Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2053/21.9T8LLE.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: REIVINDICAÇÃO
RESTITUIÇÃO DE OBJECTOS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Nas acções de reivindicação, tendo a acção como objecto final a restituição da coisa, perante o reconhecimento do direito de propriedade do autor só não haverá obrigação de restituir a coisa reivindicada se o detentor ou possuidor da coisa reivindicada demonstrar que é titular de algum direito (real ou obrigacional), licitamente constituído e, por isso, compatível com o direito do proprietário, situação em que não existirá fundamento para ordenar a restituição da coisa reivindicada.
II – Cabe ao réu a prova dos factos integradores de qualquer relação obrigacional ou real impeditiva ou extintiva do direito, ou seja, não impende, sobre o autor o ónus da prova da falta de título ou da ilegitimidade da detenção da coisa pelo réu, antes a este competindo provar que essa detenção procede da titularidade de uma daquelas relações obrigacionais ou reais impeditivas ou extintivas.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

(…), contribuinte n.º (…), residente em (…) 30, 9831 (…), Bélgica, veio intentar a presente ação, com o processo comum, contra (…), contribuinte n.º (…), residente na Av. Eng. (…), Edifício (…), Apartamento 12.º-B, (…), pedindo que seja o réu condenado a devolver à herança de (…), na pessoa do seu único herdeiro, o Autor, a mala Hermes que lhe foi entregue a título não translativo da propriedade, num prazo que se deve fixar em não mais de 10 dias. A título subsidiário (caso não proceda à entrega da mala) – seja condenado a pagar ao autor a quantia de € 20.000,00 a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data do contrato até efetivo e integral pagamento.
Alega, em síntese, que a Sra. (…) era, à data da sua morte, proprietária de uma mala da marca Hermes, modelo Kelly, em pele de crocodilo preta, confecionada na década de 60 – a Sra. (…) procedeu à entrega da mala ao réu para que este a enviasse para reparação. Sucede que, até à data da sua morte, a mala nunca foi entregue à Sra. (…). O autor na qualidade de herdeiro da Sra. (…) é assim proprietário da mala, que o réu deve restituir.
Em sede de contestação, o réu defendeu-se por impugnação, alegando que a casa Hermes referiu que, a mala não era suscetível de reparação, não podendo ser aposto selo de autenticidade e que a mala não teria qualquer valor, o que comunicou à falecida, tendo esta referido que o réu poderia ficar com a mala e deitá-la para o lixo, pelo que se desfez da mesma.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu o réu (…) de todos os pedidos formulados pelo autor (…) e decidiu não condenar o réu como litigante de má-fé.

Inconformado com a sentença, o autor veio interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«I. O recorrente considera incorrectamente julgados o facto dados como provado em 8 e os factos dados como não provados em A), B) C) e D), havendo também factos que deveriam e não foram considerados como provados, assim como considera violados os artigos 1185.º a 1206.º do Código Civil.
II. De acordo com a fundamentação da sentença, o tribunal a quo deu como provados os factos 5 a 9 apenas com base nas declarações de parte do Réu as quais não foram corroborados por qualquer prova adicional, quer testemunhal, quer documental.
III. Refere o tribunal a quo que deu tais pontos como provados com base nas declarações de parte do réu e no depoimento das testemunhas arroladas pelas partes, mas não fundamenta em que medida as testemunhas arroladas pelas partes e que testemunhas proferiram depoimentos consentâneos com as declarações do Réu, pessoa directamente interessada no desfecho da causa.
IV. Falta, assim, a necessária fundamentação da sentença.
V. Por outro lado, o tribunal a quo desvaloriza por completo o depoimento da testemunha do A. (…), entendendo não lhe conferir credibilidade apenas porque a testemunha referiu tratar-se de uma mala de crocodilo vermelho bordeaux e não preta como é alegado na petição inicial.
VI. Veja-se o documento 4 da P.I. que consiste numa fotografia da mala onde se pode ver que embora predominantemente preta o seu tom avermelhado escuro e que a textura da pele ressalta à vista e para qualquer leigo ser pele de crocodilo.
VII. A fotografia da mala junta como documento 4 da P.I. não foi impugnada pelo Réu pelo que o tribunal não pode ter dúvidas em relação a qual é o objecto em causa nos autos.
VIII. Sendo que o tribunal a quo não pode desconhecer que por regra os pormenores de cor de um determinado objecto são características que mais escapam à memória de um comum cidadão quando presta depoimento como testemunha volvidos que estão cerca de quatro anos sobre a ocorrência dos factos submetidos a julgamento.
IX. Ora o depoimento da testemunha (…) que se encontra gravado revelou-se bastante seguro, espontâneo e coerente, e converge com o do Réu em muitos pontos, não podendo ser abalado apenas por este eventualmente não ter conseguido exprimir a cor da mala, quando da integralidade do seu depoimento não restam dúvidas que o mesmo se refere indubitavelmente à mala dos autos.
X. Ao ouvir as declarações do Réu verifica-se que o mesmo se encontra visivelmente instrumentalizado bem como a sua filha também testemunha.
