Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1435/22.3T8FAR.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
ENERGIA ELÉCTRICA
POSSE TITULADA
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Resultando dos factos provados que entre a Câmara Municipal de Faro, em representação do Município, e a EDP Distribuição – Energia, S.A., foi celebrado um contrato de concessão de distribuição de energia elétrica de baixa tensão na área do Município de Faro e que o posto de transformação com a designação PDT-FAR-403-CB Algarvimovel foi edificado pelo promotor do loteamento, tendo disponibilizado o espaço para a implantação do mesmo e sido lavrado auto do entrega da infraestrutura à antecessora da Ré, que a recebeu para integrar a rede pública de distribuição elétrica na área do Município de Faro, tal contrato de concessão, por si só, constitui título jurídico suficiente para legitimar a utilização do posto de transformação por parte da Ré.
II. Como na aquisição derivada translativa, o direito adquirido é exatamente o mesmo que pertencia ao anterior titular, a Autora não dispõe contra a Ré direito que lhe permita exigir a desocupação, sendo a posse exercida pela Ré titulada, pelo menos enquanto subsistir o contrato de concessão supra referido (cfr. artigos 1257.º, n.º 1, 1259.º, n.º 1 e 1263.º, alínea b), do Código Civil).
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
BELA INFÂNCIA, UNIPESSOAL, LDA intentou a ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra EDP, DISTRIBUIÇÃO – ENERGIA, S.A., atualmente designada por E-REDES – DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE, S.A., formulando os seguintes pedidos:
a)- Declarar-se que a área de terreno que a Ré ocupou de 23,40 m2, com a implantação do Posto EDP no prédio urbano sito em Gambelas, freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na matriz urbana da freguesia de Moncarapacho sob o artigo 4414 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro com o n.º 18/20070413, é propriedade da Autora;
b) – Ser a Ré condenada a restituir à Autora o terreno de 23,40 m2 com a implantação do poste da EDP no referido imóvel;
c)- Ser a Ré condenada a remover o citado posto EDP;
d)- Ser a Ré condenada a abster-se de qualquer conduta que impeça, condicione ou diminua o uso e fruição do referido prédio.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em suma, que é proprietária do prédio urbano supra identificado e que nele se encontra instalado um posto de transformação de distribuição propriedade da Ré, sem qualquer título válido que lhe permita ocupar o imóvel.

Contestou a Ré, por impugnação e por exceção (incompetência absoluta do tribunal e prescrição, exceções que, após resposta da Autora, foram julgadas improcedentes em sede de despacho saneador, confirmado por Acórdão desta Relação de Évora proferido em 24-11-2022, já transitado em julgado).
Em termos de impugnação, a Ré alegou, em suma, que a infraestrutura em causa foi construída pelo promotor do loteamento onde se insere o imóvel da Autora, tendo uma das antecessoras da Ré procedido à receção do mesmo para integração na rede pública de distribuição de energia elétrica. O processo decorreu com o cumprimento de todos os formalismos legais impostos pelo Regulamento de Licenças para Instalações Elétricas (RLIE), anexo ao Decreto-Lei n.º 26.852, de 30/07/1936, na sua redação em vigor.
Mais alega, que a disponibilização do espaço, sem transmissão da propriedade, pelo requisitante da ligação à rede importa a constituição de uma servidão administrativa que onera, mas não prejudica o direito de propriedade sobre o mesmo.
As antecessoras da Ré submeteram junto da entidade competente o projeto de licenciamento necessário, com vista à constituição da respetiva servidão, o que efetivamente sucedeu.
Concluiu assim pela improcedência da ação.

A ação foi julgada parcialmente procedente, declarando a sentença que a área de terreno que a Ré ocupou, de 23,40 m2, respeitante a implantação do posto de transformação de distribuição no prédio urbano melhor identificado nos autos, é propriedade da Autora, absolvendo a Ré do demais peticionado.

