Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
394/20.1GAVNO.E1
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: PERDA DE INSTRUMENTO DO CRIME
INSTRUMENTOS DE FACTO ILÍCITO TÍPICO
SEGURANÇA OU PERIGOSIDADE DOS INSTRUMENTOS
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. A omissão de notificação do arguido – que já havia perdido, de resto, essa qualidade por decorrência do arquivamento do inquérito decretado a 8set2022, como resulta do disposto no art.º 57.º, n.º 2 CPP [A qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo.] – porque não se mostra, por referência aos art.ºs 109.º CP e 119.º CPP, ali exigida sob a cominação de nulidade ou prevista no segundo, não se configura como nulidade insanável, nem como nulidade dependente de arguição por ausência de indicação no art.º 120.º CPP, pelo que terá de ser reconduzida à natureza de irregularidade, a ser arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado (n.º 1 daquele preceito).
2. Por natureza, o despacho de sustentação passa a fazer integrante do despacho «reparado», esvaziando assim a problemática suscitada com a alegação da falta de fundamentação, mais expressivamente quanto à fundamentação de facto - já que a relativa ao direito se mostra dirigida ao preceituado no art.º 109.º CP, - pelo que, com a remissão feita no despacho de sustentação para os termos da promoção do M.º P.º que antecedeu o despacho recorrido, a nulidade de falta de fundamentação não se verifica.
3. O fundamento da perda regulada no artigo 109.º CP radica nas exigências, individuais e coletivas, de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, ou seja, nos riscos específicos e perigosidade do próprio objeto e não na perigosidade do agente do facto ilícito (daí que não possa ser considerada uma medida de segurança) ou na culpa deste ou de terceiro (daí que não possa ser vista como uma pena acessória).
4. A perda de objectos a favor do Estado regulada no Código Penal (dotada de eficácia real, já que se opera a transferência da propriedade do objecto a favor daquele) apresenta-se como uma providência sancionatória de natureza análoga à medida de segurança, não sendo um efeito da pena ou da condenação, visto poder ter lugar sem elas, como se infere do artigo 109.º, n.º 2 CP.
5. A relação com um «facto ilícito típico», para cuja prática os objectos serviram ou estivessem destinados a servir (entendida esta segunda parte de forma mais ou menos ampla), ou que por ele tenham sido produzidos, constitui um pressuposto formal essencial da perda de instrumentos e produtos prevista no artigo 109.º do Código Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I.
1. No Inquérito n.º 394/20.1GAVNO que correu termos, para efeitos jurisdicionais, no Juízo Local Criminal de Tomar, Comarca de Santarém, onde havia sido decretada e cumprida a suspensão provisória do processo ao arguido AA, o Ministério Público, veio a proferir despacho de arquivamento.
Posteriormente, por despacho datado de 20.09.2022, o Ministério Público determinou que os autos fossem apresentados ao Juiz de Instrução, «… com a promoção que sejam declarados perdidos a favor do Estado os objetos melhor descritos a fls. 41 (arma de fogo; mala; cadeado; chave; licença; livrete).
Nos termos do artigo 109.º do Código Penal, devendo as armas, nessa conformidade, ser entregues à guarda da PSP, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 78º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.”
invocando como fundamento que
Nos presentes autos foi determinada a aplicação da suspensão provisória do processo (SPP) ao arguido pela prática de factos suscetíveis de integrar, em abstrato, o crime de violência doméstica.
Na verdade, segundo os factos constantes do despacho de proposta de SPP, o arguido chegou a ameaçar a ofendida com arma branca (faca de cozinha) e de fogo, referindo à ofendida «que lhe dava um tiro».
Nos autos foi apreendida a arma e objeto melhor descritos a fls. 41 e seguintes.”
Na sequência desse requerimento/promoção, veio a ser proferido, na data de 17.10.2022, despacho com o seguinte teor:
Declaro perdidos a favor do Estado os objetos melhor descritos a fls. 41 (arma de fogo; mala; cadeado; chave; licença; livrete) nos termos do disposto no artigo 109.º do Código Penal, mais se determinando que as armas sejam entregues à guarda da PSP, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 78º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.”

Deste despacho recorreu o arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
l) Conforme resulta de fls., o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo após promoção Ministério Público, proferiu o seguinte Despacho: "Declaro perdidos a favor Estado os objetos melhor descritos a fls. 41 (arma de fogo; mala, cadeado; chave; licença; livrete) nos termos do disposto no artigo 109º do Código Penal, mais se determinando que as armas sejam entregues à guarda da PSP, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 78º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro."
2) Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos aceitar tal decisão.
3) Isto, porque o de inquérito já se encontrava arquivado, conforme despacho de fls., com a referência 90768776, em de ter decorrido o prazo de 12 meses de suspensão provisória do processo aplicado ao arguido e este ter cumprido todas as regras de conduta/injunções que lhe foram impostas;
4) Os objetos apreendidos (arma de fogo; mala; cadeado; chave; licença; livrete), melhor descritos a fls. 41, não foram utilizados na prática do crime pelo qual o arguido se encontrava indiciado - vide proposta de suspensão provisória do processo por parte do Ministério Público e declarações das testemunhas;
5) O arguido tem licença de uso e porte arma, estando a sua situação relativamente à arma e demais objetos, conforme a lei;
6) Ao decidir arquivar o inquérito, em virtude do cumprimento por parte do arguido de todas as regras de conduta e injunções que lhe foram impostas, o Ministério Público e o Meritíssimo Juiz estavam impedidos de alterar posteriormente as condições que haviam sido impostas pelo Ministério Público e aceites pelo arguido;
7) A decisão que declarou perdidos a favor do estado os referidos objetos foi promovida pelo Ministério Público, com fundamento em factos que o Ministério Público diz constarem da proposta de suspensão provisória do processo;
8) Diz o Ministério Público "o arguido chegou a ameaçar a ofendida com arma branca (faca de cozinha) e de fogo, referindo à ofendida "que lhe dava um tiro";
9) Trata-se de fundamento que não corresponde à verdade, uma vez que o arguido não ameaçou a ofendida diretamente nem com a faca nem com a arma de fogo, conforme resulta dos factos indiciados na proposta da suspensão provisória do processo e das declarações das testemunhas;
10) Uma vez que nem a arma branca, nem a arma de fogo, foram exibidas pelo arguido à ofendida;
11) Dispõe o artigo 109º n.º 1, do Código Penal: "São declarados perdidos a favor do Estado, os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.",
12) Ora nada disto acontece no presente caso;
13) Assim, não havia razões, nem se encontram reunidos os requisitos legais, para declarar a favor do estado os objetos apreendidos de fls. 41;
14) Pelo que foi violado o disposto no artigo 109º do Código Penal;
15) E, como já acima se disse, o arguido aceitou e suspensão provisória do processo nos termos e condições que foram propostas pelo Ministério Público, e não contava nessas condições perder o arguido a favor do Estado, os objetos apreendidos nos autos
16) Previamente a que declarou perdidos a favor do Estado tais objetos, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não notificou o arguido para se pronunciar quanto a ta- questão;
17) A decisão recorrida constituiu para o arguido uma total surpresa, uma vez que não contava nem poderia contar com a mesma em virtude de ter aceite a suspensão do processo e tal não constar de nenhuma das regras de conduta/injunções impostas ao arguido.
18) Antes de decidir a perda, a favor do estado, dos objetos apreendidos, deveria o Meritíssimo Juiz ouvir o arguido;
19) Sendo que a decisão tomada afeta diretamente os direitos do arguido, já que tais bens lhe pertencem;
20) Ao assim não proceder, violou o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo o disposto no artigo 61º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal e o artigo 62º da Constituição de República Portuguesa, bem como as garantias de defesa e o princípio do contraditório constitucionalmente consagrados.
21) Pelo que o despacho é nulo. Nulidade que aqui se invoca com todos os efeitos legais daí resultantes;
22) A decisão também não se encontra devidamente fundamentada;
23) Nos termos do disposto no artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei";
24) E o artigo 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal, dispõe: "Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão";
25) A decisão não é de mero expediente, daí ter de ser fundamentada de facto e de direito, o que não aconteceu;
26) Pelo que a decisão recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 3790 do Código de Processo Penal, devendo por isso ser REVOGADA.”

O Mmo. Juiz proferiu despacho de sustentação a 19.11.2022, com o seguinte teor:
Cumpre proceder a reparação ou sustentação da decisão de perda a favor do Estado.
Não tendo sido vertida no despacho dá-se por reproduzida a fundamentação aduzida pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão proferida.
