Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2172/17.6T8LLE-D.E1
Relator: GRAÇA ARAÚJO
Descritores: VENDA JUDICIAL
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
À exequente que adjudicou o bem penhorado por quantia inferior à exequenda não é exigível o adiantamento da parte que cabe ao Estado nos juros previstos no nº 4 do artigo 829º-A do Cód. Civ. para que lhe seja passado o título de transmissão do bem.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

AA instaurou contra Aymana Holdings Limited e Urbaniagara – Investimentos Imobiliários, Lda. execução para pagamento da quantia de 960.000,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação na acção declarativa e, bem assim, os juros previstos no artigo 829º nº 5 do Cód. Civ., à taxa de 5% e desde a mesma data.

Foi aceite a proposta apresentada pela exequente para aquisição da fracção autónoma penhorada nos autos.

Decidiu o agente de execução que, para que fosse emitido o título de transmissão do imóvel, deveria a exequente - uma vez que estava dispensada do pagamento do preço - para além de comprovar o pagamento dos impostos devidos, liquidar os honorários e despesas do agente de execução, os juros devidos aos cofres do Estado e os custos inerentes à transmissão de bens.

Na nota discriminativa então elaborada, o agente de execução computou em 73.253,42€ os “juros compensatórios (deduzido de 50%) (calculado sobre o montante recuperado)”.

A exequente apresentou reclamação daquelas decisão e nota, na parte respeitante à sua obrigação de liquidar o valor devido aos cofres do Estado a título de sanção pecuniária compulsória, invocando, em síntese, que: o seu crédito – no montante de 960.000,00€, acrescido de juros de mora e dos juros previstos no nº 4 do artigo 829º-A do Cód. Civ., foi graduado em 1º lugar; o preço que ofereceu pela fracção é de 500.000,00€; o crédito do Estado a metade dos referidos juros não sai precípuo do produto dos bens penhorados. Mais declarou a exequente pretender imputar a quantia de 500.000,00€ ao capital de 960.000,00€ e pediu que o tribunal revogasse parcialmente a decisão do agente de execução e ordenasse a reforma da nota discriminativa.

Notificado para se pronunciar, o agente de execução disse aguardar a decisão judicial.

O Ministério Público secundou a decisão do agente de execução e a nota discriminativa.

Os demais intervenientes processuais nada disseram.

A 1ª instância proferiu, então, decisão, julgando a reclamação improcedente, com a seguinte fundamentação:

Na sequência do requerido pela exequente, por decisão do agente de execução foi-lhe adjudicada o imóvel penhorado pelo valor de 500.000,00 euros, constando nessa decisão que a exequente que se encontrava dispensada do depósito do preço, no entanto, estando obrigada ao pagamento da “liquidação de honorários e despesas do ora Agente de Execução, dos juros devidos aos cofres do estado, bem como dos respetivos custos inerentes à transmissão dos bens”.

Assim, foi a exequente notificada para proceder ao pagamento dos honorários e despesas do agente de execução no valor de 13.985.36 euros e dos juros compulsórios devidos ao Estado no valor de 73.253,42 euros, tudo de acordo com os valores liquidados na nota discriminativa.

Ora, a questão que se discute nesta questão é apenas a de saber se a exequente, adjudicante do bem, está dispensada do depósito do valor correspondente aos juros compulsórios devidos ao Estado, no montante de 73.253,42 euros (sendo certo que nem se discute a exigibilidade dos juros compulsórios).

Ora, como previsto no art.º 541º do Código de Processo Civil, as custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução saem precípuas do produto dos bens penhorados

Em segundo lugar, dever-se-á ter presente que os juros compulsórios serão sempre calculados nos termos legais (aliás, sendo devidos automaticamente como previsto no art.º 829-A, n.º 4, do Código Civil e calculados até ao pagamento integral) e sendo feita a imputação com preferência sobre o crédito do exequente e nos termos previstos no n.º 3 do art.º 716º do Código de Processo Civil.

