Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1413/21.0T8LLE.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DO RAMO DE VIDA
DECLARAÇÕES INEXACTAS
OBRIGAÇÃO DE INFORMAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. Nos termos do artigo 26.º, n.º 4, alínea b), da Lei do Contrato de Seguro, «[s]e, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes [o] segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio».
2. Assim, em caso de se verificação do sinistro, a seguradora não responde pelo risco quando ocorram cumulativamente os seguintes requisitos:
(i) Ocorrência de uma declaração inicial do risco por parte do tomador do seguro ou do segurado com elementos desconformes à realidade ou insuficientes para a caracterização da situação segura
(ii) Natureza considerável, expressiva, significativa, de tais elementos desconformes ou omitidos na apreciação do risco pelo segurador;
(iii) Descuido, distração, incúria, quanto ao preenchimento da declaração inicial do risco e no que respeita àqueles elementos desconformes ou omitidos;
(iv) Nexo de causalidade adequada entre a desconformidade/omissão ocorrida e o sinistro verificado.
3. Para a ocorrência daquele último requisito importa que a circunstância omitida ou insuficientemente declarada tenha uma relação causal com o sinistro, o que significa que se este suceder em razão de causa diversa da circunstância omitida ou deficientemente declarada a seguradora responde pelo risco contratado - «como resulta, a contrario, do n.º 4 do artigo 26.º, se não se verificar» uma «causalidade entre a inexatidão/omissão e o sinistro» o «segurador fica obrigado a cumprir a sua prestação».
4. Não tendo ficado demonstrado que a causa da morte do segurado decorreu de doença que o mesma omitiu ou de um estado clínico que ele declarou de forma imprecisa e que existia aquando da celebração do seguro, ónus da prova que cabia à Ré, conforme artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, concluiu-se que o contrato de seguro de 2015 é válido, pelo que procede nesta parte o recurso interposto.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Real Vida Seguros, S.A. pedindo a condenação da Ré a pagar ao Montepio Crédito, S.A. o valor em dívida no âmbito do contrato de mútuo e a pagar-lhe (a si Autora) a quantia correspondente a todos os valores pagos ao Montepio, S.A., desde .../.../2019, em cumprimento desse contrato de mútuo.
Alegou, em síntese, que ela e o falecido marido BB celebraram um contrato de mútuo com o Montepio Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A. e, por ser exigido, o marido subscreveu a adesão a um contrato de seguro com a Ré, no qual figurou como beneficiário o Montepio, através do qual a seguradora assumiu a obrigação de liquidar o montante em dívida no caso de morte e que o marido da Autora faleceu em .../.../2019 de causa natural, por enfarte do miocárdio.
Referiu que o sinistro foi participado que se recusou a pagar o montante em dívida por conta daquele crédito sustentando terem sido omitidas informações relevantes aquando da subscrição do contrato de seguro, cujo prévio conhecimento teria sido razão para não aceitação do risco, que o marido não estava contratualmente obrigado a informar os antecedentes patológicos conhecidos e que, apesar de se tratar de um contrato de adesão, não lhe foram comunicadas quaisquer cláusulas pela Ré.
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A Ré contestou, excecionando a incompetência territorial, bem como a ilegitimidade ativa da Autora por preterição de litisconsórcio necessário ativo, uma vez que intentou a ação desacompanhada dos demais herdeiros do falecido.
No mais, aceitou a factualidade inerente aos termos e condições do contrato, bem como à participação do sinistro, mas sustentou que o marido da Autora, ali segurado, aquando da subscrição do contrato de seguro omitiu voluntariamente as patologias que padecia, sabendo que o conhecimento das mesmas era determinante para a Ré avaliar o risco e, com esse fundamento, invocou a anulabilidade do contrato, porquanto se tivesse tido conhecimento de tais factos não teria aceitado celebrar o mesmo.
Concluiu pugnando pela absolvição da instância e, subsidiariamente, pela absolvição do pedido.
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A Autora respondeu às exceções, pugnando pela respetiva improcedência e alegando que aquando da subscrição do contrato não foram explicadas quaisquer cláusulas contratuais, bem como não foi apresentado qualquer questionário clínico ou pedidos exames médicos, sendo que as patologias não foram a causa da morte e referindo que ainda que tivesse existido omissão de informação, a mesma foi negligente e já não lhe pode ser oposta, invocando a cláusula de incontestabilidade contida no contrato e no artigo 188.º do RJCS.
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Foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, no âmbito do qual foram julgadas improcedentes as exceções dilatórias de incompetência territorial e de ilegitimidade ativa, e procedeu-se à identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
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Realizou-se Audiência Final, vindo a ser proferido sentença com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, julgo a acção totalmente improcedente, por não provada, e, por conseguinte, absolvo a Ré dos pedidos.(…)”
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Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpôs recurso, extraindo das respetivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:
“91. Os argumentos da Recorrente são, em suma, os seguintes:
a. A Recorrente requer a alteração da matéria de facto nos seguintes termos:
i. Deve ser aditado o seguinte facto: “Finibanco- Vida, Companhia de Seguros de Vida S.A. não realizou um procedimento de avaliação de risco”,
ii. O facto provado n.º 22 deve passar a ter a seguinte redação: “Aquando da adesão ao contrato de seguro referida em 4) BB omitiu as patologias e o acompanhamento clínico”,
iii. Deve ser aditado aos factos não provados: “BB sabia que as patologias e o acompanhamento clínico eram determinantes para a Ré proceder à avaliação do grau de risco a cobrir”
iv. O facto provado n.º 25 deve ser dado como não provado.
b. Os meios probatórios e demais ónus previstos no art. 640.º do Cód. Proc. Civil, que permitem concluir pela reforma da decisão de facto no sentido indicado, estão indicados detalhadamente supra nos §§ 45.º a 47.º.
c. Em face da procedência da impugnação de facto requerida, a Recorrida deve ser condenada nos exatos termos peticionados, pelos seguintes motivos:
i. O marido da Recorrente (segurado) não tinha o dever de declarar as patologias pré-existentes porque a seguradora demonstrou, no caso concreto, que as mesmas não eram significativas, pelo que não houve uma violação do art. 24.º, n.º 1 do RJCS.
ii. Ainda que tivesse existido uma violação desse dever, a omissão não pode ser tida como dolosa, mas meramente negligente.
iii. Apenas se verifica uma omissão dolosa do dever referido no n.º 1 do art. 24.º da RCJS quando o segurado, na declaração inicial de risco, utiliza qualquer sugestão ou artifício com a intenção ou a consciência de induzir em erro o segurador - Art. 253.º do Cód. Civil.
iv. No caso concreto, não resulta da matéria dada como provada que o marido da Recorrente tenha tido a intenção de induzir a seguradora em erro.
v. Ao abrigo do art. 188.º, n.º 1 do RJCS (cláusula de incontestabilidade), por estar em causa um seguro de vida, a Recorrida não se pode prevalecer de uma alegada omissão negligente, na medida em que já passaram mais de dois anos sobre a celebração do contrato, que ocorreu em 10/02/2015.
vi. Caso V. Exas. entendam que a cláusula de incontestabilidade não deve operar neste caso, ainda assim a Recorrida deverá assumir totalmente a responsabilidade do sinistro por aplicação do art. 26.º, n.º 4 a contrario do RJCS, na medida em que não resulta da matéria provada que as patologias pré-existentes influenciaram a ocorrência do óbito.
vii. Se, por outro lado, V. Exas. considerarem que a alegada omissão foi dolosa, não poderá, ainda assim, o contrato de seguro ser anulado, tal como excecionado pela Recorrida.
viii. Sendo o dolo do art. 25.º, n.º 1 do RJCS aquele que está previsto no art. 253.º, isso tem como consequência a necessidade da verificação da dupla causalidade exigida nos artigos 253.º e 254.º do Código Civil: o dolo tem de ser causa do erro do segurador e o erro tem de ser essencial, sendo a causa da anulabilidade.
ix. Assim, para anular o contrato de seguro, a Recorrida teria que ter demonstrado que a seguradora contratante não teria celebrado o contrato, se conhecesse o erro, o que não foi alegado nem provado.
x. O contrato objeto deste processo foi celebrado pela Finibanco-Vida (factos provados n.º 4 a 6), Companhia de Seguros de Vida S.A. que foi, mais tarde, incorporada pela Recorrida (facto provado n.º 9), mas não por esta.
