Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
964/22.3T8OLH-A.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Data do Acordão: 11/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A disposição de bens do devedor em proveito de terceiro, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, constitui fundamento inilidível da insolvência culposa.
II – Qualificada como culposa a insolvência, a afetação da gerente única da devedora decorre diretamente da lei.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: 964/22.3T8OLH-A.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. Por apenso à insolvência de (…), o Administrador da insolvência apresentou alegações propondo a qualificação da insolvência como culposa e indicou a sócia-gerente da insolvente, (…) para ser afetada pela qualificação.
Alegou, em síntese, que a Devedora dispôs de bens que constituíam o seu ativo em proveito do ex-cônjuge da sócia-gerente e da sociedade (…), Unipessoal, Lda., cujo atual proprietário é filho sócia-gerente e que esta prosseguiu, no seu interesse pessoal, uma exploração deficitária da insolvente.
O Ministério Público formulou parecer concordante com as alegações do Administrador da insolvência, ao qual aditou a apresentação tardia da Devedora à insolvência como causa da insolvência culposa.
A indigitada (…) deduziu oposição, por forma a qualificar a insolvência como fortuita e a concluir, em qualquer caso, pela sua não afetação pela qualificação da insolvência como culposa.

2. Foi proferido despacho a afirmar a validade e regularidade da instância e dispensadas a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
Houve lugar à audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença, em cujo dispositivo designadamente se consignou:
“(…) o Tribunal decide julgar totalmente procedente o presente incidente de qualificação da insolvência e, em consequência decide:
a) Qualificar a insolvência de (…) – Publicidade, Lda., como culposa, tendo a Insolvente e (…) atuado com culpa grave;
b) Declarar (…) afetada pela qualificação da insolvência de (…) – Publicidade, Lda. como culposa, em virtude de atuação com culpa grave;
c) Declarar (…) inibida para administrar patrimónios de terceiros durante um período de quatro anos;
d) Declarar (…) inibida para o exercício do comércio durante um período de quatro anos, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
e) Determinar a perda de quaisquer créditos de (…) sobre a insolvente e sobre a massa insolvente;
f) Condenar (…) a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património, sendo a referida indemnização relegada para liquidação de sentença”.

3. A afetada pela qualificação, (…), recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“A) O presente recurso tem como objeto, em primeiro lugar, a reapreciação da matéria de facto provada e não provada, entendendo a Recorrente que deverão ser adicionados ao elenco de factos provados os factos 12-A, 22-A e 33-A; deverá o facto 27 do elenco de factos provados ser alterado nos termos peticionados; e deverão ser adicionados ao elenco de factos não provados os factos 1, 2 e 3.
B) Deverá ser dado como provado o seguinte o seguinte facto 12-A: “A sociedade (…), Unipessoal, Lda. nada deve à sociedade (…) – Publicidade, Lda., tendo pago as faturas que lhe foram emitidas pela alienação dos bens que adquiriu.”
C) Deverá ser dado como provado o seguinte facto 22-A: “Não foi apurado qual o valor de mercado dos bens alienados (incluindo a marca …), indicados nos pontos 13, 15, 17, 21 e 22 dos factos provados, à data das respetivas alienações, designadamente que os bens foram alienados por preços inferiores ao valor de mercado.”
D) Deverá ser alterado o facto 27 do elenco de factos provados, passando a ter a seguinte redação: “Para além das transferências descritas em 24) supra, não se logrou encontrar comprovativos de outras entradas em dinheiro nas contas bancárias da Insolvente que fossem efetuadas pela sociedade (…), Unipessoal, Lda., mas resultou provado que tal não significa que as faturas dos bens alienados não tenham sido pagas”.
E) Deverá ser dado como provado o seguinte facto 33-A: “A situação da sociedade (…) – Publicidade, Lda. encontrava-se, até Agosto de 2022, regularizada junto dos bancos, fornecedores, trabalhadores, Segurança Social e Finanças, não obstante, neste último caso, o crédito de IVA indicado em 29 do elenco de factos provados.”.
F) Deverá ser dado como não provado o seguinte facto 1: “Foi feito abate de equipamentos a custo zero”.
G) Deverá ser dado como não provado o seguinte facto 2: “A apresentação à insolvência na data em que ocorreu originou a constituição de novas dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social”.
H) Deverá ser dado como não provado o seguinte facto 3: “Com a venda indicada em 15. dos factos provados, a sociedade (…) – Publicidade, Lda. ficou sem instalações”.
I) Em segundo lugar, entende a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento, não havendo qualquer fundamento para a qualificação da insolvência da sociedade (…) – Publicidade, Lda. como culposa, seja ao abrigo de qualquer das presunções de culpa mobilizadas pelo Tribunal a quo, seja ao abrigo da norma geral do artigo 186º, nº 1 do CIRE.
J) Entende, igualmente, a Recorrente que não existe qualquer fundamento para ser declarada afetada pela qualificação da insolvência como culposa e para a condenação que foi decidida pelo Tribunal a quo.
K) A ilidibilidade ou não das presunções é matéria que se coloca somente ao nível da prova, mas não ao nível da indagação acerca do preenchimento da norma que tipifica a presunção, o que significa que, pese embora não possa ser feita contraprova relativamente à presunção inilidível, pode e deve ser sindicada a mobilização da presunção no caso concreto, desde logo, se a prova produzida permite o preenchimento da presunção.
L) Não foi determinado qual o valor real ou de mercado dos bens vendidos à sociedade (…), Unipessoal, Lda. (incluindo a marca …), à data da sua alienação.
M) Não foi determinado o valor de mercado dos bens abatidos, nem tão-pouco que foram abatidos a custo zero.