Apelou a Autora apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
« I- Recorre-se da douta sentença na parte em que determinou absolver a R dos pedidos de
2) condenação da Ré a restituir à Autora o terreno mencionado que ocupou no referido prédio;
3) condenação da Ré a remover o citado posto EDP;
4) condenação da Ré a abster-se de qualquer conduta que impeça, condicione ou diminua o uso e fruição do prédio identificado
II- A nulidade da sentença por excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conhece de questões que não tendo sido colocadas pelas partes, também não são de conhecimento oficioso.
III- Estando decidido o tema único da prova em sentido favorável ao reconhecimento integral do direito da ora recorrente, impunha-se decisão em conformidade, o que não aconteceu constituindo por força da invocada nulidade da sentença por excesso de pronuncia.
IV- O Tribunal a quo numa página da sentença (fls 19) citando um par de sumários de Acórdãos, distantes da questão submetida pelas partes, resolve (mal) a contenda, constituindo-se em excesso de pronuncia.
V- Na estrita necessidade de justificar a sua posição o Tribunal a quo dá como provado que a Câmara Municipal de Faro, em representação do Município, celebrou com EDP Distribuição – Energia, S.A., um contrato de concessão de distribuição de energia elétrica de baixa tensão na área do Município de Faro com base um documento incompleto, não assinado e sem data.
VI- O tribunal a quo daí extrair utilidade pública, não alegada, não submetida à discussão pelas partes, ausente dos temas da prova, que nem é da competência do Tribunal a quo verificar.
VII- O Juiz a quo ao decidir, inopinadamente da forma que fez, sem dar hipótese à parte possibilidade de adequar o seu petitório, violou o dever de cooperação , colaboração e boa fé que deve nortear o principio de imparcialidade e posição super partes constitucionalmente atribuído ao julgador,
VIII- Desvirtuando a teleologia do processo e viciando a decisão final de nulidade.»

Respondeu a Ré alegando que «A Apelação é inepta no que respeita à impugnação da matéria de facto»; que a sentença não é nula e que a mesma deve ser confirmada.
Foi admitido o recurso e dado cumprimento ao disposto no artigo 617.º, n.º 1, do CPC, no sentido da não verificação da arguida nulidade da sentença.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Questão prévia: impugnação da decisão de facto
- Dos fundamentos do recurso:
- nulidades da sentença
- Contrato de concessão de distribuição de energia elétrica

B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão quanto à matéria de facto:
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Com interesse para a boa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
Da petição inicial
1. Encontra-se descrito, sob o n.º 18/20070413, na Conservatória do Registo Predial de Faro, o prédio urbano com a denominação lote D, sito em Gambelas, (então) Freguesia de S. Pedro, Concelho de Faro, com a área total de 1830 m2, composto por edifício de 3 pisos destinado a serviços, confrontando a norte com …, a sul com arruamentos, a nascente com lote 40 e a poente com lote C;
2. Pela apresentação n.º 320, de 2015/10/16, foi averbada a aquisição, por compra, a favor da Autora Bela Infância, Unipessoal, Lda.;
3. O prédio referido em 1. encontra-se inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo 4414, freguesia do Montenegro, Concelho e Distrito de Faro;
4. Encontra-se instalado no referido prédio urbano um posto de transformação de distribuição “PTD FAR 403 Algarvimóvel”, da Ré, que ocupa 23,40 m2;
5. Em data desconhecida, a Câmara Municipal de Faro, em representação do Município, celebrou com EDP Distribuição – Energia, S.A., um contrato de concessão de distribuição de energia elétrica de baixa tensão na área do Município de Faro.
Da contestação
6. A Ré é a operadora de Rede de Distribuição de Energia Elétrica, no território continental de Portugal, sendo titular da concessão para a exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) de Energia elétrica em Média Tensão (MT) e Alta Tensão (AT) e das concessões municipais de distribuição de energia elétrica em Baixa Tensão (BT);
7. O contrato de concessão de exploração da rede de distribuição de energia elétrica em alta e média tensão foi celebrado entre a Ré e o Estado Português em 25 de fevereiro de 2009;
8. Já as entidades antecessoras da Ré exploravam a rede nacional de distribuição de energia elétrica, uma vez que:
i. à HEAA - Hidroeléctrica do Alto Alentejo, S. A. R. L., entre outras, tal como a CEAL - Companhia Eléctrica do Alentejo e Algarve, S. A. R. L., sucedeu a EDP – ELECTRICIDADE DE PORTUGAL, EDP, EP, na sequência da operação de nacionalização de várias empresas do setor elétrico e da criação de uma empresa única;
ii. à EDP ELECTRICIDADE DE PORTUGAL, EDP, EP, veio a suceder a sociedade EDP – ELECTRICIDADE DE PORTUGAL, S. A.;
iii. a EDP – ELECTRICIDADE DE PORTUGAL, S. A. veio a ser objeto de cisão, na sequência do que foram criadas várias sociedades, sendo que, no que respeita à distribuição de energia elétrica, esta atividade ficou distribuída por quatro sociedades, cabendo à sociedade SLE - Electricidade do Sul, S. A. a distribuição no sul do país;
iv. no ano de 2000, as quatro sociedades deram origem à EDP DISTRIBUIÇÃO ENERGIA, S. A., por fusão, passando esta sociedade a ser titular de uma licença vinculada de distribuição e consequentemente concessionária da rede de distribuição em todo o país;
v. Sociedade essa que atualmente se designa de E-REDES – DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE, S.A.;
9. O posto de transformação em causa tem a designação PTD-FAR-403-CB Algarvimovel, tendo sido edificado pelo promotor do loteamento em causa, Algarvimovel – Construções e Obras Públicas, Lda.;
10. Tendo o respetivo espaço para instalação sido disponibilizado pelo promotor do edifício, o qual acedeu à oneração do mesmo;
11. O auto de entrega da infraestrutura à (antecessora da) Ré, lavrado pela promotora do loteamento, Algarvimovel, data de 21/09/1998 e contém os seguintes dizeres:
“ALGARVIMOVEL – Construções e Obras Públicas, Lda., (…) vem fazer a entrega à SLE – ELETRICIDADE DO SUL, SA da Rede de Média Tensão que executou na referida Urbanização, conforme traçado previamente fornecido pela SLE. que se anexa, para que fiquem integradas no património da SLE, de cujas redes de distribuição ficarão a fazer parte (…)”;
12. A infraestrutura foi recebida pela Ré para integrar a rede pública de distribuição de energia elétrica, conforme comunicação dirigida à Câmara Municipal de Faro, datada de 01/06/1999;
13. Em 23/09/1998, a Delegação Regional do Ministério da Economia, informou a (antecessora) da Ré de que a instalação elétrica não carecia de licença.
2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Não se consideraram provados os demais factos relevantes para a decisão da causa, não elencados no rol de Factos Provados, nomeadamente:
Da contestação
a) As anteriores concessionárias da Ré submeteram junto da entidade competente o devido projeto e pedido de licenciamento, com vista à constituição da respetiva servidão.