XI. Não importa, neste caso, saber se a Recorrida teria celebrado ou não o contrato de seguro se soubesse do erro, porque, não tendo sido ela a celebrar o contrato aqui em causa, não foi ela que foi, alegadamente, induzida em erro.
xii. No entanto, não ficou provado que a Finibanco - Vida, Companhia de Seguros de Vida S.A. não teria celebrado o contrato se soubesse das patologias pré-existentes.
xiii. A entidade Finibanco - Vida, Companhia de Seguros de Vida S.A. era, até ser incorporada na Recorrida, autónoma e com procedimentos internos próprios de avaliação do risco, que não se podem ter como idênticos aos da Recorrida, por isso não ter ficado provado.
xiv. Ainda que o relevante fosse apurar a essencialidade do erro para a Recorrida, a mesma tem que se ter por não demonstrada, face à procedência da impugnação do facto provado n.º 25.
xv. Por fim, se não existiu um procedimento de avaliação do risco, a Recorrida não se pode prevalecer de uma alegada violação do dever previsto no art. 24.º, n.º 1 do RJCS, que tem como principal intuito dotar as seguradoras de todas as informações para uma cabal avaliação do risco, por isso consubstanciar uma clara atuação em abuso do direito.
d. A douta sentença recorrida violou as normas jurídicas referidas ao longo da presente peça, em especial os artigos 24.º a 26.º do RJCS e o art. 253.º do Cód. Civil.
92. Por tudo o exposto, requer-se a V. Exas. a reforma da douta sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue a ação totalmente procedente.
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A Ré contra-alegou, pugnando pela improcedência da impugnação da matéria de facto e concluindo que atenta a matéria produzida nos autos, com a qual referiu concordar, assiste à Ré o direito à anulação do contrato de seguro, nos termos do disposto no artigo 25.º da Lei do Contrato de Seguro, e, por conseguinte, à exclusão da sua responsabilidade no pagamento à Autora dos valores peticionados nos autos, devendo a sentença manter-se na íntegra.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Código de Processo Civil, nos presentes autos, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:
- Impugnação da matéria de facto;
- Da validade do contrato de seguro e da responsabilidade da Ré pelo pagamento das quantias peticionadas pela Autora.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Na sentença recorrida foram considerados provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos [transcrição]:
1) No dia 19.02.2015 a Autora e o marido BB celebraram com o Montepio Crédito - Instituição Financeira de Crédito, S.A., por escrito particular, um contrato de mútuo com o n.º..., nos termos do qual esta lhes emprestou a quantia de 22.094,08€ para aquisição do veículo automóvel Ford C-Max com a matrícula ..-OR-..;
2) Na cláusula 20.1 das Condições Gerais do contrato referido em 1) ficou estipulado que os mutuários, Autora e o marido, eram obrigados, durante a vigência do contrato de mútuo “ (…) a manter, válido e em vigor, um seguro de vida que, em caso de morte ou invalidez, absoluta e definitiva, cubra o pagamento dos débitos emergentes do Contrato vencidos ou vincendos à data da sua ocorrência.”;
3) Na cláusula 20. das Condições Gerais do contrato referido em 1) sob a epígrafe “Seguros” ficou, ainda, estipulado “20.3. O MC deverá figurar nas apólices de seguro como beneficiária irrevogável dos seguros.
20.4. As apólices deverão mencionar expressamente que, em caso de sinistro de qualquer natureza, a indemnização será paga directamente pela Seguradora ao MC.
20.5. Para os efeitos dos seguros referidos em 20.1.e 20.2., o CLP poderá aderir aos Boletim de Adesão em anexo, subscrito pelo MC na qualidade de Tomador de Seguro.”.
4) Devido ao referido em 2), para garantia do cumprimento do contrato de mútuo, o marido da Autora subscreveu a declaração de adesão ao contrato de seguro de grupo contributivo, ramo vida – protecção de crédito celebrado entre o Montepio Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A. na qualidade de Tomador de Seguro, e a Finibanco – Vida, Companhia de Seguros de Vida, S.A. na qualidade de Seguradora, denominado “Plano de Protecção Total”, titulado pela Apólice n.º ...70, composto por um conjunto de cláusulas pré-elaboradas sem prévia negociação individual.
5) Nos termos do contrato de seguro referido em 4) a Finibanco – Vida, Companhia de Seguros de Vida, S.A. assumiu, entre outros, o risco de morte e de invalidez absoluta e definitiva da pessoa segura, in casu, do marido da Autora, com início em 26.02.2015, mediante o pagamento de um prémio inicial de 478,14€.
6) A Finibanco – Vida, Companhia de Seguros de Vida, S.A., por via do contrato referido em 4), assumiu a obrigação de liquidar o montante em dívida à Montepio Crédito, S.A. em caso de morte.
7) Na primeira página do formulário da declaração de adesão referida em 4) onde o marido da Autora apôs a assinatura, antes da mesma e sob a epígrafe “Declarações” consta “Declaro que, em conjunto com o meu contrato acima identificado, desejo subscrever o Plano Protecção Vida PPV, prestando o meu necessário consentimento. (…)
Para esse efeito, declaro ter entre 18 (dezoito) e 64 (sessenta e quatro) anos, ter conhecimento que estão excluídas todas as patologias pré-existentes à data da adesão a este seguro e toda ou qualquer patologia futura com relação directa ou indirecta com as mesmas.
Para o Plano de Protecção Total (PPT), confirmo estar a desempenhar regularmente, no mínimo, 16 (dezasseis) horas semanais, uma actividade profissional nos últimos 12 (doze) meses, sem ter conhecimento de um possível desemprego, conforme definido nas condições gerais da protecção que subscrevo.
Declaro ainda ter tomado conhecimento das condições gerais da protecção que subscrevo constantes no presente documento, e das respectivas exclusões, prestando desde o meu consentimento para ser contactado por qualquer meio de comunicação à distância para efeitos de eventual subscrição de coberturas adicionais. Para esse efeito, a informação contida neste documento será válida até informação escrita em contrário.
Declaração inicial de Risco
Mais garanto ter declarado com exactidão todas as circunstâncias do meu conhecimento e que são relevantes para a apreciação do risco pelos Seguradores, tendo tomado conhecimento através do presente documento das consequências da prestação de informações inexactas ou da omissão de informações relevantes.(…)”.
8) Para aceitação do seguro a Finibanco – Vida, Companhia de Seguros de Vida, S.A. não pediu que o marido da Autora preenchesse questionário médico e não exigiu a realização de exames médicos.
9) A Finibanco Vida- Companhia de Seguros de Vida, S.A. foi incorporada pela Ré Real Vida, Seguros, S.A., tendo o respectivo registo de fusão tido lugar através da Ap. 233/20161227.
10) O marido da Autora faleceu em .../.../2019, aos 43 de idade, por enfarte do miocárdio recorrente, por miocardiopatia hipertrófica e aterosclerose generalizada grave de que sofria.
11) A Montepio Crédito, S.A., beneficiária do seguro, foi informada, em 19.11.2019[2], através de correio electrónico, de que se tinha verificado o sinistro, recebendo a respectiva documentação.
12) O sinistro foi participado à Ré e solicitado o accionamento das garantias do contrato de seguro, in casu, a cobertura morte.
13) Na sequência do referido em 12) a Ré remeteu à Autora carta datada de 26.11.2019 com o seguinte teor “ Exmo (a) Senhor(a),
Confirmamos a recepção, da participação do sinistro que V. exa. remeteu, tendo em vista o accionamento das garantias do Seguro de Vida, assunto que mereceu a nossa melhor atenção.
