Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
322/22.0T8PTG.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
LEGITIMIDADE ACTIVA
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – Tendo transitado o despacho que deferiu a intervenção principal provocada, essa decisão constitui caso julgado formal, não sendo possível em momento posterior tomar decisão contrária.
2 – Dependendo a legitimidade processual do autor, dada a existência de litisconsórcio necessário, da aludida intervenção processual, uma vez decidida e concretizada essa intervenção fica suprida a ilegitimidade inicial e assegurada essa legitimidade.
3 – A tal conclusão não obsta a circunstância dos intervenientes virem aos autos expressar posição oposta à dos autores quanto à relação material controvertida.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A) Os presentes autos de processo comum, visando a resolução de contrato de arrendamento rural, foram instaurados pela autora, AA, contra a ré Sociedade Agrícola das Algueireiras e Anexos, SA.
B) Logo na petição inicial a autora requereu a intervenção principal provocada de seu irmão e cunhada, BB e CC, a fim de assegurar a sua própria legitimidade activa, visto existir litisconsórcio necessário dado que se trata da resolução de um contrato de arrendamento em que são senhorios tanto a autora como o referido irmão.
C) Peticiona a autora que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento rural “sub judice” com fundamento, simultâneo, na falta de pagamento atempado das rendas, vencidas e não pagas, do 2º semestre do ano agrícola de 2021 e do 1.º semestre do ano de 2022 e também com o fundamento no abate ilegal, com corte raso, de 18 azinheiras, localizadas na área arrendada pertencente à A., sem autorização nem consentimento desta.
Peticiona ainda a condenação da ré a pagar à A. a quantia de 10.000,00 euros, correspondente ao valor das citadas duas rendas, não pagas à A., bem como no pagamento do prejuízo que lhe causou pelo abate das 18 azinheiras cujo valor ascende à quantia de 9.000,00 euros, valores estes que devem, ambos, ser acrescidos de juros de mora desde a citação até integral e efectivo pagamento.
D) Para fundamentar estes pedidos alegou a autora, em síntese, que em conjunto com o seu irmão BB deram de arrendamento rural à R. Sociedade o prédio rústico de que, à data, eram comproprietários, em partes iguais, denominado “...”, sito na freguesia de Mosteiros, concelho de Arronches, com a área aproximada de 400 hectares.
O contrato de arrendamento rural foi celebrado entre ambas as partes, senhorios e arrendatária rural, em Março de 2006, para fins de exploração agrícola da R. Sociedade, e incluía a parte rústica com, aproximadamente, 400 hectares de área e as várias instalações urbanas de apoio à exploração agrícola.
A renda que está em vigor e é devida pela R. Sociedade é de 20.000,00 euros por cada ano, por força de acordo entre as partes.
Entretanto, por sentença judicial foi adjudicada em propriedade exclusiva à autora a parte poente do prédio rústico arrendado, denominado Herdade ..., com a área de 215,9950 hectares, e em consequência da divisão judicial (fraccionamento) do prédio rústico em causa, de que a R. Sociedade é arrendatária rural, a autora é agora única proprietária da sua parte poente, sendo o irmão dono da parte restante.
Considera a A. que, por força dessa divisão do objecto do contrato, a R. sociedade deve pagar metade da renda devida a cada um dos proprietários que ocupam em conjunto a posição de senhorios.
Porém, a R. Sociedade não procedeu ao pagamento à A. da parte do valor da renda devida referente ao segundo semestre do ano agrícola de 2021, que devia ter pago entre 15 e 31 de Agosto de 2021, no montante de 5.000,00 euros, nem procedeu ao pagamento do valor da renda do primeiro semestre do ano agrícola de 2022, de mais 5.000,00 euros, que devia ter pago entre 15 e 31 de Janeiro de 2022, embora já posteriormente tenha feito duas transferências para a conta bancária da A, tendo ela recusado os referidos pagamentos, nos termos do disposto no artigo 13.º, n.º 4 do LAR.