Isto porque, tendo sido determinada a suspensão provisória do processo pela prática de factos suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica, do despacho consta que o arguido chegou a ameaçar a ofendida com arma branca (faca de cozinha) e de fogo, referindo à ofendida «que lhe dava um tiro» remetendo-se para o Ac TRC de 18-03-2015:“I - A titularidade de licença de uso e porte de arma não tem a virtualidade de, pela simples razão de existir, afastar a declaração de perdimento a favor do Estado do objecto atinente. II - Para o efeito referido, relevante é a perigosidade, reportada ao objecto em causa e às concretas circunstâncias do caso. III - Revelando-se a prática de um crime de violência doméstica, por referência, inter alia, aos seguintes factos: (i) o arguido consome bebidas alcoólicas e, quando o faz, fica mais agressivo e violento; (ii) pese embora tal situação tenha piorado nos últimos anos, desde o início do casamento que o arguido começou a ter um comportamento agressivo para com a ofendida, molestando-a fisicamente, discutindo frequentemente com a mesma, controlando o que ela fazia, ameaçando-a e injuriando-a; (iii) nesta sequência, e por um número indeterminado de vezes, em circunstâncias de tempo e lugar não concretamente apuradas, o arguido molestou fisicamente a ofendida, desferindo-lhe murros e pontapés, puxando-lhe os cabelos e constrangendo-lhe a zona do pescoço com as mãos, ameaçou-a de morte, dizendo-lhe que tinha duas armas e que lhe dava um tiro (…).”, existe sério risco de o arguido utilizar as armas apreendidas para o cometimento” de novos factos ilícitos típicos de idêntica natureza e, consequentemente, é adequada a declaração de perda desses objectos.”
Cite-se ainda o Ac do mesmo TRC de 05.06.2013 ”Findo o inquérito, e com ele o processo, por decisão de arquivamento, impõe-se dar destino aos objectos apreendidos, nos termos previstos no artigo 268.º, n.º 1, al. e), do CPP, sendo que uma das situações aí previstas diz respeito à suspensão provisória do processo, o que significa que a perda de bens deve ser determinada, mesmo que o agente não seja condenado nem possa sê-lo, podendo ter lugar, portanto, na sequência de despacho de arquivamento (como no caso presente).
Não se nega que, no âmbito do disposto no artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal de 1886, a perda de objectos era entendida como um efeito da condenação, assumindo, preferencialmente, uma função retributiva.
Todavia, de acordo com a leitura das actas da comissão revisora do Código Penal, – edição da Associação Académica de Lisboa, parte geral, 31ª sessão, pág. 202 -, o autor do projecto refere que “a medida deve essencialmente ser vista como medida preventiva e não como reacção contra o crime – o que explica que ela não esteja na dependência da efectiva condenação do arguido.” (…) o instituto da perda de objectos, actualmente, não constitui uma pena acessória e não tem, por isso, qualquer relação com o princípio da culpa, sendo, em exclusivo, determinado por necessidades de prevenção relacionadas com o risco sério de uma nova utilização dos bens em causa na prática de novos crimes.
«A perda de bens a favor do Estado, com eficácia real, transferindo-se a propriedade a favor daquele, apresenta-se como uma medida sancionatória de natureza análoga à medida de segurança, não sendo um efeito da pena ou da condenação, visto poder ter lugar sem elas - art. 109.º, n.º 2, do CP», conforme pode ser lido no Acórdão do STJ -Processo n.º 4306/05 - 3.ª Secção, de 15 de Fevereiro de 2006. Assentemos, pois, que não é necessário verificar-se a condenação pela prática de um crime para, no âmbito de um processo penal, se declarar a perda para o Estado de determinados objectos apreendidos no mesmo. Tal decorre, expressamente, do regime geral da perda de objectos, consagrado no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal.”

Admitido tal recurso, veio o M.º P.º apresentar resposta ao mesmo, nela concluindo:
I. O arguido AA, não se conformando com a decisão (datada de 17.10.2022, com a referência 91107489) que declarou perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos e melhor descritos a fls. 41 dos autos (arma de fogo; mala; cadeado; chave; licença; livrete) e que determinou a entrega da arma à guarda da PSP, veio dela interpor recurso.
11. Salvo o devido respeito, entendemos que não assiste razão ao recorrente.
III. Nos autos foi determinada a aplicação da figura da suspensão provisória do processo (SPP) ao arguido AA pela prática de factos suscetíveis de integrar, em abstrato, o crime de violência doméstica.
IV. A circunstância de o arguido ter os objetos apreendidos nos autos em situação regular não obsta a que os mesmos possam ser declarados perdidos a favor do estado.
V. O instituto da perda de objetos é determinado por necessidades de prevenção relacionadas com o risco de utilização dos bens na prática de crimes.