Por isso, previamente à satisfação do crédito exequendo, deverá ainda ser satisfeito o pagamento dos juros compulsórios devidos ao Estado, sendo certo que no art.º 815º do Código Civil, o exequente adquirente dos bens pela execução está dispensado apenas do depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber.

Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17/1/2019, proc.º n.º 2720/16.9T8ENT.E1, in www.dgsi.pt/.

Por último e a propósito do alegado pela exequente, importa salientar que aqui não se trata de fazer a exequente pagar os juros compulsórios devidos ao Estado, que continuam a ser suportados pela executada, mas apenas de não dispensar o depósito (significando que continuará por pagar uma maior parte da quantia exequenda). Aliás, tal como sucede no caso do terceiro que adquire um bem pela execução e em que o preço por ele depositado servirá em primeiro lugar para pagar as custas, despesas e honorários do agente de execução e juros compulsórios, sem que por isso se possa afirmar que esse terceiro está a suportar o pagamento das custas ou dos juros compulsórios

Em conclusão, deverão manter-se a nota discriminativa e a decisão do agente de execução que determinou o deposito pelo exequente do valor dos juros compulsórios devidos ao Estado.”.

A exequente interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

a) O imóvel penhorado nos autos foi adjudicado à Apelante, a qual está dispensada de proceder ao depósito do preço, sendo responsável por demonstrar, nos autos, apenas, o pagamento dos impostos devidos pela transmissão, bem como as despesas e honorários devidos ao Sr. Agente de Execução;

b) A decisão do Sr. Agente de Execução que ordena que a Apelante proceda ao pagamento do valor relativo a juros compulsórios é, portanto, ilegal;

c) O Estado não é um credor graduado com preferência com relação ao crédito da Apelante, nem tal decorre do Art. 716º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil;

d) Por outro lado, o crédito de juros do Estado não sai precípuo do produto da venda do bem penhorado, não constando do elenco do Art. 541º do Cód. Proc. Civil; a interpretação contrária é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade (Art. 18º da CRP) e propriedade privada (Art. 62º da CRP);

e) Ainda que assim não fosse, a Apelante prescindiu dos juros compulsórios que lhe caberiam, pelo que não lhe cabe suportar tal pagamento, mas sim à Apelada, tendo em conta a finalidade do estabelecimento de tais juros, ou seja, pressionar o devedor a pagar;

f) Interpretar e conjugar as normas do Cód. Proc. Civil sobre esta matéria no sentido de que a Apelante é responsável pelo pagamento do valor dos juros compulsórios, e que os mesmos têm preferência sobre o seu crédito, é manifestamente injusto, por contrariar frontalmente a razão de ser do instituto em causa, que é a penalização do devedor;

g) Tal interpretação conduz a uma dupla penalização do credor, que é, por um lado, penalizado pelo atraso no recebimento da quantia exequenda e, por outro, pelos juros devidos por esse atraso, a que não deu causa;

h) No entender da Apelante, a douta decisão violou as regras legais mencionadas no corpo das presentes alegações, nomeadamente os arts. 541º e 716º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil,

bem como os Arts. 18º e 62º da CRP;

i) Em face do exposto, requer a V. Exas. julguem procedente o presente recurso, revogando o douto despacho recorrido e substituindo-o por outro que determine que a Apelante não é responsável pelo pagamento dos juros compulsórios supostamente devidos ao Estado, no valor de 73.253,42 EUR, ordenando ainda a reforma da nota discriminativa de custas e despesas do Sr. Agente da Execução, de forma a não incluir a referida verba como sendo devida aos cofres, com prioridade sobre o crédito exequendo de capital, sob pena de grave injustiça.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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Os factos relevantes para a economia do presente recurso são os que constam do relatório, estando ainda assente que o crédito exequendo foi graduado em 1º lugar.


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A única questão a decidir é a de saber se à exequente que adjudicou o bem penhorado por quantia inferior à exequenda é exigível o adiantamento da parte que cabe ao Estado nos juros previstos no nº 4 do artigo 829º-A do Cód. Civ. para que lhe seja passado o título de transmissão do bem.

