Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3163/21.8T8STR-A.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL
ALARGAMENTO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
ÓNUS DE APRESENTAÇÃO DAS TESTEMUNHAS
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I) Constituindo a legitimidade um pressuposto processual, de cuja verificação depende a possibilidade de o juiz conhecer do mérito da acção, não pode confundir-se com a denominada “legitimidade substantiva”, que tem a ver com a posição das partes perante o direito subjectivo invocado, e que, ocorrendo, determina a improcedência do pedido.
II) A ampliação do prazo prescricional prevista no n.º 3 do artigo 498º do Código Civil não está dependente da efectiva instauração de processo penal, mas apenas da alegação, em sede de petição inicial, e posterior prova, por parte dos demandantes, de factos dos quais decorra que o facto ilícito em que ancoram o direito indemnizatório a que se arrogam titulares, preenche os elementos objectivos e subjectivos de um tipo legal de crime, em relação ao qual a lei penal preveja um prazo de prescrição superior a três anos.
III) Tendo sido deduzido pedido de indemnização cível no processo crime, na sequência da acusação do arguido, interrompeu-se o prazo da prescrição, o qual, no caso de posterior remessa da apreciação daquele pedido de indemnização cível para os tribunais cíveis, só volta a correr com a notificação desta decisão.
IV) Dependendo a ampliação do prazo prescricional prevista no n.º 3 do art. 498º do Código Civil da alegação e prova de que o facto ilícito, em que se ancora o direito indemnizatório, preenche os elementos de um tipo legal de crime, em relação ao qual a lei penal preveja um prazo de prescrição superior a três anos, deve a apreciação da excepção da prescrição ser relegada para a decisão final.
V) A obrigação de apresentação das testemunhas em julgamento imposta no n.º 3 do artigo 598º do Código de Processo Civil aplica-se apenas às alterações ou aditamento ao rol de testemunhas efectuados na situação prevista no n.º 2, ou seja, após a audiência prévia e até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. A R. Generali Seguros, SA., interpôs recurso do despacho saneador, proferido nos autos de processo comum a que o presente apenso se reporta, em que são AA. AA, BB e CC, que, em sede de audiência prévia, julgou improcedentes as excepções de ilegitimidade e de prescrição, que invocara na contestação e do despacho que admitiu o aditamento de duas novas testemunhas, mas que indeferiu o pedido de notificação das mesmas, determinando que fossem a apresentar pela parte.

2. A recorrente pretende a alteração das decisões recorridas nos termos e com os fundamentos que sintetizou nas seguintes conclusões do recurso:
1.ª O despacho saneador recorrido violou as normas dos artigos 30º, 595º, n.º 1 e 598ºdo CPC, arts. 306º e 498º, n.ºs 1 e 3 do Cód. Civil, art. 77º do Código Penal e art. 210º-A do Código do Registo Civil.
2.ª O Tribunal a quo decidiu julgar improcedente a excepção de ilegitimidade por entender que a qualidade dos Autores, enquanto herdeiros de DD (pai), decorria da habilitação de herdeiros de EE (avó), uma vez que os Autores CC e BB aqui constavam como únicos sucessores, concluindo-se, ao abrigo do disposto no art. 2133 n.º 1, al. a) do Código Civil, que os AA., filhos e mãe, seriam os únicos herdeiros de DD.
3.ª Salvo melhor entendimento, a prova da qualidade de herdeiros faz-se pela respectiva Habilitação de Herdeiros, que sempre se afiguraria necessária nos presentes autos, porquanto ainda que se pudesse admitir tal raciocínio e documento como bastante para a demonstração da legitimidade dos AA CC e BB, o mesmo já não será bastante para aferir a legitimidade da Autora AA.
4.ª Assim, a título de exemplo, bastaria que esta Autora tivesse repudiado à herança de DD, para que lhe faltasse legitimidade para deduzir os pedidos cuja fundamentação é essa qualidade de herdeira.
5.ª Pelo exposto, sem prejuízo de melhor entendimento, não resulta da documentação junta aos autos prova bastante da legitimidade processual dos AA., impondo-se que fosse junta a competente Habilitação de Herdeiros do falecido DD, para dessa forma atestar a qualidade de herdeiros que legitime a sua intervenção, o que, não se promovendo, viola o disposto nos artigos 30º do Código Processo Civil e 210º-A e seguintes do Código do Registo Civil.