Por fim, afirma a A. que, no passado dia 27 de Outubro de 2021, a Ré sociedade, na área de terreno que pertence à Autora e à sua revelia, procedeu ilicitamente ao corte de 18 azinheiras.
E) Contestou a Ré, defendendo-se, desde logo, por excepção, invocando a existência de litispendência, com o processo n.º 1238/20.0T8PTG, e defendendo nomeadamente que o depósito das rendas serve como seu pagamento, pelo que a Autora não tem qualquer direito a resolver o contrato com base na falta de pagamento de rendas, nem para peticionar a condenação da Ré no pagamento das rendas acrescido da indemnização de 50% sobre o valor em dívida.
Acrescentou ainda que o pagamento da renda a cada um dos senhorios apenas ocorre por conveniência daqueles e por obséquio da Ré, já que inexiste qualquer obrigação legal, e no que concerne às azinheira refere que o corte das mesmas ocorreu em virtude de ter sido detectado um agente biótico que as infectava e determinou o seu abate, por necessidade preventiva de evitar a propagação do mesmo, sendo certo que muitas das azinheiras já se encontravam mortas, com ramos caídos, inexistindo qualquer prejuízo para a Autora e não podendo consubstanciar fundamento para a resolução do contrato.
Por fim, pronunciou-se pelo indeferimento do pedido de intervenção a título principal, do irmão da Autora, BB e sua esposa, CC.
F) A Autora pronunciou-se de novo, pugnando pela improcedência das excepções invocadas e pelo deferimento da requerida intervenção provocada do seu irmão e cunhada.
G) Seguidamente, por despacho proferido em 19 de Junho de 2022, sob a Referência: 31832323, foi admitida a intervenção principal provocada dos chamados BB e CC, com base na existência de uma situação de litisconsórcio necessário e na necessidade de assegurar a legitimidade da autora, e foi ordenada a citação dos mesmos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 319.º do Código de Processo Civil.
H) Na sequência da sua citação, os chamados vieram aos autos dizendo que não reconhecem à Autora qualquer razão e/ou fundamento para instaurar a presente acção e que pretendem manter a vigência do contrato de arrendamento rural com a Ré, acrescentando ainda que não pretendem intervir neste processo enquanto Autores, ou coligados com a Autora, e, como tal, pugnam pela ilegitimidade da Autora, por preterição do litisconsórcio necessário, com a consequente absolvição da Ré da instância.
I) Prosseguindo os autos a sua tramitação, e mantendo as partes as posições já descritas, veio a realizar-se audiência prévia na qual todos, partes iniciais e chamados, pronunciaram-se, uma vez mais, sobre as questões de direito em causa.
J) Finalmente, e tendo-se frustrado a perspectiva de acordo ainda aludida na referida audiência prévia, veio a ser proferido saneador-sentença, sendo a decisão neste proferida o objecto do presente recurso de apelação.
K) No mencionado despacho a Mma. Juíza começa por declarar que “embora a questão a decidir seja de facto e de direito, os elementos constantes dos autos, mormente a posição assumida pelas partes nos respectivos articulados, permitem já uma decisão quanto ao mérito da causa, pelo que, nos termos do disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, passa a conhecer–se directamente de tal mérito”.
Porém, no desenvolvimento do mesmo despacho foi proclamado como thema decidendum único a questão da legitimidade da Autora (pressuposto processual que, não se verificando, obstaria obviamente à decisão de mérito).
E na análise dessa questão acabou por ficar decidido que era inadmissível o incidente de intervenção principal provocada, atenta a posição tomada pelos chamados, e por outro lado que, assim sendo, e existindo realmente litisconsórcio necessário, a autora não podia litigar desacompanhada, pelo que existia ilegitimidade activa por preterição do litisconsórcio necessário.
