

Relacionou igualmente uma dívida à firma E..., S.A. contraída pela sociedade comercial unipessoal por quotas denominada Construções Civis F..., Unipessoal, Lda.. garantida por hipoteca incidente sobre um imóvel, bem comum do casal ( verba 1 do activo).

Vejamos então se tais “créditos” e “dívida” deveriam ter sido relacionados.

5.2. Dispõe o art.º1697.º do Cód. Civil sob a epígrafe “Compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal” o seguinte:

1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.

2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.

Por conseguinte, “pode dizer-se que são devidas compensações quando as dívidas comuns dos cônjuges forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges ou quando as dívidas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns (artigo 1697.º nºs 1 e 2 do Código Civil)”[1].

“Conforme explica Cristina Araújo Dias[2], a compensação é o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica no decurso do regime de comunhão. A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça em detrimento e à custa de outra. (…) Por definição, uma compensação presume um movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges. Se, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre os patrimónios próprios, haverá um crédito entre cônjuges, e não uma compensação. Tais créditos entre cônjuges obedecem a um regime jurídico distinto da compensação. Desde logo, salvo convenção em contrário, tais créditos são exigíveis desde o momento do seu surgimento, por estarem sujeitos ao regime geral do Direito das Obrigações, não se justificando o seu diferimento para o momento da partilha”.

E, a mesma autora continua:(…) esses créditos não integram a massa a partilhar nem constam de uma conta como as compensações. Daí a importância e necessidade da distinção entre compensações e créditos entre cônjuges. O regime jurídico é diferente, sobretudo ao nível do seu cálculo, avaliação e exigibilidade, estando as compensações sujeitas a um regime particular, ao passo que os créditos entre cônjuges submetem-se ao regime geral do Direito das Obrigações”.”.

Ora, na versão do cabeça de casal, o mesmo suportou com bens próprios dívidas da responsabilidade exclusiva da sua ex-mulher.

A ser assim, não é no processo de inventario que devem ser relacionados tais créditos já que neste, como se viu, só devem ser relacionados os créditos do património comum sobre o património próprio ou deste sobre o comum.

Em suma: “ O processo especial de inventário destina-se a obter a partilha dos bens, ou mais concretamente, a partilha de bens que formam o acervo comum do casal dissolvido em consequência do divórcio, inexistindo qualquer motivo, quer de ordem material, quer de ordem adjetiva, para integrar na tramitação especial do processo de inventário uma pretensão de natureza puramente declarativa, que se traduza na condenação de um dos cônjuges no pagamento de uma determinada quantia correspondente a uma obrigação própria deste.[3]”.

Por isso, e como bem se decidiu, sendo as dívidas em apreço, nas verbas n.ºs 1 a 7, da responsabilidade exclusiva da ex-mulher por incidirem sobre bens imóveis próprios, uma vez que foram adquiridos antes da celebração do casamento, e tendo (alegadamente) sido pagas através de bens próprios do cabeça de casal, é inaplicável o disposto no artigo 1697.º, do Código Civil, não podendo o cabeça de casal, neste âmbito, recorrer ao presente processo de inventário para proceder à compensação daquilo que despendeu.

Mostram-se, assim, correctamente excluídas as referidas verbas.

5.2. O mesmo se diga relativamente à dívida relacionada: trata-se de uma dívida de uma sociedade a outra mas que é garantida por hipoteca incidente sobre bem comum.

Como se viu, este inventário destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns.

A dívida em apreço não é uma dívida do ex-casal mas da sociedade por quotas “Construções Civis F..., Unipessoal, Lda.”.

Não pode, por isso, ser relacionada como dívida comum.

É certo que sobre o imóvel que constitui um bem comum incide uma hipoteca que garante tal dívida e que responde por ela em caso de incumprimento do devedor, como efectivamente veio a suceder, posto que se mostra já penhorado à ordem processo executivo n.º 1376/17.6T8OLH-A – Juiz 2, do Juízo de Comércio de Olhão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com a quantia exequenda no valor de € 153.666,29, em que é exequente a referida sociedade E..., S.A..

Consequentemente, é relevante que tal ónus conste mencionado na relação de bens conjuntamente com a descrição da verba já que o interessado a quem a mesma for adjudicada poderá, no fim de contas, acabar por ficar dela despojado em sede executiva e pouco ou nada remanescer para partilhar após a sua venda.

Mas isso foi assisadamente feito pelo Tribunal “ a quo” ao determinar a rectificação da descrição da verba n.º 1 por forma a dela constar que o imóvel se mostra onerado com uma hipoteca a favor de E..., S.A., com o capital de € 168.000,00 e o montante máximo assegurado de € 225.120,00, para garantia das obrigações assumidas pela sociedade devedora “Construções Civis F..., Unipessoal, Lda.” e uma penhora efetuada no âmbito do processo executivo n.º 1376/17.6T8OLH-A – Juiz 2, do Juízo de Comércio de Olhão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com a quantia exequenda no valor de € 153.666,29, em que é exequente a referida sociedade E..., S.A..

A apelação não tem, pois, como proceder.

III.DECISÃO

Por todo o exposto se acorda em julgar a apelação totalmente improcedente e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Évora, 7 de Novembro de 2023

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Albertina Pedroso

Elisabete Valente

_________________________________

[1] Cfr. Ac. TRP de 17.6.2019 ( Domingos Fernandes)

[2] Apud referido Ac. TRP.

[3] Ac. STJ 3.10.2019 ( Abrantes Geraldes).