Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
436/20.0PATVR.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: LIBERDADE DE EXPRESSÃO
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
RESTRIÇÕES
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A liberdade de expressão e de informação constituem direitos fundamentais com tutela constitucional.
II. Mas tais direitos não são absolutos e muitos menos ilimitados.
III. O princípio da publicidade dos processos judiciais e das audiências, sendo a regra, é suscetível de restrições, podendo aquele ser proporcionalmente restringido para acautelar outros direitos e valores também constitucionalmente garantidos, mormente dos intervenientes processuais, na ponderação dos quais poderá justificar-se a recusa de cópia da acusação e da pronúncia.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO
No Processo Comum Coletivo n.º 436/20.0PATVR da Comarca de Faro Juízo Central Criminal de Faro – Juiz 1, foram proferidos dois despachos judiciais com o teor que a seguir se transcreve.

1. Das decisões Judiciais de 27.3.2023
1.1. No dia 27.3.2023 o Tribunal a quo começou por determinar que a audiência de discussão e julgamento decorresse com exclusão da publicidade, proferindo despacho com o seguinte teor:
“Dispõe o n.º 3 do artigo 87.º, do Código Processo Penal: em caso de processo por crime (…) contra a liberdade e autodeterminação sexual, os atos processuais decorrem, em regra, com exclusão da publicidade.
Com esta norma, o legislador visou proteger, de um modo genérico, a privacidade e a intimidade das vítimas, intervenientes e participantes processuais que podiam ser colocados em crise pela publicidade dos atos processuais (assim parecer da PGR n.º 25/2009, de 8 de outubro, publicado no DR II Série, de 17.11.2009 e Maria do Carmo Dias, in Comentário Judiciário do Código de Processo penal, Tomo I, Almedina, p. 944, § 32.º).
A regra prevista neste artigo só deve ser afastada a requerimento da vítima desde que o pedido da mesma seja livre e esclarecido (Maria do Carmo Dias, in ob cit., p. 944, § 33º).
No caso dos autos, o arguido encontra pronunciado pela prática de um crime contra a liberdade sexual (abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelo artigo 165.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal) e a vítima não requereu que o julgamento decorra com publicidade.
Pelo exposto determina-se que o julgamento decorra com exclusão da publicidade”.

1.2. Em seguida e no mesmo dia, o Tribunal recorrido, proferiu despacho que se pronunciou sobre o requerimento do jornalista do PÚBLICO, apresentado em 30.1.2023, nos seguintes termos (transcrição):

“AA, jornalista do PUBLICO com a carteira profissional 474, veio requerer, ao abrigo da legislação aplicável e para efeitos de desempenho da sua atividade profissional, copia digital da acusação e da pronúncia proferidas nos presentes autos.
Dispõe o artigo 90.º, n.º 1 do Cód. de Processo Penal que: (Qualquer pessoa que nisso revelar interesse legítimo pode pedir que seja admitida a consultar auto de um processo que não se encontre em segredo de justiça e que lhe seja fornecida, à sua custa, cópia, extrato ou certidão de auto ou de parte dele. O n.º3 do mesmo artigo, dispõe que a permissão de consulta de auto e de obtenção de cópia, extrato ou certidão realiza-se sem prejuízo da proibição, que no caso se verificar, de narração de atos processuais ou de reprodução dos seus termos através dos meios de comunicação social.
No caso dos autos, foi decidido que o processo irá decorrer com exclusão da publicidade, pelo que não é autorizada a narração de qualquer ato processual anterior.
Neste contexto, não é legalmente admissível entregar copia da acusação e da pronúncia, na medida em que o interesse de um jornalista em consultar o processo mostra-se limitado pela respetiva funcionalidade, isto é, pela afetação a um dever de informar. Este interesse só existe quando o titular possa divulgar os atos processuais que vai consultar [no sentido apontado acórdão da Relação do Porto de 09-05-2018, processo n.º 15187/11.9TDPRT-C.P1, consultável, ex texto integral no endereço eletrónico www.dgsi.pt].
Pelo exposto, indefere-se o pedido de cópia digital da acusação e da pronúncia proferidas nos presentes autos.
Notifique-se o Sr. jornalista requerente, a assistente e o arguido, estes nas pessoas das respetivas mandatárias, e Ministério Público, na medida em que este despacho é suscetível de recurso.”