Concluindo então o saneador-sentença com o dispositivo daí decorrente;
Julga-se procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa e, em consequência, absolve-se a Ré da instância, nos termos conjugados do disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea c), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea c), todos do Código de Processo Civil.
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II – A APELAÇÃO
Não se conformando com tal decisão, a autora intentou o presente recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões, que transcrevemos:
I — No âmbito destes autos, com a Ref. 31832323 foi proferido despacho de admissibilidade da requerida intervenção principal provocada dos chamados BB e CC, ao abrigo do disposto nos Artigos 33º, n.º 2 e 3 e 316º, n.º 1, ambos do N.C.Proc.
II - Este despacho transitou em julgado, por dele não ter sido interposto recurso por qualquer das partes nem sequer pelos chamados, pelo que este mesmo despacho, nos termos dos Artigos 91º, n.º 2 e 620º, n.º l do N.C.Proc.Civil, tem força obrigatória dentro do processo;
III - A decisão proferida pela Meritíssima Juiz recorrida no Saneador Sentença na parte que julgou inadmissível a intervenção principal provocada, do cosenhorio BB e respectivo cônjuge CC, é nula e de nenhum efeito por violar caso julgado formal, nos termos dos Art.s 91º, n.º 2 e 620º, n.º l ambos do N.C.Proc.Civil;
IV - A mesma decisão, proferida pelo Meritíssimo Juiz recorrido, é nula e de nenhum efeito, por os seus fundamentos de facto e de direito estarem em oposição com a própria decisão recorrida, já que pressupõe que a intervenção provocada do chamado é necessária para conferir legitimidade activa à pretensão da A. e, contraditoriamente, conclui que o seu chamamento é inadmissível por terem interesses incompatíveis, conferindo à mesma decisão ambiguidade e contradição nos seus fundamentos o que a torna ininteligível (Art. 615º, n.º 1, alínea c) do C.Proc.Civil) e, como tal, NULA;
V - A parte que está obrigada (litisconsórcio necessário) a fazer intervir ao seu lado um co-parte, como seu associado, não deixa de ter cumprido o dever legal (Art. 32 e 33 do C.Proc.Civil) de provocar a intervenção do terceiro por o interveniente ter tomado posição que não secundou a pretensão ou pedido(s) formulado(s) por aquele (a) que provocou a sua Intervenção;
VI - Por o interveniente BB ser cosenhorio no arrendamento "sub judice", tem a A. o dever legal de observar e assegurar o cumprimento das regras da legitimidade activa (litisconsórcio necessário ou voluntário) previstas e reguladas sob os artigos 32º e seguintes e 316º, n.º 1, ambos, do C.P.C, e Art. 19 n. 2 do NRAR.
VII - A A., ao requerer a intervenção principal provocada, considerou que o(s) interveniente(s), seu irmão BB, pudesse ter interesse exatamente igual ao da A., por a R., em relação a ele, ter eventualmente também incumprido alguma ou algumas das suas obrigações contratuais constantes do contrato de arrendamento rural;
VIII - A presença do interveniente BB no presente pleito justifica-se em absoluto por a sua tomada de posição no que respeita aos dois fundamentos do pedido da A. de resolução contratual, ser eventualmente relevante, fosse para subscrever o pedido de resolução do contrato de arrendamento rural, quanto à totalidade da área objecto de arrendamento, fosse para que, em presença da sua tomada de posição, a resolução do contrato, a pedido da A., opere apenas quanto à área que a esta pertence;
IX - A exigência da iniciativa e presença consensual de todos os senhorios, quando esta parte é plural, apenas estará em causa quando o(s) o senhorio(s) se pretende opor à renovação do contrato ou à sua denúncia, por força do disposto no Art. 19, n.º 2 do NRAR. (Veja-se Acórdão do T.R. Évora e S.T. Justiça juntos e referenciados nestes autos, proferidos no Proc. N.º 275/19.1T8PTG do Juízo Local Cível de Portalegre Juiz 1);
