Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
57/19.0T9NIS.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: DIFAMAÇÃO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Quanto ao elemento objetivo do crime de difamação, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o agente imputa à vítima factos desonrosos ou dirige-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração.
II. Quanto ao elemento subjetivo do tipo, é pacífico que o crime de difamação é um crime doloso, traduzindo-se tal elemento subjetivo na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, www.dgsi.pt).
III. O dolo neste tipo legal consiste, assim, no conhecimento e vontade de imputar perante terceiros, factos ou palavras ofensivos da honra e consideração de uma pessoa, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei.
IV. A ação típica deste crime consistirá na divulgação de factos (acontecimentos da realidade), incluindo a suspeição, ou então de considerações (palavras ou expressões) injuriosas, tanto na sua dimensão pessoal, como social.
V. No entanto, tanto os conceitos de honra como de desconsideração não devem estar dependentes da perspetiva ou compreensão que cada um tem dos seus valores “morais” ou “ético-sociais”. Daí que os mesmos devam ser insuflados por aqueles valores que emergem do nosso quadro constitucional (art. 26.º, n.º 1 Constituição da República), que alude ao “bom nome e reputação, à imagem”, como legislativo (v. g. 70.º, n.º 1 Código Civil), nomeadamente aquela que diz respeito à tutela geral da personalidade (“personalidade física ou moral”).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo de Competência Genérica de Nisa, no âmbito dos autos com o NUIPC 57/19.0T9NIS, foi a arguida AA submetida a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.
Após realização de audiência de discussão e julgamento, por sentença de 10 de fevereiro de 2022, o Tribunal decidiu:
“Em face do exposto, julga-se a acusação particular e o pedido de indemnização cível totalmente improcedentes, por não provados, e, em consequência:
1. Absolve-se a arguida AA, pela prática, como autora material, de 1 (um) crime de difamação com publicidade, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 2, do Código Penal.
2. Absolve-se a arguida AA da totalidade do pedido de indemnização cível deduzido pelo assistente.
3. Custas processuais criminais pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.
4. Custas processuais civis pelo assistente, fixando-se o seu decaimento em 100%.
5. Declara-se extinta a medida de coacção de Termo de Identidade e Residência (TIR), ao abrigo do artigo 214.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal.
6. Notifique e deposite (artigos 372.º, n.º 4 e 5, e 373.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).”
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Inconformado com a decisão, o assistente interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
A) Padece a douta decisão recorrida do vício de erro notório na apreciação da prova (artº 410, nº 2, alª c) do CPP), na medida em que faz incorrecta valoração da prova produzida em audiência, dando por não provados factos que não poderiam ser considerados como tal;
B) Tanto mais quanto a convicção do Tribunal “a quo” resulta da incorrecta valoração do depoimento produzido em audiência de julgamento pelos arguida, assistente e testemunhas:
• AA:
no dia 11/01/2022, das 10:25:59 horas às 10:43:02 horas (ficheiro com o nome 20220111102559_1087069_3447675);
no mesmo dia, das 10:44:53 horas às 11:13:12 horas (ficheiro com o nome 20220111104453_1087069_3447675).
• BB, no dia 11/01/2022 das 11:14:15 horas às 12:02:50 horas (ficheiro com o nome 20220111111414_1087069_3447675).
• CC, no dia 18-01-2022 das 10:36:59 horas às 11:33:29 horas (ficheiro com o nome 20220118103659_1087069_3447675).
• DD: no dia 03/02/2022 das 10:15:31 horas às 10:16:34 horas, (ficheiro com o nome 20220203101529_1087069_3447675);
no mesmo dia, das 10:16:35 horas às 11:05:02 horas (ficheiro com o nome 20220203101634_1087069_3447675);
• no mesmo dia, das 11:19:02 horas às 11:19:41 horas (ficheiro com o nome 20220203111902_1087069_3447675).
C) Foi feita prova do elemento subjectivo do crime, porquanto basta a consciência por parte do arguida de que a sua conduta é de modo a produzir essa ofensa.
D) Foi feita prova da violação do Direito Constitucional à reserva da vida privada (artigo 26º, nº 1, da Constituição da República (CR) e artigo 80º, nº 1, do Código Civil (CC)), a actuação da arguida mostra-se genericamente perigosa e suficiente para o preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal do crime de difamação.
E) Pelo que o Tribunal “a quo” deveria ter concluído pela condenação da arguida em pena de multa e, não o fazendo, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que decrete a condenação da arguida, pela pratica de um crime de difamação com publicidade, p. e p. pelos artigos 180º nº 1, e 183 nº 2 do Código Penal, com aplicação de uma pena de multa não inferior a 120 dias.
F) Decidindo de forma diferente, violou a douta decisão recorrida os artigos 180º n º 1, e 183º nº 3, ambos do Código Penal, artigo 26º, nº 1, da Constituição da República (CR) e 80º, nº 1, do Código Civil (CC).
Termos em que deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que condene a arguida AA a pena de multa não inferior a 120 dias.
Assim decidindo, farão VOSSAS EXCELÊNCIAS A COSTUMADA JUSTIÇA!
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A arguida respondeu ao recurso pugnando pelo não provimento do mesmo e formulando as seguintes conclusões:
A) O Assistente interpôs recurso da douta decisão por considerar incorretamente julgados os pontos A, B, C, D, E, F, G, H, I e J dos factos não provados.
B) Enuncia que a convicção do Tribunal a quo resulta de uma incorreta valoração do depoimento produzido em audiência de julgamento pela Arguida, Assistente e testemunhas.
C) Nos presentes autos, não resultara por forma alguma provada qualquer conduta da arguida integrante do tipo de ilícito de que vinha acusada.
D) Aliás, nunca um recurso teve tão pouca razão de ser. A decisão recorrida foi elaborada de forma muito douta, ponderada, criteriosa e sensata. Como tal, só poderá merecer os maiores elogios, afastando-se de qualquer reparo.
E) Foi devidamente analisada a prova produzida, retirando-se as devidas conclusões de acordo com uma cautelosa valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova.
F) A Exma. Sra. Juiz a quo soube apreciar a consistência da versão apresentada, quer pelo Assistente, quer pela Arguida e pelas testemunhas e discernir o que era casual daquilo que verdadeiramente viria a determinar os termos em que a decisão veio a ser proferida, explicando ainda devidamente todo o circunstancialismo da justeza da decisão. Razão e fundamento pelo qual, a Recorrida acompanha a douta sentença com os mais respeitosos cumprimentos, pois a sentença foi muito bem lavrada.
G) Dito isto, alega o Recorrente que, a conduta levada a cabo pela Arguida, nomeadamente, os relatos que a mesma fez em entrevista ao canal televisivo e a respetiva exibição do documento hospitalar, revelam a intenção de rebaixar e enxovalhar o assistente, visando manchar a sua imagem junto da opinião pública. No entanto, não foi produzida prova nesse sentido.
H) Resulta da factualidade assente na douta sentença que, a entrevista dada pela Arguida à TVI, a convite do entrevistador, ocorreu na sequência da entrevista dada pela sua irmã, EE, à SIC, onde a mesma relatou acontecimentos familiares, pouco abonatórios face à progenitora de ambas, bem como episódios traumáticos vividos com o Assistente, sentindo-se a Arguida no dever de restabelecer a verdade dos factos, em defesa da sua mãe
I) Foi nesse contexto e com o único objetivo de defender a honra da sua mãe que a Arguida aceitou realizar a entrevista e, no seu decorrer, recordou algumas das suas memórias de infância - anteriormente expostas pela sua irmã - quando interrogada sobre as mesmas pelo entrevistador FF.