VI. Segundo os factos indiciados nos autos - e constantes do despacho de proposta de SPP o arguido ameaçou a ofendida com faca de cozinha e bem assim com arma de fogo, pois referiu expressamente à ofendida «que lhe dava um tiro».
VII. Ora, uma arma de fogo, como a que foi apreendida nos autos, atenta a sua natureza e natural utilidade, mostra-se especialmente vocacionado para a prática criminosa e, desde logo, para a morte de terceiras pessoas.
VIII. No caso, estamos perante um objeto perigoso (arma de fogo), podendo ser utilizado (nomeadamente) quer para enunciar um mal futuro (contra a vida ou integridade física de outrem) quer para atentar contra a vida ou integridade física de outrem.
IX. Nos autos investigou-se a prática de crime de violência doméstica, o arguido era detentor de arma de fogo e bem assim apurou-se que o arguido «em duas ocasiões distintas, em datas não apuradas, na residência comum, agarrou numa faca de cozinha e disse à ofendida 'eu fodo-te, eu vou para a prisão, mas mato-te, dou-te um tiro!'».
X. Por outro lado, mais se apuraram outros maus-tratos físicos e psíquicos do arguido para com a ofendida (conforme resulta do despacho de proposta de SPP, com a qual o arguido concordou), os quais evidenciam a personalidade agressiva do arguido.
XI. O arguido detinha arma de fogo e disse à ofendida «que lhe dava um tiro», em duas ocasiões distintas, retirando-se de todos os factos descritos na proposta de SPP que a arma de fogo destinava-se a ser utilizada na pratica de crime.
XII. A perda a favor do Estado visa prevenir a perigosidade e acautelar a possibilidade de concretização de uma futura utilização da arma na prática do crime (a este respeito: Ac TRE de 03.12.2019).
XIII. Assim, atendendo às características do objeto (arma de fogo) e às concretas circunstâncias do caso (às condutas agressivas do arguido para com a ofendida, na sua globalidade, a que acresce o consumo excessivo de bebidas alcoólicas) estamos perante objeto que apresenta elevada perigosidade de vir a ser utilizado (desde logo) quer para a prática do crime de ameaça, quer para a prática do crime de homicídio, colocando em sério e elevado risco a segurança da ofendida.
XIV. Estavam, assim, reunidos os requisitos legais para declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos, não tendo sido violado o disposto no artigo 109º do Código Penal.
XV. E certo que, quando o despacho recorrido foi proferido, o processo já se encontrava arquivado.
XVI. Porem, a circunstância de o processo ter terminado com um arquivamento não impede que os bens apreendidos nos autos possam ser declarados perdidos a favor do Estado (a 15 este respeito, também o Ac TRC de 04.11.2015).
XVII. Não estamos, perante uma alteração posterior das injunções/ regras de conduta determinadas nos autos no âmbito da SPP.
XVIII. O arguido veio referir ainda que «previamente à decisão que declarou perdidos a favor do Estado tais objectos, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não notificou o arguido para se pronunciar quanto a tal questão, violando o artigo 61º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal e o artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, bem como as garantias de defesa e o princípio do contraditório constitucionalmente consagrados, sendo o despacho é nulo».
XIX. Porém, a este respeito, somos respeitosamente de entender que a omissão da audição do arguido sobre declaração de perdimento a favor do Estado dos bens apreendidos constitui uma mera irregularidade.
XX. Por outro lado, o arguido teve oportunidade de reagir, através do recurso, da decisão recorrida, não tendo sido violadas as suas garantias de defesa.
XXI. O arguido/ Recorrente mais referiu que a decisão não se encontra devidamente fundamentada, violando o artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e o artigo 970, n.0 5, do Código de Processo Penal.
XXII. Ora, como vimos, por despacho de 19.12.2022, com a ref.ª 91751287, a Mma. Juiz do Juízo Local Criminal de Tomar decidiu manter a decisão proferida, dando por reproduzida a fundamentação aduzida pelo Ministério Público, mais citando o acórdão do TRC de 05.06.2013.
XXIII. Ora, segundo a referida promoção do Ministério Público, de 20.09.2022, com a ref.ª 91054582:
«Nos presentes autos foi determinada a aplicação da suspensão provisória do processo (SPP) ao arguido pela prática de factos suscetíveis de integrar, em abstraio, o crime de violência doméstica.
Na verdade, segundo os factos constantes do despacho de proposta de SPP, o arguido chegou a ameaçar a ofendida com arma branca (faca de cozinha) e de fogo, referindo à ofendida «que lhe dava um tiro».