6.ª Prosseguindo, também não se conforma a Recorrente com a decisão que julgou improcedente a excepção de prescrição, que, salvo melhor entendimento viola o disposto nos artigos 306º e 498º do Código Civil.
7.ª Nos termos e ao abrigo do disposto no art. 306º, n.º1 do Código Civil, o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, o qual, no caso dos autos, face ao despacho proferido no âmbito do processo crime, com data de 5 de fevereiro de 2018, em que o Tribunal (Processo comum singular n.º 636/11.4GEALR), perante a não instauração do incidente de habilitação de herdeiros (por óbito de DD), decidiu a remessa da apreciação do pedido de indemnização para os Tribunais Civis, tem que se considerar este o momento determinante para o início de novo prazo de prescrição.
8.ª Sendo evidente, que a partir desse despacho, o titular do direito encontrava-se em condições de exercer a sua pretensão indemnizatória nos Tribunais Civis, conforme douta decisão da Relação de Évora, no Acórdão de 22.11.2018, disponível em www.dgsi.pt que aqui nos permitimos citar: “Tendo o tribunal criminal remetido a decisão do pedido cível de indemnização, para os “tribunais civis” - decisão aceite pelo demandante -, o início da contagem do prazo de prescrição coincide com a data do despacho de “remessa”, e não com a do seu trânsito em julgado.”
9.ª Acresce que, a extensão do prazo de prescrição prevista no artigo 498º, n.º3 do Código Civil, tem como pressuposto que subjacente ao direito dos Autores esteja um facto ilícito que constitua crime para o qual a lei estabeleça prazo mais longo, encontrando-se demonstrado nos autos (certidão junta com a contestação), que o aludido processo crime terminou com a absolvição do Arguido.
10.ª Tendo transitado em julgado a decisão de absolvição do condutor do veículo cuja responsabilidade era garantida pela Recorrente, afigura-se que o condutor não foi condenado nem lhe foi imputada a prática de qualquer crime, pelo que não existe fundamento para a extensão do prazo de prescrição prevista no art. 498º, n.º 3 do Código Civil.
11.ª Em sentido semelhante, afigura-se relevante chamar à colação o douto Acórdão desta Relação de Évora, de 23.06.2009, disponível em www.dgsi.pt, no qual se decidiu:
(…) Ora, tendo a presente acção sido deduzida em separado apenas por razões de excepção, em conformidade com o disposto no art. 72° do mesmo diploma, jamais faria sentido que neste âmbito, findo que se mostra o processo-crime, se pudesse vir a tomar posição – ainda que meramente para efeitos de apreciação da aplicação do respectivo prazo de prescrição, de natureza criminal - sobre a verificação de "todos ao elementos essenciais do crime" (objectivos e subjectivos), ou seja, sobre a existência de crime.
Desta forma, não tendo sido provada a existência do crime imputado pelo M.P. aos réus, no âmbito do processo próprio (processo crime) que já decorreu, não pode agora vir o apelante (M.P., em representação do Estado) fazer a prova do mesmo, sendo certo que
nesta acção apenas está em causa a apreciação da responsabilidade meramente civil dos réus(…)”
12.ª Salvo melhor entendimento, tendo sido o condutor do veículo - cuja responsabilidade se encontrava transferida, por via de contrato de seguro, para a Recorrente – absolvido da prática de crime por referência aos factos em discussão nos presentes autos, não poderão os Autores/Recorridos beneficiar da extensão do prazo de prescrição que tem como pressuposto a existência de crime (art. 498º.n-º3 do Código Civil) – que já foi objecto de julgamento e decisão.
13.ª Logo, considerando que o despacho que determinou a remessa da apreciação do pedido de indemnização para os Tribunais Civis data de 05.02.2018, tendo sido notificado às partes em 06.02.2018 (cfr. requerimento dos AA. referência 42440405, de 01.06.2022), afigura-se evidente que o novo prazo de prescrição se iniciou a 07.02.2018 e terminou a 07.02.2021, pelo que há muito estava terminado quando a Recorrente foi citada em 25.01.2022.