J) O documento hospitalar exibido somente faz menção ao nome do Arguido, não tendo sido exibida qualquer fotografia sua no decorrer da referida entrevista televisa.
K) Mais, o documento não menciona qual a patologia de que padece o Assistente, somente mencionando que o mesmo frequentou a consulta externa no Hospital de Magalhães Lemos, com regularidade entre os anos de 2002 e 2007.
L) Com a exibição do documento hospitalar, a Recorrida pretendeu apenas tentar encontrar uma justificação para o comportamento que o seu progenitor teve para consigo durante a sua infância.
M) A arguida não conhecia, à data, nem conhece atualmente, o que motivou o internamento e acompanhamento psiquiátrico do pai naquela instituição.
N) Note-se, aliás, que a revolta sofrida pelo Assistente somente poderia ter como causa a inveracidade do conteúdo do documento. No entanto, ficou assente na douta sentença que o teor do documento corresponde à verdade.
O) Sustenta o Recorrente que, a Arguida não podia ignorar que a sua conduta era apta a atingir a honra e consideração do Assistente, sendo suficiente a sua consciência relativamente à aptidão insultuosa da conduta e a conformação com essa mesma possibilidade, portanto, o perigo de que o dano da honra pudesse verificar-se.
P) Por sua vez, não se vislumbra, ainda que hipoteticamente, qual a perigosidade que a exibição do documento poderia representar face à honra do Assistente.
Q) A mera referência a uma doença mental que exista (que, salienta-se, não foi feita, apenas reporte ao Hospital), sobretudo com a crescente consciencialização para a importância da saúde mental, não é suscetível de lesar a honra ou ferir a dignidade de alguém, muito menos atentas as circunstâncias do caso concreto.
R) Não se encontra preenchido o elemento subjetivo do crime de que a Arguida vinha acusada, não podendo, face à ausência de prova de facto criminoso, ser condenada pela prática de um crime de difamação com publicidade.
S) Em resumo, todos os argumentos avançados no recurso apresentado pelo Recorrente soçobram, face ao que aqui se deixou devidamente aclarado.
T) A sentença recorrida não merece qualquer censura ou reparo.
U) Deverão, assim, ser julgadas improcedentes as conclusões de recurso apresentadas pelo Recorrente.
TERMOS EM QUE, por tudo o exposto, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo Assistente/ Recorrente, a que ora se responde, e mantendo a Douta Sentença recorrida, farão V. Exas., INTEIRA E MERECIDA JUSTIÇA!
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Também o Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pelo não provimento do mesmo e formulando as seguintes conclusões:
1. Não merece qualquer censura o decidido quanto à matéria de facto considerada provada, por a decisão do Mm.º Juiz a quo se encontrar espelhada na sua livre convicção face à prova produzida em audiência de julgamento (que beneficia da oralidade e imediação), pelo que, sendo aquela decisão uma das soluções plausíveis à luz da experiência comum e estando devidamente suportada na prova produzida em audiência, não deve ser alterada pelo Tribunal de Recurso, devendo manter-se a sentença recorrida nos exactos termos em que foi proferida.
2. Atenta a prova produzida em audiência de julgamento conclui-se que a conduta da arguida visou realizar interesses legítimos, e que tinha fundamento sério, para em boa fé, a reputar como verdadeira, atentas as situações vivenciadas na sua infância.
3. Os factos são episódios da vida privada e familiar do recorrente, da arguida, e da mãe e irmã da arguida não existindo assim qualquer confronto desigualitário entre realidades.
4. Ficou provado que a arguida relatou episódios da sua vida, apresentando um documento que o corroborava e dava motivo à actuação do Recorrente, mas que com isso não tinha a intenção de ofender o Recorrente na sua hora e consideração, nem tinha a consciência da aptidão insultuosa da sua conduta, nem se conformou com essa possibilidade.
5. A sentença do Tribunal a quo, não violou qualquer norma, bem como quaisquer outros preceitos legais/constitucionais ou princípios de direito.
6. Em consonância com as considerações supra melhor expostas, requer o Ministério Público que o Venerando Tribunal mantenha a decisão recorrida, não dando provimento ao recurso interposto pelo Assistente.
Assim, se fará JUSTIÇA!
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido do não provimento do recurso.
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer.
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Em 25 de outubro de 2023 foram os autos redistribuídos à ora relatora.
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Realizado o exame preliminar, por despacho de 27 de outubro de 2023 determinou-se que fossem os autos aos vistos e à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar
No presente recurso, as questões colocadas à apreciação deste tribunal são:
- erro notório na apreciação da prova;
- impugnação da matéria de facto;
- preenchimento dos elementos típicos do crime de difamação com publicidade imputado à arguida.
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- Da sentença recorrida (Factos e Motivação):
“III. FACTOS RELEVANTES PROVADOS
Da prova produzida, resultaram, com relevo para a decisão da causa, provados os seguintes factos:
[Da acusação particular e do pedido de indemnização civil]
1. No dia 25-02-2019, foi difundido pela estação de televisão TVI, no programa Você na TV, uma entrevista dada pela arguida AA, a FF, na qual, e em resposta à pergunta do entrevistador «é verdade que a vossa irmã era obrigada ver pornografia? Quando jovenzinha?», a arguida respondeu: «era verdade, eu também vi».
2. A arguida, naquela circunstância de tempo e lugar, mais afirmou que «eu era uma criança, ver aquilo era imensa confusão, eu queria fechar os meus olhos, eu não queria ver, mas tínhamos que ver, porque se não víssemos (…) sofríamos violência novamente. Nós nunca sabíamos como é que ia acabar o dia… esta é a verdade, nós não sabíamos como é que ia acabar o dia … nunca, às vezes, levamos borradas e não sabíamos porque é que estávamos a viver aquilo… éramos acordas a meio do sono…um terror muito grande… assuntos que a gente não gosta de lembrar, qualquer psicólogo diz que isto é para esquecer… a minha memória leva-me até à infância».
3. Após, questionada pelo entrevistador «porque é que o vosso pai vos punha a ver pornografia?», a arguida respondeu: «eu trouxe um documento que comprova que o meu pai esteve internado no Hospital Magalhães de Lemos», tendo FF acrescentado que tal é um Hospital do Porto para doenças psiquiátricas, e a arguida continuado «esteve lá internado e esteve durante cinco anos em consultas, portanto tudo o que ele disse ou poderá dizer neste momento em diante não tem qualquer ….», tendo o entrevistador afirmado «relevância», e a arguida feito um aceno com a cabeça.
4. O documento em causa foi exibido na televisão de forma legível.
[Mais se apurou]
5. A entrevista que a arguida deu à TVI veio na sequência de uma entrevista dada pela sua irmã EE, cerca de uma semana antes, à SIC, onde a mesma relatou, entre outros temas, que a progenitora de ambas tinha tido um negócio de massagens, o que a arguida entendeu que era ofensivo da honra da sua mãe, querendo esclarecer perante o público que tal não teria sido verdade.
6. Foi o entrevistador, FF, que iniciou a conversa relativamente ao progenitor da arguida, questionando-a sobre o que a sua irmã EE tinha, em datas anteriores, referido à cerca do pai, propiciando as pergunta e respostas referidas nos factos provados n.º 1 a 3.
7. A arguida tem memórias de infância de que o assistente a forçava, a si e à sua irmã EE, a assistir a filmes pornográficos contra a sua vontade; de que o mesmo exercia violência física e psicológica sobre a própria, as irmãs e a sua progenitora; e que tinha consumos excessivos de álcool e estupefacientes.
