Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2437/20.0T8PTM.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: BENS COMUNS DO CASAL
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A moradia edificada pelo casal, casado sob o regime da comunhão de adquiridos, sobre terreno próprio do cônjuge marido é de qualificar como bem comum.(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I.RELATÓRIO

1. AA intentou contra BB, acção declarativa de condenação peticionando que:

“a) Seja declarado e o réu condenado a reconhecer que a fração descrita sob a letra “A” destinada a habitação do prédio constituído em propriedade horizontal sito no ..., ..., freguesia da Guia, descrito na CRP de Albufeira sob o n.º ...87 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48 daquela mesma freguesia, é bem comum do dissolvido casal e como tal devendo ser partilhado e
b) Seja o registo predial rectificado no sentido de a autora ser inscrita como proprietária do prédio melhor identificado na al. a).
Caso assim se não entenda, deverá, subsidiariamente ao pedido principal:
a) Ser declarado e o réu condenado a reconhecer que a moradia com piscina edificada sobre a parcela de terreno propriedade do réu e a que veio a corresponder a fração “A” foi construída na pendência do casamento e paga pelo casal formado por autora e réu, no montante total de, pelo menos, 229.500,00€ (duzentos e vinte e nove mil e quinhentos euros);
b) Ser declarado e o réu condenado a reconhecer como bem comum as benfeitorias realizadas pela autora e réu e correspondentes à construção da referida moradia composta por cave, destinada a garagem; rés-do-chão, com sala comum, cozinha, despensa, quarto e casa de banho; e primeiro andar, com duas suites com uma casa de banho cada, com a superfície coberta de 249,50m2, piscina, alpendre e barbecue, no lote de terreno propriedade do réu entre 2002 e 2008;
c) Ser declarado e o réu condenado a reconhecer e a pagar à autora, por essa via, um crédito de benfeitorias no valor correspondente a ½ do valor aportado ao imóvel de sua pertença por força das obras de construção feitas na pendência do casamento, correspondente ao valor que resultar da perícia realizada nos presentes autos ou, caso o mesmo se não apure, a liquidar em incidente posterior e que, no mínimo, corresponde ao valor dos empréstimos aplicados na construção e
d) Ser declarado e reconhecido que a autora goza de direito de retenção sobre a fração “A” nos termos do artigo 754.º do Código Civil pelo direito de crédito por benfeitorias”.

Para tanto alegou ter sido casada com o réu desde 2002 até 2017, sendo que o casal, em comunhão de esforços e intenções, edificou uma moradia num terreno que havia sido doado pelos pais do réu a este, pelo que, perante tal circunstância esse bem deve ser considerado um bem comum.

O réu contestou, alegando que o bem não tem natureza comum, tendo a moradia sido construída apenas com investimento seu, em terreno que lhe havia sido doado pelos seus pais, a si e seu irmão, e custeado através de um empréstimo bancário, contraído pelo réu e custeado por si e sua família exclusivamente. Acrescentou que, subsequentemente, a moradia, que nunca se destinou a ser usada para habitação do casal, foi sendo arrendada por curtos períodos de tempo a turistas, o que permitiu ir pagando as prestações correspondentes aos empréstimos bancários contraídos. Considerando que o bem não se tornou comum e se mantém próprio seu, concluiu pela improcedência da acção.

Julgada a causa foi, subsequentemente, proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, o tribunal julga procedente a presente acção e:
Declara e condena o réu a reconhecer que a fração descrita sob a letra “A” destinada a habitação do prédio constituído em propriedade horizontal sito no ..., ..., freguesia da Guia, descrito na CRP de Albufeira sob o n.º ...87 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48 daquela mesma freguesia, é bem comum do dissolvido casal que este formou com a autora e como tal devendo ser partilhado e determina seja o registo predial alterado no sentido de a autora ser inscrita como proprietária do prédio”.

2. É desta sentença que recorre o Réu, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

A)“A edificação de obra (casa) por dois cônjuges, casados sob o regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles, constitui benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa. – Acórdão do STJ de 29 de Novembro de 2022 tirado em recurso de revista no Proc. nº 1530/20.3T8VNF.G1.S.

B) Na situação em recurso trata-se da edificação de uma moradia, pelo Apelante e Apelada, enquanto casados sob o regime de bens adquiridos desde 12 de Abril de 2002, sobre um lote de terreno para construção que foi doada ao Apelante, ainda solteiro, em 27 de Janeiro de 1998.