Nos autos foi apreendida a arma e objeto melhor descritos a fls. 41 e seguintes.
Nos temos do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, do Relator JOSÉ EDUARDO MARTINS, de 18-03-2015:
I - A titularidade de licença dg uso e porte de ama não tem a virtualidade de, pela simples razão de existir, afastar a declaração de Perdimento a favor do Estado do objecto atinente.
II - Para o efeito referido, relevante é a perigosidade, reportada ao objecto em causa e às concretas circunstâncias do caso.
III - Revelando-se a prática de um crime de violência doméstica, por referência, inter alia, aos seguintes factos: (i) o arguido consome bebidas alcoólicas e, quando o faz, fica mais agressivo e violento; (ii) pese embora tal situação tenha piorado nos últimos anos, desde o início do casamento que o arguido começou a ter um comportamento agressivo para com a ofendida, molestando-a fisicamente, discutindo frequentemente com a mesma, controlando o que ela fazia, ameaçando-a e injuriando-a; (iii) nesta sequência, e por um número indeterminado de vezes, em circunstâncias de tempo e lugar não concretamente apuradas, o arguido molestou fisicamente a ofendida, desferindo-lhe murros e pontapés, puxando-lhe os cabelos e constrangendo-lhe a zona do pescoço com as mãos, ameaçou-a de morte, dizendo-lhe que tinha duas armas e que lhe dava um tiro existe sério risco de o arguido utilizar as armas apreendidas para o cometimento" de novos factos ilícitos típicos de idêntica natureza e, consequentemente, e' adequada a declaração de perda desses objectos.”
Nestes termos, e em conformidade com tudo o que antecede, apresente os autos ao Mmo. Juiz de Instrução, com a promoção que sejam declarados perdidos a favor do Estado os objetos melhor descritos a fls. 41 (arma de fogo; mala; cadeado; chave; licença; livrete).
Nos temos do artigo 109.º do Código Penal, devendo as amas, nessa conformidade, ser entregues à guarda da PSP, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 78º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.».
XXIV. Por todo o exposto, considera o Ministério Público que se deve manter a decisão recorrida, termos em que, sendo negado provimento ao Recurso interposto pelo Recorrente farão V.as Ex.as JUSTIÇA!”

Neste tribunal, pela Exma. Procuradora Geral Adjunta foi proferido parecer em que, aderindo à decisão recorrida e à resposta ao recurso apresentada, defende a improcedência do recurso.
Dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP, nenhuma resposta foi oferecida.

II. Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Assim, atento o teor das conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:
- O despacho é nulo por violação do princípio do contraditório;
- O despacho é nulo por falta de fundamentação;
- Deve ou não ser mantida a decisão de perda de bens a favor do Estado.

Apreciando.
O despacho é nulo por violação do princípio do contraditório?
Manifesta o recorrente que a decisão recorrida constituiu para o arguido uma total surpresa, uma vez que não contava nem poderia contar com a mesma em virtude de ter aceite a suspensão do processo e tal não constar de nenhuma das regras de conduta/injunções impostas ao arguido, deveria o Meritíssimo Juiz ouvir o arguido antes de decidir a perda, não o fazendo violou o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo o disposto no artigo 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal e o artigo 62º da Constituição de República Portuguesa, bem como as garantias de defesa e o princípio do contraditório constitucionalmente consagrados pelo que, conclui, o despacho é nulo.
Com o devido respeito pela leitura que o recorrente faz dos preceitos que invoca como violados, o vicio decorrente da sua não audição não implica imediata e necessariamente a nulidade.
O art.º 61º CPP estabelece que “1 - O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:
a) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito;
b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte; (…)
Por sua vez, o artigo 62º da Constituição de República Portuguesa dispõe: “1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.”
Será por relação ao primeiro dos preceitos que se pode perspectivar a dimensão do princípio do contraditório, que o recorrente aponta como postergado, e que encontra assento no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição quando ali se dispõe: “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.”
Assume-se, assim, que o princípio do contraditório constitui um princípio estruturante do processo penal de estrutura acusatória, estabelecendo que a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar estão subordinados ao princípio do contraditório. Assim, por imposição constitucional, na audiência de julgamento o contraditório não contempla qualquer restrição.
Porém, a Constituição remete para a lei ordinária a definição da amplitude do contraditório a vigorar nas demais fases do processo. Desta forma, só na audiência de julgamento o princípio atinge a amplitude máxima, sendo diretamente aplicável sem necessidade de conformação pelo legislador ordinário.