8. A arguida não convive com o seu progenitor desde os 8 anos de idade, momento em que a progenitora saiu definitivamente da casa de morada de família com as filhas comuns do casal.
9. A progenitora da arguida já tinha saído da casa de morada de família anos antes, quando a arguida tinha meses de idade, tendo vivido numa casa arrendada em Francelos, cuja renda era suportada com a ajuda dos seus irmãos. Nessa casa, além da arguida, das suas irmãs, e da sua mãe, vivia também uma tia da arguida, GG, doente em recuperação. Nessa casa não residia, nem nunca entrou, a testemunha HH, nem a mesma teve algum relacionamento amoroso com a mãe da arguida, sendo somente seu colega de trabalho nos Armazéns Marques Soares. Após, a progenitora da arguida reconciliou-se com o assistente.
10. O assistente foi condenado, por decisão de 28-01-2005, transitada em julgado, no âmbito de um processo que correu termos nas Varas de Competência Mista e Comarca de Vila Nova de Gaia, por um crime de ofensa à integridade física simples, sobre a pessoa de II (nome da mãe da arguida antes de o alterar no registo civil), constando da factualidade provada, inter alia: i) «1. No dia 1 de Maio de 1999, cerca das 19h, na então casa de morada de família da assistente II e do arguido, à data seu marido (…), encontrando-se ambos na sala de jantar, o arguido, por motivos não concretamente apurados, dirigiu-se à ofendida, e, ao mesmo tempo que lhe proferia expressões injuriosas, desferiu-lhe vários pontapés e socos que a atingiram, designadamente, na face, braços, pernas, estômago e região lombar. ii) 2. O arguido agarrou ainda a assistente II pelos cabelos, arrastando-a pela sala. iii) 3. O arguido muniu-se de uma faca de cozinha, apontando-a ao peito da assistente enquanto a mantinha encostada a uma parede, ao mesmo tempo que lhe dizia “rasgo-te de cima abaixo/abro-te toda”. iv) 4. O arguido debruçou a assistente sobre uma janela, mantendo a parte superior do corpo desta inclinada para a parte de fora, ao mesmo tempo que lhe dizia “Vou-te deitar da janela abaixo”. v) 5. A agressão supra descrita apenas terminou porque entretanto chegou ao local a Polícia de Segurança Pública, alertada pela vizinhança».
11. As matérias referidas pela arguida com as frases proferidas e consignadas nos factos provados n.º 1 a 3, já eram do conhecimento público quando a arguida deu a entrevista referida no facto provado n.º 1, por a sua irmã EE já ter falado dos mesmos por ocasião de uma visita sua à Assembleia da República, em contexto não concretamente apurado, e por ter dado entrevistas a revistas nacionais e canais de televisão.
12. As desavenças entre os membros da família da arguida e do assistente são, pontualmente, matéria de publicações periódicas (revistas) que se dedicam a divulgar assuntos da vida quotidiana de pessoas com alguma notoriedade pública, uma vez que a irmã da arguida, e filha do assistente, EE, é conhecida do público nacional pela sua carreira na música e na representação.
13. Os restantes membros da família de EE, nomeadamente a arguida e o assistente, apenas são referidos em publicações de imprensa, ou peças televisivas, de difusão nacional, por referência à sua ligação familiar a EE, vivendo, fora disso, vidas que não captam a atenção pública.
14. A arguida exibiu o documento mencionado no facto provado n.º 3 por, para si, o que quer que tenha levado o pai a ter acompanhamento no Hospital Magalhães Lemos, no Porto, poder estar relacionado com as memórias que tem dos seus referidos comportamentos, sendo a única explicação que encontra para o que qualifica como não sendo o padrão numa relação pai-filha.
15. A arguida não conhecia à data, nem conhece actualmente, o que motivou o internamento e acompanhamento psiquiátrico do pai naquela instituição.
16. O teor do documento referido no facto provado n.º 3 corresponde à verdade, tendo sido usado por JJ, avô da arguida, em sede de contestação no processo n.º 2201/13.2TVLSB, que correu termos na 12.ª Vara Cível de Lisboa, embora não tenha sido concretamente apurado com é que o mesmo chegou à disponibilidade da arguida.
17. No documento referido no facto provado n.º 3 é possível ler o nome completo do assistente. Nem a arguida, nem a peça televisiva, exibiram qualquer fotografia do assistente.
18. O Hospital de Magalhães Lemos, EPE, no Porto, presta cuidados de saúde especializados de psiquiatria e saúde mental, onde também se inclui o tratamento de dependências (de álcool, estupefacientes, entre outras).
19. O assistente padece de patologia do foro psiquiátrico, tendo acompanhamento médico e seguindo terapêutica medicamentosa.
20. Aquando da denúncia, nos serviços do Ministério Público, em 24-04-2019, o assistente identificou-se como «pai da artista EE».
[Quanto às condições pessoais e económicas da arguida]
21. A arguida estudou até ao 9.º ano de escolaridade, e é camaroteira de profissão, auferindo cerca de €700,00 de ordenado base, e €1000,00 considerada a globalidade dos rendimentos. 22. Neste momento, desde de Dezembro de 2021, está a auferir o subsídio de desemprego, no montante de €400,00, reingressando nas suas funções de camaroteira, previsivelmente, em Março de 2022. 23.
Não tem filhos, nem outros dependentes, e reside com a sua progenitora, que trabalha e aufere €665,00, estando presentemente de baixa médica, e auferindo por tal cerca de €400,00.
24. Pagam de renda de casa €450,00 mensais. Não tem créditos ou quaisquer outras despesas mensais fixas.
25. No Certificado de Registo Criminal da arguida não está averbada qualquer condenação.
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IV. FACTOS RELEVANTES NÃO PROVADOS
A. Que a arguida, ao dar a referida entrevista, o tenha feito com a intenção de atingir a honra, bom nome e consideração do assistente, o que aconteceu, uma vez que as referidas expressões e imputações são lesivas da honra, bom nome, e consideração devidas ao assistente. Que tal foi potenciado pela exibição de um documento de internamento no Hospital Magalhães de Lemos, com o esclarecimento de que se trata de um Hospital do Porto de doenças psiquiátricas.
B. Que a arguida procurou galvanizar o estigma das doenças psiquiátricas junto do grande público, e apelidou o assistente, de forma indirecta, de «maluco», ao dizer que «esteve lá internado e esteve durante cinco anos em consulta, portanto tudo o que ele disse ou poderá dizer neste momento em diante não tem qualquer…», esclarecendo o entrevistador «relevância».
C. Que a arguida bem sabia que, usando a TVI para divulgação da sua entrevista, usava meio adequado a facilitar a divulgação da ofensa dirigida ao seu pai, já que a TVI é um grande canal de televisão de grande audiência, pelo que as imputações que fez ao seu pai foram difundidas para um número indeterminado e elevado de pessoas, com a transmissão em directo e em diferido, com exibição do sobredito documento, o que potenciou os efeitos da ofensa.
D. Que a arguida bem sabia que o significado das imputações e expressões que proferiu e a actuação vexatória, desonrosa, humilhante conta o assistente, na comunicação social.
E. Que a arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei, actuando com o propósito de ofender a honra e consideração do assistente, que lhe são devidas.
[Especificamente do pedido de indemnização cível]
F. Que a arguida, com a actuação descrita, vilipendiou e depreciou o assistente, no seu valor aos olhos da comunidade nacional, e que a mesma pretendesse macular a honra, bom nome e consideração que são devidos ao assistente.
G. Que o assistente se tenha sentido vexado, amargurado, envergonhado, humilhado e estigmatizado com a conduta da arguida.