C). A sentença recorrida declarou (e condenou o Apelante a reconhecer) que essa moradia, agora fracção ´A’ do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na ..., na freguesia da Guia, concelho de Albufeira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o nº ...87 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48 daquela mesma freguesia, é bem comum daquele já dissolvido casal (Apelante e Apelada) e como tal deverá ser partilhado, tendo também determinado que o registo predial fosse alterado no sentido de a Autora/Apelada ser inscrita como proprietária do prédio.

D). Em face da factualidade provada a moradia construída só pode ser apenas considerada como uma benfeitoria do casal sobre um bem próprio do Apelante, devendo o seu apurado valor determinar um direito creditício do casal sobre o Apelante, a ocorrer em processo de inventário decorrente da dissolução, por divórcio, do casal.

E). Ao Tribunal “a quo” está legalmente vedado, por força do disposto nos arts. 1316º (modos de aquisição do direito de propriedade) e 1714º e segs. (regime matrimonial de bens) integrar, por sentença e sem qualquer válido fundamento, um bem próprio na comunhão conjugal.

F).- Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou, por errada análise crítica das provas, por incorrecta interpretação e por desajustada subsunção e aplicação das normas jurídicas correspondentes, o disposto no art. 607º do Código de Processo Civil e os arts. 1316º e segs. e arts. 1714º, 1717º e 1722º, todos do Código Civil.

G).- Tanto mais que a própria Autora/Apelada, no seu petitório inicial considerou a construção da moradia como benfeitoria efectuada e requereu prova pericial, efectivamente realizada, para apuramento do seu valor, tendo efectuado um pedido subsidiário de pagamento de determinado valor.

H).- A Tribunal “a quo”, considerando o valor da moradia apurado pela prova pericial realizada, todavia ignorou ostensivamente o valor que o mesmo relatório pericial apontava para o lote de terreno sem a construção da moradia, atribuindo-lhe um valor de € 7.500,00 contra o valor de € 475.669,50 referido nesse relatório.

I). A sentença recorrida, ao decidir como decidiu, ignorou que o lote de terreno (e

independentemente do valor que, sem construção, ao mesmo se atribua) é um bem próprio do Apelante e que este não pode ser privado, no todo ou em parte, desse seu direito de propriedade (art. 62º da Constituição da República Portuguesa e art. 1308º do Código Civil), tendo de considerar valores para eventual futura compensação ou fixação de créditos, o que a sentença nem sequer fez.

J).- Nessa medida, a sentença recorrida violou também o disposto no art. 607º do Código de Processo Civil (errado exame crítico das provas e incorrecta interpretação e desajustada subsunção e aplicação das normas jurídicas correspondentes), bem como, por errada avaliação e não possuindo o Julgador “a quo” conhecimentos técnicos e especiais de avaliação, o disposto no art. 388º do Código Civil quanto à desconsideração do relatório pericial.

K.- A sentença recorrida, ao decidir como decidiu, rejeitando o carácter de benfeitoria que a construção da moradia deve assumir (carácter que a própria Autora/Apelada assumiu) e desconsiderando a relação obrigacional que esse carácter pressupõe, violou também, por errado exame crítico das provas e incorrecta interpretação e desajustada subsunção e aplicação das normas jurídicas correspondentes, o disposto no art. 607º do Código de Processo Civil, o art. 62º da Constituição da República Portuguesa e os arts. 1308º e 216º do Código Civil.

L).- Sentença que deve ser revogada e substituída por outra que declare ser a edificação da identificada fracção A sobre o lote de terreno bem próprio do Apelante apenas uma benfeitoria cujo valor deve ser considerado em função da diferença, já apurada por perícia, entre o valor do terreno sem construção (€ 475.669,50) e o valor do aí edificado (€ 527.005,50).

3.Contra-alegou a Autora pugnando pela manutenção do decidido.

Sem embargo requereu que, em caso de procedência do recurso do Réu, fosse dado provimento aos pedidos subsidiários e, bem assim, reanalisada a resposta dada ao facto constante do ponto 40 dos factos provados.

4. OBJECTO DO RECURSO

Como se viu, no caso, apela-se da sentença na parte em que conheceu do mérito da acção, julgando procedente o pedido principal formulado pela Autora, circunscrevendo-se o objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões do apelante (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2, todos do CPC) à questão de saber se a moradia edificada pelo casal, casado sob o regime da comunhão de adquiridos, sobre terreno próprio do cônjuge marido é de qualificar, ou não, como bem comum.