Vimos pelo presente informar V. Exa. que, para que possamos prosseguir com a análise do processo de sinistro, torna-se necessário que nos sejam remetidos os seguintes documentos/elementos:
- relatório do médico assistente sobre os antecedentes clínicos e patologias que tenham constituído directa ou indirectamente causa da morte, com indicação da respectiva data de diagnóstico
- Relatório de autópsia;
- Auto de ocorrência;
- Documento relativo à conclusão do inquérito judicial/pericial
Não obstante o envio da documentação referida, a Real Vida Seguros reserva-se ao direito de solicitar todos os elementos e informações que entender convenientes para melhor esclarecimento da natureza e extensão das suas responsabilidades.(…)”.
14) A Autora, em 08.10.2020, remeteu à Ré o auto de ocorrência, a habilitação de herdeiros, o relatório de autópsia e o relatório do médico assistente, datado de 16.09.2020, sobre antecedentes clínicos.
15) No relatório médico referido em 14), subscrito pela médica assistente Dr.ª CC, foi declarado “Para os devidos efeitos se declara que o utente BB, foi por mim seguido em Consulta de Diabetologia desde Março de 2016 apresentando os seguintes problemas clínicos:
Diagnóstico DM tipo 1 desde os 5 anos de idade medicado com esquema intensivo de insulina, com controlo metabólico adequado à sua situação clínica (última HbA 1C 7,6%). Retinopatia diabética tratada com laser (última consulta de seguimento em abril de 2019). Nefropatia diabética traduzida por microalbuminúria com melhoria após controlo da pressão arterial e com o adequado controlo da diabetes Mellius.
Hipertensão arterial essencial controlada com a medicação Dislipidémia medicada com estatina.
Assim, tendo em conta o acompanhamento clínico do doente os seus antecedentes patológicos estavam bem controlados pelo que não pode considerar que seja causa directa ou indirecta da morte.”.
16) Por carta datada de 14.10.2020, a Ré solicitou à Autora relatório circunstanciado do médico assistente onde constasse a data de diagnóstico de HTA e a sua gravidade em 2015; a data de diagnóstico de dislipidemia e a sua gravidade em 2015 e quais as complicações da diabetes mellitus em 2015.
17) Em resposta ao referido em 16) a Autora remeteu à Ré, em 19.02.2021, o relatório solicitado, datado de 17.02.2021, no qual consta “Para o devidos efeitos se declara que o utente BB, foi por mim seguido em Consulta de Diabetologia desde Março de 2016 apresentando os seguintes problemas clínicos.
-Diagnóstico de Diabetes mellitus tipo 1 desde os 5 anos de idade, medicado com esquema intensivo de insulina, com controlo metabólico adequado à sua situação clínica ( última HbA1C 7,6%);
-Retinopatia diabética, com seguimento na oftalmologia do Hospital de Faro pelo menos desde 2003, tratada com laser (última consulta de seguimento em abril de 2019). No ano de 2015, em registos de consulta de oftamologia, referência a acuidade visual 10/10, assim como na última consulta de 2019.
-Nefropatia diabética traduzida por proteinuria com melhoria após controlo da pressão arterial e com o adequado controlo da Diabetes Mellitus. No ano de 2013 apresentava 859 mg de proteínuria de 24h, reduzido para uma razão albuminuria /creatinuria em 2017 de 99,48 ug/ mg de creatinina. Não tenho dados referentes especificamente ao ano de 2015.
-Hipertensão arterial essencial controlada com a medicação pelo menos desde 2016 quando iniciou seguimento na minha consulta. Não tenho dados que me permitam inferir o controlo em 2015.
-Dislipidémia conhecida pelo menos desde 2003 e medicada com estatina, ultimamente com bom controlo (análises de 2015 com colesterol total 254 mg/dL e colesterol LDL 190 mg/dL que passou em 2016 para colesterol total de 113mg/dL e LDL 66 mg/dL e em 2018 para colesterol total de 182mg/dL e LDL 107mg/dL).
Assim tendo, em conta o acompanhamento clínico do doente no periodo 2016 a 2019 os seus antecedentes patológicos estavam bem controlados pelo que não pode considerar que seja causa directa ou indirecta da morte.”.
18) A Ré remeteu à Autora carta datada de 04.03.2021 com o seguinte teor “No seguimento da análise efectuada pelo nosso departamento médico aos elementos remetidos, na sequência de participação de sinistro, constata este departamento que, aquando da subscrição do contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ...70, foram omitidas informações relevantes por parte da Pessoa Segura, sendo certo que, o seu conhecimento prévio seria razão suficiente e determinante para a não aceitação do risco por parte do Segurador.
Em face do referido, suportados no estabelecido no 20.2 das Condições Pré-Contratuais constantes da Declaração de Adesão e Condições Contratuais subscritas pela pessoa segura — "Ficam ainda excluídos das garantias da Protecção Vida as situações de morte ou invalidez que resultem, directa ou indirectamente, de afecções, anomalias congénitas, incapacidades físicas ou mentais existentes e do conhecimento da Pessoa Segura à data de inicio das garantias da Apólice" informamos que a Real Vida Seguros S.A. declina toda e qualquer responsabilidade relativamente ao seguro em causa, pelo que não assumirá o pagamento do tespedwo capital, decisão que será comunicada à Montepio Crédito S.A. na sua qualidade de beneficiário irrevogável.“.
19) O falecido BB, em data anterior a 10.02.2015, apresentava diagnóstico de diabetes mellitus 1 desde os 5 anos de idade, medicado com esquema intensivo de insulina; retinopatia diabética, com seguimento da oftalmologia do Hospital de Faro pelo menos desde 2013; nefropatia diabética traduzida por proteinuria e dislipidemia conhecida desde pelo menos 2003 e medicada.
20) Devido ao referido em 19) tinha acompanhamento médico regular no Hospital de Faro e no Centro de Saúde de Quarteira e tomava medicação.
21) As doenças referidas em 19) constituem factores de risco para doenças cardiovasculares.
22) Aquando da adesão ao contrato de seguro referida em 4) BB omitiu, voluntariamente, as patologias e o acompanhamento clínico, sabendo que tais factos eram determinantes para a Ré proceder à avaliação do grau de risco a cobrir.
23) A Ré apenas teve conhecimento das patologias que o segurado padecia após a participação do sinistro.
24) Por não ter tido conhecimento dos factos referidos em 19) e 20) a Ré não pode avaliar a previsibilidade do risco que se pretendeu transferir.
25) Se a Ré tivesse tido conhecimento das patologias do marido da Autora não teria aceitado a sua adesão às garantias do contrato de seguro.
26) Na data do óbito do marido da Autora estava por liquidar, no âmbito do contrato de mútuo, o valor de 10.882,88€.
27) A Autora tem continuado a pagar as prestações do contrato de mútuo.
28) À data de 10.02.2022 o montante do capital em dívida ascendia a 5.474,82€.
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III.2 Na sentença recorrida considerou-se que não se provou que:
- Aquando da subscrição da adesão ao contrato, referida em 4) foi explicado o teor das cláusulas insertas no contrato.
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III.3. Da impugnação da matéria de facto.
A Apelante entende que foram incorretamente julgados factos, requerendo que:
- seja aditado à factualidade provada que “A Finibanco- Vida, Companhia de Seguros de Vida S.A. não realizou um procedimento de avaliação de risco”;
- o facto provado n.º 22 seja alterado passando a ter a seguinte redação: “Aquando da adesão ao contrato de seguro referida em 4) BB omitiu as patologias e o acompanhamento clínico”;
- em consequência, seja aditado à matéria não provada que: “BB sabia que as patologias e o acompanhamento clínico eram determinantes para a Ré proceder à avaliação do grau de risco a cobrir”;
- o facto n.º 25 seja dado como não provado.
A Recorrida pugnou pela improcedência da pretensão recursiva neste ponto.