N) Não foi provado que os bens foram alienados à sociedade (…) por valores inferiores àqueles que efetivamente valiam.
O) Não foi provado qual o proveito que a sociedade (…) tirou da aquisição dos bens à sociedade (…).
P) Não foi possível determinar a existência de um desequilíbrio relevante, para efeitos do preenchimento do artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE, entre as prestações contratuais assumidas pela sociedade (…) e pela sociedade (…).
Q) O Tribunal a quo conclui que os pagamentos constantes do ponto 24 do elenco de factos provados são relativos a uma dívida da sociedade (…) à sociedade (…) e não à alienação dos bens, mas não foi apurado de que dívida se trata.
R) Não é possível concluir que esses pagamentos não são relativos à alienação dos bens.
S) Não é alegada em parte alguma dos autos que o saldo devedor constante do balancete analítico de Dezembro de 2021 refere-se a uma dívida da sociedade (…) à sociedade (…) diferente da que resultou da aquisição dos bens pela sociedade (…).
T) O saldo devedor constante do balancete analítico de Dezembro de 2021 poderia refletir já pagamentos feitos por conta das faturas relativas à alienação dos bens, uma vez que os pagamentos podem ser feitos ao longo do tempo.
U) A mera comparação entre o saldo devedor de um balancete analítico e o saldo credor de outro balancete analítico, como faz o Tribunal a quo, é manifestamente insuficiente para se concluir que as faturas relativas às alienações não foram pagas.
V) O Sr. Administrador da Insolvência não juntou os balancetes analíticos ao seu requerimento de qualificação da insolvência e ninguém alegou nos autos a conclusão que o Tribunal a quo extrai sobre os pagamentos feitos não respeitarem às alienações.
W) A Recorrente não pôde pronunciar-se nos autos (desde logo, na sua Oposição) sobre tal matéria, uma vez que não foi alegada por qualquer das partes.
X) Assim sendo, o julgamento da primeira instância introduziu na ação um elemento de novidade que torna necessária a consideração de prova documental adicional, ao abrigo do disposto no artigo 651.º, n.º 1, do CPC.
Y) Deverá ser admitida a junção aos autos dos dois documentos juntos nas alegações, que são os extratos de 2021 e 2022 da conta corrente da sociedade (…) junto da sociedade (…).
Z) Deverá ser ordenada a produção da prova documental trazida a este recurso, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
AA) Resulta da análise desses documentos que, à data de 30-06-2022, a sociedade (…) nada devia à sociedade (…), porquanto todos os movimentos a débito lançados na sua conta corrente tinham sido cobertos por movimentos a crédito, inclusive as faturas pela alienação dos bens.
BB) Resulta da análise desses documentos que foram feitos pagamentos, em 2021 e 2022, no total de € 42.536,00, valor que cobre rigorosamente as faturas n.º 1211, 1231, 1233, 1236 e 1238 relativas às alienações dos bens.
CC) Assim sendo, a factualidade em causa, e a prova feita nos autos, não permite o preenchimento do artigo 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE, não sendo esta norma passível de motivar a qualificação da insolvência.
DD) Não resulta do elenco de factos provados que, com as alienações de bens à sociedade (…), Unipessoal, Lda., a Insolvente ficou sem quaisquer meios para prosseguir a sua atividade e o seu interesse lucrativo.
EE) Não é suficiente, para preenchimento do artigo 186º, n.º 2, alínea f), que a disposição dos bens da sociedade (…) tenha sido feita a uma sociedade parcialmente com o mesmo objeto e com sede no mesmo local.
FF) Não foi provado que a disposição dos bens foi feita em proveito da sociedade (…), Unipessoal, Lda. e contra o interesse da sociedade (…).
GG) Não foi provado qualquer dos caracteres típicos do artigo 186.º, n.º 2, alínea f), do CIRE, pelo que esta norma não é aplicável ao caso sub judice.
HH) Não consta do elenco de factos provados qualquer facto relativo à “saúde” financeira da sociedade (…), designadamente que o negócio social era deficitário.
II) Assim, carece da necessária base factual a apreciação que o Tribunal a quo faz sobre a aplicabilidade do artigo 186.º, n.º 2, alínea g), do CIRE.
JJ) Do mesmo modo, o Tribunal a quo não justifica por que razão considera que a sociedade (…) prosseguia uma exploração deficitária.
KK) Não foi provado que a exploração da sociedade era feita no interesse da Recorrente ou de um terceiro, em prejuízo da sociedade (…).
LL) Não foi provado qualquer dos caracteres típicos do artigo 186.º, n.º 2, alínea g), do CIRE, pelo que esta norma não é aplicável ao caso sub judice.
MM) Não existe qualquer facto no elenco de factos provados da sentença recorrida que respeite à questão da tempestividade do cumprimento do dever de apresentação à insolvência.
NN) Não consta do elenco de factos provados que a sociedade (…) – Publicidade, Lda. estava em situação de insolvência em Novembro de 2021 ou em qualquer outra data anterior àquela em que a sociedade se apresentou à insolvência (22-09-2022).
OO) Assim, o Tribunal a quo não dispunha de qualquer base factual, no elenco de factos provados ou no elenco de factos não provados, que lhe permitisse fazer qualquer juízo acerca do cumprimento do dever de apresentação à insolvência.
PP) Não consta da sentença recorrida qualquer fundamentação tendente à qualificação da insolvência como culposa em função do incumprimento do dever de apresentação à insolvência.