14.ª Sem prescindir e sem conceder, ainda que se considerasse que o início da contagem do novo prazo apenas ocorre com o trânsito em julgado da decisão absolutória proferida no processo crime, este ocorreu em 21.06.2018, pelo que sempre terminaria a 21.06.2021.
15.ª Assim, aquando da entrada da petição inicial, em 02.12.2021, já o direito a que os AA. se arrogam se encontrava prescrito, pelo que, deveria o douto Tribunal a quo ter considerada procedente a excepção de prescrição deduzida pela Recorrente, concluindo pela sua imediata absolvição do pedido, pelo que, não o tendo feito, no modesto entender da Recorrente, violou/fez uma incorrecta interpretação do disposto no art. 498º, n.º 3 do Código Civil.
16.ª Salvo melhor entendimento, o enquadramento como o efectuado, não só contraria o Principio Constitucional que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime (art. 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa), como abre caminho para um precedente perigoso, de que basta:
- apresentar uma queixa crime (ainda que infundada);
- ou alegar factualidade que, em abstracto, seja susceptível de preencher os elementos objectivos e subjectivos de determinado tipo legal de crime,
Para automaticamente ver aplicado/beneficiar numa ação cível de um alargamento do prazo prescricional previsto no art. 498º, n.º 3 do Código Civil.
17.ª Por mero dever de patrocínio e à cautela sempre se dirá não se aceitando o entendimento defendido pela Recorrente, no mínimo e no limiar, sempre se impunha determinar que a decisão sobre a prescrição fosse então relegada para final, dependente da prova a efectuar pelos Autores sobre a existência de crime (apesar da absolvição).
18.ª Ao decidir nos termos em que o fez, e conforme supra alegado, violou o douto despacho recorrido, entre outros, o disposto nos artigos 595º, n.º 1 do CPC, 306º e 498º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil e 77º do Código Penal, impondo-se a sua revogação e concluindo-se pela prescrição do direito dos Autores, com a correspondente absolvição da Recorrente.
19.ª Por último, salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo fez ainda uma incorrecta interpretação do artigo 598º do CPC ao determinar que as testemunhas aditadas ao rol pela Recorrente, em sede de audiência prévia, não seriam notificadas pelo Tribunal, como requerido, impondo-se a apresentação das mesmas pela Recorrente nos termos do disposto no art. 598º, n.º 3.
20.ª Ora, a faculdade conferida pelo artigo 598º n.º1 do CPC, de alteração do requerimento probatório em sede de audiência prévia, tem implícita a possibilidade de as partes alterarem o rol de testemunhas, nomeadamente aditando testemunhas.
21.ª O art. 598º, n.º 3 estabelece que é incumbência das partes a apresentação das testemunhas indicadas em consequência do aditamento ou da alteração ao rol previsto no número anterior, sendo que este número anterior (n.º 2) prevê a alteração ou aditamento de testemunhas até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, não se aplicando à alteração ao rol feita em audiência prévia (n.º 1).
22.ª Pelo exposto, salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação do artigo 598º do CPC, e deveria ter determinado, a par da admissão do aditamento ao rol, a notificação, pelo Tribunal, das testemunhas arroladas pela Recorrente em audiência prévia, a saber: os dois militares da GNR a notificar no Posto de Trânsito da GNR de Almeirim, e cuja apresentação, de todo o modo, sempre se afiguraria inviável para a Recorrente.
23.ª Nos termos e com os fundamentos supra expostos, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em conformidade, as supra decisões constantes do despacho saneador revogadas, com as devidas e legais consequências.

3. Contra-alegaram os AA. pugnando pela improcedência do recurso.

4. O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da (i)legitimidade activa;
(ii) Da prescrição do direito à indemnização; e
(iii) Da notificação das testemunhas.
*
III – Fundamentação Fáctico-Jurídica
1. A R. discorda das decisões proferidas no despacho saneador, no que se refere à excepção de ilegitimidade activa e da prescrição, que havia suscitado e que foram julgadas improcedentes e, do despacho proferido quanto à alteração do rol de testemunhas, que foi admitido, mas sendo as testemunhas a apresentar, e não a notificar, como pretendia.

Da (i)legitimidade activa
2. A R. Generali Seguros, SA., veio deduzir a excepção de ilegitimidade dos AA., sustentando que estes alegam ser únicos e universais herdeiros de DD, mas não juntam qualquer habilitação legal que o demonstre, requerendo a sua absolvição da instância.