H. Que sobre o assistente paire a injusta suspeição, porque falsa, veiculada pela comunicação, de ser o pai que violentou as filhas, o que o persegue e o faz viver em sofrimento e indignação. I. Que, por causa do comportamento da arguida, o assistente viva a maior parte do seu tempo resguardado do contacto social, estando limitado na sua liberdade, com receio da confrontação com populares motivada por ódios cultivados pela comunicação social, tendo-se resguardado em Nisa, onde veio residir longe dos olhares recriminadores das pessoas do Porto, de onde é natural, e de Lisboa, onde residiu alguns anos.
J. Que na sequência da entrevista da arguida, e por causa dela, o assistente ou os seus familiares, nomeadamente a sua companheira e o filho desta, tenham sido abordados na rua por populares de Nisa reportando-se ao abordado pela arguida na entrevista.
K. Que HH tenha vivido, em relação análoga à dos cônjuges, entre cinco a seis anos com a mãe da arguida, criando AA como se fosse sua filha, numa casa em Francelos, por si arrendada e da qual suportava os custos.
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Nada mais se provou com relevo para a causa, pelo que a matéria alegada e não elencada é irrelevante, conclusiva ou relativa a questões de direito.
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V. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO — MOTIVAÇÃO
A convicção do Tribunal ancora-se na análise crítica da prova, in casu:
i. Declarações da arguida: que esteve presente na audiência de julgamento e prestou declarações quanto aos factos e esclareceu as suas condições pessoais e económicas.
ii. Declarações do assistente, BB.
iii. Depoimentos das testemunhas arroladas pelo assistente e pela arguida: DD, companheira do assistente; CC, filho do companheiro da assistente; HH, conhecido do assistente; KK, mãe da arguida; LL, tia da arguida.
iv. Documentos juntos aos autos: auto de denúncia, fls. 1 a 2; ficheiro de vídeo, entrevista à TVI, fls. 80; sentença condenatória criminal, junta com a contestação a fls. 403 a 418; Certificado de Registo Criminal da arguida, emitido pela última vez em 03-01-2022, ref. 31399466.
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A arguida, nas suas declarações, que se reputam de sinceras, perante a forma como foram expressas, com abertura e respondendo, calmamente, às questões que lhe foram colocadas por todos os intervenientes processuais, confirmou que deu a entrevista à TVI, e que proferiu as frases que lhe são imputadas na acusação particular e se levaram à factualidade provada entre 1 e 3. Tal é, de igual modo, susceptível de ser confirmado pela análise do ficheiro de vídeo, entrevista à TVI, fls. 80. Tem-se, por isso, como provada a matéria listada nos factos provados n.º 1 a 4. Também da análise do ficheiro se pode retirar o que levou à factualidade provada em 6 (o que foi manifestado, de igual modo, por todas as testemunhas à excepção de HH).
Também pelas declarações da arguida se têm como provados os factos concernentes às suas condições pessoais e económicas, factos provados n.º 21 a 24, merecendo colhimento as suas declarações.
O facto provado n.º 10 advém da sentença condenatória junta com a contestação a fls. 403 a 418.
O facto provado n.º 20 deriva da análise do auto de denúncia, fls. 1 a 2; e o facto provado n.º 25 do Certificado de Registo Criminal da arguida, emitido pela última vez em 03-01-2022, ref. 31399466.
No demais, a restante factualidade, elencada nos factos provados 5; 7 a 9; 11 a 19; e como não provados listados em A a K, é assim qualificada pela conjugação das declarações da arguida e do assistente, conjugados com os depoimentos das testemunhas, conforme se passará a analisar de seguida.
Questionada quanto aos seus motivos, a arguida avança que apenas deu a entrevista em causa por a sua irmã, EE, ter dado uma entrevista a um canal concorrente cerca de uma semana antes, onde, além de abordar outros assuntos, também imputou factos à progenitora de ambas que a arguida entendeu que ofendiam a honra da mãe.
No que especificamente concerne à exibição do documento, a arguida aduz que entendeu que o mesmo era relevante por oferecer o que para si é o único contexto possível, ou nas suas palavras para «justificar o injustificável», de um comportamento, por parte do assistente, que reputa por não ser «normal», e que por tal o assistente só não podia estar consciente dos seus actos.
Afirma, por isso, que aceitou o convite para ir à TVI (não tendo por hábito dar este tipo de entrevistas), porque sentiu que devia, cita-se «repor a verdade», o que implicaria falar da sua infância e também lateralmente do seu progenitor.
Nega que tenha concedido a entrevista apenas para falar do seu progenitor, e que em momento algum foi seu objectivo difamar o assistente ou diminui-lo; que não via o assistente há praticamente 22 anos (desde os seus 8 anos de idade), ou seja desde a data em que a sua progenitora saiu da casa de morada de família, mas que as suas memórias de infância são de que o mesmo a obrigava, a si e às suas irmãs, a ver pornografia, sob pena de as violentar, e que se recorda, de igual modo, de o mesmo ter, à sua frente, consumos excessivos de álcool e drogas, e de ser violento com a sua progenitora.
A versão da arguida é confirmada pela sua progenitora, a testemunha KK, anteriormente chamada de II, mas que alterou o seu nome no registo civil, também, diz, pela associação a todas estas polémicas.
No que concerne à sua vivência com o assistente, narra, em síntese, que acha credível o que as filhas AA e EE relatam, mormente no que concerne ao facto de o assistente as obrigar a ver pornografia enquanto crianças, porque, diz, o mesmo, nessa altura, também a obrigava a ela, sua mulher, a fazê-lo—embora só tenha sabido desses factos em relação às filhas após as mesmas serem adultas, quando EE falou do assunto pela primeira vez.
Disse que esteve casada com o assistente desde 1982, embora se tenham separado por duas vezes, a última delas em 1999 e a primeira por volta de 1992, tendo a arguida 9 meses de idade.
Essas separações, aduz, devem-se ao facto de ter sido vítima do que hoje seria apelidado de violência doméstica por parte do assistente, ainda tendo marcas no corpo, nomeadamente na testa, no nariz, e tendo perdido alguns dentes. Afirma que tentou inicialmente esconder as marcas, mas que as suas irmãs acabaram por ter conhecimento, descrevendo um episódio em que se procurou esconder de uma irmã no seu local de trabalho, e que às vezes fugia para casa da sua irmã LL.
Confirma, de igual modo, os hábitos de consumos etílicos excessivos e de estupefacientes, tal como relatados pela arguida.
Negou peremptoriamente alguma vez ter tido alguma relação amorosa com HH (que se analisará melhor infra), o qual, segundo a própria, era somente seu colega de trabalho nos Armazéns Marques Soares, e que até chegou a recorrer à sua ajuda, por ser uma pessoa que apelida como sendo da noite, para, à data, saber se o seu marido (assistente) era visto por bares do Porto com outras mulheres.
Nega ter vivido com a testemunha ou dependido economicamente da mesma, e que a renda da casa de Francelos era paga pelos seus irmãos LL e ZZ, nunca tendo tão pouco a testemunha lá entrado, e que, além de si e das suas filhas, morava lá a sua irmã YY, que recuperava de uma doença, sendo uma casa pequena.
Quanto à entrevista, diz que não sabia que a filha a ia conceder antes do facto, mas que sabe que a mesma estava a reagir a uma entrevista da irmã EE, querendo repor a verdade sobre si, pois nunca teve casas de massagens, e que a filha AA é uma pessoa humilde e recatada, que gosta de passar despercebida.
