Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
326/13.3TALLE-D.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
INTERESSE PREPONDERANTE
IMPRESCINDIBILIDADE DO DEPOIMENTO
QUEBRA DE SIGILO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No âmbito de um processo criminal, quem está obrigado ao segredo profissional escusa-se a depor sobre factos por ele abrangidos e sendo considerada legitima tal escusa, o tribunal superior àquele onde o incidente foi suscitado é chamado a intervir para decidir se, apesar dessa legitimidade, a testemunha deve depor.
E a apreciação é feita apelando às circunstâncias previstas no nº 3 do artº 135º do C.P.P..

Há que verificar se se mostra justificada a quebra do segredo profissional, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção dos bens jurídicos.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito do processo 326/13.3TALLE foi indicado como testemunha pelo Ministério Público o Sr. Advogado AA.

Na sessão de julgamento de 18/4/2023 o mesmo escusou-se a prestar depoimento, invocando o disposto no artº 135º, nº 1, do C.P.P..

Perante isso, o Ministério Público prescindiu do seu depoimento, mas os arguidos BB e CC alegaram ser importante o depoimento da referida testemunha, tendo suscitado o presente incidente.

A Ordem dos Advogados emitiu parecer no sentido de “o segredo profissional dever ceder e o depoimento da testemunha ser decidido favoravelmente (…), limitado aos factos mencionados nos requerimentos e em relação aos quais a questão é suscitada”.

Por acórdão de 20/6/2023 foi julgada a escusa de depoimento legítima e suscitado o incidente junto deste tribunal.

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APRECIAÇÃO

O que está em causa é o depoimento do referido Srº Advogado sobre os serviços que prestou às empresas DD Lda e EE Lda de que o arguido BB foi sócio-gerente (cfr. artºs 1º e 5º da pronúncia), sendo que o arguido CC terá, a mando do arguido BB, constituído a sociedade “off-shore” “FF” para a qual foram transferidos 90% da DD Lda (cfr. igualmente ponto 5 da pronúncia).

Ora, o artº 135º, nº 1, do C.P.P., na parte que agora interessa, dispõe que os Advogados podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional.

Os Advogados fazem, pois, parte do elenco de pessoas relativamente às quais a Lei confere protecção no que se refere aos respectivos depoimentos, quando ele tenha que versar sobre factos abrangidos pelo segredo profissional.

Trata-se de “desvincular” tais pessoas, por virtude de exercerem actividade onde o segredo profissional assume especial relevância, do dever a que estariam obrigados por virtude o artº 132º, nº 1, al. d), do C.P.P., ou seja, de responderem com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas.

Os Advogados estão sujeitos ao segredo profissional nos termos definidos no nº 1 do artº 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela L. 145/2015 de 9/9, artigo esse que, na parte que interessa, dispõe:

“Artigo 92.º

Segredo profissional

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

(…)

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

(…)”

Tal segredo profissional, como é sabido, tem por objectivo fortalecer a relação de confiança que deve existir entre o Advogado e o seu cliente, quer enquanto essa relação ainda persiste, quer depois de ela terminar.

Trata-se de uma relação de confiança fundamental para que o patrocínio forense possa constituir um elemento essencial à administração da justiça, tal como prevê o artº 208º da Constituição da República Portuguesa.

Só que quando outros interesses estão em confronto com essa necessidade de preservar o segredo profissional, há que ponderar qual deles deve prevalecer.

Aqui chegados, há que ter em consideração duas situações que, embora possam ter alguma relação, são diversas.

A primeira delas é a prevista no nº 4 do artº 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados:

“4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”

Quando se verifique qualquer das situações aí previstas e utilizando os procedimentos previstos no regulamento de dispensa de segredo profissional (Regulamento nº 94/2006 de 25/5/06, ainda em vigor apesar de ter sido publicado no âmbito do Estatuto já revogado), pode o Advogado revelar factos que estão abrangidos por tal segredo.