É sabido que o objeto do conhecimento do Tribunal da Relação em matéria de facto é conformado pelas alegações e conclusões do recorrente – este tem, não só a faculdade, mas também o ónus de no requerimento de interposição de recurso e respetivas conclusões, delimitar o objeto inicial da apelação – cf. artigos 635º, 639º e 640º do Código de Processo Civil.
Assim, sendo a decisão do tribunal «a quo» o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo artigo 640º – indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, e os meios de prova constantes do processo que determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos - a Relação, como tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, a fim de reparar qualquer erro na respetiva apreciação.
Recorde-se que o artigo 640.º do CPC, com a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe, no seu n.º 1 o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Entre as diversas decisões que têm versado sobre o aludido ónus, destacamos, pela respetiva clareza o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2023 (Proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1), no qual pode ler-se:
“29. O Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2.
30. O ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três:
Em primeiro lugar, “[o] recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” [2]. Em segundo lugar, “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” [3]. Em terceiro lugar, deve indicar, na motivação, “a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”[4].
31. O critério relevante para apreciar a observância ou inobservância dos ónus enunciados no art. 640.º do Código de Processo Civil — logo, da observância ou inobservância do ónus primário de delimitação do objecto — há-de ser um critério adequado à função[5], conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[6] [7].
32. O requisito de que o critério seja adequado à função coloca em evidência que os ónus enunciados no art. 640.º pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso [8] e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido [9]. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade pronunciam-se sobre a relação entre a gravidade do comportamento processual do recorrente — inobservância dos ónus do art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — e a gravidade das consequências do seu comportamento processual: a gravidade do consequência prevista no art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — rejeição do recurso ou rejeição imediata do recurso — há-de ser uma consequência adequada, proporcionada e razoável para a gravidade da falha do recorrente[10].
33. Entre os corolários dos requisitos de que o critério seja adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade está o de que “a decisão de rejeição do recurso […] não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal […] face ao grau de dificuldade que [a inobservância dos ónus do art. 640.º] acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso”[11]”.

Tendo a Recorrente dado integral cumprimento aos indicados ónus cumpre proceder à análise da impugnação.
Procedeu-se à audição integral da prova produzida em audiência de julgamento e à conjugação da mesma com a prova documental junta aos autos.
Relativamente ao facto que se pretende ver aditado – “A Finibanco- Vida, Companhia de Seguros de Vida S.A. não realizou um procedimento de avaliação de risco” - indica a Apelante para o efeito, as declarações prestadas pela testemunha DD, enunciando as razões pelas quais considera que as mesmas devem ser atendidas, reproduzindo algumas das declarações prestadas pela referida testemunha e indicando as passagens da gravação correspondentes, o boletim de adesão junto como documento 2 com a petição inicial e o facto provado n.º 8.
Afigura-se, porém, que tais elementos de prova não permitem extrair mais do que já consta dos factos considerados na sentença recorrida, sob os ns. 4, 7 e 8 e do documento que na sentença recorrida se designou de “formulário de declaração de adesão” ao “contrato de seguro de grupo contributivo” “composto por um conjunto de cláusulas pré-elaboradas sem prévia negociação individual”.
Por um lado, porque como a testemunha DD - responsável do crédito na empresa em que a Autora e o marido adquiriram o veículo em causa nos autos - declarou várias vezes, apenas tem intervenção na avaliação da capacidade financeira dos pretendentes do crédito, antes da aprovação do crédito, após o que os documentos são enviados para a empresa financeira e para a seguradora, para aprovação do crédito, sendo depois, em caso de aprovação do crédito, os documentos devolvidos ao stand, já assinados pela financeira e pela seguradora, para serem assinados pelos clientes.
Esclareceu que desconhece os procedimentos que têm - ou no caso concreto - tiveram lugar no âmbito da aprovação do contrato de crédito e do contrato de seguro entre o momento em que o crédito foi solicitado e aquele em que os documentos foram devolvidos à empresa onde exerce funções para ser colhida a assinatura dos clientes, esclarecendo ainda que os documentos não foram assinados na sua presença, nem ter estado presente em qualquer conversa entre o vendedor e a ora Autora e o marido, não tendo, pois, conhecimento direto do teor das negociações relativas aos contratos em causa nos autos.
Não pode, pois, da prova produzida extrair-se o facto negativo de omissão de todo e qualquer procedimento de avaliação de risco, mas apenas o que já consta dos factos provados supra indicados.
Improcede, pois, a impugnação neste ponto.
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Entende a Apelante que o facto n.º 22 deve ser alterado por forma a que se considerem não provados os segmentos que a seguir se destacam:
“Aquando da adesão ao contrato de seguro referida em 4) BB omitiu, voluntariamente, as patologias e o acompanhamento clínico, sabendo que tais factos eram determinantes para a Ré proceder à avaliação do grau de risco a cobrir.”
E em face da prova produzida, afigura-se que assiste razão à Apelante, pois como desde logo se reconhece na própria decisão recorrida, não foi produzida prova direta sobre o conhecimento e a vontade do marido da Apelante no momento em que subscreveu o contrato. Note-se que foi considerado pelo Tribunal Recorrido não provado que aquando de tal subscrição tivesse sido explicado o teor das cláusulas inseridas no contrato, o que se motivou na “ausência de prova” da realidade de tais circunstâncias.
Ora, não podendo, assim, considerar-se que as cláusulas do contrato de adesão em causa foram convenientemente explicadas ao subscritor do contrato, e tendo em consideração o contexto em que o contrato de seguro foi celebrado, em que o negócio que era verdadeiramente pretendido era o contrato de mútuo, no qual se exigia a celebração do contrato de seguro em causa (cf. folhas 13 e 17 dos autos), bem como o facto de do mesmo constar que as patologias pré-existentes se encontravam excluídas da cobertura do seguro - como consta da folha de rosto do Boletim de adesão junto como documento n.º 2 à petição inicial (folhas 24) folha essa que se encontra assinada pelo referido BB - não pode excluir-se que o mesmo BB não tivesse realizado no momento da assinatura do contrato, que fosse necessária qualquer declaração adicional.
Note-se que o mesmo se encontrava pré-preenchido, já assinado pela contraparte, e que não lhe foi solicitado o preenchimento de qualquer questionário médico, que realizasse qualquer exame ou entregasse qualquer documento, para além dos já entregues.
Saliente-se que não está aqui em causa o enquadramento jurídico do comportamento do subscritor do contrato, designadamente a análise do dever que sobre o mesmo recaía de conhecer a lei ou os seus deveres - pois essa análise terá de ser realizada no momento posterior, como se apreciará infra – mas apenas o julgamento dos factos em conformidade com a prova produzida.
Procede, pois, nesta parte, a pretensão recursiva, pelo que:
- o ponto 22. dos factos provados passará a ter o seguinte teor: “Aquando da adesão ao contrato de seguro referida em 4) BB omitiu, as patologias e o acompanhamento clínico”;
- passará a constar dos factos não provados que “o referido em 22. tivesse ocorrido porque o marido da ora apelante sabendo que tais factos eram determinantes para a Ré proceder à avaliação do grau de risco a cobrir o tivesse omitido voluntariamente.”
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Finalmente, entende a Apelante que o facto n.º 25 deve ser considerado como não provado.
Recordemos o facto em causa:
- “Se a Ré tivesse tido conhecimento das patologias do marido da Autora não teria aceitado a sua adesão às garantias do contrato de seguro”.
Afigura-se, porém, que não lhe assiste razão.
Não se desconhecem as dúvidas que podem colocar-se às declarações prestadas pela testemunha EE, que sendo certo que demonstrou um especial conhecimento sobre o departamento de subscrição ao serviço da Real Vida Seguros, S.A., sociedade para a qual exerce funções há 18 anos, certo é também que o contrato foi celebrado com a com a Finibanco - Vida (factos provados n.º 4 a 6), com a qual não trabalhou e cujos procedimentos não revelou conhecer, sociedade que apenas posteriormente à celebração do contrato de seguro viria a ser incorporada por fusão na ora Ré.