LL, tia da arguida, e irmã da sua progenitora, disse que a sobrinha lhe contou antecipadamente que ia conceder a entrevista à TVI, por causa do que a irmã EE tinha dito da mãe, quanto às casas de massagens, o que a teria revoltado muito.
Confirmou ter visto, ao longo da relação da sua irmã com o assistente, marcas no seu corpo e que sabia que era o mesmo que as fazia, que a sua irmã tinha muito medo do assistente, e que procurava uma forma de sair de casa sem perder as filhas; narrou que por causa disso a sua irmã tentou o suicídio; confirmou de igual modo que ajudou, com o seu irmão ZZ (que passava os cheques), a pagar a renda da casa de Francelos, onde também vivia a sua irmã YY, e que a encontraram numa imobiliária da Avenida de Gaia, não tendo lá residido mais ninguém.
Por sua vez, o assistente confirmou ter assistido à entrevista em directo, o que lhe causou muito incómodo, sentindo-se mal, por sofrer do coração, e que a sua formação salesiana não lhe permite tão pouco conceber fazer a alguém aquilo que a arguida lhe imputou, como violentar filhas ou obriga-las a ver pornografia, pelo que o que a arguida disse é mentira, e que apenas divulgou o documento (cujo teor confirma ser verdade) para o humilhar.
Afirma ter-se refugiado em Nisa desde Setembro de 2018, por ser uma vila tranquila, e antes ter vivido cerca de quinze anos no Brasil, evitando desse modo as grandes cidades onde afirma que era abordado por muitas pessoas. Aduz ainda que foi muito prejudicado por lhe imputarem estes factos, não tendo sido a arguida a primeira pessoa a fazê-lo (já tendo o mesmo sido feito por EE), o que o levou, inclusivamente, a perder empregos no Brasil.
Afirma que sente os olhares das pessoas na rua, e que antes da entrevista já não se vinha falando do tema há algum tempo, tendo a acção da arguida suscitado novamente atenção ao caso (afirmando não ter conhecimento que EE tinha dado uma entrevista na semana anterior), e que chegou mesmo a ser abordado por algumas pessoas, ainda que não concretizando quem, nem de que modo tal se relaciona com a entrevista da arguida, uma vez que tais abordagens se prenderão, segundo o próprio, com questionamento se é pai de EE. Nega, de igual modo, que alguma vez tenha sido destratado na sequência dessas abordagens de desconhecidos.
Aduz que, pela exibição do documento, se tornou possível a sua identificação, porque o mesmo tinha o seu nome completo, o que leva a que seja sempre reconhecido quando se dirige a organismos públicos e se tem de identificar, como por exemplo o tribunal, o registo civil ou a junta de freguesia, e que aparecem notícias deste tipo quando se coloca o seu nome no Google.
Confirma que padece de uma patologia do foro psiquiátrico, e que tem acompanhamento devido, seguindo terapêutica medicamentosa, e que é sua convicção que a arguida o quis humilhar pela sua doença, apelidando-o de «maluco», o que o entristeceu e causou mágoa.
Nega alguma vez ter tido consumos excessivos ou dependência de álcool e estupefacientes.
No que concerne à sua relação com a arguida, o assistente confirma o relatado pela mesma, que não têm qualquer relação, nem se falam, desde que a progenitora de AA saiu de casa, acompanhada da mãe.
A testemunha CC, filho da companheira do assistente, afirma que conheceu o mesmo em 2004, quando tinha 11 ou 12 anos de idade, e que viveram juntos desde então até aos seus 14 anos, momento em que o assistente e a sua mãe foram viver para o Brasil (mas que mesmo assim mantiveram contacto próximo), caracterizando o assistente como sendo uma pessoa estável, que foi como um pai para si e que o ajudou nas dificuldades da sua vida, pelo que não se revê em nada do que a arguida disse.
Diz que mais tarde veio a saber que o assistente tem uma doença psiquiátrica, mas que nunca o viu descompensado, e que nunca o viu a consumir álcool e drogas.
Na sequência da entrevista afirma que o assistente ficou abalado, que tirou uma semana de férias para lhe vir prestar apoio, e que ele sofre muito com acusações deste tipo, motivo pelo qual se veio refugir em Nisa.
Nessa semana após a entrevista, diz, estava com o assistente e com a sua progenitora no Intermarché a tomar café, e que na mesa ao lado alguém terá reconhecido o assistente e terá dito «é ele, é ele», o que os levou a sentirem-se muito observados e a saírem rapidamente do local. Não ouviu o nome da arguida, nem qualquer referência à entrevista.
No que concerne à relação do assistente com a arguida, a testemunha não tem qualquer conhecimento directo, pois não conhecia ambos na infância da arguida. Questionado sobre se sabia se o assistente tinha sido condenado em algum processo, a testemunha disse não saber e não lhe dizer respeito.
DD, unida de facto do assistente desde 2004, confirmou, em síntese, o percurso de vida do mesmo; que foram viver para o Brasil em 2007 e até 2018; que tiveram muitos problemas com as entrevistas da EE; e que o assistente não tem contacto com a arguida há cerca de 20 anos.
No que concerne à doença psiquiátrica do assistente, a testemunha diz que sabe da mesma e que não nota sinais, pois está controlada; que nunca lhe conheceu problemas de alcoolismo ou dependências de drogas; e que nos anos em que viveram no Brasil até foram pais sociais de algumas crianças a convite do Prefeito.
Quanto à condenação por ofensas a integridade física da ex-mulher, a testemunha diz ter tido conhecimento, por o próprio assistente lhe ter contado, momento em que também terá contextualizado essas atitudes, e que nunca foi vítima de violência doméstica por actos perpetrados pelo companheiro.
Afirma também ter visto a entrevista da arguida, e concorda com o assistente que o seu objectivo era o de humilhar e estigmatizar a doença mental.
A partir da data dos factos, diz, a vida de ambos mudou muito, tendo sido abordada na tabacaria (perguntaram-lhe se o assistente era o pai da EE, tendo na segunda data em que foi ouvida dito que lhe perguntavam se era o pai da AA e da EE) e sentindo-se olhada de outra forma; que no Intermarché a senhora que trabalhava na caixa de pagamento a tratou pelo nome, apesar de nunca lho ter dito, e que a olhava de modo diferente; e que no seu local de voluntariado, um Lar de terceira idade, a directora do mesmo a chamou por duas vezes ao seu gabinete, fazendo-lhe perguntas sobre as acusações que eram dirigidas ao seu companheiro (após uma utente ter comprado uma revista que tinha esses temas na capa), e que nunca mais o mesmo foi chamado para fazer pequenos biscates, como até então.
De igual modo, relata, no Centro de Saúde, a certa altura em Junho ou Julho de 2020, a sua médica de família disse-lhe que se fosse vítima de violência doméstica podia contactá-la, tendo-lhe depois sido marcada uma consulta para esse efeito, o que deixou a testemunha confusa quanto aos motivos. DD invoca ainda que a senhora que trabalha no Centro de Saúde tem maus modos para o seu companheiro desde a entrevista, o que associa aos rumores de que tenha praticado factos como os de que a arguida o acusa.
Fazem, por isso, diz, uma vida recatada, com receio de serem abordados na rua, e que antes das entrevistas as situações sobreditas nunca tinham acontecido.
Questionada quanto ao episódio do Intermarché narrado pelo seu filho, a testemunha disse não ter memória de alguém ter dito «é ele, é ele», somente de terem sido olhados de forma que reputa de diferente. Concretizou ainda que se lembra muito bem de, nesse dia, ter ido comprar ração de gato (por motivos que não concretizou) e que estaria a pagar a mesma quando tal possa ter acontecido (apesar do seu filho ter descrito que estavam a tomar café os três).