Os AA., notificados para se pronunciarem quanto a esta matéria de excepção, alegaram, em síntese, que são os únicos e universais herdeiros de DD, sendo a autora casada com este na data da sua morte e os dois autores os seus únicos filhos, tal como resulta dos documentos juntos aos autos, e que, tal como configuram a acção têm interesse directo em demandar a R., tendo sido proferida a decisão recorrida que acolheu estes fundamentos.
A R. discorda deste entendimento, alegando não resultar da prova documental junta prova bastante da legitimidade processual dos AA., concretamente a respectiva habilitação de herdeiros do falecido DD.
Vejamos:
3. Com relevância para apreciação da excepção no despacho recorrido teve-se como assente a seguinte factualidade, com base nos documentos juntos aos autos e não impugnados:
1. No dia 1 de Setembro de 2011, na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Almeirim, foi efectuado um Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos no qual consta como:
- “Autor da Herança: FF, falecido no estado de casado, em primeiras e únicas núpcias com EE, no regime de comunhão geral de bens….
- Cabeça de casal e herdeiro: DD, no estado de casado com AA….
- Herdeira: EE, no estado de viúva de FF…
- Declarações prestadas pelo cabeça de casal
O cargo de cabeça de casal foi-lhe deferido por acordo entre os herdeiros nos termos do artigo 2084 do Código Civil.
O autor da herança faleceu no dia .../.../2011, na freguesia de Santarém (São Nicolau), concelho de Santarém.
O autor da herança não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade.
Declarados herdeiros do falecido:
EE- cônjuge
DD –filho
Que não há quem com eles possa concorrer à sucessão”.
2. DD faleceu no dia .../.../2016.
3. BB, nascido a .../.../1991, é filho de DD e de AA.
4. CC, nascido a .../.../1996, é filho de DD e de AA.
5. No dia 12 de novembro de 2018, na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Almeirim, foi efetuado um Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos no qual consta como:
- “Autor da Herança: EE, falecida no estado de viúva de FF…
- Cabeça de casal e herdeiro: BB, no estado de solteiro, maior, (…) filho de DD e de AA…
- Herdeiro: CC, no estado de solteiro, maior (…), filho de filho de DD e de AA…
- Declarações prestadas pelo cabeça de casal
A autora da herança faleceu no dia .../.../2018, na freguesia de Almeirim, concelho de Almeirim.
A autora da herança não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade.
Declarados herdeiros da falecida:
BB e CC- netos (filhos do filho pré-falecido DD).
Que não há quem com eles possa concorrer à sucessão”.

4. Como se sabe, a legitimidade é, no âmbito do direito processual civil, um pressuposto processual que exprime a relação entre as partes e a pretensão deduzida pelo autor e que é aferido pela titularidade dos interesses em causa, ou seja, pelo interesse em demandar ou em contradizer, avaliando-se a vantagem – ou a desvantagem – jurídica proveniente da procedência da acção.
A legitimidade, afere-se, pois, pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor na petição inicial, em função do pedido e causa de pedir invocados. E é nestes termos que tem que ser apreciada.
E, constituindo, um pressuposto processual, de cuja verificação depende a possibilidade de o juiz conhecer do mérito da acção, não pode confundir-se com a denominada “legitimidade substantiva”, que tem a ver, isso sim, com a posição das partes perante o direito subjectivo invocado, e que, ocorrendo, determina a improcedência do pedido.
Assim, têm legitimidade como autor e como réu, as pessoas que, juridicamente, têm interesse directo em demandar e em contradizer, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção e pelo prejuízo directo que dela advenha: é o critério que a lei processual civil fornece nos n.ºs 1 e 2 do artigo 30º do Código de Processo Civil. Refere ainda o nº 3 deste artigo que, a não ser que haja lei em contrário, são titulares de interesse relevante para aferição da legitimidade, os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Assim, um autor, só tem legitimidade, só é parte legítima, quando propondo a acção, tem um benefício se a vir julgada procedente, e um réu só tem legitimidade, só é parte legítima, quando sendo contra ele proposta uma acção, tem um prejuízo se a vir julgada procedente (tudo isto verificado em face do que é alegado pelo autor).
