Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
340/23.0T8GDL.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
ESBULHO VIOLENTO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. O testemunho de ouvir dizer significa que a testemunha não presenciou os factos sobre os quais incide o seu depoimento, tenho-lhe sido os mesmos relatados por terreiros.
II. Trata-se de um depoimento indireto, não passível de contraditório, ainda mais falível do que o depoimento testemunhal em si mesmo, já por si, com essas caraterísticas. O valor deste meio de prova é o de indicar o meio de prova direto, permitindo que o juiz possa, então, ouvir essa fonte e desencadear o princípio do contraditório.
III. Se a fonte direta (quem ouviu) são as próprias testemunhas que depuseram e disseram o que presencialmente ouviram, não são testemunhas de ouvir dizer.
IV. Os únicos requisitos para a procedência da restituição provisória de posse são a existência da posse, o esbulho e a violência.
V. O esbulho com violência pode consistir em violência física contra coisas, desde que, por via da mesma, vise colocar o possuidor numa situação de intimidação ou constrangimento, pondo em causa a sua liberdade de determinação.
VI. Ocorre esbulho violento que afeta a possa do requerente da procedimento cautelar de restituição provisória da posse a danificação da tubagem de captação de água e do respetivo aqueduto, ou, ainda, de um tubo exterior que, em alternativa, providenciava pelo abastecimento de água, bem como pelo impedimento do acesso dos Requerentes àquelas infraestruturas para providenciarem pela sua reparação e manutenção.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
AA, na qualidade de usufrutuária, e BB, na qualidade de proprietário do imóvel identificado no artigo 1.º da petição inicial (Herdade do Pinheiro), que qualificam como prédio dominante, intentaram procedimento cautelar de restituição provisória da posse com inversão do contencioso, contra SOPARINPORT – PARTICIPAÇÕES E INVESTIMENTOS, S.A., na qualidade de proprietária do prédio identificado no artigo 2.º da petição inicial (Pinheiro de Cima), que qualificam como prédio serviente, pedindo que seja decretada a restituição provisória de posse dos Requerentes sobre as águas e servidão de aqueduto, através do livre acesso à captação de água e ao aqueduto, localizados no imóvel da Requerida.
E, ainda, que seja ordenado à Requerida que faculte de imediato ao Requerente um duplicado de chave própria para a fechadura do portão de acesso normal ao prédio serviente ou que deixem esse portão aberto, permitindo a esta verificar o estado da captação, colocar-lhe uma tampa com cadeado, bem como inspecionar, reparar e manter o bom estado das tubagens que compõe o aqueduto, repondo a situação existente, anteriormente a 6 de agosto de 2023.
Bem como, que seja ordenado à Requerida que, uma vez decretada da providência, se abstenha da prática de qualquer ato perturbador da posse dos Requerentes e que mantenha a manilha da captação de água a 1,20 metro de altura do solo.
Requereram, ainda, a inversão do contencioso.

Para o efeito, e em suma, alegaram que, pelo menos, há sessenta anos que o prédio dominante é abastecido de água canalizada proveniente do prédio serviente, através de uma captação de água de rios subterrâneos que se encontram a 60 metros acima do nível do mar, captada por uma manilha enterrada no prédio serviente e de um aqueduto por tubagens subterrâneas, estruturas essas que foram construídas pelos seus antepassados e, desde então, mantidas pelos mesmos e pelos Requerentes, que, para esse efeito acedem às mesmas através do prédio serviente, utilizando a água para consumo humano e animal e também para rega.
Mais alegam que, no dia 06-08-2023, a posse sobre as águas foi retirada aos Requerentes pela Requerida mediante a danificação da tubagem que constitui o aqueduto de transporte de água para o prédio dominante, encontrando-se o portão de acesso à captação de água fechado e trancado com cadeado impedindo, assim, o acesso quer à captação de água, quer ao aqueduto.

Foram ouvidas as testemunhas arroladas pelos Requerentes e, em 08-09-2023, foi proferida decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar requerido.