QQ) Consta do ponto 4 do elenco de factos provados que a sociedade apresentou-se à insolvência no dia 22-09-2022, pelo que soçobra o argumentário do Ministério Público segundo o qual, tendo a insolvência sido requerida apenas no dia 14-11-2022, tal circunstância originou a constituição de novas dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social.
RR) O facto de se ter vencido IVA em Janeiro de 2022 e de, no final de 2021, terem sido alienados bens da Insolvente, não é factualidade relativa à situação de solvência ou insolvência da sociedade (…) – Publicidade, Lda., nem daí é possível concluir que a sociedade incumpriu o dever de apresentação à insolvência, ao contrário do que fez o Tribunal a quo.
SS) Do elenco de factos provados não consta qualquer facto que permita situar no tempo o conhecimento – ou a obrigação de conhecimento – da situação de insolvência da sociedade por parte da Recorrente.
TT) Pelo contrário, resultam do elenco de factos provados indícios claros de que a Recorrente esteve convicta, até momento próximo ao da apresentação à insolvência, de que conseguiria cumprir as suas obrigações vencidas e que, assim sendo, a situação da sociedade não era de insolvência.
UU) A sociedade deliberou a apresentação à insolvência no dia 01-09-2022, altura em que os salários estavam todos pagos, os acordos com a Segurança Social estavam a ser cumpridos e os impostos estavam a ser pagos, inclusive em Agosto de 2022, com exceção do IVA vencido em Janeiro de 2022.
VV) Não existe qualquer ligação entre o não pagamento do IVA vencido em Janeiro de 2022 e a alegada situação de insolvência.
WW) Mostra-se ilidida a presunção de culpa grave do artigo 186.º, n.º 3, alínea a), do CIRE.
XX) Não foi determinado o impacto que as alienações dos bens tiveram na “saúde” financeira da sociedade (…), designadamente que tais negócios criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não se mostra provado o necessário nexo de causalidade para aplicação do artigo 186.º, n.º 3, alínea a), do CIRE.
YY) Em face de todo o exposto, deve a insolvência da sociedade (…) – Publicidade, Lda. ser qualificada como furtuita e, em consequência, declarada não afetada a Recorrente.
Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deverá a presente apelação ser julgada totalmente procedente e, em consequência:
- Ser alterada a matéria de facto nos termos ora pugnados;
- Ser integralmente revogada a sentença final sob apelação e, por via disso, ser qualificada como furtuita a insolvência de (…) – Publicidade, Lda.;
- Caso não seja esse o superior e fundamentado julgamento de Vossas Excelências, sempre deverá a Recorrente ser julgada não afetada pela qualificação da insolvência, absolvendo-a das sanções aplicadas,
Com o que, assim judicando,
Certamente farão Vossas Excelências a almejada e devida JUSTIÇA!”
Respondeu o Ministério Público por forma a defender a confirmação da sentença recorrida.

II. Objeto do recurso
Tendo em conta que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, são questões a decidir: i) impugnação da decisão de facto, ii) se a insolvência é fortuita, em qualquer caso, iii) se a gerente da insolvente não deve ser afetada pela qualificação da insolvência como culposa.
Previamente à apreciação do objeto do recurso, importa decidir a questão da admissibilidade da junção de 2 documentos apresentados pela apelante com as alegações de recurso.
Segundo o artigo 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC, doravante), as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
E de acordo com o referido artigo 425.º, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
A junção da prova documental deve ocorrer, por regra, na 1ª instância, excecionando-se a esta regra duas situações em caso de recurso:
- os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão da causa;
- os documentos cuja junção se haja tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, com exclusão dos documentos destinados à prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova e dos documentos cuja junção tenha por pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.[1]
No caso, a Apelante afirma que a decisão recorrida introduziu um elemento de novidade ao concluir que os pagamentos feitos pela sociedade (…), Lda. à devedora não respeitaram à venda dos bens [cclºs V) a Y)] e pretende juntar aos autos “(…) dois documentos (…) que são extratos da conta corrente da sociedade (…) junto da sociedade (…) relativos aos anos de 2021 e 2022, dos quais resulta que a sociedade (…), não só nada deve à sociedade (…), como pagou as faturas relativas às alienações [cfr. motivação do recurso].
A questão do pagamento dos bens – ou falta dele - que a devedora vendeu à sociedade (…), Lda. não constitui novidade introduzida nos autos pela sentença, no parecer com vista à qualificação da insolvência como culposa, o Administrador da insolvência alegou que a devedora vendeu bens, nestes incluído os bens vendidos à sociedade (…), Unipessoal, Lda., sem que o valor de tais vendas houvesse entrado na conta bancária da devedora [fls. 2 vº do parecer, in fine] e a Apelante, na oposição que deduziu, tomou posição sobre esta matéria; alegou que os bens vendidos à sociedade (…), Unipessoal, Lda. foram pagos, juntou documentos destinados a comprovar o pagamento e assegurou: a afirmação do AI de que não se verifica a entrada deste valor na conta bancária da insolvente é incorreta pelo que vai expressamente impugnada.”
Por isto que os documentos agora apresentados destinados, como diz, a demonstrar que a sociedade (…), não só nada deve à sociedade (…), como pagou as faturas relativas às alienações, podiam e deviam ter sido juntos autos até ao encerramento da discussão da causa, considerando que esta teve lugar no dia 14/6/2023 e a formação dos documentos ocorreu nos anos de 2021 e 2022.
A Apelante não demonstra a verificação de alguma das situações excecionais em que a lei permite a junção de documentos em fase de recurso, inexistindo, a nosso ver, fundamento legal para admitir a junção aos autos dos documentos.
Cumpre, pois, rejeitar a junção dos documentos apresentados pela apelante com as alegações de recurso.