No caso em apreço, como se vê da análise da petição inicial, com a presente acção os AA., invocando a qualidade de herdeiros de FF, pretendem ser indemnizados pelos danos sofridos na sequência do acidente em discussão nos autos, que vitimou o seu familiar, cuja responsabilidade imputam ao condutor do veículo segurado na R..
Deste modo, tal como os AA. configuram a relação material controvertida, é manifesto que têm interesse em demandar, sendo por isso partes legítimas.
De todo o modo, sempre se dirá que está provado que EE e DD, cônjuge sobrevivo e filho, respectivamente, eram os únicos herdeiros do falecido acidentado FF, e resulta também apurado que, tendo DD falecido, em 2016, no estado de casado com cônjuge AA (cf. certidão de óbito junta com a p.i.) e deixado os filhos CC e BB, o cônjuge e os filhos são os seus sucessores (cf. artigo 2133º, n.º 1, alínea a), do Código Civil), sendo que, na sequência do falecimento, em 2018, de EE, sucederam-lhe os netos CC e BB, filhos de DD.
Em face do exposto, improcede o recurso quanto à referida excepção de ilegitimidade.

Da prescrição do direito de indemnização
5. A R. arguiu na contestação a excepção de prescrição do direito que os AA. pretendem fazer valer na presente acção, alegando que a morte do interveniente no acidente de viação objecto dos presentes autos ocorreu no dia .../.../2011 e a R. apenas veio a ser citada para os termos desta acção no dia 25 de Janeiro de 2022, muito tempo após o decurso do prazo de prescrição de três anos a que alude o artigo 498º do Código Civil, e cujo términus ocorreu em 19 de Agosto de 2014.
Sustentou, então, que, ainda que venha a ser alegada a interrupção do prazo de prescrição em virtude de ter corrido processo crime, foi por exclusiva responsabilidade dos aqui AA. que a decisão proferida no processo crime 636/11.4GEALR do Juízo de Competência Genérica de Almeirim, que determinou a remessa da apreciação do pedido de indemnização para os Tribunais civis, data de 5 de Fevereiro de 2018; que entre esta data e a da citação da R. decorreram mais de quatro anos; e que não se verificou qualquer culpa ou responsabilidade do condutor cujo veículo estava seguro na R. nem constituiu crime a sua conduta.
Na decisão recorrida concluiu-se que, “… atento o tipo de ilícito em causa e a moldura penal abstractamente aplicável ao ilícito, e visto o disposto no artigo 118.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, o prazo de prescrição resultante da aplicação do n.º 3 do artigo 498.º do C.C., situa-se, neste caso, nos cinco anos, atenta a natureza negligente dos factos cuja prática é imputada ao arguido”.
Assim, e considerando que na pendência do processo criminal o prazo de prescrição estava interrompido, que o despacho a remeter os demandantes para o tribunal civil para apreciação dos pedidos de indemnização civil data de 5 de Fevereiro de 2018, e que a citação da R. na acção cível ocorreu em 25 de Janeiro de 2022, concluiu-se que a esta data ainda não tinha decorrido o prazo prescricional de 5 anos.
A R. discorda deste entendimento, invocando no recurso, em síntese, que o prazo de prescrição é de 3 anos – porquanto o arguido veio a ser absolvido no processo criminal, não havendo razões para a extensão do prazo previsto no n.º 3 do artigo 498º do Código Civil, pelo que, não podendo os AA. beneficiar da extensão do prazo –, o qual se iniciou em 05/02/2018, com a prolação do despacho que determinou a remessa da apreciação do pedido de indemnização para os tribunais cíveis, à data da sua citação nesta acção cível (25/01/2022), já havia decorrido o referido prazo prescricional.
Mais invocou a R. que, a não ser assim, então impunha-se relegar para final a apreciação da prescrição, a decidir em função da prova a efectuar pelos AA. sobre a existência do crime.
Entendimento diverso têm os AA./Recorridos, pois consideram, além do mais, com recurso a pertinente jurisprudência que “… é entendimento pacífico que o disposto no nº 3 do citado art. 498 – ou seja, o alargamento do prazo prescricional quando o direito à indemnização emerge de facto ilícito que constitua crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo – é aplicável independentemente do resultado do processo crime que tenha corrido termos por referência ao mesmo facto ilícito ou, até mesmo, da sua existência.”