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do recorrente jornalista do “Público” Interveniente Acidental
Inconformado com esta segunda decisão o jornalista AA interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“I - Vem o presente recurso interposto do despacho que indeferiu o pedido de cópia digital da acusação e pronúncia proferidas nos presentes autos.
II - O pedido em causa foi efetuado pelo ora Recorrente, Interveniente Acidental AA, nos termos do artº 90º nº 1 do CPP, invocando a sua qualidade de jornalista e acrescentando que o interesse na consulta do processo se destinava “à publicação de noticiário sobre este caso, dado que o profissional médico em questão já foi condenado no passado pelo mesmo tipo de crimes”.
III - No entanto, tendo em conta que havia sido decidido que o processo iria decorrer com exclusão da publicidade, pelo que não seria autorizada a narração de qualquer ato processual anterior, considerou o tribunal “a quo” não ser legalmente admissível entregar cópia da acusação e da pronúncia, na medida em que o interesse de um jornalista em consultar o processo mostra-se limitado pela respetiva funcionalidade, isto é, pela afetação a um dever de informar.
IV - É deste despacho que se recorre por o mesmo violar a lei, nomeadamente os artºs 8º nºs 1 e 3 da Lei 1/99, 87º nºs 1 a 3 e 90º nº 1 do CPP, 10º da CEDH e 18º, 37º e 38º da CRP, ao impedir o acesso do ora Recorrente à acusação e à pronúncia, sem qualquer ponderação dos direitos e interesses em confronto.
V - Na verdade, o que havia sido decidido fora a exclusão de publicidade do julgamento e não qualquer proibição absoluta da narração de todo e qualquer acto do processo, como erradamente se afirma no despacho em crise.
VI - As restrições a impor no acesso à informação terão sempre de ser ponderadas em função das concretas realidades em confronto: no caso em apreço, o ora Recorrente é jornalista e, no exercício da sua profissão ,pretende aceder às fontes de informação para informar o público sendo ainda de considerar o interesse público e o relevo social da factualidade em causa no processo: crime contra liberdade e autodeterminação sexual, bem como a qualidade do arguido: médico que presta serviço numa instituição pública.
VII - Em confronto com a liberdade de expressão e de informação estão, naturalmente, a privacidade e intimidade da vítima, que sempre deverão ser respeitadas e que justificam restrições a tais liberdades, mas nunca de forma a anulá-las, como resulta do despacho sob recurso.
VIII - As restrições à liberdade de expressão e de informação, deverão, sempre, nos termos do artº 10º 1º e 2º da CEDH, ser o resultado de uma necessidade social imperiosa, como é jurisprudência constante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o que não se verifica no presente caso, salvo quanto à preservação da identidade da vítima.
IX - Sendo certo que, como o TEDH refere, o acesso, por parte dos jornalistas, aos documentos oficiais de um processo judicial garante um maior rigor e credibilidade à informação.
X - Deverá o despacho sob recurso ser revogado e substituído por outro que determine a entrega ao Recorrente de cópia digital da acusação e da pronúncia sem prejuízo da proibição de divulgação da identidade da vítima e de elementos que permitam a sua identificação, assim se respeitando o disposto nos artºs 8º nºs 1 e 3 da Lei 1/99, 87º nºs 1 a 3 e 90º nº 1 do CPP, 10º da CEDH e 18º e 37º e 38º da CRP, e fazendo Justiça.
Requer a junção ao recurso, para subida imediata, do despacho que determinou a exclusão de publicidade do julgamento, o requerimento do ora Recorrente para obtenção de cópia digital da acusação e da pronúncia e do despacho sob recurso.”