C- Apreciação das questões suscitadas no Recurso
1. Questão prévia: impugnação da decisão de facto
Na Conclusão V a Apelante alega do seguinte modo: «Na estrita necessidade de justificar a sua posição o Tribunal a quo dá como provado que a Câmara Municipal de Faro, em representação do Município, celebrou com EDP Distribuição – Energia, S.A., um contrato de concessão de distribuição de energia elétrica de baixa tensão na área do Município de Faro com base [n]um documento incompleto, não assinado e sem data.»
Esta alegação – que poderia implicitamente indicar que a Apelante pretendia que o ponto 5 dos factos provados fosse alterado por o tribunal ter feito uma errada valoração do valor probatório deste documento – não pode ser tida como impugnação da decisão de facto, pois a Apelante não expressa essa vontade impugnatória, nem no corpo da alegação, nem das Conclusões.
Ora, a impugnação da decisão de facto é uma faculdade que assiste ao recorrente desde que cumpra os ónus previstos no artigo 640.º do CPC, sendo que, prévia e logicamente, se impõe que emita uma declaração donde decorra que é sua vontade e intenção impugnar a decisão de facto.
Se o recorrente apenas de limita a esboçar uma crítica genérica quanto à valoração de um determinado meio de prova, no caso, documental, sem nada mais dizer, fundamentar ou requerer que satisfaça os ónus impugnatórios previstos no artigo 640.º do CPC, não se pode interpretar o alegado como uma impugnação da decisão de facto.
Aliás, o que resulta da leitura da alegação da Apelante é apenas a invocação de mais um fundamento onde a recorrente estriba a arguição de nulidade da sentença.
Nestes termos, temos por adquirido que a Apelante não impugnou a decisão de facto.
Por outro lado, a natureza particular do documento referenciado pela Apelante determina que a sua força probatória se encontra sujeito prova ao princípio da livre apreciação (artigos 362.º, 363.º, 373.º e 376.º do Código Civil), donde também não existe fundamento para oficiosamente a Relação alterar a decisão de facto em relação ao ponto 5 dos factos provados (artigo 662.º, n.º 1, do CPC).
Consequentemente, encontrando-se estabilizado o quadro factual saído do julgamento em 1.ª instância, é com base no mesmo que são apreciadas as questões inseridas no objeto do recurso.