Porém, sobre este ponto da matéria de facto revelaram-se particularmente esclarecedoras as declarações da testemunha FF, médico especialista em angiologia e cirurgia vascular, que presta serviços para a ora Recorrida há 17 anos, fazendo avaliação de risco médico associado a cada contrato de seguro e também a avaliação do risco depois de um acidente ou sinistro, e que apesar da relação profissional que vem mantendo com a Ré há longos anos, prestou depoimento de forma isenta, credível, fundamentada na longa experiência que leva de avaliação de risco.
Assim, como se refere na sentença recorrida, em passagem que sufragamos integralmente:
“(…)Por seu turno, de forma pormenorizada e igualmente credível a testemunha FF explicou que nos casos em que não é feita indicação de patologias a direcção clínica não é chamada a analisar o processo.
Explicou, ainda, o procedimento adoptado a nível clínico na avaliação do risco e que no caso concreto dos autos existiam três factores de risco vascular que, se tivesse sido levado ao conhecimento da companhia de seguros, teria sido remetido para a direcção clínica para investigação com vista a apurar a gravidade e quantificar o risco médico, e, no caso, afirmou sem hesitação, teria sido recusada a adesão, esclarecendo que a diabetes tem vários factores de gravidade, no caso 32 anos de evolução, o que provoca lesões nas artérias, nomeadamente nas coronárias e carótidas, leva à aterosclerose, com repercussões nos olhos, rins, coração e cérebro.
Mais, afirmou de forma peremptória que a retinopatia por si só seria fundamento de recusa da adesão.
Por último, referiu que analisou o processo em causa nos autos e que foi quem elaborou e emitiu, com base no supra exposto, o parecer de recusa que levou a Ré a declinar a sua responsabilidade.(…)”
Acrescentamos que a testemunha referiu que de acordo com as Tabelas usadas que permitem classificar o risco médio, o risco relativo às concretas patologias pré-existentes levaria a um agravamento tão acentuado do prémio de seguro, que não seria sequer proposto ao cliente.
A convicção relativamente a este ponto da matéria de facto alicerçou-se, pois, na prova testemunhal e documental produzidas, impondo-se destacar nesta , o que dispõe o artigo 607º do Código de Processo Civil, nos termos do qual “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”, norma que remete para as que regulam as provas, nomeadamente, as que fixam a força probatória dos meios de prova e a necessidade ou desnecessidade de certos factos serem provados por intermédio de certa prova, entre as quais se integram as normas mencionadas pela recorrente dos artigos 414.º do Código de Processo Civil e dos artigos 342.º, 343.º e 393.º do Código Civil.
Ora, no caso, o que se verifica é que todos os meios de prova à disposição do Tribunal recorrido estavam sujeitos à sua livre apreciação e a prova deste facto impugnado, não estava limitada, tendo o Tribunal recorrido liberdade para o fixar como assente com base nos meios de prova produzidos.
E note-se que a Apelante não indicou qualquer meio de prova ou a alegada ausência completa de meios de prova que imponha decisão diversa, pois a circunstância de a seguradora ter celebrado o contrato sem ter submetido um questionário de saúde para preenchimento ou exigido a realização de exames médicos prévios, ou exigido quaisquer outros procedimentos preliminares de averiguação de patologias preexistentes não significa que se das mesmas tivesse tido conhecimento antes de assinar o contrato, não tivesse recusado a respetiva celebração
Nada há, pois, relativamente ao ponto 25. dos factos provados a alterar., a alterar.
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Em conclusão, permanece inalterada a matéria de facto, com exceção do que concerne ao ponto 22 da matéria de facto provada, que se altera, da seguinte forma:
- o ponto 22. dos factos provados passará a ter o seguinte teor: “Aquando da adesão ao contrato de seguro referida em 4) BB omitiu, as patologias e o acompanhamento clínico”;
- passará a constar dos factos não provados que “o referido em 22. tivesse ocorrido porque o marido da ora apelante sabendo que tais factos eram determinantes para a Ré proceder à avaliação do grau de risco a cobrir o tivesse omitido voluntariamente.
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III.4. Apreciação jurídica.
Não vem controvertido que o Segurado (o mutuário) subscreveu um contrato de seguro, na modalidade de seguro de vida de grupo contributivo, associado a um contrato de mútuo concedido pelo Banco para aquisição de um veículo automóvel, como adequadamente se evidenciou na sentença recorrida.
Tendo entre o “Montepio Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A.” e BB, na qualidade de mutuário, sido celebrado um Contrato de Crédito Automóvel para aquisição do veículo automóvel Ford C-Max Diesel, com a matrícula ..-OR-.., ao qual foi atribuído o número ...31, como garantia do efetivo e pontual cumprimento do aludido contrato, o referido BB, enquanto titular do contrato de crédito ficou abrangido, na qualidade de Pessoa Segura, pelas garantias do contrato de seguro de grupo contributivo, ramo vida – protecção de crédito, celebrado entre o “Finibanco Vida”, actual “Montepio Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, na qualidade de Tomador do Seguro, e a “Real Vida Seguros, S.A.”, na qualidade de Seguradora, titulado pela Apólice n.º ...70.
Em casos como o dos autos há uma dependência funcional entre um e outro contrato: o contrato de seguro nasce e subsiste ao serviço do contrato de crédito, tendo por fim assegurar o reembolso do capital mutuado no caso da verificação de um sinistro, no caso a invalidez definitiva do mutuário; o segurado é o mutuário e o beneficiário do seguro, no caso de sinistro, é o banco mutuante, pelo valor do capital em dívida no contrato de crédito. É ainda frequente acontecer que tal contrato de seguro seja um seguro de grupo a que o mutuário/segurado adere e no qual o tomador do seguro, isto é, a parte no próprio contrato de seguro e responsável pelo pagamento do respectivo prémio ao segurador é o próprio banco beneficiário.
É, assim, evidente a ligação funcional entre ambos os contratos, numa situação que a doutrina vem classificando como “união de contratos”.
Tendo o contrato em causa sido celebrado em 10 de fevereiro de 2015, é-lhe aplicável o regime aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16.04, doravante Lei do Contrato de Seguro ou LCS.
O artigo 76º da LCS define o contrato de seguro de grupo como aquele que cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador por um vínculo que não seja o de segurar. E o artigo 77º, nº. 2 do mesmo diploma legal estabelece que o seguro de grupo é contributivo “quando do contrato de seguro resulta que os segurados suportam, no todo ou em parte, o pagamento do montante correspondente ao prémio devido pelo tomador do seguro”.
Tratando-se de um seguro de vida, o mesmo vincula a entidade seguradora à realização da prestação acordada se a pessoa segura falecer antes do termo do contrato de crédito - cobre, portanto, o risco de morte da pessoa segura.
No caso concreto, o contrato de seguro garantia o pagamento do capital devido pela aqui Autora e seu falecido marido (tomador do seguro) ao Banco credor (beneficiário do seguro), por via da concessão de crédito automóvel, estando garantidos pela Ré (Seguradora) os riscos de morte ou de invalidez total e permanente do mutuário, isto é, a liquidação ao Banco mutuante do montante do crédito em dívida à data do sinistro, até ao montante do capital seguro.
Tal contrato configura, portanto, um contrato a favor de terceiro - cfr. artigo 443º, n.º 1 do Código Civil - ou seja, a favor do único beneficiário, o Banco mutuante.
Tendo ocorrido o infeliz sinistro já que o marido da ora Autora faleceu em .../.../2019, a ora Ré recusa o pagamento do capital em dívida à data do mesmo.
E a sentença recorrida concluiu pela verificação do circunstancialismo previsto no artigo 25.º, n.º1 da LCS, tendo julgado procedente a exceção de anulabilidade do contrato de seguro em causa, com base no carácter doloso da omissão, por parte do segurado, aquando da subscrição do contrato de seguro, de patologias conhecidas e inquestionavelmente relevantes (segundo as regras da experiência comum) para a aferição do risco num seguro de vida, como o que está em causa nos autos, mais tendo considerado que atento o carácter doloso dessa omissão, fica afastada a aplicação da incontestabilidade a que alude o artigo 188.º do RJCS, uma vez que apenas tem aplicação às omissões ou inexatidões negligentes.