X - Por força do disposto no Art. 33, n.ºs 1, 2 e 3 do C.Proc.CiviI, para que a nova relação jurídica do arrendamento rural possa ficar regulada e a solução do litígio tenha o seu efeito útil normal, em relação a todos os interessados nele envolvidos, a A, tem o dever legal, nos termos do Art. 19, n.º 2 da NRAR, de requerer a intervenção principal provocada do seu cosenhorio e respectivo cônjuge, entre outros aspectos, para assegurar a legitimidade da sua iniciativa judicial e definir, para o futuro, os novos contornos da relação de arrendamento rural "sub judice";
XI - O litisconsórcio necessário da iniciativa processual dos senhorios, para a oposição à renovação ou para a denúncia do contrato, não poderá ser considerado nem interpretado em termos de inibir ou privar, um qualquer senhorio, de defender o seu direito de propriedade em presença de agressão ao mesmo (corte de 18 azinheiras) nem quando esteja em causa o legítimo direito de usufruir do seu proveito económico (rendas não pagas), tal como previsto e assegurado pelo Art. 1305 do C. Civil e 62 N. 1 da C.R. Portuguesa;
XII - A legitimidade activa da A. mantém-se absolutamente válida no âmbito do presente pleito apesar do interveniente BB não subscrever a sua posição e pedido de resolução contratual do arrendamento rural, não só por os incumprimentos da R, respeitarem exclusivamente à relação jurídica titulada pela A. , mas também pela defesa do direito de propriedade (azinheiras) sobre o prédio rústico que lhe pertence e da fruição do rendimento que o mesmo lhe proporciona (rendas), tal como prevê o Art. 1305 do C. Civil;
XIII - A decisão recorrida, na parte em que julgou a A. parte ilegítima sem a presença do interveniente BB, seu cossenhorio, é em si mesma contraditória, pois, por um lado, considera inadmissível a sua intervenção por incompatibilidade das posições tomadas e por outro, exige a sua presença ao lado da A. para prosseguir o litígio com fundamento na resolução do contrato de arrendamento rural, sendo por isso uma decisão nula (Art. 615, n.º 1, alínea c) do C.Proc. Civil) ;
XIV - A decisão da Meritíssima Juiz recorrida, é também NULA e de nenhum efeito ao julgar a A. parte ilegítima para, desacompanhada de seu irmão e cosenhorio BB, exercitar o direito à resolução do contrato e a defesa do seu direito de propriedade (Património arbóreo e rendimento) por violar de forma flagrante, para além das regras processuais invocadas, o conteúdo essencial do direito de propriedade, previsto e regulado no Art. 1305 e seguintes do C.Civil e 62, n o l do C.R.P.
(Veja-se doutrina plasmada no Acórdão do S.T.J proferido no Proc. N.º 275719.1T8PTG do Juízo Local Cível de Portalegre- Juiz 1);
XV - A actuação da R, arrendatária, ao realizar um corte raso/abate de 18 azinheiras centenárias, violou de forma flagrante a cláusula 8ª do contrato de arrendamento rural (Doc. N.º 1 junto à p.i.) e também os Artigos 3º e 9º, n.º l e 2 do Dec-Lei n.º 169/01 de 25.05 com a redacção introduzida pelo Dec-Lei n.º 155/04 de 30.06, punida pelo Art. 21, n.º l alíneas a) e f) do mesmo diploma com coima de 49,88 Euros a 74.819,64 Euros (Arranque de azinheiras sem autorização do ICNF e falta de cintagem), tal como se faz constar do Auto de Notícia junto como Doc. N.º 16 e 17 à p.i.;
XVI - Tal como o litígio é configurado pela A., a R. arrendatária incorreu em comportamento culposo (2) que simultaneamente causou dano grave no imóvel pertencente à A. (Corte raso de 18 azinheiras) e priva a A. de usufruir do rendimento do seu imóvel (falta de pagamento de duas rendas do valor de 10.000,00 Euros) integrando, ambos comportamentos, fundamento de resolução do contrato por iniciativa do senhorio(Art. 17, n.º l e 2 alíneas a), b) e d) do NRAR);