Por fim, o assistente arrolou como testemunha HH, que se identificou como conhecido do primeiro, mas não seu amigo, e que espontaneamente apresentou uma narrativa, bastante pormenorizada, cuja peça central era um alegado caso extraconjugal que teria tido com a progenitora da arguida, Sra. II (agora com o nome KK), com quem, afirmou a testemunha, viveu uma vida dupla durante quase seis anos, dado que era casado, residindo com a Sra. II durante o dia e com a sua cônjuge durante a noite.
Concretizou que, nesse período, viveram numa casa arrendada em Francelos, que era o próprio que assumia a renda (de sessenta contos), e que sustentava a arguida, a sua progenitora e irmãs da arguida.
Aduz que conheceu melhor o assistente entre os anos de 1990 e 1996, anos em que durou a sua relação extraconjugal com a ex-mulher do mesmo, e progenitora da arguida, que criou a arguida como se fosse seu pai até aos cinco ou seis anos de idade, e que durante esse período observou o assistente, que, diz, ia àquela casa todos os dias, a ser uma pessoa pacata, que não se envolvia em conflitos, e que ia sempre lá a casa ver a filhas e que as levava a conviver com a família, quase que a mendigar a atenção das filhas, por a progenitora não permitir convívios.
Acrescentou que tinha pena do assistente, e que se arrepende muito do que lhe fez, por se ter envolvido com a sua mulher, que sempre lhe disseram que o próprio é que era o verdadeiro pai da arguida, e que mais tarde veio a agradecer muito ao assistente por ter reconquistado a ex-mulher. Assevera que o assistente é uma boa pessoa, e que se separou muitas vezes da mãe da progenitora por a mesma ter muitos homens na sua vida.
No que concerne à factualidade dos autos, a testemunha HH nada sabia, tão pouco indirectamente, pois sempre se referiu aos actos da arguida como tendo sido uma entrevista a uma revista, em formato escrito.
Afirmou ao tribunal que o assistente lhe confidenciou que estava muito magoado com a arguida, que lhe tinha causado muita tristeza. Perguntado se era amigo do assistente, para ser seu confidente, negou-o, dizendo que apenas falam no Facebook pontualmente e, cita-se, «sobre os processos», tendo dito inicialmente que o assistente lhe pediu que fosse sua testemunha.
Ora, concatenada todos estes contributos probatórios, há que, desde logo, dizer que não merece qualquer credibilidade a testemunha HH, que se apresentou com um discurso focado na progenitora da arguida, sem qualquer relevância para o assunto dos autos, e que confirmou, a perguntas do Tribunal, que o assistente lhe pedia para vir depor em Tribunal, e que falavam somente pontualmente e sobre coisas de processos em Tribunais.
A mãe e a tia da arguida prestaram declarações totalmente contraditórias com as de HH, conforme exposto, e que, sopesadas, merecem credibilidade, por serem compatíveis entre si e de acordo com a restante narrativa da vida do assistente e da progenitora da arguida.
KK estava separada do assistente, pelo que nunca seria, em rigor, um caso extraconjugal para si. Ainda que não o estivesse separada, não assume qualquer relevância que a testemunha se tivesse envolvido com outros homens, casados ou não, pelo que não se percebe qual seria o objectivo da testemunha HH, que nada sabia sobre os factos de que a arguida está acusada, que não o de procurar denegrir a imagem da progenitora da arguida, ao apresentar a narrativa do modo que fez.
A testemunha prestou juramento e foi advertida de que era obrigada a falar com verdade. Ainda assim, apresentou uma exposição que, atenta a factualidade provada, só se pode reputar de fantasiosa, apesar de elaborada, atentos os pormenores avançados. Tem-se, por isso, por provado o facto n.º 9 e por não provado o facto K.
No que concerne aos motivos da arguida para dar a entrevista à TVI e quanto ao seu teor, a mesma deu a justificação que se levou à factualidade provada em 5, 14 e 15, tendo-se, por tal, por não provada a matéria consignada nos factos A a J, uma vez que, concatenados todas as versões, se entende que não foi produzida prova que a arguida tivesse intentos difamatórios, uma vez que a sua entrevista se seguiu a uma entrevista da sua irmã EE, em que foi afirmado que a progenitora teria tido um negócio de casa de massagens (a que se associou, como transpareceu dos depoimentos testemunhais, actividade de prostituição), e arguida se limitou a responder, no segmento relevante para os autos, a perguntas do entrevistador relativas às suas memórias de infância em relação ao pai.
Essas memórias de infância—facto provado n.º 7—foram corroboradas pelas suas familiares, mãe e tia, merecendo credibilidade o que foi afirmado pelas três pela total espontaneidade do seu discurso, encadeamento lógico e consistência uns perante os outros, como se pode confirmar pela exposição supra, sendo, além disso, compatíveis com outros elementos dos autos, desde logo a sentença condenatória criminal, junta com a contestação a fls. 403 a 418.
Nessa sentença, apesar de os factos praticados pelo assistente estarem qualificados como ofensa à integridade física simples, transmitem uma violência extrema, consonante com as descrições feitas pela arguida, pela sua tia, e sobretudo pela sua progenitora—uma pessoa que, pelo modo como fala e narra a sua vida, se consegue perceber que viveu e ainda vive em grande sofrimento pelo que associa à vivência violenta com o assistente.
Nem a companheira do assistente, DD, nem o seu filho, CC, conheciam a arguida e o assistente durante a infância da primeira, pelo que a suas experiências com o assistente, reputando-o como um homem pacato, em nada invalidam o que, muitos anos antes, outras pessoas, como a arguida e a sua mãe, possam ter experienciado com o mesmo.
Não se ignora, de igual modo, que as testemunhas sobreditas, apesar de nunca terem convivido com a arguida e de não a conhecerem, manifestaram sentimentos de grande repulsa quanto à mesma (salientando-se que CC, pelo menos por duas vezes, se referiu à família da arguida, denotando desdém, como «essa gente», o que levou a que fosse advertido pelo Tribunal), o que se atribui, como será natural, à sua ligação afectiva ao assistente, pelo que os seus depoimentos se pautam por serem fortemente parciais, e, por isso, frágeis.
As testemunhas, tal como o assistente, quiseram relataram uma vivência em Nisa totalmente diferente por força da conduta da arguida, mas não conseguiram concretizar qualquer mudança relevante, não sendo suficiente as interpretações subjectivas que fazem do comportamento alheio (como olhares em estabelecimentos comerciais; ou maus modos de pessoas no centro de saúde), nem é possível reconduzir mesmo esses eventos, precisamente, ao comportamento da arguida, pois as próprias testemunhas, espontaneamente, referem-se a esta questão, salvo por vezes quando perguntadas mais directamente, como um todo, ou seja, o facto de se falar destes assuntos desde que EE se referiu a eles primeiramente e de, pontualmente, irem sendo difundidos nas revistas.
Também não se ignora que o evento que CC relatou como se tivesse sido um momento muito relevante na vida do assistente e DD (ter sido identificado por «é ele, é ele» no Intermarché uma semana após a entrevista), tão pouco foi referido pelo primeiro, e a segunda disse não ter memória da frase, mas que se lembra perfeitamente que esteve a comprar ração de gato, nesse dia, há três anos atrás, o que manifestamente não merece qualquer credibilidade, de acordo com as regras de experiência e da normalidade, não se encontrando um fundamento plausível para a testemunha fazer essa menção tão particular, se nem se recorda da frase que o seu filho referiu, o que teria sido mais marcante e faria mais verosimilmente lembrar o que lá foi fazer nesse dia.