III. Fundamentação
1. Factos
1.1. A 1ª instância julgou provado:
1. A sociedade (…) – Publicidade, Lda., foi constituída em 16 de Agosto de 1991, com sede no Sítio do (…), Caixa Postal (…), 8135-011 Almancil, freguesia Almancil, concelho de Loulé, com o capital social de € 22.445,90, tendo como sócios-gerentes (…) e (…), cada um com uma quota com o valor nominal de € 11.222,95.
2. Em 01.08.2012 o sócio (…) cessou as suas funções de gerente na referida sociedade.
3. Em 25.01.2017 o sócio (…) transmitiu a sua quota à sócia (…), ambos já no estado de divorciados um do outro.
4. A sociedade (…) – Publicidade, Lda. apresentou-se à insolvência a 22.09.2022, tendo sido declarada insolvente a 26.09.2022, por sentença já transitada em julgado.
5. A sociedade sempre teve por objeto “Design publicitário para efeitos de sinalização interior e exterior e, inclusivamente, a própria construção de painéis e reclames luminosos”.
6. Em 04.12.2017, por (…), filho da sócia gerente (…) e do ex-sócio (…), foi constituída a sociedade (…), Unipessoal, Lda., com o NIPC (…), com sede no Sítio do (…), Caixa Postal (…), 8135-011 Almancil, freguesia de Almancil, concelho de Loulé, com o capital social de € 2.000,00, subscrito por aquele, tendo por objeto “Design publicitário para efeitos de sinalização interior e exterior e, inclusivamente, a própria construção de painéis e reclamos luminosos. Comércio, importação, exportação, representação e distribuição de mobiliário, artigos de decoração. Prestação de serviços de design gráfico, design de interiores e de decoração, publicidade, sinalética e marketing”.
7. Na mesma data, foi designada como gerente da sociedade (…), Unipessoal, Lda., (…).
8. (…) prestou atividade, como trabalhadora por conta de outrem, para a Insolvente, desde 01.03.1994 até 31.08.2022.
9. (…) prestou atividade, como trabalhador por conta de outrem, para a Insolvente, desde 01.02.2018 até 30.06.2022.
10. Após o referido em 3) supra, (…) prestou atividade, como trabalhador por conta de outrem, para a Insolvente, desde 01.02.2018 até 30.06.2022.
11. Do balancete analítico de Dezembro de 2021, da Insolvente, consta como saldo devedor na conta cliente da sociedade “(…), Unipessoal, Lda.” o valor de € 23.790,00.
12. Do balancete analítico de Agosto de 2022, da Insolvente, o saldo devedor na conta cliente da sociedade “(…), Unipessoal, Lda.” no valor de € 24.036,00 encontra-se liquidado.
13. Em 08.11.2021, foi emitida pela Insolvente à sociedade “(…), Unipessoal, Lda.”, a fatura n.º (…), com a seguinte descrição:
a. Venda de:
i. Gravadora /Cortadora Laser, pelo valor de € 1.350,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%.
ii. Máquina de Impressão Grabe Me, pelo valor de € 3.500,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%.
iii. Fresa WICDCNC1530, pelo valor de € 6.000,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%. (Todas em estado de uso)
14. Da relação de bens corpóreos da Insolvente consta que a:
a. Gravadora /Cortadora Laser foi adquirida por € 5.990,00 e, no ano de 2020, tinha um valor líquido de € 2.246,25;
b. Máquina de Impressão Grabe Me foi adquirida por € 10.000,00 e, no ano de 2020, tinha um valor líquido de € 5.833,33;
c. Fresa WICDCNC1530 foi adquirida por € 16.000,00 e, no ano de 2020, tinha um valor líquido de € 6.133,33.
15. Em 19.11.2021, foi emitida pela Insolvente à sociedade “(…), Unipessoal, Lda.”, a fatura n.º (…), com a descrição: Venda estrutura armazém / oficina (Listagem de imobilizado 184, 187 e 192), pelo valor de € 12.000,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%.
16. Da relação de bens corpóreos da Insolvente, consta que o imobilizado:
a. Vasadouro (184) foi adquirido por € 6.200,00 e, no ano de 2020, tinha um valor líquido de € 2.325,00;
b. Obras (187) foram adquiridas por € 5.080,00 e, no ano de 2020, tinham um valor líquido de € 4.064,00;
c. Obras de construção / Armazém (192) foram adquiridas por € 40.000,00 e, no ano de 2020, tinham um valor líquido de € 36.000,00.
17. Em 29.11.2021, foi emitida pela Insolvente à sociedade “(…), Unipessoal, Lda.”, a fatura n.º (…), com a descrição: Venda da Marca (…), pelo valor de € 40.000,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%.
18. Em 09.12.2021, foi emitida pela Insolvente à sociedade “(…), Unipessoal, Lda.”, a nota de crédito n.º (…), com a seguinte descrição: “Anulação de fatura … (erro ao digitar valor)”.
19. Na mesma data referida em 18), foi emitida pela Insolvente à sociedade “(…), Unipessoal, Lda.”, a fatura n.º (…), com a descrição: Venda de Marca (…), pelo valor de € 4.000,00.
20. Do balancete analítico de Dezembro de 2021, da Insolvente, consta o registo da marca “(…)” pelo valor de € 40.000,00.
21. Em 06.01.2022, foi emitida pela Insolvente à sociedade “(…), Unipessoal, Lda.”, a fatura n.º (…), com a descrição: Venda da viatura usada Mercedes Benz matrícula (…), pelo valor de € 200,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%.
22.Em 06.01.2022, foi emitida pela Insolvente a (…), a fatura n.º (…), com a descrição: Venda viatura usada Audi matrícula (…), pelo valor de € 100,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%.