Fora da fase de julgamento, diante da liberdade de que dispõe para conformar o contraditório, o legislador ordinário pode também definir a sanção para a sua violação, tal como será o caso do CPP em que existem diversos afloramentos desse principio, com mais ou menor expressividade na sua manifestação e nas consequências do seu desrespeito: desde logo, por referência directa, com a cominação expressa de nulidade como sucede, vg, no caso do art.º 190º CPP por relação às operações relativas a intercepções telefónicas, ou nos casos previstos no art.º 119º CPP – nulidades insanáveis – ou do art.º 120º CPP – nulidades sanáveis nos termos e formalismos previstos no art.º 121º do mesmo código.
Fora destas situações, estaremos perante meras irregularidades, nos termos preconizados no art.º 123º CPP.
Retomando o caso de que nos ocupamos, a omissão de notificação do arguido – que já havia perdido, de resto, essa qualidade por decorrência do arquivamento do inquérito decretado a 8.09.2022, como resulta do disposto no art.º 57º n.º 2 CPP [A qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo.] – porque não se mostra, por referência aos art.ºs 109º CP e 119 CPP, ali exigida sob a cominação de nulidade ou prevista na elencagem do segundo, não se configura como nulidade insanável, nem como nulidade dependente de arguição por ausência de indicação no art.º 120º CPP, pelo que terá de ser reconduzida à natureza de irregularidade, a ser arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado (n.º 1 daquele preceito), o que não se mostra feito pelo recorrente na decorrência da notificação que lhe foi feita do despacho por via postal simples expedida a 18.10.2022.
Não assiste, pois, razão ao recorrente.

O despacho é nulo por falta de fundamentação:
Aponta o recorrente que o despacho recorrido se mostra não fundamentado em violação dos art.ºs 205º n.º 1 CRP e do 95º n.º 5 CPP.
Vejamos.
Como acima se mencionou no relatório, o despacho recorrido mostra-se precedido de requerimento do M.º P.º em que era promovida a declaração de perdimento.
Lidos os termos do despacho recorrido, sucintos na respectiva componente declarativa, constata-se que nenhuma referência se mostra ali feita aos argumentos, bons e suficientes ou não, que foram suscitados pelo M.º P.º no seu requerimento.
Certamente perante essa constatação, terá a Mma. Juiz sentido a necessidade de produzir despacho de sustentação daquele despacho em que expressamente indica “Não tendo sido vertida no despacho dá-se por reproduzida a fundamentação aduzida pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão proferida.”
Sendo certo que, na data de interposição do recurso, este só poderia abranger o despacho que lhe havia sido notificado, nos exactos termos em que o mesmo havia sido redigido, não menos certo é que, por natureza, o despacho de sustentação passa a fazer integrante do despacho “reparado”, esvaziando assim a problemática suscitada com a alegação da falta de fundamentação, mais expressivamente quanto à fundamentação de facto já que a relativa ao direito se mostra dirigida ao preceituado no art.º 109º CP.
Esta solução não se mostra divergente da solução que poderia ser atingida caso o recorrente, na sequência da notificação do despacho de perdimento, viesse logo suscitar a nulidade do mesmo perante a Mma. Juiz que o proferiu e, eventualmente reconhecendo a nulidade, fosse produzido novo despacho remetendo para os fundamentos invocados no requerimento do M.º P.º.
Acresce que, pelos termos em que se mostra feita a alegação do recurso e claramente espelhado nas conclusões 6 a 9, o recorrente afinal sabe quais os fundamentos invocados que conduziram à declaração de perdimento, quando indica em concreto o que o M.º P.º invoca.
A necessidade de fundamentação das decisões judiciais encontra-se prevista, a nível constitucional, no art.º 205º n.º 1 CRP [As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.], sendo que a nível infraconstitucional se mostra espelhada essa exigência em diversos preceitos, como sejam o art.º 97º, n.º 5, do CPP [Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão], de uma forma abrangente “actos decisórios dos juízes”-, ou os art.ºs 374º CPP – específico das sentenças – ou do art.º 194º n.º 6 CPP – despacho de aplicação de medida de coacção –, isto sem procurar ser exaustivo.
Nesta perspectiva, com a remissão feita no despacho de sustentação para os termos da promoção do M.º P.º que antecedeu o despacho recorrido, a nulidade de falta de fundamentação não se verifica.