Inconformados, apelaram os Requerentes pugnando pela substituição da decisão recorrida por outra que ordene o decretamento da providência cautelar de restituição provisória de posse, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«O presente recurso vem interposto da douta decisão do Tribunal a quo, ao não decretar a presente providência cautelar de restituição provisória de posse, porque apesar de dar como indiciada a interrupção no abastecimento de água (página 11), retirada da posse, à propriedade dos Requerentes, entendeu que não se provou o fundamento de tal interrupção. A douta decisão é justificada, por o corte no abastecimento de água, poder resultar de uma obstrução ou ruptura da tubagem ou em outra causa ou circunstância, que entendeu não se ter provado.
Os factos dados por indiciados O) P) Q) R) S) T) X) in fine e BB), os factos que deveriam ter sido dado por indiciados 2) 6) e 7), bem como a factualidade vertida no art.º 36º do requerimento inicial, sob a qual não incidiu pronuncia e que, caso assim se entenda, também deverá ser dado por indiciado, são bastantes para fundamentar o decretamento da presente providência cautelar, nos termos requeridos.
Em consequência, deve ser reapreciada a prova gravada, constante da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, sendo proferida decisão sobre as questões de facto ora impugnadas, vindo a ser proferida decisão no sentido dos factos não indiciados 2) 6) e 7) e o art.º 36º do requerimento inicial, serem dados por provados.
Todos os factos que ora se invocam, devem ser considerados incorrectamente julgados, na medida em que, o Tribunal a quo, não deu por provado o fundamento, nem a autoria, da interrupção de abastecimento de água à propriedade dos Requeridos, ora Apelantes, o que a acontecer, preenchia o requisito considerado em falta pelo Tribunal a quo, para o decretamento desta providência cautelar: o esbulho violento.
Verificam-se assim, os requisitos previstos nos arts. 377.º do CPC, pois estão preenchidos os três requisitos legais para o efeito, a saber:
A Posse - Os Requerentes detinham há mais de 60 anos, e até 1 de Agosto de 2023, a posse da água.
O Esbulho – Em 2 de Agosto de 2023, os Requerentes foram esbulhados na posse da água.
A Violência – Os representantes da Requerida utilizaram violência para esbulharem a posse aos Requerentes.»

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Atendendo às conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso (sem prejuízo do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), importa apreciar:
- Questão prévia: junção de documentos com as alegações.
- Mérito do recurso:
- Retificação de erro de escrita;
- Nulidade da decisão;
- Impugnação da decisão de facto;
- Se em face dos factos indiciariamente provados, ocorreu esbulho violento.

B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
«2.1. FACTOS INDICIADOS
A) A Requerente é usufrutuária, enquanto que o Requerente é proprietário, do prédio misto, sito em Herdade do Pinheiro, freguesia de Azinheira Barros e São Mamede do Sádão, concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola, com o número ...22 e inscrito na matriz predial rústica da indicada freguesia sob o artigo ..., secção ... e na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo ...86, da indicada freguesia.

B) A Requerida é proprietária do prédio rústico, denominado de Pinheiro de Cima, situado na freguesia de Azinheira Barros e São Mamede do Sádão, concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola, com o número ...9 e inscrito na matriz predial rústica da indicada freguesia sob o artigo ..., secção C-....

C) Os prédios identificados, são prédios confinantes.

D) A propriedade do prédio da requerida, pertenceu aos antepassados dos Requerentes, há largas dezenas de anos.

E) A sociedade ora Requerida, apenas adquiriu o prédio em 10 de Abril de 2014.

F) Há pelo menos sessenta anos, que o prédio dos Requerentes é abastecido de água canalizada proveniente do prédio da Requerida.

G) Para o efeito, os antepassados dos Requeridos, a expensas suas, construíram uma captação de águas, provenientes de rios subterrâneos, que se encontra a 60 metros acima do nível do mar, cujo local é conhecido pelos habitantes das povoações limítrofes, como Fonte da Prata ou Fonte de Entre Águas.

H) A captação é constituída por uma manilha, enterrada verticalmente no terreno de uma empena, junto a uma barragem, existente no prédio da Requerida.

I) Também a cargo e a mando dos antepassados dos Requerentes, foi construído um aqueduto composto por tubagens subterrâneas com 1,4 metros de diâmetro e cerca de 840 metros, para transporte da água da captação, até ao monte do prédio dos Requerentes.

J) Esta água tem vindo a ser utilizada pelos Requerentes, familiares e colaboradores, de forma plena e ilimitada, ao serviço de qualquer fim, com o mais amplo aproveitamento e utilidades que a água possa prestar.

K) Designadamente para consumo humano e higiene diária.