2. Dos fundamentos do recurso
2.1 Nulidade da sentença
A Apelante vem arguir a nulidade da sentença com base na violação do artigo 615.º, n.º 1, alíneas e) e d), do CPC, que estipulam, respetivamente, que a sentença é nula quando o «juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido» e quando, na vertente de excesso de pronúncia (vertente invocada), o juiz «conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Como é sabido, as nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
O disposto na alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC está diretamente relacionado com o artigo 608°, n.º 2, do CPC, segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
A norma reporta-se ao conhecimento ou à não apreciação das questões (que não meros argumentos ou razões[1]) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa[2]. Na vertente do excesso de pronúncia relaciona-se com o conhecimento ultra petitum.
A diferenciação entre «questões» e «argumentos» ou «razões» é essencial na análise desta nulidade, em qualquer das duas vertentes previstas no normativo.
Já ensinava o Prof. ALBERTO DOS REIS[3]: «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão".
O STJ tem consistentemente decidido, como se lê no sumário do Acórdão proferido em 29-11-2005[4] (reportando-se ao artigo 660.º, n.º 2, do CPC 1961, com total correspondência no artigo 608.º, n.º 2, do atual CPC), que:
«1. A nulidade do acórdão por omissão de pronúncia só acontece quando o acórdão deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão dessa questão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra.
2. O excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conhece de questões que não tendo sido colocadas pelas partes, também não são de conhecimento oficioso.
3. As questões não se confundem com os argumentos, as razões e motivações produzidas pelas partes para fazer valer as suas pretensões.
4. Questões, para efeito do disposto no n.º 2 do art. 660.º do CPC, não são aqueles argumentos e razões, mas sim e apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.»

No mesmo sentido, lê-se no sumário do Acórdão do STJ proferido em 28-03-2023:
«A nulidade por excesso de pronúncia reconduz-se a um vício formal, em sentido lato, traduzido em “error in procedendo” ou erro de atividade que afeta a validade da decisão. Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.»[5]

Decorre assim da lei que, embora impenda sobre o juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, este poder cognitivo está limitado, por um lado, às questões suscitadas pelas partes e, por outro lado, às questões de conhecimento oficioso.