Deve ou não ser mantida a decisão de perda de bens a favor do Estado:
Quanto a esta concreta questão, manifesta o recorrente que os objetos apreendidos (arma de fogo; mala; cadeado; chave; licença; livrete), melhor descritos a fls. 41, não foram utilizados na prática do crime pelo qual o arguido se encontrava indiciado, tem licença de uso e porte arma, estando a sua situação, relativamente à arma e demais objetos, conforme a lei, o Ministério Público e o Meritíssimo Juiz estavam impedidos de alterar posteriormente as condições que haviam sido impostas pelo Ministério Público e aceites pelo arguido e o fundamento invocado pelo Ministério Público não corresponde à verdade.
Vejamos.
Prescreve o artigo 109.º do Código Penal.
«1. São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.
3. Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.»
Salienta Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 627), referindo-se ao instituto da perda de objectos regulado no Código Penal, que não se trata de uma pena acessória, «porque a perda não possui qualquer ligação com a culpa do agente pelo ilícito-típico perpetrado: podendo o instituto intervir mesmo relativamente a inimputáveis, por um lado, e podendo ele intervir, por outro lado, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser perseguida ou condenada, torna-se patente que a – eventual – culpa do agente não constitui sequer limite da intervenção da providência.» E, mais adiante, realça o mesmo autor que a perda é função da perigosidade do objecto e das exigências, individuais e colectivas, de segurança, não da culpa do agente e do terceiro (caso se trate de objecto pertencente a terceiro, matéria regulada no artigo 110.º.
Com efeito, o fundamento da perda regulada no artigo 109.º radica nas exigências, individuais e colectivas, de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, ou seja, nos riscos específicos e perigosidade do próprio objecto e não na perigosidade do agente do facto ilícito (daí que não possa ser considerada uma medida de segurança) ou na culpa deste ou de terceiro (daí que não possa ser vista como uma pena acessória).
Trata-se de uma norma geral, que convive com a existência de outras previsões para determinadas categorias de factos ilícitos típicos ou para bens específicos, pois, como salienta Figueiredo Dias, os artigos 109.º e seguintes do Código Penal não são os únicos que no sistema jurídico português se referem ao instituto da perda, coexistindo com muitas outras disposições em legislação extravagante, penal e contraordenacional, sendo frequente «que estas disposições avulsas modifiquem ou mesmo contrariem o instituto geral, seja no que toca ao regime, seja mesmo no que toca às finalidades político-criminais e, consequentemente, à natureza jurídica do instituto.» (ob. cit., p. 617).
Distingue-se, desde logo, a perda decretada nos termos do mencionado artigo 109.º da perda configurada em alguma legislação extravagante como pena acessória, já que esta depende da aplicação de uma pena principal e faz parte da penalidade, enquanto o instituto da perda regulado no Código Penal não tem qualquer relação com a culpa do agente e não pressupõe, sequer, a existência de uma condenação, sendo exclusivamente determinado, como já se disse, por necessidades de prevenção, tendo como pressuposto a avaliação da perigosidade da própria coisa, muito embora se admita que a conexão entre essa perigosidade e as concretas «circunstâncias do caso» possam acabar por implicar uma referência ao próprio agente (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 622-623).
Assim, a perda de objectos a favor do Estado regulada no Código Penal (dotada de eficácia real, já que se opera a transferência da propriedade do objecto a favor daquele) apresenta-se como uma providência sancionatória de natureza análoga à medida de segurança, não sendo um efeito da pena ou da condenação, visto poder ter lugar sem elas, como se infere do artigo 109.º, n.º 2.
Ensina Germano Marques da Silva (Direito Penal Português – Parte Geral, III, 2.ª edição, 2008, pp. 198 e seguintes), a propósito da perda de instrumentos e do produto do crime, que a lei se refere apenas aos objectos, ou seja, coisas corpóreas, quer sejam instrumentos do crime, quer por ele produzidos. Os instrumentos do crime são os objectos utilizados como meios para realizar o crime; os produtos são os objectos criados ou produzidos pela actividade criminosa, distinguindo-se das vantagens obtidas com o crime, que cabem no âmbito do art. 111.ºdo mesmo diploma.
Constitui pressuposto formal da perda de instrumentos e produtos prevista no artigo 109.º que os mesmos tenham sido ou estivessem destinados a ser utilizados numa actividade criminosa ou que por esta tenham sido produzidos. A lei fala num «facto ilícito típico», não sendo necessário que o crime se tenha consumado, nem que seja imputável ao arguido.