L) Atenta a antiguidade e utilização da captação e do aqueduto, foram sendo objecto de obras de manutenção e substituição, o que sempre ocorreu por conta e risco dos Requerentes ou dos seus antepassados.

M) As tubagens carecem de manutenção e de substituição com regularidade, sendo necessário o acesso às mesmas.

N) Há cerca de 3 anos o Requerente procedeu à substituição de 3 a 4 metros de tubagens e aplicação de uma tampa na captação.

O) No dia 2 de Agosto de 2023, os Requerentes aperceberam-se da redução do caudal da água.

P) Nesse dia, o Requerente deslocou-se ao local e apurou a existência de excrementos de gado e com terra ao rebordo da manilha.

Q) No dia 4 regressou e colocou um tubo pensando que o do aqueduto estivesse entupido.

R) Em dia não concretamente apurado, CC (encarregado da Requerida) e DD (alegado proprietário da Requerida), no café da povoação limítrofe, Rio de Moinhos do Sado, desenvolviam uma conversa relacionada com a destruição das tubagens do aqueduto de abastecimento de água, ao prédio dos Requerentes, sito na Herdade do Pinheiro.

S) No mesmo dia 6/8/2023, os Requerentes e família mais uma vez, aperceberam-se da redução do caudal de água nas canalizações, tendo acabado por se extinguir.

T) O portão de acesso à captação encontrava-se fechado e trancado com cadeado, impedindo o acesso, quer à captação quer ao aqueduto

U) O Requerente contactou DD, que se auto-intitula “dono” do prédio da Requerida e solicitou-lhe autorização para aceder à captação de água, de forma a detectar a origem do problema, o que lhe foi concedido verbalmente, mas não no local.

V) Ainda no dia 6/8/2023 à tarde, EE, esposa do Requerente deslocou-se à herdade da Requerida e interpelou o encarregado CC e o proprietário DD.

W) O propósito da deslocação de EE, foi o de sensibilizar os representantes da Requerida, a facultarem a chave de acesso à captação por forma aos Requerentes resolverem qualquer problema de captação e transporte da água.

X) Encontrando-se a sós com EE, CC entregou-lhe a chave de acesso à captação para verificar o problema, mas alertou-a da urgência em devolvê-la, tendo ainda confessado ter retirado o tubo exterior a mando de DD.

Y) A chave foi devolvida à Requerida, por EE, no início do dia 7/8/2023.

Z) No dia 7/8/2023, já não corria água.

AA) Após estes factos, o Requerente efectuou uma denuncia à GNR e depois e foi com o uma
brigada do SEPNA ao local.

BB) Posteriormente, o Requerente voltou à captação acompanhado da GNR e verificou que o terreno em volta da manilha encontrava-se remexido e puxado para junto desta, tendo sido utilizadas máquinas escavadoras.

Mais se provou:

CC) Que no passado, ambos os prédios pertenciam á família do requerente.

2.2. FACTOS NÃO INDICIADOS
1) Que o aqueduto ou tubo subterrâneo tenha uma polegada e um quarto de diâmetro, que passa em que cerca de 540 metros pelo prédio da Requerida e cerca de 300 metros dentro do prédio dos Requerentes.

2) Que a água proveniente do prédio da requerida sirva seja utilizado para consumo animal,
rega, lavagens de pátios e de outras infra-estruturas.

3) Em 2006 o esposo da Requerente, contratou uma empresa que procedeu à substituição do tubo de água e a reparações, retirando terras que se foram acumulando, em redor da abertura da manilha.

4) DD abandonou a conversa que vinha mantendo com CC e com EE, afastando-se de ambos.

5) Munido da chave, o Requerente deslocou-se à captação e ferrou o tubo exterior, tendo ficado a água a correr para o prédio dominante.

6) No dia 8/8/2023, mais uma vez o Requerente deslocou-se ao local para tentar resolver o problema.

7) Sendo que, dia 17/8/2023 apresentou queixa à GNR assumindo o estatuto de vítima

8) Deslocou-se ao local uma patrulha da GNR que, em conjunto como o Requerente, efectuou inúmeros registos fotográficos para instruir processo crime junto do Ministério Publico de Grândola.»