XVII - Toda a matéria de facto subjacente ao(s) incumprimento(s) culposo(s) da R. arrendatária, quer em relação à falta de pagamento das rendas quer em relação ao abate de 18 azinheiras, deve ser considerada como provada por falta de impugnação da R. (Art. 574, n o s 1 e 2 do C.Proc.CiviI);
XVIII - A R. incorreu, desta forma, em comportamento(s) culposo(s) que integra(m) duplo incumprimento contratual grave, previsto no Art. 17, n.º l e 2 alíneas a), b) e d) do NRAR e confere à A. a faculdade de resolução unilateral do contrato de arrendamento rural, devendo este Tribunal Superior, substituir-se ao Tribunal recorrido, julgando procedente o pedido de resolução do contrato de arrendamento rural, apenas quanto à parte que tem por objecto a área rústica pertencente à A. , com a sua entrega a esta no fim do ano agrícola em curso à data do respectivo transito em julgado (Art. 15, n.º 2 do NRAR).
XIX — A R. mediante o corte raso/abate das 18 azinheiras causou à A. prejuízos económicos cujo valor deverá ser determinado mediante produção de prova em audiência de julgamento.
Nestes termos e nos demais de direito que este Tribunal Superior doutamente suprirá, decidindo-se em conformidade com as conclusões atrás elencadas, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a decisão recorrida, com decretamento imediato da resolução do contrato de arrendamento rural "sub judice", quanto à área arrendada pertencente à A., e ordenando-se o prosseguimento dos termos da presente acção para prova dos danos e prejuízos causados, pela R. à A. , por causa do abate ilícito das 18 azinheiras realizando-se oportunamente a produção de prova, se necessário, com realização de audiência de julgamento, assim se fazendo justiça.
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III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
Em face do recurso interposto, a sociedade ré apresentou contra-alegações, defendendo a improcedência da apelação e a consequente manutenção da decisão recorrida.
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IV – DAS RAZÕES A CONSIDERAR
Os factos e as incidências processuais relevantes para conhecimento do recurso são os que ficaram explanados no relatório inicial, para o qual aqui se remete.
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V – DO OBJECTO DO RECURSO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, traduzem-se em apreciar da alegada nulidade da decisão recorrida e, não sendo esta reconhecida, apreciar do mérito da mesma.
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VI – APRECIANDO E DECIDINDO
Uma vez que o conhecimento do recurso depende tão só da aplicação do Direito, resta-nos apreciar e decidir, tendo presentes os dados fornecidos pelo processo.
Começaremos por observar que a decisão tomada no despacho aqui em apreço é aquela que ficou transcrita no relatório inicial: a proclamação da ilegitimidade activa da autora, por existir preterição de litisconsórcio necessário, e a consequente absolvição da ré do pedido, com subsequente extinção da instância.
Como antecedente necessário para tal decisão, e para a fundamentar, considerou o julgador que era inadmissível a intervenção principal provocada, dada a posição assumida pelos chamados.
Ressalta desde logo a situação paradoxal que resulta da conjugação destas duas posições, que no limite redundaria na impossibilidade prática para a autora de aceder a juízo para exercer os direitos que eventualmente lhe assistam.
Por um lado, afirma-se como certo que estamos perante litisconsórcio necessário, pelo que a autora não pode estar em juízo desacompanhada, mas por outro lado afirma-se que é inadmissível a intervenção provocada que a lei estabelece precisamente para garantir a existência da legitimidade em caso de consórcio necessário.
Porém, a autora fez uso oportunamente (logo na petição inicial) do mecanismo facultado pelo legislador para suprir a falada ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário (cfr. art. 316º, n.º 1, CPC).
