Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FRANCISCO MATOS | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE RENDIMENTO DISPONÍVEL SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL | ||
Data do Acordão: | 09/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | Nem o texto da decisão, nem o sentido que dela pode deduzir um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, aponta para a possibilidade de sobre a montante a excluir da cessão – 2,5 (dois e meio) salários mínimos nacionais – incidirem impostos. | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. 188/22.0T8FTR-D.E1 (Conferência) Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora: I- Relatório 1. (…) e (…) requereram a exoneração do passivo restante no processo de insolvência que lhes foi instaurado por (…) Activity Campany. 2. Declarada a insolvência foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido e depois proferido despacho inicial, em cujo dispositivo designadamente se consignou: “Face ao exposto, (…) Determina-se que durante o período da cessão do rendimento disponível correspondente aos três anos subsequentes ao encerramento do presente processo, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir se considera cedido ao fiduciário nos termos do artigo 239.º, n.os 2 e 3, do CIRE. Mais se determina que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título aos devedores durante esse período, com exclusão do montante mensal equivalente a 2,5 (dois e meio) salários mínimos nacionais. A cessão de rendimentos inclui todas as quantias percebidas pelo(a/os) insolvente(s) a qualquer título, incluindo os subsídios de férias e de Natal, e eventuais reembolsos de IRS. (…) 3. Os Insolventes recorreram deste despacho e concluíram assim a motivação do recurso: “1ª Determina, expressamente, o D.D., ora recorrido, que o rendimento disponível para os insolventes nestes autos, integra “todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título durante o período da cessão”, no equivalente a 2,5 (dois e meio) SMN. 2ª Ora, atento o vertido nas alegações supra, e tendo por base o atual SMN, de € 760,00, decorrente do D.L. n.º 85-A/2022, 3ª O valor disponível para os insolventes, será, mensalmente de € 1.900,00, considerado pelo D.D. a quo, como o sustento mínimo para este agregado familiar de dois adultos, e um filho menor de 13 anos. 4ª Simplesmente, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, tal sustento mínimo e razoável, na ótica dos recorrentes, terá de ser visto, com base nos seguintes termos e raciocínio, e conforme as Alegações 14ª a 19ª, supra: 1º - A D. D., ora recorrido não faz a distinção se os referidos 2,5 SMN (€ 1.900,00) são líquidos ou ilíquidos. 2º - Tal diferença, entre líquido ou ilíquido, para um agregado familiar de três pessoas, com este patamar de rendimentos, faz toda a diferença, no período inflacionário, que, atualmente, se verifica. 3º - Como resulta das regras da experiência comum, que com a liquidação do património (já em curso) que possuem dos dois imóveis, e um deles é a casa de morada de família dos insolventes, vão os mesmos insolventes ficar sem teto para habitar. 4º - Pelo que o seu sustento “minimamente digno”, e o “razoavelmente necessário para o agregado familiar viver”, implicará, doravante um dispêndio mensal com a renda que será estimável em valor nunca inferior a € 400,00 … 5º - O que implicará que, à luz do atual SMN (de € 1.900,00 - € 400,00 = € 1.500,00), apenas € 1500,00 fiquem afetos aos demais gastos do agregado familiar de 3 pessoas, em temos líquidos. 5ª Pelo que, nos termos da Alegação 19ª, supra, depois de paga uma renda mensal para habitação, do agregado familiar dos insolventes, de € 400,00, e se descontados € 260,00, mensais, de combustível de viatura própria para o trabalho do insolvente marido, que são considerados como remuneração normal, no recibo do vencimento do insolvente marido, cada membro do agregado familiar fica com € 413,33, para as demais despesas mensais. 6ª Nestes termos, na ótica dos insolvente, atentos os critérios da “razoabilidade” e do padrão do “sustento minimamente digno” do agregado familiar dos insolventes, e num quadro inflacionário que se verifica, nos tempos atuais, 7ª Matéria esta que se inclui no disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (deixar o Juiz de conhecer de questões que deveria ter conhecido). 8ª Deve, assim, quanto ao D.D. ora recorrido, ser ordenada a revogação do mesmo, por V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, na parte em que atribui como rendimento a ficar disponível para os insolventes durante o período dos 3 anos da cessão, no montante de 2,5 SMN, por outro D.D. que indique que o valor em causa é de 2,5 SMN, líquidos, ou, em alternativa, para três salários mínimos nacionais. Como é de Justiça!” 4. Por decisão sumária do ora relator, o recurso foi julgado improcedente com a seguinte fundamentação: “A exoneração do passivo restante permite ao devedor pessoa singular, com as exceções previstas no artigo 254.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três posteriores ao encerramento deste. A efetiva obtenção deste benefício “supõe (…) que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período (…) – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica” [preâmbulo do D.L. n.º 53/2004, de 18/3]. Com vista a este desiderato, o artigo 239.º do CIRE, dispõe designadamente o seguinte sobre a cessão do rendimento disponível: “(…) 2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. 