23.Em 31.01.2022, foi abatido o seguinte imobilizado:
a. Equipamento básico, com custo de aquisição de € 31.990,00;
b. Equipamento administrativo, com custo de aquisição de € 12.437,81;
c. Equipamento administrativo, com custo de aquisição de € 3.362,26;
d. Outros ativos fixos tangíveis, com custo de aquisição de € 15.364,64;
24. A sociedade (…), Unipessoal, Lda., procedeu às seguintes transferências bancárias para as contas bancárias tituladas pela Insolvente, com o IBAN (…), junto do Banco (…) e com o IBAN (…), junto do Banco (…):
a. No valor de € 2.500,00, em 06.04.2021, com o descritivo “pag por conta corrente”;
b. No valor de € 2.500,00, em 15.06.2021, com o descritivo “pag por conta de trabalhos”;
c. No valor de € 3.000,00, em 13.08.2021, com o descritivo “pag por conta”;
d. No valor de € 2.000,00, em 07.10.2021, com o descritivo “pag por conta”;
e. No valor de € 500,00, em 02.11.2021, com o descritivo “pag por conta”;
f. No valor de € 1.000,00, em 09.11.2021, com o descritivo “pag por conta”;
g. No valor de € 500,00, em 22.11.2021, com o descritivo “pag por conta”;
h. No valor de € 500,00, em 20.12.2021, com o descritivo “pag por conta”;
i. No valor de € 2.000,00, em 03.12.2021, com o descritivo “pag por conta”;
j. No valor de € 1.300,00, em 20.04.2022, com o descritivo “emp”;
k. No valor de € 500,00, em 24.05.2022, com o descritivo “pag por conta”;
l. No valor de € 500,00, em 31.05.2022, com o descritivo “pag por conta”;
m. No valor de € 1.000,00, em 01.06.2022, com o descritivo “pag por conta”;
n. No valor de € 1.000,00, em 05.06.2022, com o descritivo “pag por conta”;
o. No valor de € 400,00, em 06.06.2022, com o descritivo “pag por conta”;
p. No valor de € 500,00, em 13.06.2022, com o descritivo “pag por conta”;
q. No valor de € 1.000,00, em 23.06.2022, com o descritivo “pag por conta”;
r. No valor de € 2.000,00, em 01.07.2022, com o descritivo “pag por conta”;
s. No valor de € 400,00, em 07.07.2022, com o descritivo “pag por conta”.
25. A sociedade (…), Unipessoal, Lda., procedeu às seguintes transferências bancárias para a conta bancária titulada por (…), com o IBAN (…), junto do Banco (…):
a. No valor de € 922,65, em 03.05.2022, com o descritivo salário;
b. No valor de € 922,65, em 01.08.2022, com o descritivo “SAL”;
c. No valor de € 1.000,00, em 31.08.2022, com o descritivo “SAL”;
d. No valor de € 672,65, em 06.09.2022, com o descritivo “TRANSF”; 26. A sociedade (…), Unipessoal, Lda., procedeu às seguintes transferências bancárias para a conta bancária titulada por (…), com o IBAN (…), junto do Banco (…):
a. No valor de € 1.000,00, em 28.07.2022, com o descritivo “transf”;
b. No valor de € 1.000,00, em 08.09.2022, com o descritivo “SAL”;
c. No valor de € 487,03, em 13.10.2022, com o descritivo SALÁRIO;
d. No valor de € 500,00, em 07.11.2022, com o descritivo “Pagamentos” “Ordenado”.
28. Não se logrou identificar o comprovativo de entrega de dinheiro por conta da alienação referida em 22).
29. Em 01.12.2021 venceram-se créditos fiscais, respeitantes a IVA de 2021, no montante de € 4.739,86.
30. Em 01.05.2022 venceram-se créditos fiscais, respeitantes a IRS/DMR 2022, no montante de € 313,83.
31. Em 08.06.2022, mostravam-se vencidos créditos no montante de € 89.593,54, da titularidade do Banco (…), S.A..
32. Em 01.08.2022, mostravam-se vencidos créditos do Instituto de Segurança Social, no montante de € 13.806,21, respeitante a contribuições.
33. No âmbito dos planos de pagamento n.º 876/2020 e 877/2020, celebrados entre a Insolvente e o Instituto da Segurança Social, a Insolvente pagou € 2.382,82 e € 2.178,41, respetivamente, entre Fevereiro de 2020 e Setembro de 2022.
Acrescentou:
Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa.

1.2. Impugnação da decisão de facto
A Apelante impugna a decisão de facto por forma a defender:
“B) Deverá ser dado como provado o seguinte o seguinte facto 12-A: “A sociedade (…), Unipessoal, Lda. nada deve à sociedade (…) – Publicidade, Lda., tendo pago as faturas que lhe foram emitidas pela alienação dos bens que adquiriu.”
C) Deverá ser dado como provado o seguinte facto 22-A: “Não foi apurado qual o valor de mercado dos bens alienados (incluindo a marca …), indicados nos pontos 13, 15, 17, 21 e 22 dos factos provados, à data das respetivas alienações, designadamente que os bens foram alienados por preços inferiores ao valor de mercado.”
D) Deverá ser alterado o facto 27 do elenco de factos provados, passando a ter a seguinte redação: “Para além das transferências descritas em 24) supra, não se logrou encontrar comprovativos de outras entradas em dinheiro nas contas bancárias da Insolvente que fossem efetuadas pela sociedade (…), Unipessoal, Lda., mas resultou provado que tal não significa que as faturas dos bens alienados não tenham sido pagas.”