Diz Germano Marques da Silva (ob. cit., p. 199): «A lei é clara. Não é necessário que os instrumentos tenham sido utilizados na prática de um crime, bastando que estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico e por isso que a perda tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto (n.º 2 do art. 109.º). Isto acontece ou porque não foi cometido qualquer facto ilícito típico - não se iniciou sequer a execução do crime - ou porque falta um elemento essencial do crime - a culpabilidade. É por isso que a lei não se refere à prática de um crime, como fazia na redacção originária do Código, mas simplesmente à prática de um facto ilícito típico
E acrescenta:
«Para a perda é ainda necessário que os objectos ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, o que significa que os objectos hão-de ser perigosos, isto é, “que atenta a sua natureza intrínseca”, a sua “específica e conatural utilidade social” se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa
Figueiredo Dias, relativamente à expressão «estivessem destinados a servir (…), faz uma leitura algo distinta da perfilhada por Germano Marques da Silva, interpretando tal expressão como significando não ser necessário que o crime se haja consumado (ob. cit., p. 618), de onde se extrai a necessidade da existência de um facto anti-jurídico, sendo suficiente a tentativa (Germano Marques da Silva parece admitir que se esteja numa fase anterior ao início da execução).
Em todo o caso, a relação com um «facto ilícito típico», para cuja prática os objectos serviram ou estivessem destinados a servir (entendida esta segunda parte de forma mais ou menos ampla), ou que por ele tenham sido produzidos, constitui um pressuposto formal essencial da perda de instrumentos e produtos prevista no artigo 109.º do Código Penal.
É certo que o n.º 2 do mesmo artigo estabelece: «O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto
Este normativo, porém, não dispensa a relação com o «facto ilícito típico».
Desde logo, como já se disse, não se tratando de uma pena acessória, a perda destes objectos não está submetida ao princípio da culpa.
Cabem no referido n.º 2 a situação de agente inimputável, situações em que não possa ser determinado o agente ou agentes do facto e outras em que, estando determinado o agente, o processo deva ser arquivado por qualquer causa de extinção da responsabilidade ou por falta de pressupostos processuais.
Poder-se-á questionar, porém, o alcance da referência a um facto ilícito típico.
Para Figueiredo Dias, a necessidade de verificação de um facto ilícito típico – aquele a cuja prática os objectos serviram ou estavam destinados a servir ou que por este foram produzidos – pressupõe a verificação de todos os elementos de que depende a existência de um crime, com ressalva dos requisitos relativos à culpa do agente (cfr. ob. cit., p. 619). Trata-se, pois, de um facto ilícito-típico no sentido da doutrina do crime.
Revertendo ao caso em apreço, verificamos que o inquérito movido contra o recorrente investigava a eventual prática de um crime de violência doméstica que veio a culminar com o decretamento da suspensão provisória do processo, com o estabelecimento de um conjunto de injunções que o recorrente integralmente cumpriu e que conduziu, a final, ao arquivamento do inquérito.
No quadro factual em que assentava a suspensão provisória do processo – cf. despacho do titular do inquérito proferido a 7.05.2021 – constava no seu ponto 13 “Após o arguido ter ido às supramencionadas consultas médicas, em duas ocasiões distintas, em datas não apuradas, na residência comum, o arguido agarrou numa faca de cozinha e disse à ofendida «eu fodo-te, eu vou para a prisão, mas mato-te, dou-te um tiro.” (destaque nosso) o que se mostra bem diferente do que o M.º P.º invoca como fundamento da sua promoção e que excedia o teor daquele quando acrescentava “Na verdade, segundo os factos constantes do despacho de proposta de SPP, o arguido chegou a ameaçar a ofendida com arma branca (faca de cozinha) e de fogo, referindo à ofendida «que lhe dava um tiro».” (destaques nossos).
Somos por este motivo levados a adoptar o entendimento de que, na realidade, inexiste fundamento bastante e sério para concluir, utilizando a própria expressão legal, que “os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico”. Na realidade, não só os bens não foram concretamente utilizados na situação integradora do ilícito imputado como, da própria verbalização “dou-te um tiro”, não se pode extrair que aqueles bens se destinavam a servir para o cometimento de outro ilícito.
Concluímos, assim, que o despacho recorrido não se pode manter, impondo-se a sua revogação.

III.
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Subsecção Criminal em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine a devolução dos bens apreendidos ao recorrente, ficando a sua entrega dependente da exibição de licença de uso e porte de armas válido por parte do recorrente – art.º 27º do Regime Jurídico das Armas e Munições.
Não são devidas custas.
Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.

Évora, 7 de Novembro de 2023
João Carrola
Ana Bacelar Cruz
Fátima Bernardes