C- Das Questões suscitadas no recurso
1. Questão prévia: junção de documentos com as alegações
Os Apelantes juntaram com as alegações um documento, fundamentado a junção do seguinte modo: «A decisão que ora se peticiona, tem carácter de muito urgente, pois a propriedade dos Requerentes encontra-se a ser abastecida de forma precária, sendo que a irrigação para rega, termina no próximo mês de Outubro, cfr. documento que ora se junta.»
O documento em causa é uma Declaração com data de 20-09-2023, emitida pela Associação de Beneficiários da Obra de Rega de Odivelas onde se lê que o prédio dos Requerentes é beneficiário pelo Aproveitamento Hidroagrícola de Odivelas, mencionado ainda o período de duração do fornecimento de água.
A junção de documentos em sede de alegações encontra-se sujeita aos requisitos do artigo 651.º do CPC. Fora das situações previstas no n.º 2 do precito (que manifestamente não se aplicam ao caso), o n.º 1 prevê a junção de documentos nos casos excecionais previstos no artigo 425.º ou no caso dos mesmos se terem tornado necessários em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância.
Em qualquer dos casos, sempre a junção se encontra adstrita aos fundamentos factuais em discussão.
No caso, a invocação da especial urgência na apreciação dos fundamentos de um recurso, não se enquadram nos pressupostos legais do mencionado preceito.
Nestes termos, não se admite a junção do documento em causa, que deve ser devolvido aos apresentantes, incorrendo os mesmos na respetiva sanção pela tramitação incidental a que deram causa.
2. Mérito do recurso:
2.1. Retificação de erro de escrita
Alegam os Apelantes que a alínea G) dos factos indiciariamente provados contém um lapso (que já provém do artigo 7.º da petição inicial, não corrigido, apesar de terem apresentado requerimento nesse sentido, que não foi apreciado), pois onde consta «Requeridos» deve constar «Requerentes».
Efetivamente, decorre da leitura integral da petição inicial que o alegado sofre de manifesto lapso de escrita, pois toda a alegação é no sentido de terem sido os antepassados dos Requerentes quem praticou os atos ali mencionados e não os dos «Requeridos», sendo que, atualmente, tal menção nem tem qualquer sentido uma vez que a parte demandada é uma sociedade nada foi alegado quanto aos anteriores proprietários.
Nestes termos, ao abrigo do artigo 614.º, n.º 1, do CPC, retifica-se o referido lapso de escrita, pelo que a redação da alínea G) dos factos indiciariamente provados passa a ter a seguinte redação:
«G) Para o efeito, os antepassados dos Requerentes, a expensas suas, construíram uma captação de águas, provenientes de rios subterrâneos, que se encontra a 60 metros acima do nível do mar, cujo local é conhecido pelos habitantes das povoações limítrofes, como Fonte da Prata ou Fonte de Entre Águas.»

2.2. Nulidade da decisão
No corpo da alegação e no final das Conclusões, os Apelantes invocam a nulidade da decisão por omissão de pronúncia em relação ao alegado no artigo 36.º da petição inicial.
As nulidades das decisões (em sentido lato) encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 615.º, do CPC, e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente da omissão de pronúncia (a invocada pelos Apelantes), está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões[1]) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa[2].
Como se disse, esta nulidade não abrange os erros de julgamento ao nível do facto ou da aplicação do direito aos factos.
Sendo esse o fundamento da arguida nulidade o erro de julgamento em termos de apreciação de facto, a mesma não pode deixar de improceder.
Nestes termos, julga-se improcedente a arguição de nulidade da decisão recorrida.

2.3. Impugnação da decisão de facto
Visam os Apelantes a reapreciação da prova gravada em relação aos factos não indiciariamente provados mencionados nos pontos 2), 6) e 7), pugnando para que os mesmos sejam dados como provados, bem como o alegado no artigo 36.º da petição inicial sobre o qual o tribunal a quo não emitiu qualquer juízo de valor em termos probatórios.
Invocam no corpo da alegação os depoimentos em que se fundam e os respetivos segmentos da produção da prova.
Considerando que se encontram minimamente preenchidos os requisitos da reapreciação da prova previstos no artigo 640.º do CPC, em conjugação com o disposto no artigo 662.º do mesmo diploma legal, passa-se à reapreciação da referida factualidade.
O ponto 2) dos factos não indiciariamente provados tem a seguinte redação:
«2) Que a água proveniente do prédio da requerida sirva seja utilizado para consumo animal, rega, lavagens de pátios e de outras infra-estruturas.»