E) Deverá ser dado como provado o seguinte facto 33-A: “A situação da sociedade (…) – Publicidade, Lda. encontrava-se, até Agosto de 2022, regularizada junto dos bancos, fornecedores, trabalhadores, Segurança Social e Finanças, não obstante, neste último caso, o crédito de IVA indicado em 29 do elenco de factos provados.”
F) Deverá ser dado como não provado o seguinte facto 1: “Foi feito abate de equipamentos a custo zero.”
G) Deverá ser dado como não provado o seguinte facto 2: “A apresentação à insolvência na data em que ocorreu originou a constituição de novas dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social.”
H) Deverá ser dado como não provado o seguinte facto 3: “Com a venda indicada em 15 dos factos provados, a sociedade (…) – Publicidade, Lda. ficou sem instalações.”
Iniciando pelo pagamento dos bens que a Insolvente vendeu à sociedade (…), Unipessoal, Lda. [pontos 13, 15 19 e 21 dos factos provados], considera a Apelante que se prova que “a sociedade (…), Unipessoal, Lda. nada deve à sociedade (…) – Publicidade, Lda., tendo pago as faturas que lhe foram emitidas pela alienação dos bens que adquiriu” e que ao facto provado no ponto 27 – “Para além das transferências descritas em 24) supra, não se logrou encontrar comprovativos de outras entradas em dinheiro nas contas bancárias da Insolvente que fossem efetuadas pela sociedade (…), Unipessoal, Lda.”deverá ser aditado: “mas resultou provado que tal não significa que as faturas dos bens alienados não tenham sido pagas.
Funda a impugnação nos documentos juntos aos autos com as alegações de recurso e no depoimento de (…), economista e administrador da insolvência.
1.2.1. Em primeira linha, afirma-se o óbvio; não se tomará em consideração o teor dos documentos apresentados com as alegações porquanto a sua junção aos autos não foi admitida.
Prosseguindo, não resulta do depoimento do Sr. Administrador da insolvência que a sociedade (…), Unipessoal, Lda., tenha pago à devedora o preço dos bens que a devedora lhe vendeu [pontos 13, 15 19 e 21 dos factos provados]; ao invés, resulta de tal depoimento a ausência de vestígios na contabilidade da devedora de tais pagamentos – “não consegui encontrar esse depósito nas contas” [minutos 9:40 a 10.06 do depoimento].
O conjunto dos elementos escriturados na contabilidade de uma empresa deve demonstrar fielmente e permitir avaliar a situação patrimonial e financeira dessa empresa[2], o Sr. Administrador da insolvência pesquisou e não encontrou na contabilidade da devedora comprovativos do pagamento do preço dos bens vendidos pela devedora à sociedade (…), Unipessoal, Lda..
A prova que fundamenta a impugnação não impõe decisão diversa sobre a matéria impugnada, opõe-se a ela.
A impugnação improcede quanto a esta matéria.
1.2.2. Defende a Apelante que ao ponto 27 dos factos provados – “Para além das transferências descritas em 24) supra, não se logrou encontrar comprovativos de outras entradas em dinheiro nas contas bancárias da Insolvente que fossem efetuadas pela sociedade (…), Unipessoal, Lda.”deverá ser aditado: “mas resultou provado que tal não significa que as faturas dos bens alienados não tenham sido pagas.”
Aditamento que não incide sobre um facto material simples, apreensível pela perceção humana, antes envolve um juízo – interpretação ou significado, como se classifica – sobre o facto cujo sentido visa restringir; o significado de um determinado facto, o desenvolvimento do seu sentido e alcance para produzir efeitos de direito é tarefa do juiz que elabora a sentença [artigo 607.º, n.º 4, do CPC]; não incumbe às testemunhas dar significado aos factos provados, as testemunhas depõem com precisão sobre a matéria dos temas da prova [artigo 516.º, n.º 1, do CPC], vocação que excluí do objeto do depoimento, a opinião, significação ou interpretação sobre os factos controvertidos no litígio.
Assim, ainda que a testemunha cujo depoimento fundamenta a impugnação houvesse emitido um juízo sobre o significado do facto julgado provado sob o ponto 27, tal opinião seria irrelevante para efeitos de prova.
Não obstante inócua, acresce dizer que não foi o caso.
Não se retira do depoimento do Sr. Administrador da insolvência que o preço dos bens alienados pela devedora à sociedade (…), Unipessoal, Lda., pode ter sido pago, apesar de não documentado o pagamento nas contas da devedora.
A prova produzida não impõe decisão diversa da proferida em 1ª instância quanto a esta matéria.
A impugnação da decisão de facto, nesta parte, improcede.
No mais, o conhecimento da impugnação da decisão de facto mostrar-se-á prejudicada pela solução de direito; infra tornaremos a este ponto.

2. Direito
2.1. Se a insolvência é fortuita
A decisão recorrida julgou preenchidas as previsões das alíneas d), f) e g) do n.º 2 e alíneas do n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE, doravante) e qualificou a insolvência como culposa.
Considerou que i) a gerente da devedora dispôs dos bens desta em proveito da sociedade (…), Unipessoal, Lda., detida pelo seu filho e em proveito do seu ex-marido, ii) por efeito da alienação de bens (designadamente da marca da devedora) à sociedade (…), Unipessoal, Lda. a devedora ficou sem meios para prosseguir a sua atividade e o seu interesse lucrativo, iii) a devedora não cumpriu o prazo para se apresentar à insolvência.
Discorda a Apelante e defende que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.
Apreciando.