E verifica-se nos autos que o incidente de intervenção processual provocada foi conhecido e decidido, por despacho transitado em julgado.
Conforme o despacho de 19-06-2022, Referência: 31832323, foi efectivamente admitida a requerida intervenção principal provocada dos chamados BB e CC, ao abrigo do vertido nos artigos 33.º, n.º 2 e 3 e 316.º, n.º 1, ambos do NCPC, e ordenada a sua citação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 319.º do mesmo diploma, em despacho bem fundamentado, que invocou como fundamentos designadamente a existência de litisconsórcio necessário e a consequente necessidade de assegurar a legitimidade activa, de forma a alcançar o efeito útil da decisão da causa, vinculando todos os sujeitos da relação material controvertida, tal como configurada pela autora.
Esse despacho foi notificado às partes, os chamados foram citados, e intervieram nos autos assumindo posição oposta à da autora quanto ao objecto do litígio.
Porém, o que releva para os efeitos do presente recurso, a decisão proferida transitou em julgado, já que não foi impugnada nem pelas partes originais nem pelos próprios chamados, apesar da sua discordância.
Ora, se a decisão do incidente de intervenção principal transitou em julgado, nos termos do art. 628º do Código de Processo Civil, segundo o qual “a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”, então a mesma tem a força de caso julgado formal, impondo-se a todos os sujeitos processuais, incluindo o próprio julgador.
Conforme resulta do art. 620º, n.º 1, do CPC, “as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
Essa força obrigatória torna depois impossível que no mesmo processo seja julgado inadmissível algo que já foi expressamente admitido, como o fez o despacho recorrido.
Da existência do caso julgado decorre a impossibilidade de voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida e a vinculação do tribunal à decisão proferida; ainda que venham a formar-se casos julgados contraditórios (duas decisões transitadas versando sobre a mesma questão) a lei resolve a situação apelando ao critério da anterioridade: vale a decisão sobre o mesmo objecto que tenha transitado em primeiro lugar (art.º 625.º n.º 1 do CPC).
No nosso caso não chegaram a formar-se casos julgados contraditórios, uma vez que a segunda decisão, esta que consta do despacho recorrido, foi de imediato impugnada pelo presente recurso.
E impõe-se de forma evidente a boa razão da autora exposta logo nas primeiras conclusões do recurso, pois que a decisão de inadmissibilidade da intervenção principal que já tinha sido antes admitida não pode subsistir.
O caso julgado implica a imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, impedindo que posteriormente venha o tribunal a proferir novo despacho de sentido contrário, e implica também o respeito dos efeitos jurídicos que dela decorrem.
Regressando à situação dos autos, a intervenção principal dos chamados está admitida e consumou-se, exercendo eles, na sequência da sua citação, os direitos que a lei lhes concede enquanto tal.
Nem faz sentido o argumento utilizado no despacho impugnado de que não lhes poderia ser imposta a qualidade de intervenientes. Na lógica processual a qualidade de chamados é tão voluntária como o será a condição de demandados.
A posição que eles entenderam tomar quanto à matéria em litígio, e quanto ao próprio chamamento, não contraria o que ficou dito. Eles têm efectivamente a qualidade de intervenientes principais, nos termos e para os efeitos consignados no art. 316º, n.º 1, do CPC, e, adiantamos já, por consequência está ultrapassada a hipotética ilegitimidade da autora por preterição de litisconsórcio necessário.
Estamos em crer que a confusão patente no raciocínio jurídico exarado no despacho em análise (isto sem prejuízo do respeito devido), resulta da circunstância de ser menos frequente a situação concreta verificada nos autos (os intervenientes virem ao processo para contrariar a posição da parte com a qual em termos processuais estão associados).
Na realidade, por observação empírica, verifica-se que é mais vulgar que os chamados após a sua citação ou venham a juízo secundar as pretensões substantivas da parte com a qual partilham a posição processual ou simplesmente não intervenham aos autos por qualquer modo.