Por fim, tem-se como provado que o assistente e a arguida não convivem há mais de vinte anos, desde que a segunda tinha oito anos de idade. São, por isso, completamente estranhos um para o outro, pelo que a imputação que o assistente faz à arguida, quanto à sua intenção de humilhar e estigmatizar a doença mental, provém, somente, da sua interpretação subjectiva dos comportamentos da sua filha, partilhada com a sua companheira.
A arguida, como se disse, perguntada, contou a sua história de vida, de acordo com aquilo que acredita recordar-se, e apresentou um documento que, para si, poderia ser uma razão para o progenitor ter tido atitudes que reputa como sendo fora do padrão nas relações pai-filha. Demonstrou, com sinceridade credível, que esse é o argumento em que acredita, porque, diz, não vê outra explicação para o que aconteceu consigo e para o pai agir daquela maneira.
A arguida não imputou ao assistente qualquer nome como «maluco», não o insultou de outro modo, nem indirectamente, sendo a conclusão da estigmatização da doença mental tecida somente na própria acusação particular. Tão pouco, salienta-se, foi a arguida que utilizou a palavra «relevância», mas sim o entrevistador.
A referência a que o Hospital Magalhães Lemos trata doenças psiquiátricas foi também feita pelo entrevistador, e mesmo que fosse feita pela arguida, tal não é, nem em abstracto, susceptível de humilhar ninguém, nem se provou que fosse essa a intenção da arguida, que, salienta-se, inclusivamente vive com a sua mãe, que afirmou em Tribunal padecer de depressão profunda, e que, como já se disse, tentou o suicídio, pelo que, quer convocadas as regras da experiência e da normalidade, quer olhando às circunstâncias do caso concreto, não se pode deslindar que a arguida tivesse intenção de vexar o assistente por referência à doença mental, manifestando até a mesma alguma compreensão e procurando justificar desse modo os seus actos.
A matéria vertida nos factos provados n.º 11 a 13; 17 e 18 foram, em geral, narrados e aceites por todas as testemunhas, salvo HH, assim como pela arguida e pelo assistente; e a matéria dos factos provados n.º 16 e n.º 19 foi admitida pelo assistente, e corroborada por DD.”
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Apreciando
- Do invocado erro notório na apreciação da prova- art.410º, nº2, al.c), do CPP.
Como vem sendo entendido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: pelo âmbito, mais restrito, dos vícios formais previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que o art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma se refere.
O disposto neste art.º 410.º, n.º 2, refere-se aos vícios da matéria de facto fixada na sentença, o que não se deve confundir com os vícios do processo de formação da convicção do tribunal no apuramento e fixação da matéria de facto na sentença.
É por isso que esses vícios têm de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo.
São, pois, vícios decisórios, de conhecimento oficioso, que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e cuja verificação há de necessariamente ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma (cfr., Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., pág.873, e Germano Marques da Silva, Co urso de Processo Penal, Vol.III, 2ª Ed., pág.339).
Diga-se, desde já, que o recorrente se limita a alegar nas conclusões A) e B): “ ) Padece a douta decisão recorrida do vício de erro notório na apreciação da prova (artº 410, nº 2, alª c) do CPP), na medida em que faz incorrecta valoração da prova produzida em audiência, dando por não provados factos que não poderiam ser considerados como tal; B) Tanto mais quanto a convicção do Tribunal “a quo” resulta da incorrecta valoração do depoimento produzido em audiência de julgamento pelos arguida, assistente e testemunhas”, sem que concretize em que se traduz tal erro notório na apreciação da prova.
Porém, sendo tal vício decisório de conhecimento oficioso, vejamos:
O vício de erro notório na apreciação da prova só existe quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal, ou seja, quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos, isto é, quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum.
Para ser notório, tal vício tem de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias ou das “legis artis”, ou ainda das regras da experiência comum, ou que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro é notório quando for ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol.III, pág.341).
Verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis ( Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5ª edição, pgs..61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe, assim, quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., pág.341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74), não se verificando tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Porém, analisando a sentença recorrida, não se deteta na matéria de facto considerada assente qualquer erro notório na apreciação da prova.
Com efeito, analisando tal decisão, é manifesto que a mesma está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
Assim, não obstante o recorrente imputar à decisão recorrida tal vício formal, não só não o concretiza, sendo as suas conclusões de recurso – com que delimita o âmbito de conhecimento deste Tribunal – completamente omissas quanto ao mesmo, como na respetiva motivação logo denuncia que o seu real inconformismo visa o modo como o Tribunal de 1ª instância apreciou e valorou os meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
Realmente, quanto ao vício, a que alude o art. 410º, n.º 2, al.c) do CPP, seria suposto que a impugnação deduzida incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário, não no chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável. Tratar-se-ia, nessa vertente, de saber se na decisão recorrida se reconhece qualquer vício, necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efetuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respetiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.
Nesse e nos demais aspetos versados no recurso, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente não se conforma com a circunstância de o Tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos factos que lhe era desfavorável sobre a matéria de facto, pois que, o que verdadeiramente ilustra toda a impugnação do recorrente nesta vertente é apenas o seu inconformismo pela absolvição da arguida, aí fazendo radicar o aludido vício que aponta à decisão recorrida e que expressamente apoda de erro notório na apreciação da prova.
Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida o vício (formal) que o recorrente lhe assaca, pois não se vislumbra que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer principio jurídico ou as regras da experiência comum.
Destarte, é forçoso concluir, face à argumentação, que o recorrente invoca a existência deste vício fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto da sentença recorrida, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
Por conseguinte, improcede a deduzida invocação do vício formal.
*
- Do erro de julgamento.
Como se disse, a verdadeira pretensão do recorrente dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando ter a arguida sido incorretamente absolvida por não terem sido devidamente valoradas meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
Porém, nesta decorrência, limita-se a alegar na conclusão B: “ B) Tanto mais quanto a convicção do Tribunal “a quo” resulta da incorrecta valoração do depoimento produzido em audiência de julgamento pelos arguida, assistente e testemunhas:
• AA:
no dia 11/01/2022, das 10:25:59 horas às 10:43:02 horas (ficheiro com o nome 20220111102559_1087069_3447675);
no mesmo dia, das 10:44:53 horas às 11:13:12 horas (ficheiro com o nome 20220111104453_1087069_3447675).
• BB, no dia 11/01/2022 das 11:14:15 horas às 12:02:50 horas (ficheiro com o nome 20220111111414_1087069_3447675).
• CC, no dia 18-01-2022 das 10:36:59 horas às 11:33:29 horas (ficheiro com o nome 20220118103659_1087069_3447675).
• DD: no dia 03/02/2022 das 10:15:31 horas às 10:16:34 horas, (ficheiro com o nome 20220203101529_1087069_3447675); no mesmo dia, das 10:16:35 horas às 11:05:02 horas (ficheiro com o nome 20220203101634_1087069_3447675);
• no mesmo dia, das 11:19:02 horas às 11:19:41 horas (ficheiro com o nome 20220203111902_1087069_3447675).”, sem que, todavia, concretize os elementos probatórios que impõem, a este respeito, decisão diversa.
Vejamos, então.
Nos termos do disposto no artigo 428.º do Código de Processo Penal, «as relações conhecem de facto e de direito».
Tal constitui uma concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto - reapreciação por um Tribunal superior das questões relativas à ilicitude e à culpabilidade.