Analisemos a questão:

6. Para a decisão desta matéria são relevantes os seguintes factos, apurados com base nos documentos não impugnados juntos aos autos:
1. O acidente em causa nos autos ocorreu em .../.../2011.
2. Em 29 de maio de 2012 foi deduzida acusação contra GG, em que lhe foi imputada a prática, em .../.../2011, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência p.p. pelo artigo 137/1 do Código Penal, e de uma contra-ordenação causal daquele, p.p. pelo artigo 24/1 e 3 e 25/1-c) do Código da Estrada, a que corresponde a sanção acessória de inibição de conduzir nos termos do artigo 145-a), e e) e 147 do referido diploma legal.
3. Em 29 de junho de 2012 EE e DD deduziram o respetivo pedido de indemnização civil.
4. Após realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que absolveu o arguido da prática do crime de que vinha acusado e a demandada dos pedidos de indemnização civil.
5. DD interpôs recurso desta decisão, tendo sido proferido Acordão que declarou a invalidade do julgamento bem como da sentença recorrida e determinou a realização de novo julgamento à totalidade do objecto do processo.
6. Em cumprimento da decisão proferida no referido Acordão foi designada data para a realização de nova audiência de julgamento.
7. Em 23 de outubro de 2017 a demandante EE informou que o assistente DD tinha falecido em .../.../2016, requerendo a suspensão da instância.
8. Notificada para o efeito, EE opôs-se à remessa do pedido de indemnização civil para os Tribunais Cíveis, tendo ainda informado que pretendia instaurar o competente incidente de habilitação de herdeiros.
9. Em 5 de fevereiro de 2018, e face à não instauração do referido incidente, foi proferido despacho no processo comum singular n.º 636/11.4GEALR, que determinou a remessa da apreciação do pedido de indemnização para os tribunais civis, por se considerar que o mesmo é suscetível de retardar intoleravelmente o processo penal.
10. Este despacho transitou em julgado em 12 de março de 2018.
11. Em 22 de maio de 2018 foi proferida sentença no processo comum singular n.º 636/11.4GEALR que absolveu o arguido da prática do crime e da contra-ordenação que lhe era imputada.
12. Esta sentença transitou em julgado em 2 de junho de 2018.
13. 11. Esta ação deu entrada em juízo em 2 de dezembro de 2021.
14. A ré foi citada em 25 de janeiro de 2022.

7. Atento o pedido e causa de pedir invocados na petição inicial, a R. é demandada ao abrigo das regras da responsabilidade civil extracontratual, por facto ilícito, na sequência do acidente que vitimou o familiar dos AA., alegando-se que o acidente ocorreu por culpa única e exclusiva do condutor do veículo segurado na R., “que o conduzia com manifesta, grave e grosseira falta de cuidado, prudência e consideração pelas normas legais relativas à circulação automóvel”, “conduzindo de forma desatenta e descuidada face às regras de segurança rodoviária, (…), vindo a produzir o referido embate e morte de FF, que podia e devia ter previsto e evitado.”
Estando, pois, a causa alicerçada nos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, ainda que cometido por omissão, está em discussão o apuramento do mesmo, a concretização do nexo de imputação subjectiva ou culpa, o dano e o respectivo nexo de causalidade, aplicando-se, assim, o disposto nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil.
O acidente em causa nos autos ocorreu em .../.../2011 e, em 29 de Maio de 2012, foi deduzida acusação contra GG, em que lhe foi imputada a prática, em .../.../2011, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência p.p. pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal, e de uma contra-ordenação causal daquele, p.p. pelo artigo 24º, n.º 1 e 3 e 25º, n.º 1, alínea c), do Código da Estrada, a que corresponde a sanção acessória de inibição de conduzir nos termos do artigo 145º, alínea a) e e), e 147º, do referido diploma legal.
Em 29 de Junho de 2012, EE e DD deduziram, no processo penal, o respectivo pedido de indemnização civil.
Como se sabe, a nossa lei processual penal instituiu um sistema de adesão, do pedido cível à acção penal, nos termos do qual o pedido de indemnização cível que se funde na prática de um crime tem que ser deduzido no processo penal (cf. art. 71º do Código de Processo Penal), só podendo ser deduzido em separado nos casos previstos no artigo 72º do Código de Processo Civil.