II. FUNDAMENTAÇÃO

5. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:
“a) Factos provados
1- Autora e réu casaram um com o outro, civilmente e sem convenção antenupcial, no dia 12-04-2002 (resposta ao artº 1º da p.i.).
2- O casamento foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento decretado em 18-10-2017 pela Conservadora da Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Aljezur (resposta ao artº 2º da p.i.).
3- Por escritura pública outorgada no dia 27-01-1998, no então Cartório Notarial de Albufeira, os pais do réu doaram-lhe, a si e ao seu irmão, na proporção de ½ para cada um, uma parcela de terreno para construção urbana sito em ..., freguesia da Guia, concelho de Albufeira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º ...87, da freguesia de Albufeira, e inscrito na matriz urbana da referida freguesia sob o artigo ...85, cuja propriedade se encontra registada a seu favor pela Ap. 19 de 1998/02/05 (resposta ao artº 3º da p.i.).
4- Na referida escritura de doação, os outorgantes declararam atribuir à parcela de terreno doada aos dois filhos o valor de 1.500.000$00, correspondentes a € 7.500 (sete mil e quinhentos euros) (resposta ao artº 5º da p.i.).
5- Em 2002, o réu e a autora decidiram edificar sobre o aludido terreno uma moradia (resposta ao artº 6º da p.i.).
6- Para início da construção da moradia, em 19-03-2002, o réu, ainda no estado de solteiro, havia contraído um empréstimo junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Albufeira CRL. no valor de cerca de 100.000,00€ (cem mil euros), garantido por hipoteca constituída sobre o lote de terreno e registada pela Ap. 13 de 2002/03/19 (resposta ao artº 7º da p.i.).
7- Tendo casado em 12-04-2002, a autora passou a pagar as prestações do referido empréstimo juntamente com o réu (resposta ao artº 8º da p.i.).
8- Na convicção de que a moradia seria um bem propriedade de ambos, a autora aceitou pagar custos da sua construção juntamente com o réu (resposta ao artº 10º da p.i.).
9- A moradia começou a ser construída logo após o casamento e paga com o dinheiro do empréstimo contraído junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Albufeira CRL (resposta ao artº 11º da p.i.).
10- Autora e réu fixaram, entretanto, a casa de morada de família na casa dos pais da autora (resposta aos artºs 12º e 13º da p.i.).
11- Entre 2002 e finais de 2004 decorreram as obras de construção da moradia, que veio a ser composta por cave, destinada a garagem; rés-do-chão, com sala comum, cozinha, despensa, quarto e casa de banho; e primeiro andar, com duas suites com uma casa de banho cada, com a superfície coberta de 249,50m2 (resposta aos artºs 15º da p.i. e 8º da contestação).
12- Em dezembro de 2004 foi emitida a licença de utilização para a moradia (resposta aos artºs 16º da p.i. e 8º da contestação).
13- Apesar da obtenção da licença de utilização, em dezembro de 2004 ainda faltavam acabamentos e construções e arranjos exteriores, designadamente a piscina, um alpendre e barbecue (resposta aos artºs 17º da p.i. e 8º da contestação).
14- Por escritura pública outorgada no dia 23-05-2006, no então Cartório Notarial de Albufeira, o réu, com a autorização da autora, outorgou com o irmão escritura pública de constituição de propriedade horizontal e divisão de coisa comum, pela qual lhe foi adjudicada a fração “A” correspondente à moradia edificada (resposta ao artº 18º da p.i.).
15- Em março de 2008, autora e réu contrataram, junto do então Finibanco, S.A. (posteriormente Caixa Económica Montepio Geral), dois empréstimos destinados à realização das obras em falta na moradia, um no montante de 94.897,20 € (noventa e quatro mil oitocentos e noventa e sete euros e vinte cêntimos) e outro no montante de 45.000,00 € (quarenta e cinco mil euros), ambos garantidos por hipoteca constituída já sobre a fração “A” que veio a ser adjudicada ao réu no âmbito da escritura de divisão de coisa comum celebrada com o irmão (resposta aos artºs 20º da p.i. e 18º da contestação).
16- Nessa mesma data, por escritura pública outorgada no dia 26-03-2008, no Cartório Notarial .... T..., autora e réu contraíram junto do Finibanco, S.A. (Caixa Económica Montepio Geral), um empréstimo hipotecário no montante de 89.602,80€ (oitenta e nove mil seiscentos e dois euros e oitenta cêntimos) que se destinou a liquidar o empréstimo que havia sido contraído junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Albufeira, CRL. pelo réu para início da construção da moradia (resposta ao artº 21º da p.i.).
17- Autora e réu liquidaram, com o empréstimo contraído junto do Finibanco, S.A. no montante de 89.602,80€ (oitenta e nove mil seiscentos e dois euros e oitenta cêntimos) o empréstimo que havia sido contraído junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Albufeira CRL., tendo sido cancelada a respetiva hipoteca que registada sob a Ap. 13 de 2002/03/19 (resposta ao artº 22º da p.i.).
18- O empreiteiro responsável pela obra de construção da moradia era sogro do irmão do réu, pelo que nunca existiram faturas (resposta ao artº 26º da p.i.).