Na fundamentação da decisão de facto sobre este ponto, consta o seguinte:

«Quanto à factualidade não indiciada exarada em 2): o requerente esclareceu que a água proveniente da captação (da manilha) abastecia a casa de habitação, sendo aí utlizada de forma indiscriminada. Mas igualmente confirmou que a beberagem do gado e rega da herdade era feita através da água proveniente dos canais de rega. Ou seja, não ficou claro e evidente que a água proveniente da Fonte da Prata servisse outros fins senão o abastecimento da casa de habitação.»

Os Apelantes contrapõem que das declarações de parte do Requerente BB e do depoimento testemunhal de EE (esposa do Requerente) ficou indiciariamente demonstrado em termos probatórios que a água que abastecia a propriedade proveniente da captação e aqueduto a que se reportam os autos, servia para todos os fins, incluindo dar de beber às vacas, mas como as mesmas se encontram noutra zona do prédio (e não na casa) têm de arranjar outros meios de lhes fazer chegar a água.
Ora, da análise que fazemos da prova referenciada, afigura-se-nos seguro concluir que a água provinda do prédio serviente é utilizada pelo prédio dominante para os fins que os Requerentes julgam adequados e necessários, incluindo dá-la de beber aos animais, se for essa a opção quanto à sua utilização.
Aliás, essa mesma realidade ficou expressa na alínea J) dos factos indiciariamente provados quando ali ficou a constar:
«J) Esta água tem vindo a ser utilizada pelos Requerentes, familiares e colaboradores, de forma plena e ilimitada, ao serviço de qualquer fim, com o mais amplo aproveitamento e utilidades que a água possa prestar.»
Donde se afigura inquestionável que a matéria dada como não provada no ponto 2) se encontra em manifesta oposição e contradição com o dado como provado na alínea J).
Ademais, a testemunha FF, trabalhador rural da Herdade do Pinheiro e que conhece o local há 42 nos, também referiu no seu depoimento que as vacas sempre beberam num «pio» que continha água da Fonte da Prata.
Nestes termos, e porque a prova indiciária se inclina mais no sentido da utilização para todos os fins, a impugnação da decisão de facto procede, eliminando-se o ponto 2) dos factos indiciariamente não provados, passando a alínea J) dos factos indiciariamente provados a ter a seguinte redação:
«J) Esta água tem vindo a ser utilizada pelos Requerentes, familiares e colaboradores, de forma plena e ilimitada, ao serviço de qualquer fim, com o mais amplo aproveitamento e utilidades que a água possa prestar, incluindo consumo animal, rega, lavagens de pátios e de outras infra-estruturas».

O ponto 6) dos factos não indiciariamente provados tem a seguinte redação:
«6) No dia 8/8/2023, mais uma vez o Requerente deslocou-se ao local para tentar resolver o problema.»

O ponto 7) dos factos não indiciariamente provados tem a seguinte redação:
«7) Sendo que, dia 17/8/2023 apresentou queixa à GNR assumindo o estatuto de vítima».

Na fundamentação da decisão de facto sobre estes pontos, consta que os respetivos factos não foram objeto de qualquer prova.
Os Apelantes contrapõem em relação ao ponto 6) os meios de prova já antes invocados dos quais resulta, no seu entender, que no dia 08-08-2023, o Requerente se deslocou ao local para tentar resolver o problema.
Decorre dos ditos depoimentos que efetivamente ocorreu a referida deslocação, ainda que o Requerente não tenha acedido ao local da captura de água e do aqueduto por o portão de acesso à propriedade da Requerida estar fechado.
Não se descortina razão para tais depoimentos não merecerem a credibilidade do tribunal. Tanto mais que mereceram credibilidade para dar outros factos como indiciariamente provados relacionados com as idas ao local mencionadas nos mesmos depoimentos, como consta das alíneas U) e V) e da fundamentação da decisão de facto sobre tal factualidade.
Nestes termos, também procede a impugnação da decisão de facto quanto ao ponto 6) dos factos não indiciariamente provados que passa a elencar a matéria de facto indiciariamente provada, na mesma sequência, ou seja, sob a alínea DD), com a seguinte redação:
«DD) No dia 8/8/2023, mais uma vez o Requerente deslocou-se ao local para tentar resolver o problema.»

Já quanto ao ponto 7) dos factos indiciariamente não provados, a respetiva factualidade é inócua para o que se discute nestes autos. Sendo que a matéria que pode ter alguma relevância em termos de reação dos Requerentes ao alegado esbulho já se encontra indiciariamente provada sob a alínea AA).
Donde, a inutilidade da reapreciação determina a sua rejeição.