2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo interveniente acidental.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP tendo o recorrente apresentado requerimento com o seguinte teor (transcrição):
“(…) notificado do parecer do Ministério Público (ref. 8622389), vem dizer o seguinte:
1. Lamentavelmente, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) continuam a ser ignorados/desprezados por alguns dignos representantes do Ministério Público.
2. O Recorrente não põe em causa que o respeito pela privacidade, nomeadamente das vítimas, imponha restrições à liberdade de expressão e de informação mas com o que não se conforma é com um blackout informativo em questões de relevante interesse público, como é defendido pelo MºPº apoiando-se num exíguo entendimento dos artºs 87º e 90º do CPP .
3. Julga o Recorrente desnecessário invocar outra jurisprudência do TEDH para além da que consta nas suas alegações de recurso, mas não pode deixar de invocar, em abono da procedência do seu recurso, o disposto no nº 2 do artº 18º da Constituição da República: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (…)”.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Questão a apreciar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a apreciar consiste em saber se deve ser revogada a decisão recorrida que, após excluir a publicidade da audiência de julgamento, indeferiu a pretensão do jornalista do Público de aceder às cópias digitais do despacho de acusação e de pronúncia.

2. Apreciação do recurso interposto pelo interveniente acidental

Na situação em apreciação o Tribunal a quo começou por determinar que a audiência de discussão e julgamento decorresse com exclusão da publicidade, com base na circunstância de o arguido se encontrar pronunciado pela prática de um crime contra a liberdade sexual e a vítima não ter requerido que o julgamento decorresse com publicidade, nos termos do n.º 3 do artigo 87.º do CPP.

Depois, o Tribunal a quo indeferiu o pedido formulado pelo jornalista do Público que, ao abrigo do n.º 1 do artigo 90.º do CPP, solicitou a entrega de cópia digital da acusação e da pronúncia.

O recorrente insurge-se contra esta decisão salientando constituir a mesma uma violação dos artigos 8.º, n.ºs 1 e 3 da Lei 1/99, 87.º, n.ºs 1 a 3 e 90.º n.º 1 do CPP, 10.º da CEDH e 18.º, 37.º e 38.º da CRP, ao impedir o acesso do recorrente à acusação e à pronúncia, sem qualquer ponderação dos direitos e interesses em confronto. Para o efeito, referindo ser jornalista, referiu pretender, no exercício da sua profissão, aceder às fontes de informação para informar o público atento o interesse público e o relevo social da factualidade em causa no processo: crime contra liberdade e autodeterminação sexual, bem como a qualidade do arguido: médico que presta serviço numa instituição pública e já foi condenado no passado pelo mesmo tipo de crime.

Depois, o recorrente salienta ter apenas sido decidido excluir a publicidade do julgamento e não qualquer proibição absoluta da narração de todo e qualquer ato do processo, como no seu entender erradamente se afirma no despacho recorrido.

Na ótica do recorrente estando em confronto o direito à intimidade e à privacidade da vítima, merecedora de respeito, tal não justificaria a anulação da liberdade de expressão e de informação. Para o recorrente as restrições à liberdade de expressão e de informação, deverão, sempre, nos termos do artigo 10.º, n.ºs 1º e 2º da CEDH, ser o resultado de uma necessidade social imperiosa, como impõe a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o que não se verifica no presente caso, salvo quanto à preservação da identidade da vítima. Acresceria que para este TEDH o acesso, por parte dos jornalistas, aos documentos oficiais de um processo judicial garantiria um maior rigor e credibilidade à informação.

Vejamos, então, se assiste razão ao recorrente[1].

O processo penal é por regra de natureza pública (artigo 86.º, n.º 1 do CPP) o que implica o direito de (n.º 6):

- Assistência do público aos atos processuais (artigo 87.º);

- A consulta dos autos pelas participantes no processo (artigo 89.º n.ºs 1 e 4) e por outras pessoas com um interesse legislativo nesse ato (artigo 90.º);

- A possibilidade de narração de atos processuais (artigo 88.º, n.º 1) dentro dos limites da proibição na reprodução de certas peças processuais na comunicação social (artigo 88.º, n.ºs 2 e 3) ou escutas telefónicas (artigo 88.º, n.º 4).