A sanção pecuniária compulsória é, por definição, um meio indirecto de constrangimento (…), destinado a induzir o devedor a cumprir a obrigação a que se encontra adstrito e a obedecer à injunção judicial.” - Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Separata do volume XXX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1987:393. Tais finalidades justificam que o montante da sanção se destine, em partes iguais, ao credor e ao Estado (nº 3 do artigo 829º-A do Cód. Civ.).

(…) a sanção pecuniária compulsória analisa-se numa medida coercitiva, de carácter patrimonial, seguida de sanção pecuniária na hipótese de a condenação principal não ser obedecida e cumprida.” – Calvão da Silva, obra citada:394. Por isso, a sanção deve ser mensalmente liquidada pelo agente de execução e notificada ao executado/devedor (artigo 716º nº 3 do Cód. Proc. Civ.), para que o mesmo “fique ciente de quanto a mais deve ao exequente e ao Estado em função do arrastar do seu inadimplemento” (Ac. RP de 11.1.21, in http://www.dgsi.pt, Proc. nº 6040/06.9TBVNG-D.P1)

Os juros devidos por força do disposto no nº 4 do artigo 829º-A do Cód. Civ. – que, por comodidade, doravante designaremos por juros compulsórios – não têm natureza indemnizatória e são independentes, quer de eventuais juros de mora, quer de eventual indemnização (Calvão da Silva, obra citada:454).

O exequente que adquira bens pela execução é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem a receber – artigo 815º do Cód. Proc. Civ.. No caso em apreço, o crédito da exequente está graduado em 1º lugar, sendo certo que a quantia a depositar (500.000,00€) é inferior à quantia exequenda (960.000,00, acrescida de juros). Pelo que, por via do referido preceito, a exequente nada teria que depositar.

Sucede que as custas da execução, apensos e respectiva acção declarativa e, ainda, os honorários e despesas devidos ao agente de execução saem precípuas do produto dos bens penhorados (artigo 541º do Cód. Proc. Civ.), sendo que as custas integram a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (artigos 3º nº 1, 6º nº 1, 16º nº 1 e 25º nº 2 do Reg. Custas Proc.). Não se integrando em qualquer uma destas categorias, os juros compulsórios não gozam da precipuidade a que alude o artigo 541º do Cód. Proc. Civ. Assim sendo e considerando a nota discriminativa elaborada pelo agente da execução, à exequente cabe depositar 13.985,36€, correspondente aos honorários e despesas do agente de execução ainda por liquidar.

Aliás, não está prevista a liquidação dos juros compulsórios aquando da adjudicação à exequente do bem penhorado quando o produto da venda não é suficiente para conduzir ao pagamento integral da quantia exequenda (artigo 716º nº 3 do Cód. Proc. Civ.).

Acresce que, sendo a executada Aymana a única devedora dos juros compulsórios (só ela foi condenada no seu pagamento, detendo a sociedade Urbaniagara a qualidade de executada na medida em que adquiriu o imóvel que veio a ser penhorado e, por isso, foi condenada a reconhecer o direito de retenção da exequente) e desses juros sendo credores, em partes iguais, a exequente e o Estado, não descortinamos norma que imponha à exequente o adiantamento (posto que ela nada recebeu a tal título) ao Estado da parte dos juros compulsórios que a este cabe receber (em sentido idêntico, vd. Ac. RG de 11.5.17, in http://www.dgsi.pt, proc. nº 90/14.9TBVFL-E.G1).


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Por todo o exposto, acordamos em julgar procedente a apelação e, em consequência:

A) Revogamos a decisão recorrida;

B) Revogamos a decisão do agente de execução de 20.9.22 na parte em que, por considerar a exequente responsável pela liquidação “dos juros devidos aos cofres do Estado”, condiciona a emissão do título de transmissão do imóvel penhorado à prévia liquidação dessa verba;

C) Ordenando a reforma da nota discriminativa de 19.9.22, com a eliminação da rubrica “3. Devido aos cofres”.

Custas pelos apelados.

Évora, 7 de Novembro de 2023


Maria da Graça Araújo

Manuel Bargado

José Penetra Lúcio