Em qualquer das hipóteses, e nesta dos autos também, o incidente produz o seu efeito útil, que é vincular os chamados ao que for decidido no processo, ficando abrangidos pelo caso julgado material, e desde logo assegurar a legitimidade processual de quem se encontre em situação de litisconsórcio necessário.
Todavia, diremos que apesar da sua menor frequência as situações em que os intervenientes expressam posição contrária à da parte com que é suposto associarem-se também ocorrem e também têm sido tratadas na jurisprudência.
Pensamos por exemplo nos casos de heranças indivisas, em que os co-herdeiros estão obrigados a litisconsórcio necessário para exercício de certos direitos da herança e, todavia, têm posições opostas entre eles.
Veja-se como exemplo o Acórdão da Relação de Lisboa de 28-04-2015, no processo n.º 806/13.0TVLSB.L1-7, que teve como relatora Graça Amaral (in www.dgsi.pt).
Remetemos para a fundamentação ali desenvolvida, e transcrevemos as conclusões do sumário que para aqui relevam:
“I – O artigo 2091.º, n.º1, do Código Civil, ao estatuir que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos eles, opta por considerar a herança uma realidade jurídica de comunhão de pluralidade de interesses indivisíveis.
II – A imposição legal do litisconsórcio (necessário) dos co-herdeiros na herança indivisa assume justificação no facto de, só com a presença de todos os interessados no processo, a decisão judicial pode obter o seu efeito útil, isto é, para que o direito possa ser declarado de modo definitivo.
III – Cumpre tal finalidade a presença no processo dos co-herdeiros por via do incidente de intervenção provocada ainda que, no âmbito da acção, um deles não queira assumir ou, mesmo, se encontre em oposição com a pretensão do autor.”
A situação analisada versou precisamente o caso de ter sido chamado a intervir, dado o litisconsórcio necessário, um co-herdeiro que veio ao processo contrariando a pretensão apresentada pelo autor (outro co-herdeiro), com que estava em desacordo (apoiava a posição do Réu, pedindo a absolvição deste).
A mesma orientação foi secundada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-03-2016, relatado por Lopes do Rego, no processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1, também disponível na mesma base de dados.
Neste douto aresto o Venerando Tribunal entendeu inadmissível que o interveniente discordante praticasse no processo actos processuais incompatíveis com a sua posição processual (o co-herdeiro interveniente tinha apresentado recurso contra a sentença condenatória do réu, o que inclusivamente colocava dúvidas sobre o seu interesse em agir, e desde logo foi considerado excluído dos seus poderes processuais enquanto interveniente ao lado da parte autora).
Contudo, e regressando ao nosso caso, em nenhum momento é sequer posto em dúvida que a intervenção provocada produziu os seus efeitos jurídicos, nomeadamente no que se refere à legitimidade activa na situação de litisconsórcio necessário, independentemente da posição ou entendimento que o interveniente venha expressar no processo acerca da matéria litigiosa.
Destacamos, no acórdão em referência, dois parágrafos essenciais:
Como é sabido, as situações de litsconsórcio necessário – em que se integra o litisconsórcio necessário legal dos herdeiros para o exercício de direitos da herança, previsto no art. 2091º do CC, suprido, no caso dos autos, pela suscitação do incidente de intervenção principal provocada de todos os herdeiros, como se refere no acórdão recorrido – implicam que exista uma única acção com pluralidade de sujeitos (art. 35º do CC): ora, como é evidente, esta unidade da acção que caracteriza as situações de litisconsórcio necessário é manifestamente incompatível com a possibilidade de um dos litisconsortes necessários (activos, no caso) se associar com a parte contrária (neste caso, o R.), praticando actos processuais que a esta aproveitam (sendo objectivamente desfavoráveis aos interesses – incindíveis - dos demais litisconsortes necessários activos). Na verdade, o litisconsorte necessário não detém uma posição de autonomia relativamente aos demais litisconsortes necessários, que lhe permita associar-se com a parte contrária na lide, praticando actos processuais que a esta aproveitam, contra o interesse objectivado e uno dos demais litisconsortes necessários.