3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: (…) b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (…)”. Na espécie, o despacho inicial da exoneração do passivo restante determinou a cessão dos rendimentos disponíveis que os Recorrentes venham a auferir, no prazo de 3 anos, com exclusão do montante mensal equivalente a 2,5 (dois e meio) salários mínimos nacionais, visando os Recorrentes a revogação deste despacho e a sua substituição por um outro “que indique que o valor em causa é de 2,5 SMN, líquidos, ou, em alternativa, (…) três salários mínimos nacionais”. Pretensão, a meu ver, sem o mínimo apoio legal; a norma aplicada – supra transcrita na parte relevante – não prevê que o despacho inicial da exoneração do passivo restante indique se é líquido ou ilíquido o valor a excluir do rendimento disponível do insolvente para efeitos do seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar e os Recorrentes não indicam disposição legal que comporte semelhante exigência. A decisão recorrida conforma-se com a lei e tanto bastaria para julgar improcedente o recurso. Ainda assim, os Recorrentes identificam na sentença uma ambiguidade, isto é, leem a sentença por forma a retirar dela que o valor a excluir - equivalente a 2,5 (dois e meio) salários mínimos nacionais - dos rendimentos a ceder ao fiduciário tanto pode ser um valor líquido como um valor ilíquido e, assim, se bem apreendemos, livre de impostos ou não. Ambiguidade que a sentença não comporta. Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (CPC), que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. A ambiguidade da sentença, explica Rodrigues Bastos, “verifica-se quando à decisão, no passo considerado, podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos diferentes”[1]. Releva, pois, apreender o sentido ou sentidos da decisão, interpretando-a. À sentença judicial, enquanto ato jurídico, são aplicáveis as regras de interpretação dos negócios (artigo 295.º do CC); significa isto, para usar as palavras v.g. do Ac. STJ de 5/12/2002[2], “(…) que a sentença tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto (artigo 236.º do C.Civil).” Ademais, por se tratar de ato jurídico formal, não pode ser considerado pelo intérprete um sentido que não tenha na letra da decisão um minino de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238.º, n.º 1, do CPC). No caso, a decisão recorrida determinou: “ (…) integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título aos devedores durante esse período, com exclusão do montante mensal equivalente a 2,5 (dois e meio) salários mínimos nacionais. Dispositivo que versando sobre uma regra e uma exceção, não deixa dúvidas em relação a nenhuma delas: i) a regra, todos os rendimentos que advenham a qualquer título aos devedores durante o período da cessão constituem o seu rendimento disponível a ceder ao fiduciário; ii) a exceção, mostra-se excluídos da cessão o montante mensal equivalente a 2,5 (dois e meio) salários mínimos nacionais. Nem o texto da decisão, nem o sentido que dela pode deduzir um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, aponta para a possibilidade de sobre a montante a excluir da cessão – 2,5 (dois e meio) salários mínimos nacionais – incidirem impostos. Lida à luz das regras de interpretação da decisão judicial, como se exige, a decisão não comporta a ambiguidade que os Recorrentes suscitam. Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.” 5. Os Recorrentes reclamam agora desta decisão e formulam as seguintes conclusões: “1ª A douta decisão sumária violou os artigos 239.º, n.º 3, alínea b), e n.º 4, alínea c), do CIRE, na medida em que considerou o valor dos rendimentos ilíquidos no apuramento do rendimento disponível. 2ª Por outro lado, os artigos 239.º, n.º 3, alínea b), e n.º 4, alínea c), do CIRE são inconstitucionais quando interpretados no sentido da consideração dos rendimentos ilíquidos no apuramento do rendimento disponível, por violação dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a) e 63.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos deverá a reclamação para a conferência proceder nos exatos termos peticionados. Como é de Justiça!” 6. Com exceções que no caso não relevam, a parte que se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia acórdão em conferência (artigo 652.º, n.º 3, do CPC) e é esta conferência que agora tem lugar. II – Apreciação 1. Consideram os Reclamantes que a decisão reclamada violou os artigos 239.º, n.º 3, alínea b), e n.º 4, alínea c), do CIRE e incorreu em violação da Lei Fundamental na interpretação preconizada para a norma em apreço, o que tudo fez “na medida em que considerou o valor dos rendimentos ilíquidos no apuramento do rendimento disponível.” A consideração segundo a qual a decisão reclamada “considerou o valor dos rendimentos ilíquidos no apuramento do rendimento disponível” constitui, pois, a pedra de toque da reclamação, por forma a que, verificada ela, subsistirá a razão da interpretação tida por errónea e inconstitucional e, inverificada ela, ficará liberta de qualquer das apontadas imperfeições ou defeitos. É por aqui que cumpre, pois, iniciar, por ler – mais não será necessário – a decisão reclamada por forma a apreender se esta diz o que os Reclamantes dela dizem. E não diz. Diz o contrário ao expressar-se assim a propósito da decisão impugnada: “Nem o texto da decisão, nem o sentido que dela pode deduzir um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, aponta para a possibilidade de sobre a montante a excluir da cessão – 2,5 (dois e meio) salários mínimos nacionais – incidirem impostos.” A reclamação assenta, pois, num pressuposto de facto que não se verifica inexatidão que inquina a solução de direito que advoga e determina a sua improcedência. 2. Por ser assim, o presente coletivo mantém e subscreve o singularmente decidido. III. Decisão: Delibera-se, pelo exposto, em desatender a reclamação, mantendo-se a decisão reclamada. Custas a cargo dos Reclamantes. Évora, 14/9/2023 Francisco Matos Rui Machado e Moura Anabela Luna de Carvalho __________________________________________________ [1] Notas ao Código de Processo Civil, 2001, págs. 196 e 197. [2] Ac. STJ de 5/12/2002 (proc. 02B3349), disponível em www.dgsi.pt |