Em relação ao alegado no artigo 36.º da petição inicial:
Foi alegado o seguinte: «No dia 6 de Agosto de 2023, a posse sobre as águas foi retirada aos Requerentes, pela Requerida, mediante a danificação da tubagem que constituiu o aqueduto de transporte da água para o prédio dominante, propriedade dos Requerentes (esbulho violento).»
Alegam os Apelantes que a factualidade em causa se encontra indiciariamente provada através da prova testemunhal prestada por GG e FF, bem como das ilações que deveriam ter sido retiradas, ao abrigo o artigo 349.º do Código Civil, dos factos indiciariamente provados inseridos nas alínea R), S), T), X), Z) e BB).
Na sentença recorrida, embora sem menção expressa ao articulado supra referido, considerou o tribunal a quo que não ficou indiciada a razão da interrupção do abastecimento da água que, aventa, pode assentar numa obstrução ou rutura da tubagem ou em outra causa ou circunstância que não se provou.
Vejamos, então.
Sublinhando-se que a reapreciação da impugnação em curso é de facto e não de direito, o alegado no artigo 36.º da petição inicial releva apenas na parte em que se refere que no dia 06 de agosto de 2023, a Requerida danificou a tubagem que constitui o aqueduto de transporte de água para o prédio dos Requerentes, impedindo-o, assim, de ter acesso às águas provenientes daquela tubagem e aqueduto.
A testemunha GG declarou no seu depoimento que os donos do prédio serviente cortaram a água, mencionando como razão de ciência uma conversa que a própria ouviu num café entre o feitor da Requerida, de nome CC, e o dono do prédio da Requerida, de nome DD, da qual percebeu que, referindo-se ao Requerente, diziam que iam tirar o resto dos canos e que os iam cortar.
Também a testemunha FF declarou que, no café, o DD disse para o CC e para o HH (empregado daqueles) que qualquer dia vamos lá e, para o CC, qualquer dia vais lá e cortas o cano aos bocados.
O tribunal a quo desvalorizou estes depoimentos por entender que são de ouvir dizer.
Contudo, na alínea R) dos factos indiciariamente provados considerou, com base no depoimento da testemunha II, que: «R) Em dia não concretamente apurado, CC (encarregado da Requerida) e DD (alegado proprietário da Requerida), no café da povoação limítrofe, Rio de Moinhos do Sado, desenvolviam uma conversa relacionada com a destruição das tubagens do aqueduto de abastecimento de água, ao prédio dos Requerentes, sito na Herdade do Pinheiro.»
Ora, não se entende como se pode valorizar um depoimento no tocante à existência da referida conversa e já não o fazer em relação ao seu conteúdo com o argumento que se trata de um testemunho de ouvir dizer.
O testemunho de ouvir dizer significa que a testemunha não presenciou os factos sobre os quais incide o seu depoimento, tenho-lhe sido os mesmos relatados por terreiros.
Trata-se de um depoimento indireto, não passível de contraditório, ainda mais falível do que o depoimento testemunhal em si mesmo, já por si, com essas caraterísticas. O valor deste meio de prova é o de indicar o meio de prova direto, permitindo que o juiz possa, então, ouvir essa fonte e desencadear o princípio do contraditório.
Ora, no caso, a fonte direta (quem ouviu) são as próprias testemunhas que depuseram e disseram o que presencialmente ouviram, o que evidencia que não são testemunhas de ouvir dizer.
Ouvidos os referidos depoimentos contatou-se que são trabalhadores rurais e que têm trabalhado para os Requerentes na Herdade referida nos autos, conhecendo bem a realidade em discussão.
No que concerne às conversas que relataram ter ouvido no café perto do local (Rio de Moinhos), o relato do sucedido evidencia consistência pelos pormenores que foram revelando em relação ao modo e circunstâncias em que ouviram tais conversas, não se descortinando que haja fundamento sério para pôr em causa a sua credibilidade quanto à intenção e execução por parte de alegado dono da propriedade da Requerida (identificado como DD e do feitor, de nome CC) de cortarem o cano de abastecimento de água à Herdade dos Requerentes.
E, na verdade, no ponto X) dos factos indiciariamente provados consta que CC confessou que retirou o tubo exterior a mando de DD, o que vem dar consistência aos ditos depoimentos.
É certo que, para além do cano exterior, existia a tubagem interior que fazia a captação. Contudo, também se deu como indiciariamente provado na alínea BB) que, na zona da captação o tereno em volta da manilha encontrava-se remexido e puxado para junto desta, tendo sido utilizadas máquinas escavadoras, o que vai de encontro ao referido pela testemunha FF quando disse que, depois de ter sido retirado o tubo exterior, foram lá com máquinas e desde aí não há água, não tendo podido ir ao local da captação por a porta estar fechada a cadeado, o que também vem de encontro ao dado como indiciariamente provado na alínea T), onde consta que o portão de acesso à captação se encontrava fechado e trancado com cadeado, impedindo o acesso, quer à captação, quer ao aqueduto.
Tudo visto, e tendo em conta que estamos perante uma prova indiciária (summario cognitio), entende-se que os Requerentes lograram provar que em dia não concretamente apurado, mas contemporâneo do momento em que se verificou a redução do caudal de água nas canalizações, tendo acabado por se extinguir em 06-08-2023, a Requerida danificou a tubagem que constituiu o aqueduto de transporte de água para o prédio dos Requerentes, impedindo-o, assim, de ter acesso às águas provenientes daquela tubagem e aqueduto.
Nestes termos, procede a impugnação, aditando-se aos factos indiciariamente provados, e em termos sequenciais, a alínea EE) com a seguinte redação:
«EE) Em dia não concretamente apurado, mas contemporâneo do momento em que se verificou a redução do caudal de água nas canalizações, tendo acabado por se extinguir em 06-08-2023, a Requerida danificou a tubagem que constituiu o aqueduto de transporte de água para o prédio dos Requerentes, impedindo-o, assim, de ter acesso às águas provenientes daquela tubagem e aqueduto.»