Este princípio da publicidade não é, todavia, absoluto, definindo a Lei ordinária não estarem abrangidos os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova (artigo 86.º, n.º 7 do CPP) e prevendo outras situações em que pode ser excluído (artigos 86.º, n.ºs 2 e 3 e 87.º, n.ºs 1, 2 e 88.º, nº 3 do CPP), designadamente para proteção do ofendido.
Não pode, contudo, o recorrente olvidar que embora o direito à informação e à liberdade de expressão esteja previsto no artigo 10.º da DEDH, também está contemplado no artigo 8.º da mesma Declaração o direito ao respeito pela vida privada e familiar[2].
Depois impondo o artigo 16.º, n.º 2 da CRP, que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devam ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH de 10.12.1948), também nele se encontra plasmado que “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família (…), nem ataques à sua honra e reputação” (cf. artigo 12.º).
A exceção à regra da publicidade dos processos tem, pois, cobertura constitucional, e raízes no direito internacional, embora deva ser concretamente declarada por decisão fundamentada, considerando as particularidades de cada caso.

Não existe um critério fixo que habilite o Tribunal a excluir a publicidade do processo, devendo a solução ser encontrada através do uso da proporcionalidade aplicada ao caso concreto.

Em todo o caso, tratando-se de crimes contra a autodeterminação sexual, cumpre notar que, de acordo com a lei ordinária, a regra não é a da publicidade, mas a da sua exclusão (cf. artigo 87.º, n.º 3 do CPP).

O Tribunal a quo fundamentou devidamente essa exclusão de publicidade com base no crime imputado ao arguido (crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência) e em virtude de a vítima não ter requerido que o julgamento decorresse com publicidade (artigo 87.º, n.º 3).

Depois, num segundo despacho proferido no mesmo dia e ocasião, o Tribunal recorrido salientou que, por força do n.º 3 do artigo 90.º do CPP, se encontra excecionada a obtenção de auto e o fornecimento de cópias quando haja proibição de narração dos atos processuais ou de reprodução dos seus termos através dos meios de comunicação social. Apoiou o decidido na circunstância de o interesse do jornalista em consultar o processo se encontrar limitado pela respetiva funcionalidade, porquanto se não podia divulgar os atos processuais consultados não havia interesse em consultá-los, apoiando-se no Acórdão da RP 9.5.2028, proferido no processo 15187/11.9TDPRT-C.P1.

Invoca o recorrente que tal decisão viola os artigos 8.º, n.ºs 1 e 3 da Lei 1/99, 87.º, n.ºs 1 a 3 e 90.º, nº 1 do CPP, 10.º da CEDH e 18.º, 37.º e 38.º da CRP e as decisões do TEDH.

É verdade que o artigo 8.º da Lei n.º 1/99, de 1 de janeiro (Estatuto do Jornalista) com a epígrafe “Direito de acesso a fontes oficiais de informação[3] conjugado com a Lei da Imprensa (Lei n.º 2/99, de 13.1) dispõe, no seu artigo 1.º, n.º 2) assegura aos jornalistas o acesso às fontes de informação e a liberdade de imprensa confere ao jornalista credenciado o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações. Esta liberdade de imprensa é garantida constitucionalmente (artigo 38.º, n.º 1 da CRP) e implica, nomeadamente (n.º 2, alínea a)), “a liberdade de expressão (artigo 37.º, n.º 1 CRP[4]), também com assento no artigo 19.° da DUDH[5] e no artigo 10.°, n.° 1 da CEDH[6].

O direito à informação e à liberdade de expressão não justifica que, todavia, em todos os casos prevaleça sobre outros direitos, muito menos se também eles tiverem assento constitucional ou no direito internacional ao qual Portugal está vinculado, seja ele europeu ou não.

O artigo 33.º da CRP, sob a epígrafe “Direito à identidade, ao bom nome e à intimidade” prescreve que:

“1. A todos é reconhecido o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.”.
Depois o artigo 335.º, n.º 1 do CC estabelece que “havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes”.

A solução de uma situação concreta de colisão ou conflito daqueles direitos terá de passar pela harmonização de ambos, razão pela qual, na análise e ponderação das reais circunstâncias em equação e na busca dessa concordância prática, há-de intervir o princípio da proporcionalidade, procurando o aplicador da lei a solução que se apresente mais conforme aos valores constitucionalmente tutelados (cf. artigo 18.º da CRP),

A verdade, todavia, é que o n.º 3 do artigo 37.º da CRP prevê sanções para “as infracções cometidas no exercício” do direito de expressão e informação. Depois, o n.º 4 assegura o direito a indemnização pelos danos sofridos com essas infrações. Por fim, o n.º 2 do artigo 26.º até estabelece garantias efetivas contra a utilização abusiva de informações relativas às pessoas e famílias.