XI. Não se compreende como pode o tribunal desvalorizar o depoimento da testemunha (…), apenas porque o mesmo referiu que a mala era vermelha e não preta quando quer o Réu, quer a sua filha não foram capazes de dizer de que tipo de pele era a mala, se de búfalo, se de crocodilo ou se de cobra.
XII. O tipo de pele da mala (crocodilo) consta do artigo 2.º da P.I. e foi aceite pelo R. na sua contestação.
XIII. Sendo certo que o Réu, ao contrário do que afirmou na contestação, declarou que para além da profissão de cabeleireiro se dedicava também à venda de malas de luxo em segunda mão, o que foi confirmado pelo depoimento da sua filha a qual também não foi capaz de responder de que tipo de pele era feita a mala.
XIV. Sendo que quem negoceia com um determinado produto não deve desconhecer um dos seus elementos essenciais, nomeadamente o material de que é feito e que mais enaltece uma mala, o tipo e qualidade da pele.
XV. Não pode assim o tribunal usar diferentes critérios na atribuição de credibilidade, descredibilizando uma testemunha porque erra na cor de um objeto e dando credibilidade a outra que nem sabe o material de que o objeto é feito um objeto que comercializa.
XVI. Estas duas testemunhas são consentâneas em afirmar que era a testemunha (…) que acompanhava com bastante regularidade (…) ao salão de cabeleireiro do R., por se tratar de pessoa idosa e com bastantes limitações de mobilidade, é assim verosímil que tenha conhecimento directo de factos importantes para a boa decisão da causa.
XVII. O tribunal a quo apesar de reconhecer na sentença que o Réu tinha a actividade embora secundária, de compra e venda de malas de luxo, entendeu (erradamente) não ser relevante levá-lo aos factos provados.
XVIII. Assim, desde logo com base no depoimento quer do Réu quer da sua filha e também de acordo com o que consta da fundamentação da sentença deve ser considerado provado que:
XIX. O Réu exercia, ainda que secundariamente, a actividade de venda de artigos de luxo usadas, nomeadamente malas de senhora em segunda mão.
XX. As declarações do Réu que acima se transcreveram impõem tal conclusão.
XXI. Consequentemente deverá também ser subtraído aos factos dados como não provados o facto B) O Réu dedica-se (ou pelo menos à data dos factos dedicava-se) a compra e venda de artigos de luxo em segunda mão, encontrando-se profissionalmente estabelecido em (…) Quinta (…), Quinta do (…), … (artigo 4.º da PI), que deverá ser levado a factos provados.
XXII. E deverá ser também considerado provado que foi no âmbito da sua actividade comercial e dos serviços habitualmente prestados (venda de artigos de luxo em segunda mão) que o Réu recebeu a mala da tia do A. para reparação e comercialização.
XXIII. Nesse sentido foram as declarações prestadas quer pelo Réu quer pela testemunha (…) que acima se transcreveram.
XXIV. Para além das declarações há que atentar ao documento 4 (pág. 1) da P.I. aceite pelo R. como sendo o contrato de entrega da mala pelo R. no Serviço Pós-Venda da casa Hermes para reparação cujo outorgante é o próprio Réu.
XXV. Não restando assim qualquer dúvida que o Réu, pelo menos à data dos factos, para além de cabeleireiro se dedicava no mesmo domicílio à venda de malas de senhora usadas e foi nesse âmbito que recebeu da tia do A., (…), entretanto falecida, o artigo objecto dos autos.
XXVI. Deve também com base no que acima se alegou ser levado aos factos provados que foi acordado entre o R. e a falecida tia do A. que aquele ficaria a deter a mala com o objectivo de a mandar reparar e comercializar contra o recebimento de uma comissão de cerca de 25%.
XXVII. E pela mesma prova produzida deve ser dado como provado que a mala tinha o valor de € 8.000,00 a € 10.000,00.
XXVIII. O tribunal a quo errou ainda ao considerar como não provado a alínea D dos factos não provados “A, mala no entanto não retornou à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em representação desta”.
XXIX. Por outro lado, deverá ser levado tal facto aos factos provados considerando-se provado que “A, mala no entanto não retornou à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em represente desta”.
XXX. É o que resulta da prova produzida, conforme de seguida se demonstrará.
XXXI. Não é minimamente coerente e verosímil, desde logo à luz das regras da experiência comum, que o R. comerciante tivesse assumido a responsabilidade de ter ficado com a mala à sua guarda e cuidados e não se assegurasse com um documento assinado pela sua proprietária a provar a restituição.
XXXII. É certo que, como seria de esperar, o R. manteve nas suas declarações aquilo que já dizia na contestação, ou seja, que a falecida (…) lhe teria dito para deitar a mala ao lixo !!!.
XXXIII. No entanto, tais declarações do Réu não foram confirmadas por qualquer outra prova, nem documental nem testemunhal.
XXXIV. A única testemunha que refere ter presenciado a conversa entre o Ré (…) foi a filha deste (…), que nas suas declarações cujo excerto acima se transcreveu.