2.4. Se em face dos factos indiciariamente provados, ocorreu esbulho violento
Na decisão recorrida considerou-se que ficou perfunctoriamente demonstrado o direito em que assenta a pretensão cautelar dos Requerentes, ou seja, quanto à posse invocada sobre «(…) a água captada através de uma manilha existente no prédio da requerida e conduzida subterraneamente ao prédio dos Requerentes há mais de 60 anos, actuação esta que, indiciariamente, corresponde ao direito de uma servidão de águas adquirida por usucapião (n.º 1, do artigo 1547º do Código Civil) ou eventualmente, por destinação do pai de família (artigo 1548º do Código Civil).»
Porém, no que concerne ao esbulho, no entender do tribunal a quo, não se ficou indiciariamente demonstrado, concluindo-se na decisão recorrida que: «(…) sendo evidente que ocorreu interrupção no abastecimento de água à propriedade do Requerente, não se provou a circunstância de tal interrupção e, fundamentalmente, não se provou que tal interrupção se ficasse a dever a uma conduta da requerida.
De igual modo, nada se provou quanto à retirada do tubo posteriormente colocado pelo requerido à superfície (para “remediar” a interrupção inicial), designadamente se o mesmo foi efectivamente retirado (ou por exemplo, meramente “afastado” caso em que se poderia equacionar não o esbulho, mas uma mera turbação da posse).»