Quanto à nulidade da alínea e) verifica-se quando o Tribunal viola o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância (artigos 5.º e 552.º, n.º 1, alíneas d) e), do CPC) e condena em quantidade superior ou objeto diverso do pedido, ou seja, violando os limites a que se reporta o artigo 609.º do CPC.
Começando a análise pela nulidade arguida em primeiro lugar, a prevista no n.º 1, alínea e) do artigo 615.º do CPC, a alegação da Apelante não pode proceder, porquanto a sentença, para além de declarar que a área do terreno ocupado pelo Posto da EDP é propriedade da Autora, facto que a Ré nem sequer impugnou, não condenou a Ré em relação aos restantes pedidos, absolvendo-a.
Por conseguinte, o dispositivo da sentença por ser absolutório em relação à Ré nunca poderia configurar-se como uma decisão em que o juiz condena em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Quando à arguida nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, invoca a Apelante excesso de pronúncia por a sentença ter conhecido da questão da utilidade pública das instalações da Rede Elétrica de Serviço Público, questão que, no entender da recorrente, não foi discutida pelas partes, nem podia ser oficiosamente apreciada, não constando sequer dos temas da prova, para além da falta de competência do tribunal a quo para a sua apreciação.
Conclui, assim, que a sentença violou o normativo supra referido, bem como os artigos 3.º, 5.º, 547.º e 596.º do CPC, e, ainda, o dever de cooperação, de colaboração e de boa-fé.
Começa-se por referir-se que a questão da competência em razão da matéria se encontra decidida com trânsito em julgado, donde o argumento da falta de competência absoluta do tribunal recorrido não revela neste estado da apreciação da causa.
A causa de pedir da presente ação consubstancia-se na invocação do direito de propriedade da Autora sobre a parcela de terreno onde se encontra implantado o Posto da EDP, sem que a Ré tenha título legítimo para tal ocupação, formulando a Autora pedidos em conformidade com os direitos de uso e fruição do proprietário previstos no artigo 1305.º do Código Civil, o que implica a retirada do objeto que ocupa o imóvel e a abstenção da Ré na prática de atos incompatíveis com diminuição, uso ou fruição daquela parcela do imóvel.
Invocando a Ré que tem título legítimo para tal utilização, seja por existir uma servidão administrativa a seu favor (cfr. artigos 55.º a 80.º da contestação), seja porque a «concessão da distribuição de energia elétrica em média e baixa tensão constituiu, por si só, título jurídico bastante para legitimar a utilização do PDT e a ocupação do espaço onde se acha instalado», como alega no artigo 81.º da contestação.
Sendo assim, uma das questões controvertida que decorre da causa de pedir, dos pedidos e da defesa da Ré é a de saber se a Ré tem título legítimo para ocupação da propriedade da Autora.
O objeto do litígio enunciado aquando da prolação do despacho saneador reflete precisamente a controvérsia dos autos tendo sido indicado como temas da prova se foi «constituída uma servidão administrativa de instalação de uma infraestrutura afecta à rede pública de distribuição de energia a favor da Ré, e em que termos.»
Na sentença recorrida, como prescreve o artigo 607º, n.º 3, do CPC, foram enunciadas as questões que ao tribunal cumpria decidir, constatando dessa enunciação se « (ii) Se deve a Ré ser condenada: a) A remover o posto indicado;
b) A restituir à Autora o terreno que ocupou e; c) A abster-se de qualquer conduta que impeça, condicione ou diminua o uso e fruição do prédio em causa.»
Verifica-se, assim, que a questão da existência de título/ fundamento legítimo para a utilização do PDT e a ocupação do espaço onde se acha instalado foi uma das questões controvertidas enunciadas aquando do despacho saneador e na sentença, na decorrência do alegado pela Autora e pela Ré nas respetivas peças processuais.
Contrapõe a Apelante que a utilização do espaço baseado na utilidade pública das instalações da Rede Elétrica de Serviço Público não constituía questão enunciada nos temas da prova.
Efetivamente ali não se encontrava mencionado e, a nosso ver, bem, porque a questão não é de facto, mas de direito. Saber se a Ré ao abrigo de determinado regime jurídico tem título legítimo para utilizar terreno de outrem ali instalando uma um PDT não é matéria que seja suscetível de apuramento em sede de produção de prova. O que que tem de apurar-se em sede de facto é se a instalação do PDT utiliza e ocupa terreno pertença de terceiro. O título jurídico para tal utilização e ocupação é matéria de direito. Nem se diga que também o é a matéria relativa à servidão administrativa, pois apenas o é desde que provados os requisitos da servidão administrativa e esses encontram-se sujeitos à produção de prova. E não tendo sido provados, foi afastada a existência da mencionada servidão administrativa.
E, sendo assim, em face dos factos provados, mormente dos pontos 5, 6, 9 a 12 dos factos provados, impunha-se ao julgador que fosse apreciado o outro fundamento invocado pela Ré para ocupação e utilização do terreno da Autora nos termos que tinham sido alegados no artigo 81.º da contestação, ou seja, o da utilidade pública.
O que foi analisado e decidido ao abrigo do regime previsto no Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14-01 (ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO SISTEMA ELÉTRICO NACIONAL - SEN) e do Decreto Decreto-Lei n.º 43335, de 19-11-1960, na sua redação atual, considerando a prescrição legal relativa à implantação de instalações elétricas e à constituição de servidões.
Concluindo-se na sentença, a esse propósito, do seguinte modo:
«(…) a própria Autora fez prova da celebração de contrato de concessão de distribuição de energia elétrica de baixa tensão na área do Município de Faro, celebrado entre a Câmara Municipal de Faro, em representação do Município, com a EDP Distribuição – Energia, S.A., (vide ponto 5 da matéria de facto provada), estando tal posto abrangido pelo regime de utilidade pública.
Assim, e como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18/05/2017 (Relator Filipe Caroço, proferido no âmbito do processo n.º 1803/16.0T8LOU.P1), poderemos afirmar que tal concessão, por si só, constitui título jurídico suficiente para legitimar a utilização do posto de transformação em causa nos autos, bem como, por essa via, a ocupação do espaço em que ele ficou implantado.
Mesmo que assim não se entendesse, e na esteira do decidido no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20/11/2003 (Relator Nuno Cameira, proferido no âmbito do processo n.º 03A2743), sempre se diria que “o exercício do direito de propriedade sobre o terreno na parte ocupada pelo posto foi voluntariamente limitado (restringido) pelo respectivo titular antes de se operar a sua transmissão para a esfera jurídica dos autores, e até antes de ser concessionada à ré a distribuição da energia eléctrica: voluntariamente, dizêmo-lo, na justa medida em que constituiu a contrapartida aceite para obter da autarquia, como de facto obteve, o licenciamento do loteamento de toda a parcela que lhe pertencia.”.
Com efeito, e tendo existido transmissão da propriedade em causa nos autos, em 2015, a favor da Autora, sabemos que na aquisição derivada translativa, o direito adquirido pelo novo titular é o mesmo que pertencia ao titular precedente, onerado desde 1998, impedindo assim que a Autora exija a remoção e restituição pretendidas.
De facto, a posse exercida pela Ré é titulada, e continuará a sê-lo enquanto subsistir o contrato de concessão que a (antecessora da) Ré celebrou com o Município (vide artigos 1257.º, n.º 1, 1259.º, n.ºs 1 e 2, e 1263.º, alínea b), do Código Civil).
Pelo que, não sendo tal ocupação e correspondente posse ilegítimas, para além de ser titulada, não se poderá concluir pela violação do direito de propriedade da Autora, restando declarar improcedentes os restantes pedidos da mesma.»