XXXV. Acrescem as declarações da testemunha (…) que acima se transcreveram:
XXXVI. Também se extrai das declarações da testemunha (…) que apesar de a casa Hermes ter recusado a reparação, o R. ficou incumbido de mandar reparar a mala em local incerto da Tailândia ou França para posterior venda e recebimento da sua comissão.
XXXVII. O tribunal a quo não poderia dar tal facto como provado apenas com base no depoimento do Réu cujas declarações de parte são claramente ensaiadas não merecendo qualquer credibilidade, sem haver nenhuma prova que o corrobore.
XXXVIII. Na realidade, o que se verifica da prova testemunhal produzida é que o Réu e (…), após saberem da recusa da casa Hermes em reparar a mala decidiram por sugestão do Réu, mandar repara-la num outro local.
XXXIX. Ouçam-se nesse sentido as declarações da testemunha (…) que acima transcrevemos.
XL. Deverá assim ser levado a factos provados que apesar de a casa Hermès recusar a reparação a mesma foi mandada efectuar num outro local a mando do Réu, o qual posteriormente referiu haver clientes interessados na compra da mala.
XLI. Da conjugação de todas as provas resulta assim que deverá ser subtraída a alínea H dos factos provados sendo consequentemente levado a factos provados que do acervo patrimonial de (…), à data da sua morte fazia parte uma mala de pele de crocodilo da marca Hermès com um valor de mercado mínimo de € 10.000,00.
XLII. Não há dúvidas, desde logo porque o R. não impugna na sua contestação, que (…) era proprietária da mala em causa nos autos.
XLIII. Também não restam dúvidas, pelas declarações de parte do R. e pelo artigo 7 dos factos provados que a mala lhe foi entregue a título não translativo da propriedade.
XLIV. O Réu, no âmbito da sua actividade de comércio de malas estabeleceu com a Ré um contrato mediante o qual mandaria reparar e venderia a mala recebendo a sua comissão.
XLV. Não ficou provado que o Réu tenha restituído a mala à Ré, sendo totalmente leviana e inverosímil que a tenha deitado ao lixo, versão apenas por si trazida ao tribunal e sem qualquer prova que o corrobore.
XLVI. A prova produzida permite antes de mais concluir e a sentença conclui que foi estabelecido entre o R. e (…) um contrato de depósito, nos termos do artigo 1185.º a 1206.º do Código Civil, preliminar ao contrato de venda da mala que o R. se comprometeu a intermediar mediante remuneração comissionista.
XLVII. Não se pode assim aceitar o raciocínio constante da douta sentença no sentido de que não foi demonstrado pelo autor que o contrato ainda existia à data da morte de (…) e que ainda que tenha sido demonstrado não se provou que a mala continuou na posse do Réu, na qualidade de depositário e que este tinha obrigação de a restituir quer à sra. (…) quer ao Autor !!!!!.
XLVIII. O tribunal errou, pelo exposto, ao interpretar o regime estabelecido nos artigos 1185.º a 1228.º do Código Civil.
XLIX. Sobre o Réu recaia o ónus da prova de que a mala foi por si devolvida a (…) e não o tendo provado, porque apenas o Réu o disse nas suas declarações de parte, deverá ser condenado a restitui-la ao herdeiro, A. , ou a pagar o valor de € 10.000,00, ou o valor que venha a ser liquidado em execução de sentença.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença e substituindo-se a mesma por outra que condene o Réu, Recorrido a entregar ao Autor recorrente a mala objecto dos autos ou pagar o valor correspondente.»
Não há contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Foram considerados provados os seguintes factos:
1. Por testamento lavrado em 25/02/2010, no cartório Notarial a cargo do Dr. (…), em (…), exarado de fls. 45 a fls. 46 do Livro …, (…) declarou que deixava todos os seus bens, móveis e imóveis e direitos prediais, existentes em Portugal à data da sua morte, assim como dinheiros que possua em contas bancárias em Portugal, ao seu sobrinho, o Autor (artigo 1.º da PI).
2. (…) veio a falecer no dia 9 de Julho de 2020, na freguesia de Loulé (…), concelho de Loulé, sem descendentes nem ascendentes vivos, tendo deixado como última disposição de vontade o testamento identificado supra, conforme atesta habilitação de herdeiros de 19.10.2020, lavrada no cartório notarial a cargo do Dr. (…), exarada de fls. 142 a fls. 143 do Livro … (artigo 2.º da PI).
3. O réu é cabeleireiro de profissão e exerce essa atividade em Portugal há mais de 15 anos (artigo 4.º da Contestação).
4. (…) era cliente frequente no salão de cabeleireiro do réu (artigo 10.º da Contestação).
5. No início do ano de 2018, (…) era proprietária de uma mala da marca Hermès, modelo Kelly, em pele de crocodilo preta, confecionada na década de 60.
6. Com o uso, a mala em questão começou a apresentar pontos da costura partidos, sendo que também a respetiva alça se mostrava danificada (artigo 5.º da PI).