19- A construção da moradia a que veio a corresponder a fração “A” foi feita na pendência do casamento (resposta ao artº 27º da p.i.).
20- A autora contraiu, juntamente com o réu, os empréstimos com os quais foram pagos materiais e mão de obra (resposta aos artºs 25º e 28º da p.i.).
21- Sem a moradia edificada na pendência do casamento, a parcela de terreno doada ao réu tinha o valor de 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros) (resposta ao artº 31º da p.i.).
22- Em 2017, a moradia tinha o valor patrimonial de 204.018,75€ (duzentos e quatro mil e dezoito euros e setenta e cinco cêntimos) (resposta ao artº 32º da p.i.).
23- As obras de edificação da moradia e obras exteriores de construção da piscina, alpendre, barbecue e jardim levaram a que a moradia valesse em outubro de 2021 € 527.005,50 (resposta ao artº 33º da p.i.).
24- Em outubro de 2020, sem o conhecimento ou consentimento da autora, o réu colocou a fração “A” em venda pelo valor de 478.000 € (quatrocentos e setenta e oito mil euros) (resposta ao artº 34º da p.i.).
25- A autora só teve conhecimento de que a casa se encontrava em venda através de um familiar (resposta ao artº 35º da p.i.).
26- No âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento pelo qual foi dissolvido o casamento contraído entre a autora e o réu, foi atribuído à autora o direito de habitação da fração “A” (resposta ao artº 39º da p.i.).
27- A edificação na parcela de terreno que os pais do Réu lhe doaram em 1998 não foi projetada com vista ao casamento entre Autora e Réu, nem para ser destinada a servir de habitação do casal (resposta aos artºs 4º e 5º da contestação).
28- Foi o Réu que, ainda solteiro e conjuntamente com o seu irmão CC, contraiu junto da CCAM de Albufeira um empréstimo de € 100.000,00 (e outros € 100.000,00 contraídos pelo seu irmão) para constituírem duas moradias sobre a parcela de terreno doada (resposta ao artº 6º da contestação).
29- Tendo sido constituída pelo Réu e irmão, para garantia dos empréstimos, uma hipoteca voluntária sobre a parcela e sobre tudo o que nela viesse a ser edificado (resposta ao artº 7º da contestação).
30- Não foi intenção da Autora nem do Réu irem habitar a moradia construída, nem decidiram construí-la para esse fim (resposta aos artºs 9º e 10º da contestação).
31- Logo que concluída, a moradia passou a ser arrendada, por curtos períodos, a turistas, sobretudo na época do Verão (resposta ao artº 12º da contestação).
32- A. e R. resolveram dotar a moradia com piscina e respetivo equipamento, alpendre, barbecue, despensa, jardim, muro e outros arranjos exteriores, para o que foi necessário realizar obras exteriores (resposta aos artºs 19º da p.i. e 13º da contestação).
33- Para o efeito, a Autora e o Réu conseguiram financiamento junto do Finibanco, em melhores condições do que o empréstimo concedido pela CCAM de Albufeira, pelo que contraíram um empréstimo de € 89.602,80 para liquidação do débito remanescente do empréstimo de € 100.000,00 para com a CCAM Albufeira e mais um empréstimo de € 45.000,00 para proceder aos arranjos exteriores da moradia (resposta aos artºs 14º a 16º da contestação)
34- Ficando consignada a hipoteca voluntária da moradia ao Finibanco em ambos os empréstimos, com o cancelamento da hipoteca antes efetuada a favor da CCAM Albufeira (resposta ao artº 17º da contestação).
35- A Autora, já casada, limitou-se a intervir na escritura de constituição de propriedade horizontal e divisão do prédio apenas para mera autorização (resposta ao artº 21º da contestação).
36- Com o produto obtido pelos arrendamentos temporários da moradia a turistas efeito, foi efetuado, nomeadamente, o pagamento das prestações devidas ao banco (resposta aos artºs 23º e 29º da contestação).
37- A Autora e Réu foram trabalhar e residir para a Suíça em 2011 e aí fixaram residência (resposta ao artº 24º da contestação).
38- É aí que a Autora ainda reside e trabalha, com os dois filhos do dissolvido casal (resposta ao artº 25º da contestação).
39- No processo de divórcio entre Autora e Réu, em 18 de outubro de 2017, aquela declarou que o prédio era bem próprio do Réu e que a habitação que aí fizesse seria a título de comodato (resposta aos artºs 26º da contestação e 4º e 5º da resposta da A.).
40- A construção da moradia foi paga com o valor de € 100.000,00 emprestada pela CCAM de Albufeira ao Réu, ainda solteiro (resposta ao artº 27º da contestação).
41- A moradia em causa nunca foi o centro de vida familiar e social da Autora e do Réu ou do seu agregado familiar, que aí nunca residiu ou sequer se alojou (resposta aos artºs 11º e 32º da contestação).
Considerou-se não provada a matéria dos artºs 9º, 14º, 23º, 24º, 29º e 38º da p.i., 19º, 20º, 22º, 28º, 30º, 31º, 33º, 37º e 38º e da contestação, 15º e 2º e 3º da resposta da A..
Não se respondeu à matéria dos artºs da 30º, 37º e 41º a 50º p.i., 1º a 3º e 34º a 36º da contestação e 1º da resposta da A., por se considerar o respetivo teor conclusivo.”.