Vejamos então.
*
Resulta do artigo 24.º, n.º 1 da LCS que “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.”
Dispõem depois os números seguintes do mesmo artigo, da seguinte forma:
2 – O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
3 – O segurador que tenha aceitado o contrato, salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, não pode prevalecer-se:
a) Da omissão de resposta a pergunta do questionário;
b) De resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos;
c) De incoerência ou contradição evidente nas respostas ao questionário;
d) De facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexacto ou, tendo sido omitido, conheça;
e) De circunstâncias conhecidas do segurador, em especial quando são públicas e notórias.
4- O segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no nº 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais”.
No artigo 24.º, n.º 1, da LCS, estatui-se, pois, um dever geral de informação pelo tomador ou segurado quanto a circunstâncias relevantes para a apreciação do risco, prevendo-se ainda no nº 2 do preceito a sua aplicação a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
O dever de informação que impende sobre o tomador do seguro ou sobre o segurado destina-se a dar a conhecer à seguradora os factos relevantes para a avaliação do risco do seguro.
Resulta claro do n.º 2 citado que não existe obrigatoriedade de apresentação de um questionário por parte da seguradora. Porém, como é sabido, os questionários predominam nos seguros de pessoas, considerando-se nessa conformidade que sendo um questionário respondido com seriedade e de boa fé, nada mais haverá, em princípio, a acrescentar[3].
No caso de um seguro de vida exige-se ao tomador ou ao segurado que manifestem as circunstâncias relativas à saúde do segurado que conhecem no momento da declaração, o que, para a seguradora, tendo em conta a avaliação dos riscos que vai assumir é, em princípio, relevante ou para a decisão de contratar ou para a definição concreta do conteúdo do contrato.
A lei penaliza o segurado não apenas pela omissão ou inexatidão das circunstâncias que conheça, mas ainda das que devesse ter por significativas para efeitos de apreciação do risco pelo segurador, deixando uma larga margem de incerteza e de insegurança na definição do dever e, principalmente, nos contornos da omissão do mesmo[4].
Conclui-se desta forma que o artigo 24º da LCS, “considerando a referida dificuldade de o proponente aferir quais os factos ou circunstâncias que está obrigado a declarar, o novo regime não optou por um sistema de questionário fechado, mas, mantendo um regime de declaração espontânea, solucionou o problema por via da definição do critério de relevância e da delimitação, a esse nível, do dever de declaração do risco. Por outro lado, superando-se algumas das críticas apontadas ao anterior regime, a relevância deixa de ser aferida na Lei do Contrato de Seguro pelos critérios do segurador, passando a sê-lo em função dos critérios representados pelo proponente concreto: o dever incide sobre as circunstâncias que o tomador do seguro ou o segurado conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador[5].
Os artigos 25.º e 26.º da LCS fazem a distinção as situações de omissões ou inexatidões dolosas das omissões ou inexatidões negligentes, sendo que a «inexatidão» corresponde ao vício da declaração que é falsa, desconforme à verdade, à realidade objetiva conhecida e que a «omissão» é o vício da declaração que silencia uma circunstância relevante, não a revelando total ou parcialmente, estipulando que em caso de incumprimento doloso do dever de declaração inicial do risco, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro (artigo 25.º, nº1 da LCS) e que em caso de negligência,
Já quanto às omissões ou inexatidões negligentes, estabelece o artigo 26º citado que:
“1- Em caso de incumprimento com negligência do dever referido no n.° 1 do artigo 24.°. o segurador pode, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento:
a) Propor uma alteração do contrato, (…)
b) Fazer cessar o contrato, (…)
2- (…)
3- (…)
4- Se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes:
a) O segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente;
b) O segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.”
É sabido que a questão da invalidade do contrato de seguro por incompletude das informações acerca do estado de saúde do segurado tem suscitado larga controvérsia na jurisprudência e na doutrina, como se dá conta, entre outros, no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2023[6], que foi lavrado após pedido de reenvio prejudicial formulado ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), na sequência do que esse Tribunal, por Acórdão de 20.04.2023 (processo C-263/22) respondeu à primeira e à segunda questões suscitadas em sede de reenvio prejudicial da seguinte forma:
«O artigo 4.º, n.º 2, e o artigo 5.º da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, lidos à luz do vigésimo considerando desta diretiva, devem ser interpretados no sentido de que: um consumidor deve ter sempre a possibilidade de tomar conhecimento, antes da celebração de um contrato, de todas as cláusulas que este contém.».
E respondeu à terceira questão prejudicial nos seguintes termos:
«O artigo 3.º, n.º 1, e os artigos 4.º a 6.º da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que: quando uma cláusula de um contrato de seguro relativa à exclusão ou à limitação da cobertura do risco segurado, da qual o consumidor em causa não pôde tomar conhecimento antes da celebração desse contrato, é qualificada de abusiva pelo juiz nacional, este tem de afastar a aplicação dessa cláusula a fim de que não produza efeitos vinculativos relativamente a esse consumidor.»
Ora, no Acórdão do STJ referido, decidiu-se depois, (em passagem que aqui se reproduz por de interesse na interpretação e enquadramento da situação dos autos, pese embora a diferente legislação aplicável, que, como veremos, não impõe solução diversa):
“(…) nas palavras da fundamentação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2001, publicado no Diário da República, Iª Série A, de 27.12.2001:
«[S]sendo fundamental, no contrato de seguro, a confiança nas declarações emitidas pelos contraentes, para prevenir as eventuais tentativas de fraude, a lei sanciona com a invalidade os contratos em que tenha havido declarações inexactas, incompletas ou prestadas com reticências, com omissões por parte do tomador do seguro e que influam sobre a existência ou condições do contrato, sendo inócua a intenção do segurado. (…) A avaliação do que sejam declarações inexactas, ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio terá de ser feita caso a caso».
No caso dos autos, ficou provado que «[a] Ré não solicitou a apresentação de qualquer exame médico ou informação clínica para a celebração do contrato de seguro dos autos», «[n]em exigiu a realização de exames médicos em serviços clínicos por si contratados». De acordo com a justificação da própria seguradora Recorrente, tal ficou a dever-se ao facto de que «[p]ara avaliação do risco coberto e cobertura do capital seguro respectivo, a Recorrente estabeleceu que, em função do montante de capital seguro – €49.879,79 – conjugado com a idade dos segurados, a condição necessária para a avaliação do risco por parte da Recorrente seria, repete-se, os proponentes procederem [apenas] a uma declaração de saúde».
Tendo ficado provado que a A. celebrou o contrato de seguro através da subscrição, junto da entidade bancária mutuante, de uma proposta de adesão que lhe foi apresentada (factos 12 e 40), na qual apôs a sua assinatura (facto 20) imediatamente após a referida “Declaração de Atividade e Estado de Saúde” (facto 13), sem que, porém, lhe tenha sido dado a conhecer o conteúdo da dita proposta de adesão (facto 44), importa responder à pergunta – essencial para a resolução da questão recursória em causa – de saber se, nas circunstâncias concretas, era exigível à A. que, por sua iniciativa, prestasse mais informações acerca os seus antecedentes de saúde.
Entende-se que a resposta a esta pergunta deve ser negativa, precisamente em função da especificidade factual dada como provada no caso sub judice, qual seja a existência e o teor da dita “Declaração de Atividade e Estado de Saúde” constante da proposta de adesão, declaração essa subscrita pela A.. Com efeito, ao requerer à aderente que assinasse tal declaração («Declaro que nos últimos seis meses não tive qualquer alteração importante do meu estado de saúde devido a doença ou acidente, estando atualmente na posse de plena capacidade de trabalho, não me encontro consequentemente impedido, por motivos de saúde, do pleno desenvolvimento da minha normal e regular atividade profissional»), aquilo que substantivamente a proponente fez foi formular à A. a seguinte pergunta: nos últimos seis meses teve alguma alteração importante no seu estado de saúde, devido a doença ou acidente, que tenha afectado a sua capacidade de trabalho, impedindo-a de desenvolver normal e regularmente a sua actividade profissional? A esta pergunta, que envolve em si mesma a prestação de múltiplas informações, respondeu a A. negativamente, o que, como se viu, era verdadeiro.