7. Em 25/03/2018, a Sra. (…) entregou ao Réu a mala descrita no ponto anterior, para que este procedesse pelo envio da mesma à casa Hermes, a fim de ser reparada, o que fez (artigo 6.º da PI).
8. O réu avisou (…) que qualquer reparação da mala seria sempre precedida de uma avaliação exaustiva ao produto para confirmar da sua autenticidade e da possibilidade de ser reparável (artigo 24.º da Contestação).
9. Em 25/03/2018, o réu enviou a referida mala à casa Hermès (artigo 28.º da Contestação).
10. Em 25/05/2018 a Casa Hermès endereçou email ao réu com o seguinte conteúdo:
“Lamentamos informá-lo que a mala que trouxe não pode ser reparada. O saco foi enviado para França onde, após uma extensa investigação, descobrimos que o saco já foi reparado uma vez antes e que isto não foi feito pela Hermes. Por esta razão, o saco não será processado e já foi enviado de volta para a nossa loja, onde pode voltar a buscá-lo. A recolha não terá lugar num dia, por enquanto está no nosso cofre”.
11. Em 11/08/2020, o autor remeteu carta registada ao réu com o seguinte conteúdo: “(...) De acordo com a informação que me foi veiculada em março de 2018, V. Exa. recebeu da Sra. (…) uma mala de mão Kelly da Hermes, avaliada em milhares de euros, que prometeu enviar para reparação, uma vez que a pega estava partida e os pontos precisavam de ser arranjados. Até esta data, e após ter sido reparada de acordo com a informação que temos da Hermes, V. Exa. não devolveu a mala à Sra.(…), como combinado. A referida mala pertence ao meu cliente e deverá ser-lhe entregue imediatamente. Caso assim não ocorra nos próximos 10 dias, não me deixa outra opção que não seja demandá-lo em tribunal” (artigo 10.º da PI).
12. Em 24/08/2021, o autor propôs a presente ação.
E não provados:
A) Do acervo patrimonial de (…), à data da sua morte, fazia parte uma mala da marca Hermes, modelo Kelly, em pele de crocodilo preta, confecionada na década de 60, com o valor de mercado mínimo de € 20.000,00 (artigo 3.º da PI).
B) O Réu dedica-se à compra e venda de artigos de luxo em segunda mão, encontrando-se profissionalmente estabelecido em 103 Quinta (…), Quinta do (…), ... (artigo 4.º da PI).
C) O réu comprometeu-se a devolver a mala assim que lhe fosse remetida, no estado de reparada, pela casa Hermes (artigo 7.º da PI).
D) A mala, no entanto, não retornou mais à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em representação destes (artigo 8.º da PI).


2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
1ª Questão – Saber se a sentença é nula por falta de fundamentação.
2ª Questão – Saber se deve ser alterado o facto dado como provado em 8 e os factos dados como não provados em A) B) C) e D) e se devem ser aditados outros factos.
3ª Questão – Saber se se verificam os pressupostos da reivindicação/ónus da prova.

3 - Análise do recurso.

1ª Questão – Saber se a sentença é nula por falta de fundamentação.

O recorrente alega que, o tribunal a quo deu como provados os factos 5 a 9 “com base nas declarações de parte do réu e no depoimento das testemunhas arroladas pelas partes, mas não fundamenta em que medida as testemunhas arroladas pelas partes e que testemunhas proferiram depoimentos consentâneos com as declarações do Réu, pessoa directamente interessada no desfecho da causa, concluindo que falta a necessária fundamentação da sentença.”
Da análise da fundamentação constatamos que, não há nulidade -pois a mesma só existiria no caso de falta absoluta de fundamentação – e ainda que a fundamentação não utilize a técnica mais perfeita, ainda assim, permite-nos inferir qual o percurso cognitivo da sentença quanto à matéria impugnada, inexistindo falta de fundamentação.

2ª Questão - Saber se deve ser alterado o facto dado como provado em 8 e os factos dados como não provados em A) B) C) e D) e se devem ser aditados outros factos.

O recorrente considera incorrectamente julgados o facto dados como provado em 8 e os factos dados como não provados em A) B) C) e D):
«8 Provado: «O réu avisou (…) que qualquer reparação da mala seria sempre precedida de uma avaliação exaustiva ao produto para confirmar da sua autenticidade e da possibilidade de ser reparável (artigo 24.º da Contestação)».
E não provados:
A) Do acervo patrimonial de (…), à data da sua morte, fazia parte uma mala da marca Hermes, modelo Kelly, em pele de crocodilo preta, confecionada na década de 60, com o valor de mercado mínimo de € 20.000,00 (artigo 3.º da PI).
B) O Réu dedica-se à compra e venda de artigos de luxo em segunda mão, encontrando-se profissionalmente estabelecido em 103 Quinta (…), Quinta do (…), … (artigo 4.º da PI).
C) O réu comprometeu-se a desenvolver a mala assim que lhe fosse remetida, no estado de reparada, pela casa Hermes (artigo 7.º da PI).
D) A mala, no entanto, não retornou mais à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em representação destes (artigo 8.º da PI)».