Em face do que vem sendo dito, a sentença analisou juridicamente a questão da utilização e ocupação do terreno da Autora pela Ré ao abrigo da legislação supra citada, concluindo que decorre da mesma que a utilização e ocupação se enquadra no regime de utilidade pública decorrente da celebração de contrato de concessão de distribuição de energia elétrica de baixa tensão na área do Município de Faro, celebrado entre a Câmara Municipal de Faro, em representação do Município, com a EDP Distribuição – Energia, S.A., pelo que não se verifica qualquer violação dos deveres alegados pela recorrente, nem a nulidade por excesso de pronúncia.
Nestes termos, improcede a alegação recursória quanto às nulidades da sentença.

2.2. Do contrato de concessão
Alega a Apelante que o tribunal recorrido baseou a decisão num contrato de concessão consubstanciado num documento incompleto, não assinado e sem data; documento esse que a própria Autora juntou aos autos para questionar se aquele documento corresponde ao contrato de concessão ao abrigo do qual foi colocado o referido PDT.
Não tendo sido impugnada a decisão de facto, como supra se analisou, decorre do ponto 5 dos factos provados que, entre a Câmara Municipal de Faro, em representação do Município, e a EDP Distribuição – Energia, S.A., foi celebrado um contrato de concessão de distribuição de energia elétrica de baixa tensão na área do Município de Faro.
Por outro lado, também decorre dos pontos 9 a 12 dos factos provados que o posto de transformação com a designação PDT-FAR-403-CB Algarvimovel foi edificado pelo promotor do loteamento, tendo disponibilizado o espaço para a implantação do mesmo e sido lavrado auto do entrega da infraestrutura à antecessora da Ré, que a recebeu para integrar a rede pública de distribuição elétrica na área do Município de Faro.
Resultando, assim, desta factualidade que o exercício do direito de propriedade sobre o terreno na parte ocupada pelo referido PDT foi voluntariamente limitado pelo respetivo titular antes de se operar a sua transmissão para a esfera jurídica da Autora (artigos 1305.º e 1306.º do Código Civil).
Consequentemente, o que se verifica na situação em apreço, é que o referido contrato de concessão de distribuição de energia elétrica de baixa tensão na área do Município de Faro, por si só, constitui título jurídico suficiente para legitimar a utilização do posto de transformação por parte da Ré, bem como, por essa via, a ocupação do espaço em que ele ficou implantado, encontrando-se, ademais, voluntariamente onerado o referido espaço por assim o ter sido permitido pelo promotor do loteamento.
Quanto à transmissão da oneração a terceiros, tal como decidido no Acórdão do STJ de 20-11-2003[6], como na aquisição derivada translativa o direito adquirido é exatamente o mesmo que pertencia ao anterior titular, a Autora não dispõe contra a Ré direito que lhe permita exigir a desocupação, sendo a posse exercida pela Ré titulada, pelo menos enquanto subsistir o contrato de concessão supra referido (cfr. artigos 1257.º, n.º 1, 1259.º, n.º 1 e 1263.º, alínea b), do Código Civil).
Nestes termos, nenhuma censura merece a sentença recorrida, improcedendo in totum o recurso.

3. Responsabilidade tributária
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 14-09-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Albertina Pedroso (1.ª Adjunta)
Maria João Sousa e Faro (2.ª Adjunta)

__________________________________________________
[1] Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt
[2] Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. 08S321, em www.dgsi.pt
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 143.
[4] Proferido no proc. 05S2137, disponível em www.dgsi.pt
[5] Proferido no proc. n.º13336/19.8T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[6] Proferido no proc. n.º 03A2743, disponível em www.dgsi.pt