Assim, ainda que, como alegado pela Recorrente e afirmado pela 1.ª instância, não tenha havido lugar ao tradicional questionário clínico desenvolvido, afigura-se que, mediante a apresentação do dito texto (“Declaração”) a ser subscrito pela aderente, a seguradora questionou, ainda que sumariamente, a A. a respeito do seu estado de saúde. Fê-lo em termos que permitiam a um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real (cfr. art. 236.º, n.º 1, do Código Civil), considerar que os dados relevantes acerca do estado de saúde do aderente (no caso, a A.) se reportavam apenas àquilo que, nos últimos seis meses, pudesse ter afectado (e/ou continuar a afectar) a sua capacidade de trabalho, não lhe sendo exigível, em face do teor daquilo sobre o qual, concretamente, foi questionada, que equacionasse a possibilidade de haver outros dados relevantes a comunicar a respeito da sua história clínica.
Como a própria Recorrente reconhece, ainda que não lhe atribuindo os efeitos que se afiguram curiais, em «função do montante de capital seguro (...) conjugado com a idade dos segurados», considerou a seguradora que «a condição necessária para a avaliação do risco por parte da Recorrente seria (...) os proponentes procederem a uma declaração de saúde». Se, por meio dessa declaração, impressa em documento elaborado pela seguradora e apresentado à aderente (aqui A.), esta foi questionada acerca dos dados de saúde tidos como relevantes pela mesma seguradora, não pode entender-se que se verifica a situação de incompletude das declarações prevista no art. 429.º do Código Comercial.
Improcede, assim, a pretensão da Recorrente, na parte em que invoca a anulabilidade do contrato de seguro.(o destacado é nosso)”
Ainda mais recentemente, o Tribunal da Relação de Lisboa, chamado a enfrentar a questão, decidiu no Acórdão de 14.09.2023[7], desta feita também quanto ao regime decorrente da LCS, nos seguintes termos, que aqui seguimos de perto:
“(…)Uma vez que da factualidade apurada não decorre que a segurada, falecida filha da A., tenha procedido com intenção de prestar informações falsas ou insuficiente ou tenha considerado tais informações como uma consequência necessária ou eventual da sua declaração inicial do risco, conformando-se naquele último caso com tal, a omissão ou inexatidão em apreço não pode ser assacada como dolosa, pelo que é no regime legal relativo a omissões ou inexatidões negligentes que importa equacionar a situação em causa.
Ora, segundo o disposto no artigo 24.º, n.ºs 1 e 2, do RJCS «[o] tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador», sendo que tal «é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito».
Nos termos do artigo 26.º, n.º 4, alínea b), do mesmo RJCS, «[s]e, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes [o] segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio».
Conforme o apontado regime legal, em caso de se verificação do sinistro, a seguradora não responde pelo risco quando ocorram cumulativamente os seguintes requisitos:
(i) Ocorrência de uma declaração inicial do risco por parte do tomador do seguro ou do segurado com elementos desconformes à realidade ou insuficientes para a caracterização da situação segura;
(ii) Natureza considerável, expressiva, significativa, de tais elementos desconformes ou omitidos na apreciação do risco pelo segurador;
(iii) Descuido, distração, incúria, quanto ao preenchimento da declaração inicial do risco e no que respeita àqueles elementos desconformes ou omitidos;
(iv) Nexo de causalidade adequada entre a desconformidade/omissão ocorrida e o sinistro verificado.
Para a ocorrência daquele último requisito importa que a circunstância omitida ou insuficientemente declarada tenha uma relação causal com o sinistro, o que significa que se este suceder em razão de causa diversa da circunstância omitida ou deficientemente declarada a seguradora responde pelo risco contratado.
Como refere Luís Poças, Problemas e Soluções de Direito dos Seguros, edição de 2021, páginas 30 e 31, «como resulta, a contrario, do n.º 4 do artigo 26.º, se não se verificar» uma «causalidade entre a inexatidão/omissão e o sinistro» o «segurador fica obrigado a cumprir a sua prestação».
«Diversamente, nos termos do n.º 4 do artigo 26.º, se antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões (…) o segurador demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio (…)».
No mesmo sentido refere o acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 23.02.2021, processo n.º2100/18.1T8STR.E1.S1, que no RJCS estabelece-se «como requisito para o segurador poder invocar a não cobertura do sinistro, a causalidade entre o facto inexato ou omitido e a ocorrência do sinistro».
Na situação vertente.
Não se provou a existência de um tal nexo causal.
É certo que se provou que a falecida filha da A., omitiu a sua situação clínica à R., assim como prestou informações inexatas na sua declaração inicial do risco, pois escamoteou os problemas renais e os diabetes de que padecia, assim como o acompanhamento em nefrologia, declarando estar «de boa saúde», que bem sabia não ser o caso, conforme factos provados n.ºs 10, 11, 13 e 14.
É certo que se apurou que tais elementos omitidos e inexatos tinham natureza significativa para a R. que não teria celebrado o contrato de seguro ora em causa ou tê-lo-ia celebrado com outras condições, conforme facto provado n.º 26.
Contudo, o óbito da segurada decorreu de «carcinoma urotelial invasivo», conforme facto provado n.º 15, não podendo estabelecer-se sem mais um nexo de causalidade entre as omissões e inexatidões da declaração inicial do risco e tal causa de morte da segurada.
Tal nexo causal não foi sequer alegado na contestação, a qual partiu do pressuposto que o mesmo não constituía condição necessária à anulabilidade do contrato de seguro, conforme artigos 65.º a 68 da contestação.
Nestes termos, não tendo ficado demonstrado que a causa da morte da segurada decorreu de doença que a mesma omitiu ou de um estado clínico que ela declarou de forma imprecisa e que existia aquando da celebração do seguro, ónus da prova que cabia à R., conforme artigo 342.º, n.º 2, do CCivil, concluiu-se que o contrato de seguro de 2015 é igualmente válido, pelo que procede também nesta parte o recurso interposto.”(o destacado é nosso).
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Regressemos ao caso dos autos.
A Apelante entende que o marido não incumpriu o dever previsto no artigo 24º da LCS pelo que o contrato de seguro não sofre de qualquer vício.
E na realidade, não obstante ter-se demonstrado que aquando da adesão ao contrato de seguro, o falecido BB apresentava o diagnóstico que refere no artigo 19º dos factos provados, e que omitiu tais patologias e o acompanhamento clínico regular que realizava, certo é também que o que constava da declaração de adesão era que as patologias pré-existentes, quaisquer que fossem, e todas as futuras que tivessem relação direta ou indireta com as mesmas se encontravam excluídas da cobertura do contrato - Cf. ponto 6 do boletim de adesão a fls. 24.
Por outro lado, demonstrou-se que para a aceitação do seguro a Finibanco - Vida, Companhia de Seguros de Vida, S.A. não pediu que o marido da Autora preenchesse questionário médico e não exigiu a realização de exames médicos” - Facto provado n.º 8 – que no boletim de adesão, através do qual o marido da Recorrente aderiu ao contrato de seguro objeto desta ação, não existe qualquer campo que permitisse àquele redigir qualquer informação que, porventura, tivesse por conveniente como declaração inicial de risco, que o marido da Recorrente aderiu ao contrato de seguro sem prévia negociação individual, que não se demonstrou que lhe tivesse sido perguntado nada sobre o seu estado de saúde e, principalmente, que lhe tivesse sido explicado o teor das cláusulas insertas no contrato - Cf. Facto não provado a)- sendo que sobre a seguradora recaía o dever de informar o segurado, nos termos do disposto no artigo 78º da LCS, não tendo demonstrado o cumprimento do mesmo.