Analisando:
Em primeiro lugar, importa delimitar a matéria pertinente para a decisão, considerando a causa de pedir invocada.
Assim, há que tomar em consideração que, é alegado, na PI, um acordo entre a falecida e o réu, no sentido de, este diligenciar para a reparação da mala em causa e que, após a reparação a devolveria à sua proprietária, ao que o réu contrapôs que se disponibilizou, como amigo, sem qualquer contrapartida, a averiguar da possibilidade de reparação da mala, que para tal lhe foi entregue e que enviou às instalações da marca em França, que a veio a devolver por não obedecer aos critérios de reparação e comunicou que a mesma não tinha valor comercial. Disso o réu informou a Sra. que, por não ter interesse na mala, pediu ao réu que a deitasse para o lixo, o que fez.
(a impugnação da matéria de facto é uma actividade dirigida a um fim específico e cuja existência é condicionada por tal escopo, não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º, n.º 1, 137.º e 138.º.'' – vide Acórdão da Relação de Coimbra de 24.04.2012, proferido no processo n.º 219/10.6T2VGS.C1 e disponível em www.gde.mj.pt.).
Neste contexto, não vemos qualquer utilidade na análise do facto 8 (que é apenas um pormenor acessório, mas não essencial, do alegado acordo) nem no facto B) não provado (o que interessa – independentemente de o réu ter ou não essa actividade de vendedor – é se e como celebrou o acordo em causa).
Da mesma forma, não se vê utilidade na seguinte matéria que se pretende aditar, por serem factos laterais que não influenciam a decisão:
- O Réu exercia, ainda que secundariamente, a actividade de venda de artigos de luxo usadas, nomeadamente malas de senhora em segunda mão.
- Foi no âmbito da sua actividade comercial e dos serviços habitualmente prestados (venda de artigos de luxo em segunda mão) que o Réu recebeu a mala da tia do A. para reparação e comercialização.
- Apesar de a casa Hermès recusar a reparação a mesma foi mandada efectuar num outro local a mando do Réu, o qual posteriormente referiu haver clientes interessados na compra da mala.
De facto, é irrelevante saber se o Réu exercia a actividade de venda de malas e se foi nesse âmbito que recebeu a mala em causa.
Apenas interessam os contornos específicos do acordo entre as partes a falecida e o réu, inclusive, depois da rejeição da reparação e a matéria relativa ao valor da mala, nada mais:
- Foi acordado entre o R. e a falecida tia do A. que aquele ficaria a deter a mala com o objectivo de a mandar reparar e comercializar contra o recebimento de uma comissão de cerca de 25%.
- A mala tinha o valor de € 8.000,00 a € 10.000,00.
- A mala, no entanto não retornou à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em represente desta.
Porém, a tal propósito importa referir que a matéria relevante para a procedência da acção, pretendida pelo recorrente, é admitida pelo Réu: O réu admite que a mala lhe foi entregue pela sua proprietária – falecida – para diligenciar pela sua reparação e que não a devolveu.
Vejamos agora as alíneas:
C) O réu comprometeu-se a desenvolver a mala assim que lhe fosse remetida, no estado de reparada, pela casa Hermes (artigo 7.º da PI).
D) A mala, no entanto, não retornou mais à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em representação destes (artigo 8.º da PI).
A fundamentação da sentença é a seguinte:
«O Tribunal formou a sua convicção quanto aos demais factos, com base na prova produzida em audiência.
Os factos constantes dos pontos 3 a 9 deram-se como provados com base nas declarações de parte do réu e no depoimento das testemunhas arroladas pelas partes.
Em sede de declarações de parte, o réu referiu que a senhora (…) era cliente frequente no seu cabeleireiro. Mais disse que em 2018, para além da sua atividade profissional, chegou a vender malas de luxo em 2.ª mão, desde que as mesmas fossem autenticadas. No salão de cabeleireiro, a Sra. (…) contou-lhe que tinha uma mala Hermes que tinha a alça partida e estava velha – o réu referiu que poderia vender a mala a outra pessoa, auferindo uma comissão de 25% sobre o preço de venda (o resto do dinheiro seria para a cliente) – para isso poder acontecer, a mala teria de ser enviada para a Hermes para autenticação após reparação (e reposta no estado original). Sucede que a Hermes remeteu um email a referir que não iria proceder à reparação da mala uma vez que teria verificado que a mala já havia sido reparada noutro sítio (consideravam assim que a mala não teria qualquer valor). Depois o réu pediu a uma cliente da Holanda para trazer a mala, tendo procedido à entrega da mesma à Sra. (…) no salão. Sucede que a mesma lhe comunicou que se a mala não podia ser reparada, o réu poderia ficar com a mala e fazer com ela o que quisesse. Considerando que a mala já não teria qualquer valor, o réu deitou a mala no lixo.