No caso em apreço, embora o pedido cível tenha sido deduzido no processo criminal, em 5 de Fevereiro de 2018, e face à não instauração do referido incidente, foi proferido despacho no processo comum singular n.º 636/11.4GEALR, que determinou a remessa da apreciação do pedido de indemnização para os tribunais civis, por se considerar que o mesmo é susceptível de retardar intoleravelmente o processo penal, vindo os AA. a instaurar a acção cível em 2 de Dezembro de 2021, tendo a R. sido citada em 25 de Janeiro de 2022.
E é em relação à acção cível que se discute a verificação da prescrição do direito à indemnização.

8. Nos termos do n.º 1 do artigo 498º do Código de Processo Civil, “[o] direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso”, acrescentando-se no n.º 3 deste artigo que, “[s]e o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”.
Assim, se em relação à responsabilidade civil extracontratual o prazo de prescrição em causa é de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora possa desconhecer a pessoa do responsável e a extensão integral dos danos (n.º 1 do artigo 489.º do Código Civil), já em relação à responsabilidade criminal, atento o tipo de ilícito em causa e a moldura penal abstractamente aplicável ao ilícito, e visto o disposto no artigo 118.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, o prazo de prescrição resultante da aplicação do n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil, situa-se, neste caso, nos cinco anos, atenta a natureza negligente dos factos cuja prática é imputada ao arguido.
E o alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do art.º 498º do Código Civil não está dependente da existência de processo crime, podendo o lesado intentar uma acção cível para além do prazo de 3 anos, previsto no artigo 498.º, nº 1, do Código Civil, desde que o facto ilícito invocado constitua a prática de um crime, cujo prazo prescricional é superior e o demandante prove tal facto.
Efectivamente, como se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa, de 06/01/2022 (proc. n.º 4294/20.7T8SNT.L1-6), disponível como os demais citados em www.dgsi.pt:
«I–A aplicação do alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do art.º 498º do Cód. Civil não está dependente de, previamente, ter sido ou não exercido o direito de queixa, ter havido ou não processo crime ou de o lesante ter sido ou não condenado pela prática do respectivo crime, assim como não impede a aplicação daquele preceito o facto de o processo crime ter sido arquivado (por qualquer motivo) ou amnistiado.
II–A razão de ser de tal alargamento do prazo prescricional assenta apenas na especial qualidade e gravidade do facto ilícito. Por isto, para a verificação de tal alargamento, é mister que se alegue e prove na acção cível que os factos que são imputados ao lesante integram, em abstracto, determinado tipo criminal.»
Em idêntico sentido, veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28/06/2018 (proc. n.º 4077/17.1T8GMR.G1), onde também se concluiu que: “I– A ampliação do prazo prescricional prevista no n.º 3 do art. 498º do CC não está dependente da efectiva instauração de processo penal, mas apenas da alegação (e posterior prova), em sede de petição inicial, por parte dos demandantes de factos, dos quais decorra que o facto ilícito em que ancoram o direito indemnizatório a que se arrogam titulares, preenche os elementos objectivos e subjectivos de um tipo legal de crime, em relação ao qual a lei penal preveja um prazo de prescrição superior a três anos».
E a exigência não só da alegação, mas também da prova, dos factos reveladores da existência de facto ilícito integrador de tipo penal mais grave, a demandar a aplicação do alargamento do prazo prescricional, justifica-se ainda mais, nos casos em que o alegado responsável pelo evento danoso foi absolvido no processo criminal, por não haver praticado os factos imputados, impendendo sobre o demandante cível ilidir a presunção que resulta no artigo 662º do Código de Processo Civil.

9. Quanto à questão do início da contagem do prazo prescricional, prescreve-se no n.º 1 do artigo 306º do Código Civil que “[o] prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.”
No que para o caso interessa, importa reter que o pedido de indemnização cível foi deduzido no processo criminal após a acusação, não se suscitando dúvidas quando à respectiva tempestividade.