Sendo sabido que as condições de saúde são relevantes quando se trata de um seguro de vida, no caso, perante o circunstancialismo que se demonstrou, tem de admitir-se a possibilidade de o falecido marido da Autora, que, como resulta da prova produzida, se encontrava medicamente acompanhado e medicado (exercendo até atividade física), ter na altura entendido que não seriam relevantes para a seguradora as patologias pré-existentes, excluídas que estavam da cobertura do seguro, e que não tinha de as declarar.
Saliente-se que a declaração que lhe foi dada a assinar sobre dados concretos (“(…)declaro ter entre 18 (dezoito) e 64 (sessenta e quatro) anos, ter conhecimento que estão excluídas todas as patologias pré-existentes à data da adesão a este seguro e toda ou qualquer patologia futura com relação directa ou indirecta com as mesmas.
Para o Plano de Protecção Total (PPT), confirmo estar a desempenhar regularmente, no mínimo, 16 (dezasseis) horas semanais, uma actividade profissional nos últimos 12 (doze) meses, sem ter conhecimento de um possível desemprego, conforme definido nas condições gerais da protecção que subscrevo.
Declaro ainda ter tomado conhecimento das condições gerais da protecção que subscrevo constantes no presente documento, e das respectivas exclusões, prestando desde já o meu consentimento para ser contactado por qualquer meio de comunicação à distância para efeitos de eventual subscrição de coberturas adicionais. Para esse efeito, a informação contida neste documento será válida até informação escrita em contrário”) não se demonstrou que contivesse qualquer elemento desconforme com a realidade.
E a designada “Declaração inicial de Risco” (“Mais garanto ter declarado com exactidão todas as circunstâncias do meu conhecimento e que são relevantes para a apreciação do risco pelos Seguradores, tendo tomado conhecimento através do presente documento das consequências da prestação de informações inexactas ou da omissão de informações relevantes.(…)”, nenhum conteúdo substantivo contém, para além do já estipulado no citado artigo 24º, n.º 1.
Como se refere no Acórdão do STJ a que nos referimos, nas circunstâncias concretas não lhe era exigível que, por sua iniciativa prestasse mais informações acerca dos seus antecedentes de saúde, que necessitava de indicar quaisquer outros elementos, para além daqueles sobre que lhe foi expressamente pedido que emitisse declaração.
E isto, note-se, decorre da circunstância de a seguradora ter ela própria negligenciado um procedimento de avaliação de risco adequado a que as patologias chegassem ao seu conhecimento.
O que significa que não podendo concluir-se pela incompletude a que alude o artigo 24º citado, não pode deixar de considerar-se o contrato enferma do vício que lhe foi apontado.
Porém, mesmo que se entendesse que existe violação do artigo 24º, n.º 1 citado, uma vez que, como supra se analisou, da factualidade apurada não decorre que o segurado, falecido marido da Autora, tenha procedido com intenção de prestar informações falsas ou insuficientes ou tenha considerado tais informações como uma consequência necessária ou eventual da sua declaração inicial do risco, conformando-se naquele último caso com tal, e tendo presente que como se decidiu no Acórdão desta Secção de 19.11.2020[8] “o dolo a que se refere este preceito (25.º RJCS) corresponde à noção constante do n.º 1 do art.º 253.º do Cód. Civil, o que, genericamente, implica a consciência e intenção de indução em erro da seguradora”, a omissão ou inexatidão em apreço não pode ser assacada como dolosa, pelo que é no regime legal relativo a omissões ou inexatidões negligentes que importa enquadrar a situação em causa.
Damos aqui por reproduzida a enumeração dos requisitos cumulativos para que a seguradora não responda pelo risco a que se procedeu no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Ora, se é certo que se apurou que as patologias referidas no artigo 19. dos factos provados constituem fatores de risco para doenças cardiovasculares e que os elementos omitidos tinham natureza significativa para a Ré que não teria celebrado o contrato de seguro ora em causa, importa considerar que o óbito do segurado decorreu de enfarte de miocárdio recorrente, por miocardiopatia hipertrófica e aterosclerose generalizada grave de que sofria, não podendo estabelecer-se sem mais um nexo de causalidade entre as omissões e inexatidões da declaração inicial do risco e tal causa de morte do segurado.
Pelo contrário.
Os documentos elaborados pelos médicos que seguiram o segurado e que se encontram referidos nos pontos 15. e 17. dos factos provados afastam tal nexo causa, ao referirem “assim, tendo em conta o acompanhamento clínico do doente, os seus antecedentes patológicos estavam bem controlados, pelo que não se pode considerar que seja causa directa ou indirecta da morte”.
Nestes termos, não tendo ficado demonstrado que a causa da morte do segurado decorreu de doença que o mesma omitiu ou de um estado clínico que ele declarou de forma imprecisa e que existia aquando da celebração do seguro, ónus da prova que cabia à Ré, conforme artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, concluiu-se que o contrato de seguro de 2015 é válido, pelo que procede nesta parte o recurso interposto.
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Concluindo-se desta forma, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 99.º e 102.º, n.º 1 da LCS, verificado o sinistro, no caso o infeliz óbito do segurado ocorrido em .../.../2019, fica a Ré obrigada ao pagamento do capital seguro com referência à data do respetivo sinistro.
Tendo-se demonstrado que àquela data o seguro de vida crédito apresentava como capital seguro a quantia de €10.882.88 que desde a data do falecimento da a Autora tem pago as prestações do crédito, conforme factos provados n.ºs 26 a 28, será a Ré condenada a reconhecer a sua responsabilidade pela cobertura do risco morte com referência a .../.../2019, devendo entregar à Autora o montante das prestações que a mesma haja pago desde então e até à decisão final, e a liquidar ó valor que eventualmente se encontre ainda em dívida no momento do pagamento, à instituição de crédito.
Conclui-se desta forma, sem necessidade de maiores considerações ou de análise de mais argumentos, pela procedência da apelação.
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IV. Dispositivo
Pelo exposto, acordam em julgar procedente o recurso e revogar a decisão recorrida e, em consequência:
1. Declarar válido o contrato de seguro de vida associado ao contrato de mútuo em causa nos autos:
2. Condenar a Ré, aqui Recorrida, a reconhecer ser da sua inteira responsabilidade a cobertura decorrente daquele contrato, devendo a Ré entregar à Autora, aqui Recorrente, o montante das prestações que a mesma haja pago desde 09.11.2018 até à decisão final, e à Montepio Crédito o valor que, nos termos do contrato de mútuo, estiver em dívida, no momento do pagamento.
Custas pela Recorrida.
Registe e notifique.
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Évora, 07.11.2023
Ana Pessoa
José António Moita
Albertina Pedroso

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[1] Da exclusiva responsabilidade da Relatora.

[2] E não 2022, como consta da decisão recorrida por lapso manifesto (como resulta do alegado no artigo 10º da petição inicial e do documento ali referido e bem assim do facto 13) que aqui se retifica, nos termos do disposto no artigo 249º do Código Civil.

[3] Cf. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra: Almedina, 2013, pg. 579.

[4] Cf. Ac. Da Relação de Guimarães de 04.11.2021, proferido no processo n.º 4017/18.0T8GMR.G1, citando Abrantes Geraldes, no indicado sentido.

[5] Cf. o Acórdão citado.

[6] Proferido no âmbito do processo n.º 2224/14.4TBSTS.P1.S1, processo no qual foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto em 10.05.2021, no qual igualmente se dá conta das dificuldades de interpretação da expressão “declaração inexata” prevista no artigo 429º do Código Comercial, aplicável aos contratos de seguros celebrados anteriormente à LCS (cf. artigo 2º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16.04.

[7] Proferido no âmbito do processo n.º 4048/20.0T8LRS.L1-2. acessível em www.dgsi.pt

[8] Proferido no processo n.º Proc. 419/18.0T8STR.E1, acessível em www.dgsi.pt