… (amigo da Sra. …, acompanhava-a muitas vezes ao salão de cabeleireiro do réu, mas não chegava a entrar) referiu que conhecia a mala aqui em causa e que tem conhecimento que a Sra. (…) procedeu à entrega da mala para que o réu arranjasse a mala e vendesse a terceiros. Tem conhecimento que a Sra. (…) enviou a mala à Hermes para reparação e que a Hermes recusou reparar a mala. Acrescentou ainda que sabe que o réu teria dito que tinha contactos na Holanda e em Bangkok para tentar reparar a mala num outro sítio – tem conhecimento deste facto por a sra. (…) lhe ter transmitido a conversa e por ter assistido, numa das idas ao salão, uma conversa entre a senhora e o réu na qual o réu mostrava fotos à Sra. (…) da mala já reparada. A mala teria de ser vendida por € 8.000,00 ou € 10.000,00, mas do que sabe nunca chegou a ser vendida. Tem ainda a certeza que a Sra. (…) nunca deitaria a mala fora ou entregaria gratuitamente ao réu, independentemente do estado em que a mala estivesse tendo-lhe transmitido antes de falecer que um dos desejos que tinha era recuperar a referida mala.
Sucede que quando questionada esta testemunha relativamente à cor da mala, o mesmo referiu que tinha a certeza de que a mala era vermelha. Ora, compulsadas as fotografias nos autos, designadamente o documento 4 anexo à petição inicial, podemos verificar que a mala era de cor preta (tal facto é alegado pelo autor e não contestado pelo réu). Assim sendo, não poderemos conferir credibilidade a esta testemunha uma vez que se verifica que a mesma estaria a falar sobre uma outra mala pertença da Sra. (…) – que nada tem a ver com a mala objeto dos presentes autos. Poderá a testemunha, por hipótese, ter confundido as duas malas, uma vez que a primeira parte do seu depoimento corrobora o referido pelo réu. Relativamente aos novos factos por si trazidos, para além de o mesmo não ter qualquer prova do por si alegado, os mesmos têm por base uma mala vermelha e não a mala preta mencionada quer pelo autor, quer pelo réu.
A testemunha (…) – cliente do réu no salão do cabeleireiro – confirmou que teria ido à casa Hermès receber uma mala Hermès e que posteriormente a trouxe para Portugal para entregar ao réu. Verificou que a mala estava danificada. Mais referiu que não sabe o que o réu fez com a mala.
A testemunha (…) – filha do réu – referiu que trabalha no salão de cabeleireiro do pai há quatro anos, mas anteriormente também já o ajudava no salão, conhecendo a Sra. (…) desde os sete anos. Confirmou que na altura o pai fazia comércio de venda de malas em 2.ª mão e que a Sra. (…) entregou a mala Hermès, cor preta, que se encontrava danificada ao seu pai para que este enviasse a mala para reparação. Em 2018, a testemunha e o réu deslocaram-se pessoalmente à Holanda para entregar a mala à casa Hermès. Depois, teve conhecimento de que a mala foi remetida para França e que foi comunicado que a mala não poderia ser arranjada, não tendo qualquer valor. Quando a mala regressou a Portugal, assistiu ao pai a comunicar à Sra. (…) que a mala não tinha arranjo, tendo esta transmitido que não queria mais a mala. Mais disse a testemunha que não tem conhecimento do destino que o pai deu à mala.
O autor teria de provar os factos constitutivos do seu direito. Entendemos que em face da prova produzida em Audiência Final, tendo ainda em consideração a documentação junta aos autos, o autor não logrou provar a factualidade que alega, designadamente que, à data da sua morte, a Sra. (…) era proprietária da mala Hermès, modelo Kelly, cor preta, melhor identificada nos autos. A única testemunha arrolada pelo autor apenas confirmou que a mala teria ido para reparação. Como já se referiu, relativamente aos demais factos, não foi conferida credibilidade à testemunha uma vez que a mesma disse que tinha a certeza que se tratava de uma mala de cor vermelha (note-se que foi ainda mencionado pelo réu que o autor chegou a ir ao seu cabeleireiro, exigindo que o réu procedesse à entrega de uma outra mala de luxo – verifica-se assim que a autora não tinha só esta mala). Por sua vez, o réu apresentou uma versão credível dos acontecimentos que é corroborada por toda a documentação junta aos autos – inclusive pela documentação anexa à petição inicial.
E, efetivamente, se a mala foi remetida à casa Hermes para reparação e para obtenção de selo de autenticidade, não tendo tal pretensão sido deferida, considera-se credível que a Sra. (…), que tinha intenções de vender a mala a terceiros, tenha perdido interesse na mala – note-se que a mala estava inutilizável (alça partida, buracos...).
Assim, o Tribunal entende que não foi carreada para os autos prova suficiente, clara e preponderante, exigida em processo civil, para sustentar a sua convicção quanto à respetiva verificação, pelo que foi a mesma resolvida de acordo com as regras do ónus da prova (artigo 342.º do Código Civil e artigo 414.º do Código do Processo Civil) que, neste caso caberia ao autor enquanto facto constitutivo do seu direito – a Sra. (…) era proprietária da referida mala na data da sua morte.
Entende-se ainda que não foi feita qualquer prova relativamente ao valor de mercado da referida mala.