De acordo com o n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
Segundo esta previsão, a qualificação da insolvência como culposa exige que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por atuação do devedor ou dos seus administradores, que a atuação seja dolosa ou gravemente culposa e que a atuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
A tarefa de emitir um juízo sobre se uma determinada atuação é, ou não, culposa para efeitos de qualificação nem sempre compete ao juiz. A lei tipifica, no n.º 2 do artigo 186.º, atuações dos administradores, de direito ou de facto do devedor, que determinam – sempre – a qualificação da insolvência como culposa; casos em que não cumpre ao juiz emitir um juízo sobre a culpa do devedor, cumpre-lhe (apenas) verificar se a atuação do administrador do devedor preenche algumas das condutas tipificadas na lei e, caso encontre resposta positiva, qualificar como culposa a insolvência.
(…) verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art. 186º, nº 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário[3].
A disposição de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros constitui uma das situações em que a lei presume, iuris et de iure, culposa a insolvência.
Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros (artigo 182.º, n.º 2, alínea d), do CIRE).
A disposição de bens relevante para efeitos da norma ocorre, por regra, com a transferência da titularidade de bens, para o administrador ou para terceiro, mediante negócio jurídico, mas não se restringe a atos de alienação, também é equacionável nos casos em que é consentido a um terceiro que “use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio.”[4]
O proveito tem implícita a ideia de favorecimento ou benefício ilegítimo, ou, como se escreveu no acórdão da Relação de Coimbra de 15/02/2022, “corresponderá, por regra, a um benefício que não seja devido e que não corresponda à satisfação de um direito, ou seja, um benefício adquirido pelo administrador ou por terceiro sem qualquer contrapartida ou benefício para a sociedade insolvente, ou, pelo menos, sem uma contrapartida que seja justa e adequada.”[5]
A venda de bens a terceiro, pelo administrador da devedora, sem qualquer contrapartida ou por preço inferior ao seu valor, com manifesto desequilíbrio nas correlativas prestações, ocorridas nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, preenchem a tipicidade da norma, isto é, comportam uma disposição de bens do devedor em proveito terceiros, relevante para efeitos de qualificação da insolvência como culposa.
Em tais situações ocorre, cumulativamente, a disposição dos bens – transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito – e o proveito de terceiros – seja por desoneração do pagamento, parcial ou total, do preço, seja por beneficiar o adquirente de um preço desajustado, por inferior ao valor do bem.
A decisão recorrida considerou que, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, a devedora vendeu bens, a (…), ex-marido da sócia-gerente e à sociedade (…), Unipessoal, Lda., sem qualquer contrapartida, assim caraterizando a disposição de bens e o proveito de terceiro com a consequente qualificação da insolvência como culposa.
Abre-se aqui um parêntesis para precisar que a decisão recorrida não tomou em consideração, deixou cair, por assim dizer, um dos fundamentos das alegações do Sr. Administrador da insolvência, segundo o qual os bens foram alienados por valores insignificantes; os bens não foram avaliados, o valor de mercado dos bens não foi discriminado, como provado, na sentença e assim, apesar de constarem escriturados na contabilidade da devedora por valores superiores ao preço da venda – os bens referidos nos pontos 6, 13, 15, 17 a 19 da decisão de facto foram vendidos pelo preço de € 26.850,00 e de acordo com os elementos da contabilidade da devedora tinham o valor de € 96.601.91 [pontos 14, 16 e 20, como serão os demais indicados] – a decisão recorrida não caraterizou o proveito de terceiros por referência ao valor insignificante da venda.
Explicação que prejudica a impugnação da decisão de facto na parte em que a Apelante pretende se julgue provado que “não foi apurado qual o valor de mercado dos bens alienados (incluindo a marca …), indicados nos pontos 13, 15, 17, 21 e 22 dos factos provados, à data das respetivas alienações, designadamente que os bens foram alienados por preços inferiores ao valor de mercado”; não constando dos factos provados o valor de mercado dos bens a decisão recorrida não podia validamente fundamentar-se – como não se fundamentou – em tal valor.
Fechado o parêntesis, tornemos ao fundamento da decisão recorrida, ou seja, ao proveito que a sociedade (…), Unipessoal, Lda. e (…), obtiveram com a compra dos bens à Devedora, por não haverem pago o respetivo preço.
Demonstra-se que a devedora no mesmo ano em que se apresentou à insolvência vendeu a Silvério Leal Palma um veículo usado marca Audi matrícula (…), pelo valor de € 100,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23% [pontos 4 e 22] e não o pagou – “não se logrou identificar o comprovativo de entrega do dinheiro por conta da alienação [ponto 28].
O recurso não se detém sobre esta venda, nem sobre o proveito que dela terá decorrido para o aquirente do bem; não impugna este fundamento da decisão recorrida.
Fundamento – a julgar pelo preço da venda – de diminuta expressão económica, é certo, mas a constituir uma disposição de bens da devedora em proveito de terceiros, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e, assim, a preencher a alínea d) do n.º 2 do artigo 182.º do CIRE.
Prosseguindo, em 8/11/2021, 19/11/2021 e 29/11/2021, a Devedora vendeu à sociedade (…), Unipessoal, Lda., cujo capital social é titulado pelo filho da sócia-gerente da devedora, bens (entre os quais a própria marca da devedora) e equipamentos no valor de € 27.050,00, a que acresce IVA sobre a quantia de € 23.050,00 [pontos 6, 13, 15, 17 a 19 e 21].
Na oposição, a Apelante alegou que a adquirente pagou os bens e juntou comprovativos das transferências; com fundamento em tais documentos, julgou-se provado que, entre 6/4/2021 e 7/7/2022, a sociedade (…), Lda. procedeu a transferências de numerário para contas bancárias tituladas pela Devedora [ponto 24].