Em face da alteração da decisão de facto, é claro que a decisão recorrida não se pode manter.
O procedimento cautelar de restituição provisória de posse é, por opção do legislador, um procedimento nominado/especificado, decretado sem audiência da parte requerida, afastando-se, assim, a regra geral do prévio contraditório, não sendo alheia a tal opção o facto de estar em causa uma reação a um ato violento – o esbulho (artigos 377.º e 378.º do CPC).
Na verdade, os únicos requisitos para a procedência da restituição provisória de posse são a existência da posse, o esbulho e a violência. Estes requisitos, que provêm já do CPC 1939 (artigo 400.º), determinavam que o Prof. Alberto dos Reis defendesse que a «restituição provisória de posse não é rigorosamente uma providência cautelar. É, sem dúvida, uma providência preventiva e conservatória; mas não é uma providência cautelar, porque lhe falta a característica do periculum in mora”.
E acrescentava: “Para obter a restituição o requerente não precisa de alegar e provar que corre um risco, que a demora definitiva na ação possessória o expõe à ameaça de dano jurídico; basta que alegue e prove a posse, o esbulho, a violência. O benefício da providência é concedido, não em atenção a um perigo de dano iminente, mas como compensação da violência de que o possuidor foi vítima.”[3]
Como decorre do artigo 378.º do CPC a providência cautelar que requerida é, na sua feição primeira, a restituição da posse dos Requerentes ofendida pelo esbulho da Requerida. Esse esbulho – tem-se entendido de forma bastante alargada e atualmente consensual em termos jurisprudenciais, - pode ser constituído por vários comportamentos do esbulhador, incluindo atos de violência física contra coisas (artigos 1279.º e 1261.º, n.º 2, do Código Civil).
A violência dirigida às coisas apenas será relevante para efeitos de restituição provisória de posse, a partir do momento em que, ainda assim, visa o possuidor, colocando-o numa situação de intimidação ou constrangimento (coação). Ou seja, em última linha, ainda que dirigida às coisas, para que possa falar-se de violência, para efeitos de restituição provisória de posse, a mesma tem de representar uma forma de intimidação sobre o possuidor, pondo em causa a sua liberdade de determinação.[4]
Inserem-se no âmbito desses comportamentos atos que afetam a posse da parte demandante, mormente, como sucede no caso presente, através da danificação da tubagem de captação de água e do respetivo aqueduto, ou, ainda, de um tubo exterior que, em alternativa, providenciava pelo dito abastecimento, bem como pelo impedimento do acesso dos Requerentes àquelas infraestruturas para providenciarem pela sua reparação e manutenção.
Que se encontra indiciariamente demonstrada a existência de esbulho violento é a conclusão a retirar em face dos factos perfunctoriamente provados e que constituem as alíneas O) a EE), donde decorre que, desde 02-08-2023 até 06-08-2023, o caudal da água foi diminuindo até se ter extinguido em virtude de ação imputável à Requerida que, não só retirou o tubo exterior colocado como alternativa ao abastecimento através da tubagem interior e aqueduto, como também danificou estes equipamentos, ainda impedindo os Requerentes de acederam ao local.
Em face do exposto, por os Requerentes terem indiciariamente demonstrado os requisitos do decretamento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse previstos no artigo 377.º do CPC, importa revogar a decisão recorrida e decretar o procedimento cautelar requerido (artigo 378.º e do CPC), bem como a inversão do contencioso (artigo 369.º do CPC).

As custas nas duas instâncias ficam a cargo dos Requerentes/Apelantes, que retiram proveito do procedimento cautelar (artigo 527.º do CPC).
Igualmente são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça devida pelo incidente de desentranhamento de documento, fixando a taxa de justiça no mínimo (artigo 527.º do CPC).

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida, decretando a restituição provisória de posse e, consequentemente, ordenam à Requerida:
I. Que imediatamente restitua aos Requerentes a posse sobre as águas e servidão de aqueduto, através do livre acesso à captação de água e ao aqueduto, localizados no imóvel da Requerida, identificado no artigo 2.º do requerimento inicial;
II. Que faculte aos Requerentes o acesso normal ao prédio serviente, para verificarem o estado da captação, colocar-lhe uma tampa com cadeado, bem como inspecionar, reparar e manter o bom estado das tubagens que compõe o aqueduto, repondo a situação existente, anteriormente a 6 de Agosto de 2023;
III. Que a Requerida se abstenha da prática de qualquer ato perturbador da posse dos Requerentes e que mantenha a manilha da captação de água a 1,20 metro de altura do solo;
IV. Mais determinam a inversão do contencioso.
V. E, ainda, ordenam o desentranhamento do documento apresentado com as alegações de recurso.

Custas nos termos sobreditos.

Notifiquem-se os Requerentes e remeta de imediato os autos ao tribunal a quo para dar seguimento ao processado nos termos dos artigos 366.º, n.º 6, do CPC.

Évora, 26-10-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Manuel Bargado (1.º Adjunto)
José António Moita (2.º Adjunto)

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[1] Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06-05-2004, proc. 04B1409 e AC. STJ, de 27-10-2009, proc. 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt
[2] Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16-09-2008, proc. 08S321, em www.dgsi.pt
[3] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., Reimp.,Coimbra Editora, pág. 670.
[4] Cfr., entre muitos outros, Ac. RG, de 30-11-2011, proc. 69/11.2TBGMR-B.G1 e Ac. RL, de 26-01-2023, proc. 4683/22.2T8OER.L1-2, em www.dgsi.pt.