Em face do supra exposto, foram dados como não provados os factos elencados nas alíneas A), C) e D).»
Discorda o recorrente, argumentando, em síntese que, incorrectamente, o tribunal a quo desvalorizou por completo o depoimento da testemunha …, (entendendo não lhe conferir credibilidade apenas porque a testemunha referiu tratar-se de uma mala de crocodilo vermelho bordeaux e não preta como é alegado na petição inicial, sendo até que do documento 4 da P.I. – fotografia da mala – resulta que embora predominantemente preta o seu tom avermelhado escuro e que a textura da pele ressalta à vista e para qualquer leigo ser pele de crocodilo) que foi bastante seguro, espontâneo e coerente e que se trata de uma testemunha que acompanhava com bastante regularidade (…) ao salão de cabeleireiro do R., por se tratar de pessoa idosa e com bastantes limitações de mobilidade, pelo que é assim verosímil que tenha conhecimento directo de factos importantes para a boa decisão da causa.
Por outro lado, diz o recorrente, o tribunal a quo terá valorizado incorrectamente o depoimento do Réu e da filha.
Como sabemos, embora o novo artigo 466.º do CPC tenha consignado a possibilidade de produção de prova por declarações das partes, isso não significa que se tenha que dar como provado o que resulta do depoimento de parte.
Neste regime as “declarações de parte” devem ser sempre consideradas, para efeitos probatórios, quando delas resultar confissão dos factos que sejam desfavoráveis à parte. Contudo, nas situações em que delas não resultar qualquer confissão a questão é menos clara.
Com efeito, e apesar de o tribunal apreciar livremente as declarações das partes como meio de prova, não podemos ignorar que elas serão produzidas por quem tem um manifesto e directo interesse na acção, no processo, razão pela qual poderão ser declarações interessadas, parciais ou não isentas.
Logo, essas declarações não podem ser consideradas sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, já que se trata da versão da parte interessada.
Ouvida a prova, verifica-se que o réu admite que a mala lhe foi entregue pela sua proprietária – falecida – para diligenciar pela sua reparação e que não a devolveu, pelo que deve considerar-se demonstrada a matéria correspondente a C) e D): C) O réu comprometeu-se a desenvolver a mala assim que lhe fosse remetida, no estado de reparada, pela casa Hermes (artigo 7.º da PI).
D) A mala, no entanto, não retornou mais à posse de Sónia, não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em representação destes (artigo 8.º da PI).
Esta matéria determinará – como veremos de seguida – a procedência da acção de acordo com as regras da repartição do ónus da prova.
Por outro lado, a matéria da alínea A) não provada traduz uma conclusão relativa ao próprio objecto da acção (integra o thema decidendum) e como tal não deve constar dos factos.
Com efeito, saber se a mala fazia parte do acervo patrimonial de (…), à data da sua morte, depende da análise do acordo alegadamente celebrado.
Ora, na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas (que são que a lógica ilacção de premissas) e que comportem matéria de direito pois são os factos que o n.º 4 do artigo 607.º do CPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo juiz, na sentença (Sempre que, um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado – neste sentido Miguel Teixeira de Sousa, ‘Estudos sobre o Novo Processo Civil’, Lex, 1997, pág. 312 e Paulo Faria, “A reforma da base instrutória: uma regressão, A Reforma do Processo Civil-Contributos”, Revista do Ministério Público, Cadernos II, 2012, págs. 37-48 onde se pode ler o seguinte: se “o tema da instrução pode aqui ser identificado por referência a conceitos de direito ou conclusivos (…) já a decisão sobre a matéria de facto nunca se poderá bastar com tais formulações genéricas, de direito ou conclusivas, exigindo-se que o tribunal se pronuncie sobre os factos essenciais e instrumentais»).
Finalmente, quanto ao valor de mercado da mala não cremos que exista prova, pois a referência ao valor, pela testemunha (…), não tem suporte em conhecimento específico sobre tal matéria nem conhecimento sobre o mercado em causa.
Em suma:
Pelo exposto, elimina-se do elenco dos Factos não Provados a primeira parte da alínea A) e, consequentemente, não se conhece da impugnação da decisão da matéria de facto sobre a mesma, passando esta alínea a ter a seguinte redacção:
A) A mala em causa tinha o valor de mercado mínimo de € 20.000,00 (artigo 3.º da PI).
E passam a matéria provada as alíneas:
C) O réu comprometeu-se a devolver a mala assim que lhe fosse remetida, no estado de reparada, pela casa Hermes (artigo 7.º da PI).
D) A mala, no entanto, não retornou mais à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em representação destes (artigo 8.º da PI).
Por outro lado, tendo sido alegado pelo réu, como justificação da não devolução da mala, o facto de a falecida se ter desinteressado e solicitado que a mandasse para o lixo (o que fez) a prova de tal facto seria relevante como facto extintivo do direito do autor, como explicaremos de seguida, pelo que, deve constar da matéria não provada, uma vez que não há qualquer outra prova que não as declarações do próprio (nem sequer o depoimento da filha que apenas relata a tal propósito o que o pai lhe disse).