Como é evidente, esta conclusão não cerceia em nada o direito de livre expressão processual por parte do litisconsorte necessário cuja intervenção principal foi provocada para assegurar a legitimidade plural dos respectivos compartes, ou seja, a livre expressão no processo do seu entendimento ou opinião acerca da matéria litigiosa – podendo obviamente tomar posição no sentido da inexistência ou inverificação dos factos invocados como suporte da relação material controvertida, imputada pelos litisconsortes/AA. ao R.: simplesmente, a expressão de tal posição pessoal sobre a matéria litigiosa – que , em nenhuma circunstância, pode valer como confissão (art. 353º, nº2, do CC) – apenas assume relevância no plano probatório, podendo naturalmente o juiz, ao apreciar livremente as provas, ter em consideração as afirmações de facto feitas no processo pelo litisconsorte necessário; o que já não consideramos possível é que o litisconsorte necessário vá além de tal plano probatório, assumindo uma estratégia que conduza à prática, por ele próprio, no processo de actos processuais destinados objectivamente à tutela, não do interesse dos demais litisconsortes necessários que figuram como seus compartes na causa, mas da contraparte de todos eles, a esta se associando na defesa de interesses estranhos e opostos aos dos demais litisconsortes necessários activos.”
Por outras palavras, e para o que nos interessa: os intervenientes nos presentes autos podem assumir a posição que entenderem quanto à relação material controvertida, e tal circunstância terá as consequências que só o julgamento da causa poderá dela retirar, mas entretanto e no plano processual a intervenção consumou-se e satisfez as finalidades que a lei lhe assinala, ultrapassando a questão da eventual ilegitimidade da autora por preterição de litisconsórcio necessário.
A autora é parte legítima nos presentes autos, contrariamente ao que foi decidido no despacho sub judice.
E esta conclusão implica necessariamente a procedência do recurso em apreço, revogando-se a decisão recorrida por erro de julgamento.
Fica assim prejudicada, por desnecessária, a apreciação dos restantes fundamentos de Direito alegados no recurso, nomeadamente o que se refere a alegadas nulidades.
Diremos, todavia, que atento o thema decidendum fixado e o percurso seguido no despacho em apreciação, para chegar à decisão recorrida, não se afigura que exista qualquer das nulidades invocadas.
A decisão não enferma de nulidades, padece de erro de julgamento. Não existe vício formal, interno, na elaboração do despacho em causa, o que existe é uma conclusão errada.
Como muito bem sublinha o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-03-2021, no processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, relatora Leonor Cruz Rodrigues, também publicado em www.dgsi.pt:
“Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.”
Em conclusão, neste ponto, entendemos que o despacho recorrido não apresenta nulidades, pelo que tal matéria não afecta a conclusão já consignada acima, de que o recurso é procedente nos moldes referidos.
Essa procedência implica o prosseguimento do processo, retomando-se a sua tramitação normal e típica, a partir da fase em que se encontra.
Com efeito, não existindo outra decisão tomada na primeira instância para além daquela que foi conhecida, também não estão reunidos os pressupostos para avançar com qualquer decisão de mérito, mesmo parcial, como parece pretender a recorrente no final das suas conclusões.
Terminando, por tudo o que ficou dito mostra-se procedente o recurso interposto pela autora, embora nos termos que foram explanados.
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VII - DECISÃO
Por todo o exposto, julgamos procedente a apelação, nos termos sobreditos, e revogamos a decisão recorrida, declarando que a Autora é parte legítima e ordenando que os autos sigam a sua normal tramitação.
Custas a cargo da Ré sociedade, como parte vencida (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 26 de Outubro de 2023
José Lúcio
Albertina Pedroso
Ana Pessoa