A dedução de tal pedido teve como consequência a interrupção do prazo prescricional em curso (cf. artigo 323º do Código Civil), o qual só volta a correr no caso dos autos, com a notificação do despacho de 05/02/2018, proferido no processo crime, que determinou a remessa da apreciação do pedido de indemnização cível para os tribunais cíveis, nos termos do artigo 82º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Deste modo, e tendo a acção cível sido instaurada em 02/12/2021, a esta data, a ser aplicável ao caso o prazo de prescrição de cinco anos, ainda não havia decorrido o prazo da prescrição, o mesmo sucedendo, quer se tenha a citação da R. como efectuada ao 5º dia (cf. artigo 323º, n.º 2, do Código Civil), quer na data em que foi efectivamente ocorreu (25/01/2022).

10. Porém, em face do que acima se decidiu no ponto 8, no sentido de que a ampliação do prazo prescricional prevista no n.º 3 do art. 498º do Código Civil está dependente da alegação em sede de petição inicial, e posterior prova, por parte dos demandantes de factos, dos quais decorra que o facto ilícito em que ancoram o direito indemnizatório a que se arrogam titulares, preenche os elementos objectivos e subjectivos de um tipo legal de crime, em relação ao qual a lei penal preveja um prazo de prescrição superior a três anos, assiste razão à recorrente quando invoca que a apreciação da prescrição devia ter sido relegada para a decisão final.
Efectivamente, tendo por base o entendimento que acima sufragámos e tendo os autos prosseguido para julgamento, para apuramento dos factos ilícitos em que os AA. fundam o direito indemnizatório, o conhecimento da excepção peremptória no saneador foi prematuro, pois não está provado que os factos em causa integrem ilícito para o qual a lei penal preveja prazo de prescrição superior a 3 anos.
Assim, deve revogar-se a decisão recorrida, nesta parte, relegando-se o conhecimento da matéria da excepção para a sentença final.

Do despacho que admitiu o aditamento ao rol de testemunhas.
11. A R. recorre também do despacho que admitiu o aditamento ao rol de testemunhas anteriormente apresentado, que formulou na audiência prévia, que determinou que as testemunhas fossem a apresentar, nos termos do n.º 3 do artigo 598º do Código de Processo Civil.
A R. discorda e com inteira razão.
Prescreve-se no artigo 598º do Código de Processo Civil que:
«1 - O requerimento probatório apresentado pode ser alterado na audiência prévia quando a esta haja lugar nos termos do disposto no artigo 591.º ou nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 593.º.
2 - O rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias.
3 - Incumbe às partes a apresentação das testemunhas indicadas em consequência do aditamento ou da alteração ao rol previsto no número anterior.»
No recurso não está em causa a admissibilidade do aditamento ao rol de novas testemunhas, em sede de audiência prévia, pois a pretensão da R. de aditamento ao rol foi deferida, mas, tão só, o facto de se ter determinado que as testemunhas, ora aditadas, seriam a apresentar, por aplicação do n.º 3 do citado artigo 598º do Código de Processo Civil.
Porém, como resulta claramente da norma em causa, a imposição da apresentação das novas testemunhas, apenas se refere ao aditamento ou alteração do rol efectuado no âmbito da aplicação do n.º 2 do citado artigo, ou seja, quando tal pretensão tenha sido suscitada, não na audiência prévia, mas até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, o que não é o caso, não tendo, por conseguinte, aqui aplicação a norma em causa.
Assim, e tendo sido indicado o domicilio profissional das ditas testemunhas (militares da GNR), em Almeirim, que pertence à Comarca de Santarém, as mesmas devem ser notificadas, como resulta das disposições conjugadas das normas dos artigos 500º, 502º, n.º 1, e 598º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Por conseguinte, procede nesta parte o recurso.

12. Deste modo, o recurso procede parcialmente, nos termos supra indicados.
Parcialmente vencidas no recurso, as custas serão suportadas por ambas as partes, na proporção que se fixa em ½ para cada.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
a) Confirmar o despacho saneador, na parte em que julgou os AA. como parte legítima na acção;
b) Revogar o mesmo despacho, na parte em que conheceu da excepção da prescrição do direito à indemnização, relegando-se o conhecimento da excepção para a sentença final; e
c) Revogar o despacho proferido na audiência prévia que determinou que as testemunhas aditadas ao rol pela R. são a apresentar, determinando-se a notificação das mesmas para a audiência final.
Custas a cargo de ambas as partes, na proporção de ½ para cada.
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Évora, 26 de Outubro de 2023
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)