Provou-se ainda que, para além das transferências bancárias descritas em 24) supra, não se logrou encontrar comprovativos de outras entradas de dinheiro nas contas bancárias da Insolvente que fossem efetuadas pela sociedade (…), Unipessoal, Lda. [ponto 27].
A decisão recorrida considerou que as transferências se destinaram ao pagamento (amortização) de uma dívida que a referida sociedade tinha para com a devedora, anterior à venda dos bens, no montante de € 23.790,00, refletida no balancete analítico de dezembro de 2021 [ponto 11], concluindo que os bens não foram pagos e daqui o benefício.
A Apelante questiona a validade das premissas desta conclusão, isto é, afirma que os autos não permitem afastar a possibilidade do saldo devedor da sociedade (…), Unipessoal, Lda., constante no balancete analítico de dezembro de 2021, incorporar o valor das vendas, caso em que, as amortizações se destinariam ao pagamento das faturas.
A leitura dos factos provados não exclui, de facto, esta possibilidade; as vendas ocorreram antes – entre 8/11/2021 e 29/11/2021[pontos 13, 15 e 17] – e, assim, o balance analítico de dezembro de 2021 pode refletir estas vendas, nenhum outro facto o invalida.
A consideração da decisão recorrida, segundo a qual as transferências bancárias se destinaram a amortizar uma dívida que a (…), Lda. tinha para com a devedora, anterior à venda dos bens, não conta com o apoio dos factos provados e, assim, não se mostra afastada a possibilidade das transferências efetuados após estas datas se destinarem - ao menos parcialmente, porque dívida anterior existia como demonstram as transferências com datas anteriores às vendas – a amortizar o preço da venda dos bens.
A Apelante tem razão no argumento, mas não no efeito que pretende.
O preço a pagar pela aquisição dos bens, de acordo com os valores faturados, ascendia a € 32.351,50 [27.050,00 + 23.050,00 x 23%] e o valor das transferências posteriores à data das vendas com a menção “pag. por conta”, ascende a € 11.300,00 [ponto 24].
Admitindo que as transferências, posteriores à data das alienações, se destinaram ao pagamento do preço dos bens que a Devedora alienou à sociedade (…), Unipessoal, Lda., decorre delas um pagamento parcial do preço dos bens vendidos, o que significa que, no remanescente € 21.051,50 [32.351,50 - 11.300,00], a devedora dispôs de bens em proveito de terceiros, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, sem qualquer contrapartida.
Também por vias destes factos se preenche a previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 182.º do CIRE.
A insolvência é culposa, como se decidiu.
Solução que prejudica o conhecimento – na dimensão de facto ou de direito - das demais questões suscitadas a propósito da não verificação de outros requisitos que, na economia da decisão recorrida, concorreram para a qualificação da insolvência como culposa, uma vez que, seja qual for o resultado de tal conhecimento, a decisão não se altera.

2.2. Se a gerente da devedora não deve ser afetada pela qualificação da insolvência como culposa
A decisão recorrida julgou a Apelante afetada pela qualificação da insolvência como culposa e declarou os efeitos da afetação [ponto 2 do relatório supra].
A Apelante discorda e considera que não deve ser afetada pela qualificação da insolvência; argumenta que “não atuou com dolo na disposição de bens da sociedade (…) não se beneficiou a si nem a qualquer terceiro; pelo contrário, prejudicou, e bastante, a sua vida pessoal e patrimonial para manter a sociedade aberta e solvente até ao limite das suas forças.”
Questiona-se a declaração de afetação propriamente dita e não a extensão dos seus efeitos, mais apropriadamente, a extensão das inibições de administração e do exercício de atividades.
Segundo a alínea a) do o n.º 2 do artigo 189.º do CIRE na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa.
A afetação das pessoas em vista da norma pela qualificação da insolvência decorre diretamente da lei, isto é, não cumpre ao juiz verificar se tais pessoas deverão ser afetadas pela qualificação, incumbe-lhe identificar quem, de entre elas, deve ser afetado, no caso de existirem vários potenciais responsáveis que, por ação ou omissão, dolosa ou com culpa grave, tenham criado ou agravado a situação de insolvência do devedor.
No caso, a Apelante é a única gerente da devedora [pontos 1 a 3] e a insolvência foi qualificada como culposa por efeito da presunção iuris et de iure, de culpa grave da gerente no agravamento da situação de insolvência, ou seja, a apontada ausência de dolo na disposição de bens da sociedade, fundamento da não afetação, não se demostra, nem é demonstrável por efeito da natureza inilidível da referida presunção.
Nestas circunstâncias, não se vê como poderia a Apelante deixar de ser afetada pela qualificação.
Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

3. Custas
Vencida no recurso, incumbe à Apelante o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto:
a) não admitir a junção aos autos dos documentos apresentados com as alegações do recurso;
b) julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
Évora, 23/11/2023
Francisco Matos
Anabela Luna de Carvalho
Vítor Sequinho dos Santos


[1] Acs. STJ de 27/6/2000, CJ, tomo II, pág. 131, de 18/2/2003, CJSTJ, tomo I, pág. 103 e de 3/3/1989, BMJ 385º, pág. 545.
[2] Ac. STJ de 19/10/2021 (proc. 421/19.5T8GMR-A.G1.S), disponível em www.dgsi.pt
[3] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 4ª ed., pág. 274.
[4] Ac. STJ de 15/02/2018 (proc. n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt
[5] Ac. RC de 15/2/2022 (proc. n.º 135/20.3T8SEI-C.C1), disponível em www.dgsi.pt