6. Do mérito do recurso

O apelante conquanto não ponha agora[1] em causa que a moradia construída num terreno seu , que lhe foi doado pelos seus pais, o foi afinal com o esforço financeiro do casal, apenas se insurge contra a procedência do pedido principal da Autora – o reconhecimento de que tal moradia constitui um bem comum – defendendo que tal edificação se deve qualificar como uma benfeitoria ( o que, em todo o caso, a reconhecer-se, levaria à procedência, na essencialidade, do pedido subsidiário).

Poderá a moradia, aliás transmudada numa nova realidade jurídica, ou seja, em fracção autónoma (cfr. ponto 14) considerar-se uma simples benfeitoria levada a efeito pelo casal, então constituído por Autora e Réu, num terreno deste último?

Segundo a definição legal, benfeitorias são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa (art.º216ºnº1 do Cód. Civil).

Portanto, a benfeitoria consiste, como a própria palavra indica, no melhoramento ou aperfeiçoamento da coisa feito por quem a ela está ligado por via de uma relação ou vínculo jurídico (v.g. posse, locação, comodato).

Não se configura como benfeitoria, a obra nova que altera a substância da coisa independentemente de a pessoa que a realiza estar ou não ligada a ela por qualquer vínculo jurídico.[2]

No caso, a edificação da moradia no terreno do R. não se destinou a melhorá-lo ou conservá-lo, tendo, sim, alterado a sua substância, como vimos: o terreno deu origem a uma fracção autónoma descrita sob a letra “A” destinada a habitação do prédio constituído em propriedade horizontal sito no ..., ..., freguesia da Guia, descrito na CRP de Albufeira sob o n.º ...87 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48 daquela mesma freguesia.

O apelante parte do pressuposto de que a fracção autónoma a que a moradia deu origem é de considerar (também) um bem próprio porque foi edificada sobre um bem próprio e que, para tanto, bastava-lhe demonstrar que se tratava de uma benfeitoria no (seu) prédio.

Cremos, porém, que, como dissemos, não estamos em presença de uma mera benfeitoria executada sobre o pré-existente prédio do apelante.

Como bem se salienta no Acórdão desta Relação de 25.3.2010 (Bernardo Domingos) “com a construção da moradia o terreno deixou de ter existência jurídica autónoma, tendo ficado integrado no prédio urbano, entretanto constituído e registado como tal, passando o terreno e a edificação a formar uma unidade jurídica indivisível - cfr. art. 204º nº 2.”.

No mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 13.10.2022 ( Oliveira Abreu) afirma que: “ Edificada construção em terreno, enquanto bem próprio do ex-cônjuge, a expensas de ambos os cônjuges, importa reconhecer que o regime jurídico aplicável à aludida construção não pode ser encontrado à luz do instituto das benfeitorias quando não se demonstre terem sido realizados trabalhos no terreno, com vista a conservá-lo ou melhorá-lo”.
E acrescenta: “Estando em causa uma construção sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, tal importa inovação que altera substancialmente o prédio onde se edifica, provocando uma alteração substancial e jurídica deste, passando a constituir (lote de terreno e moradia) um todo uno e indivisível, dando origem a uma coisa nova, a uma nova realidade material e jurídica, constituindo um prédio urbano.”.

Por conseguinte, a conclusão que se alcança é a de que o regime das benfeitorias não tem aplicação no caso sub judice.

“Mas ainda que se qualificasse a construção da moradia como uma benfeitoria, nem assim a mesma poderia ser considerada como bem próprio da apelante, porquanto como salienta Rita Lobo Xavier no estudo sobre “As relações entre o Direito Comum e o direito matrimonial “, «as benfeitorias realizadas em bens próprios de cônjuges casados no regime da comunhão de adquiridos devem ser qualificadas como bens comuns , por força do disposto no art.º 1733º n.º 2 do CC.
Vejamos agora os factos à luz do direito matrimonial e em particular do regime jurídico da comunhão de adquiridos.
De acordo com o artigo 1724.°do Código Civil, fazem parte da comunhão "o produto do trabalho dos cônjuges" e "os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados pela lei".
Como afirma Rita Xavier (ob cit. pag. 492), «é possível encarar a casa construída como um bem "adquirido" na constância do casamento. O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os "ganhos" "alcançados" pelos cônjuges, todos os bens que "advierem" aos cônjuges durante o casamento que não sejam exceptuados pela lei. Ou, nas palavras de ANTUNES VARELA ( Direito da Família, vol. I, 5ª ed., Livraria Petrony, Lisboa, 1999, p. 453), fazem parte da comunhão os bens que os cônjuges "fizeram seus" na constância do casamento a título oneroso.”.[3]

Por consequência, a moradia edificada pelo casal no terreno do Réu que deu origem à fracção autónoma designada pela letra “A” destinada a habitação do prédio constituído em propriedade horizontal sito no ..., ..., freguesia da Guia, descrito na CRP de Albufeira sob o n.º ...87 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48 daquela mesma freguesia, deve considerar-se um bem “adquirido”.

Ora, de acordo com o disposto no art.º 1726º, n° 1, do Cód. Civil, os "bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações".

Sendo certo que, como vimos, o terreno onde foi edificada a moradia era bem próprio do apelante, que a moradia foi construída na pendência do casamento, sob o regime da comunhão de adquiridos, e custeada por ambos os cônjuges ( cfr. pontos 8 e 20), apurou-se, também, que:
- Sem a moradia edificada na pendência do casamento, a parcela de terreno doada ao réu tinha o valor de 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros);
- Em 2017, a moradia tinha o valor patrimonial de 204.018,75€ (duzentos e quatro mil e dezoito euros e setenta e cinco cêntimos);
- As obras de edificação da moradia e obras exteriores de construção da piscina, alpendre, barbecue e jardim levaram a que a moradia valesse em outubro de 2021 € 527.005,50.

Não há quaisquer dúvidas de que o contributo do casal para a aquisição/construção da moradia é muito superior ao valor da contribuição do apelante traduzida na prestação do terreno.

Consequentemente, e de acordo com o disposto no citado n° 1 do art.º 1726º, ter-se-á de considerar a referida moradia constituída em fracção autónoma como um bem comum, como na sentença bem se decidiu, sem prejuízo da compensação que, por este património comum, é devida ao apelante pela deslocação patrimonial realizada com a entrada do seu bem próprio: o terreno onde foi construída a moradia/fracção autónoma ( Cfr. nº 2 do art.º 1726º do Cód.Civil).

Tal compensação, que não foi aqui peticionada pelo apelante através de pedido reconvencional, terá de ser decidida em sede própria.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, se acorda em julgar improcedente a apelação e em manter a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Évora, 26 de Outubro de 2023

Maria João Sousa e Faro (relatora)
Manuel Bargado
José António Moita
____________________________________

[1] Note-se que na contestação negou que a apelada tenha realizado ou suportado qualquer custo de benfeitorias no imóvel.

[2] Vaz Serra, RLJ, 108-266 apud Código Civil Anotado de Abílio Neto, 12ª ed., pag. 101.

[3] Cfr. citado acórdão da Relação de Évora relatado por Bernardo Domingos.