Os normativos apontados, podem até sugerir uma hierarquização deste direito à reserva da intimidade das pessoas e famílias quando em confronto com o direito de informação e expressão, pois para aquele primeiro não são estabelecidas “sanções”.

Mesmo a entender-se não ocorrer essa hierarquização e estar em causa a colisão de dois valores iguais e absolutamente imprescindíveis para o Estado de Direito (a liberdade de imprensa/direito à informação e o direito à intimidade e à reserva da vida privada) a harmonização deste conflito teria sempre de ser alcançado, como já se referenciou, em obediência ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de restrição de direitos fundamentais[7].

Em cumprimento desse princípio da proporcionalidade o Julgador deverá tentar conservar o núcleo essencial de ambos os direitos em contraposição. O livre exercício da função pública da imprensa, contudo, terá de recuar, se a sua divulgação implicar a lesão da intimidade da vida privada e for realizada por forma a exceder o necessário à defesa do bom-nome e reputação do ofendido.

Na situação em apreço o facto de o arguido ser médico a exercer a profissão em estabelecimento hospitalar (seja ele público ou privado) surge com uma dimensão pública que fundamentaria o interesse na difusão da notícia.

O princípio constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de restrição de direitos fundamentais reclama, contudo, o dever de harmonizar o outro bem em causa e com o qual o direito de informação se encontra em colisão e que se situa num domínio exclusivamente privado, o direito à integridade pessoal da queixosa, que veria exposta a sua intimidade ao escrutínio não só do requerente (jornalista), mas, ainda, do público em geral quando a notícia fosse divulgada.

A vítima, cidadã comum sem qualquer ligação ou pretensão a figura pública, tem direito à privacidade e a ser resguardada da exposição a que ficaria sujeita ao ser difundida a situação por si vivenciada e que terá como autor um médico.

O interesse em dar a conhecer aos cidadãos os pormenores de uma matéria como a descrita (abuso sexual), em que o tribunal julgou restringir a publicidade do processo, não se revela como de interesse público efetivo e preponderante à informação em contraposição com o critério ético relativo à reserva da vida privada, principalmente na perspetiva da vítima. Uma cidadã comum, alheia à exposição pública, mas que poderá ser facilmente identificada e sujeita duplamente à vitimização, numa zona geográfica relativamente pequena, agora através da devassa e escrutínio da sua intimidade e até com prejuízo da sua vida familiar.

Não se vislumbra, pois que a informação jornalística se revele necessária à prossecução de um efetivo interesse público, até porque se depreende do requerimento apresentado que o jornalista já “tem conhecimento do nome e profissão (médico) do arguido bem como, de uma forma genérica, dos factos (abusos sexuais) que lhe são imputados” bastando-lhe uma pesquisa na internet para facilmente aceder aos locais onde o agente acusado exerceu/exercerá funções e respetiva especialidade médica.

Assim, embora a decisão recorrida não seja desrespeitadora do princípio da proporcionalidade já o acesso à informação, constante da acusação e da pronúncia, bem como o seu escrutínio pelo requerente se revela desnecessária e desproporcional. É que esse acesso, por si só já implica uma devassa da privacidade da ofendida, e o conhecimento com ele obtido (pormenores do abuso) não é reclamado por qualquer interesse público, devendo tal matéria pelo contrário ser subtraída à curiosidade popular, por naturais razões de resguardo e melindre e de vitimização secundária.

Acresce que, como foi salientado no despacho recorrido, tendo sido excluída a publicidade da audiência fica desde logo vedada “a narração de atos processuais anteriores àquela”, nos termos do artigo 88º, n.º 3 do CPP. Está, assim, qualquer interveniente interno ou externo ao processo impedido de divulgar o teor dos atos processuais prévios ao julgamento incluindo a materialidade constante da acusação e da pronúncia. Soçobrando, pois, qualquer interesse legítimo do requerente jornalista, interveniente externo ao processo, consultá-lo com o intuito de informar a opinião pública[8] do seu teor privado, quando lhe está vedado prestar essa informação.