Outra situação é a que temos em análise: no âmbito de um processo criminal, quem está obrigado ao segredo profissional escusa-se a depor sobre factos por ele abrangidos e sendo considerada legitima tal escusa, o tribunal superior àquele onde o incidente foi suscitado é chamado a intervir para decidir se, apesar dessa legitimidade, a testemunha deve depor.

Essa apreciação é feita não já apelando aos critérios definidos no nº 4 do artº 92º acima referido, mas sim às circunstâncias previstas no nº 3 do artº 135º do C.P.P..

Há que verificar se se mostra justificada a quebra do segredo profissional, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção dos bens jurídicos.

Não significa isto que a audição da Ordem dos Advogados, ao abrigo do nº 4, do artº 135º do C.P.P., seja então um acto inútil.

Não é, embora também o resultado dessa audição não seja vinculativo para os tribunais, sob pena de aí passar a ser inútil a intervenção do Tribunal superior (neste sentido: acs. do S.T.J. de 25/1/05, e da Rel. do Porto de 10/10/01, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

O que dispõe o artº 5º, nº 1, do referido Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional - “A decisão que negue autorização para a dispensa de segredo profissional é vinculativa…” - , nada tem que ver com a situação do artº 135º do C.P.P., mas sim com a solicitação para a dispensa do segredo profissional no âmbito do referido artº 92º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Tendo-se em conta que “a quebra de sigilo profissional dos advogados impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do sigilo profissional deve ceder ou não perante outros interesses, designadamente o da colaboração com a realização da justiça penal“ (ac. da rel. do Porto de 23/11/05, em www.dgsi.pt), há que efectuar agora tal ponderação, tal como exige o nº 3 do artº 135º do C.P.P..

A propósito do artº 135º do C.P.P., refere o Prof. Manuel da Costa Andrade (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, págs. 795 e 796):

“ … o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Uma fórmula que se projeta em quatro implicações normativas fundamentais:

a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objetivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação.

b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (...), como a tese inversa, de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura, só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional (...).

c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos. Isto é: a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo (…).

d) Em quarto lugar, com o regime do artigo 135º do C.P.P., o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir (...)”.

Posto isto, vejamos em concreto:

Quanto à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, constata-se que o Sr. Advogado em causa terá prestado serviços relativamente a duas sociedades referidas na pronúncia que terão sido utilizadas pelo arguido BB para fins ilícitos, revelando-se, assim relevante o seu depoimento acerca disso.

Os crimes em causa revestem evidente gravidade, desde logo tendo em conta o seu número e as molduras penais previstas para cada um deles, relativamente ao arguido BB: 4 crimes de burla qualificada, 4 crimes de falsificação de documento, 1 crime de branqueamento e 1 crime de insolvência dolosa.

Quanto à necessidade da protecção dos bens jurídicos, constata-se que o que se discute nos autos é a prática de crimes de natureza pública, ou seja, fazem parte daquele tipo de crimes em que mais acentuadamente se faz sentir a necessidade de punição por parte do Estado.

Por último, importa referir uma circunstância deveras relevante e que é realçada no parecer emitido pelo Ordem dos Advogados: é que o próprio arguido BB, em favor de quem é, também e especialmente, instituído o segredo profissional, pretende que o referido Sr. Advogado preste depoimento.

Significa isto que o depoimento pode até servir os interesses do referido arguido, pelo que seria, de certa forma, um contra-senso não entender que o mesmo seja prestado.

Entende-se, assim que está plenamente justificado que a testemunha em causa preste declarações, informando o que for do seu conhecimento relativamente ao que se discute nos presentes autos quanto às duas referidas sociedades.

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DECISÃO:

Face ao exposto, acordam os Juízes em determinar que, mesmo com quebra do segredo profissional, a testemunha Dr. AA, deponha, nos termos referidos, no âmbito do processo aqui em causa.

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Sem tributação.

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Évora, 7 de Novembro de 2023

Nuno Garcia

Maria Margarida Bacelar

Artur Vargues