Logo, adita-se ao elenco dos factos não provados o seguinte:
«Na sequência da informação da não reparação da mala, a falecida desinteressou-se da mesma e solicitou ao Réu que a mandasse para o lixo, o que este fez.»

3ª Questão – Saber se se verificam os pressupostos da reivindicação/ónus da prova.

Para julgar improcedentes todos os pedidos formulados pelo autor, na petição inicial, a sentença desenvolve o seguinte entendimento:
«Porque não foi demonstrado pelo autor que este negócio ainda subsistia à data da morte da Sra. (…) e ainda que tenha sido demonstrado que a mala Hermes foi entregue pela autora ao réu para que este pudesse remeter a mesma para reparação, não ficou demonstrado que após recusa da casa Hermes na reparação da mala, a mesma continuou na posse do réu, na qualidade de depositário e que este tinha obrigação de a restituir quer à Sra. (…), quer ao autor».
Não partilhamos deste entendimento.
Configurando o recorrente que, a obrigação de restituição da mala emergia do seu direito de propriedade sobre o mesmo, impunha-se que alegasse e provasse tal direito de propriedade.
Como é doutrina e jurisprudência pacífica, a causa de pedir em acção de reivindicação é de natureza complexa, compreendendo tanto o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade do demandante como a detenção ou posse abusiva da coisa pelo demandado (vide, entre muitos outros, os Acórdãos da RL, de 06.07.1977:CJ, 4º-926; da RL, 14.07.1981: BMJ, 315-307’ Neste sentido, A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, 848; A. Varela, RLJ, 115º-271 e ss.).
Sendo os traços típicos da acção de reivindicação, como decorre do preceituado no artigo 1311.º do Código Civil, a afirmação da qualidade de proprietário e a detenção ilícita por banda do demandado (cfr., a título de exemplo, os acórdãos do STJ, de 26.04.1994 e de 09.10.2007, CJ do Supremo, Ano II, Tomo II, página 62, e Ano XV, Tomo III, página 90, respectivamente), a alegação e prova do direito de propriedade do demandante e da detenção por parte do demandado, ou seja, da causa de pedir, cabem àquele, por via do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC; provada a propriedade e detenção nos moldes indicados, caberá ao demandado provar que detém a coisa a título legítimo, se quiser eximir-se à condenação.
Nestas acções, a causa de pedir reside no acto ou facto de que deriva o direito de propriedade, constituindo o reconhecimento do direito de propriedade o efeito jurídico que com a acção se pretende obter, de que deriva, como consequência lógica, a entrega.
Por outro lado, se o réu não demonstra a legítima recusa da restituição, sempre a acção teria que proceder.
No caso concreto, o autor alega que a mala era propriedade da falecida e isso não é posto em causa, como também não é posto em causa que o réu a tenha recebido e não a tenha devolvido à falecida. Tudo isso é admitido pelo réu.
Logo, está assente o direito de propriedade e a detenção.
No entanto, não basta o reconhecimento do direito de propriedade do autor para que a obrigação de restituir a coisa reivindicada seja imposta.
Se o detentor ou possuidor da coisa reivindicada demonstrar que é titular de algum direito (real ou obrigacional), licitamente constituído e, por isso, compatível com o direito do proprietário, situação em que não existirá fundamento para ordenar a restituição da coisa reivindicada – neste sentido, Ac. STJ de 09-04-2019, Processo: 697/10.3TCFUN.L1.S1, Relator: Maria Olinda Garcia.
Ora, tendo o réu alegado como justificação da não devolução da mala, o facto de a falecida se ter desinteressado e solicitado que a mandasse para o lixo, cabia ao mesmo demonstrar tal facto, o que não fez.
É que, tendo a acção como objecto final a restituição da coisa, então, «havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei» (n.º 2 do artigo 1311.º), ou seja, mediante a prova pelo réu de factos integradores de qualquer «relação obrigacional ou real impeditiva ou extintiva do direito» (artigo 342.º);
Ou seja, não impende, em suma, sobre o autor o ónus da prova da falta de título ou da ilegitimidade da detenção da coisa pelo réu, antes a este competindo provar que essa detenção procede da titularidade de uma daquelas relações obrigacionais ou reais impeditivas ou extintivas – vide, neste sentido, por ex., Ac. STJ de 13-01-2005, Processo 04B3387, relator: Lucas Coelho.
O réu não fez essa prova e por isso não há razão para se julgar justificada a sua detenção da mala e como tal, não pode deixar de proceder o pedido de restituição ou subsidiariamente o pagamento do valor da mesma, que será apurado em liquidação, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC.

Sumário: (…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso e em consequência revogar a decisão recorrida, julgando a acção procedente, condenando-se o réu a devolver ao Autor, a mala Hermes e a título subsidiário (caso não proceda à entrega da mala) a pagar ao autor o valor da mala, apurado através de liquidação nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC.
Custas em ambas as instâncias pelo réu.
Évora, 07.11.2023
Elisabete Valente
Ana Pessoa
Albertina Pedroso