Assim, tanto pela via acolhida pelo Tribunal a quo como pela circunstância de, no caso concreto, o acesso às peças processuais redundar na lesão de interesses da vítima dignos de tutela e de maior relevância, teria sempre de recuar o direito de o requerente jornalista aceder à pretendida informação, pois esta não é imprescindível ao direito à informação ou de informar sendo que em alternativa o requerente já tem acesso a materialidade relevante e socialmente útil e a pretendida obter excederia sempre o direito à privacidade e intimidade da ofendida.

Em conclusão:

- O n.º 2 do artigo 37.° da CRP acolhe de forma ampla o direito à liberdade de expressão e de informação;

- Do n.º 3 do artigo 37.° da CRP resulta que o direito de informação não é um direito absoluto e muitos menos ilimitado, já que o seu exercício pode implicar a prática de infrações sujeitas ao regime geral do Direito Criminal;

- O princípio da publicidade é restringido face à preocupação com a intimidade e a honra das vítimas. Esse cuidado com a vítima não pode deixar de ser considerado transversal não só ao direito ordinário penal como à Constituição e ao direito internacional (CEDH e CUDH) podendo ser invocados pelo Estado para limitar a liberdade de expressão e de informação.

- O direito à liberdade de expressão e de informação do artigo 10.º (CEDH), no conflito com o direito à intimidade da vítima (artigo 8.º da CEDH), pode ser dispensado conforme resulta de uma correta interpretação do n.º 2 do artigo 10.º da CEDH;

- A exploração/escrutínio da privacidade de uma cidadã comum que já teve de denunciar atos de abusos sexual expondo a sua intimidade e privacidade no âmbito judicial não serve, no caso em apreciação, qualquer interesse público geral de informação, tendo sido e bem indeferido o peticionado pelo requerente jornalista, com base na exclusão da publicidade do julgamento.

Mantém-se, assim, a decisão recorrida que, após excluir a publicidade da audiência de julgamento, indeferiu a pretensão do jornalista do Público de aceder às cópias digitais do despacho de acusação e de pronúncia.

III. DECISÃO
1. Nestes termos e com os fundamentos aludidos julga-se não provido o recurso interposto pelo interveniente acidental.
2. Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 3 Uc.
Évora, 7 de novembro de 2023.

Beatriz Marques Borges
Filipa Lourenço
João Gomes de Sousa
____________________________
[1] Sobre o tema consultar Francisco Teixeira da Mota - LIBERDADE DE EXPRESSÃO — A JURISPRUDÊNCIA DO TEDH E OS TRIBUNAIS PORTUGUESES) JULGAR - N.º 32 - 2017 P. 181-187 https://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/05/JLGR32-FTM.pdf.
[2] Este artigo 8.º estabelece que: “1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem – estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.”.
[3] Estabelece este normativo o seguinte: “1 - O direito de acesso às fontes de informação é assegurado aos jornalistas: a) Pelos órgãos da Administração Pública enumerados no n.º 2 do artigo 2.º do Código do Procedimento Administrativo; (…) 2 - O interesse dos jornalistas no acesso às fontes de informação é sempre considerado legítimo para efeitos do exercício do direito regulado nos artigos 61.º a 63.º do Código do Procedimento Administrativo. 3 - O direito de acesso às fontes de informação não abrange os processos em segredo de justiça, os documentos classificados ou protegidos ao abrigo de legislação específica, os dados pessoais que não sejam públicos dos documentos nominativos relativos a terceiros (…).”.
[4] Já a Constituição da República Portuguesa estabelece no artigo 37.º, n.º 1 que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.”
[5] O artigo 19.° da DUDH dispõe que “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
[6] O artigo 10.°, n.° 1 da CEDH prevê que “Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras (…)”.
[7] Cf. Acórdão do STJ de 14/02/12, proferido no P. 5817/07.2TBOER.L1.S1 e relatado por HELDER ROQUE, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bed3c0b9bd5902d3802579ac003389e8?OpenDocument.
[8] Cf. Ac. RP de 9.5.2018, proferido no P. 15187/11.9TDPRT-C.P1, relatado por ÉLIA SÃO PEDRO e disponível para consulta em www.dgsi.pt.