O recurso em matéria de facto não constitui, contudo, uma reapreciação total pelo Tribunal de recurso do complexo de elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas poderá ter como objeto uma reapreciação autónoma do Tribunal de recurso sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o Recorrente considere incorretamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do Recorrente, imponham decisão diversa da recorrida ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova (cfr. Ac. do STJ de 20.01.2010, in www.stj.pt/jurisprudência/sumáriosdeacórdãos).
O recurso da matéria de facto perante a Relação não é, assim, um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando -se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros.
“O julgamento efetuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar” (cfr. Ac.STJ, de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª”.
Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º., nº.1 do CPP).
Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, como decorre do disposto no disposto no art.412º. nº3 do CPP.
Para corretamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorretamente julgados, na sua perspetiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorreções na forma como foi apreciada a prova.
E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efetivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspetiva subjetiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada ou não provada.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjetivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objetiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica. com suporte em concretos argumentos e elementos de prova objetivos.
É segundo esta perspetiva que hão de ser apreciados os factos provados e não provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles; o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma apreciação arbitrária, caprichosa ou discricionária da prova produzida.
Analisemos, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada.
A convicção formada pelo tribunal a quo foi sustentada no exame crítico, à luz das regras da experiência, de toda a prova produzida,
Com efeito, a decisão factual da primeira instância foi assente numa convicção adquirida, em grande medida, através da livre apreciação das provas. O que significa que essa convicção, objetivada numa fundamentação perfeitamente compreensível, uma vez que foi obtida com os benefícios da imediação e da oralidade e exprime a opção por uma das soluções consentidas pela razão e pelas regras de experiência comum, apenas poderia ser afastada se ficasse demonstrada a inadmissibilidade da sua formação, à luz das mesmas regras.
Verifica-se, assim, ter o Tribunal a quo valorado as provas e atribuído credibilidade aos dados assim obtidos, pela explicação que deles fluiu e por lhes terem parecido lógicos e conformes com a realidade e as regras da experiência comum.
Nesta conjuntura, a censura endereçada a uma tal convicção não pode ter sucesso se alicerçada apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida e avaliada de modo parcial e/ou descontextualizado.
Ora, não podemos deixar de assinalar que o recorrente, apenas colocando em causa a convicção formada pelo Tribunal de 1ª instância, visa a realização de um novo julgamento da matéria de facto. Na verdade, a discordância do recorrente prende-se apenas com as razões dessa convicção, sendo certo que, em sede de avaliação da credibilidade das declarações e depoimentos, o Tribunal a quo teve a seu favor a relação de imediação, traduzida no contacto pessoal e direto com os diversos meios de prova.
O recorrente, para concluir que os factos que refere não poderiam ter sido considerados não provados esteia a sua argumentação na leitura que o próprio faz das suas declarações e dos depoimentos produzidos em audiência, e adversando o apoio tido na documentação junta aos autos e a que o Tribunal recorreu.
Ao recorrente assistia, obviamente, o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada. Porém, a argumentação desenvolvida no recurso não permite concluir que tenha ocorrido uma incorreta apreciação das provas pelo Tribunal, de cuja decisão sobressai o respetivo convencimento quanto à não demonstração dos factos naquele questionados.
Ora, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes seria necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo Tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, e uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
O que, manifestamente, o recorrente não logrou fazer.
E, como tem vindo a referir o Tribunal Constitucional, a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.
Estando nós perante uma convicção cuja formação assentou na imediação e na oralidade, não podemos deixar de observar que às razões pelas quais se confere credibilidade a determinados elementos de prova – sejam declarações do arguido sejam depoimentos de testemunhas – subjazem componentes de racionalidade e da experiência comum, mas nelas também se intrometem fatores de que o tribunal de recurso não dispõe.
Donde, resulta do teor da decisão impugnada que nela se procedeu a uma correta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos.
Assim, o Tribunal a quo fez um exame, uma observação atenciosa e cuidada, efetuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeu em detrimento de outros.
Não se deteta, pois, qualquer patente irrazoabilidade na convicção probatória expressa pelo julgador com imediação, inexistindo qualquer violação do art.127º do Código de Processo Penal, não merecendo censura a decisão de facto.
Fixada está, assim, definitivamente, a factualidade considerada provada e não provada em primeira instância.
*
- Do alegado preenchimento do tipo de crime de difamação com publicidade, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 2, do Código Penal.
Dispõe o nº 1 do artº 180º, do Código Penal, que, quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
Se o crime for cometido através de meio de comunicação social o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias (art.183º, nº2, do Código Penal).
O bem jurídico protegido e tutelado pelo normativo do artigo 180º do Código Penal é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se reporta prevalentemente ao juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa, como um bem jurídico complexo, que integra quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior (cfr. José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I pág. 607).
“A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ter um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração, ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos, de o não julgar um valor negativo” (Prof. Beleza dos Santos, In “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, na Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 92º, pág. 166.)
O bem jurídico honra traduz uma presunção de respeito, por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa, sendo o seu conteúdo preenchido, basicamente, pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.
A tutela da honra radica na dignidade da pessoa, fundamento da ordem jurídica (art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa), a qual consagra expressamente a integridade moral e física e o bom nome e reputação como direitos pessoais fundamentais (artigos 25.º n.º 1 e 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
Tal tutela pode assumir feição penal, nos termos previstos nos artigos 180.º e seguintes do Código Penal.
Assim, e em conformidade com estabelecido na Lei Fundamental, que tutela autonomamente quer a honra, ao consagrar a inviolabilidade da integridade moral das pessoas (artigo 25°, n° 1) quer a consideração social, ao reconhecer a todos o direito ao bom nome e reputação, protege-se, quer o sentimento da própria dignidade pessoal, da estima que cada um tem por si mesmo, em função daquilo que pensa ser e valer quer o sentimento da dignidade social, decorrente daquilo que os outros pensam e vêem em si, independentemente de tal juízo de valor corresponder ou não à realidade (cfr. ANTÓNIO J. F.OLIVEIRA MENDES, “0 Direito à Honra e a sua Tutela Penal”, págs. 19 e seguintes).
Poder-se-á entender a honra como a “essência da personalidade humana, referindo-se propriamente à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter” e a consideração com o “património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros” (cfr. Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas-Santos, Código Penal Anotado. 2°, vol., 3º ed., pág. 469).
Os direitos à integridade moral e ao bom-nome e reputação dispõem de respaldo no texto constitucional e são emanação da base primeira que sustenta e legitima a República: a dignidade da pessoa humana (art. 1.º da Lei Fundamental).
Dispõe efectivamente o n.º 1 do artigo 25.º da Constituição da República que a “ integridade moral e física das pessoas é inviolável”.
E o artigo 26.º estabelece que a “todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
Importa agora fazer algumas considerações sobre os elementos constitutivos do crime de difamação.
Quanto ao elemento objetivo, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o agente imputa à vítima factos desonrosos ou dirige-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração.
Quanto ao elemento subjetivo do tipo, é pacífico que o crime de difamação é um crime doloso, traduzindo-se tal elemento subjetivo na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, in www.dgsi.pt).
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu art.14.º, cada uma das formas em que ele se analisa (direto, necessário ou eventual) .
A doutrina dominante define, porém, o dolo, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito.
O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito.
Mas é ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal e, nesta parte, é ainda elemento constitutivo do tipo-de-culpa dolosa, uma entidade complexa, cujos elementos constitutivos se distribuem pelas categorias da ilicitude e da culpa.
«O dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (…) , mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo contidos no “conhecimento e vontade de realização”; uma tal posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas. O que significa que a estrutura do dolo do tipo por que perguntamos aqui só se alcança quando se tenha a consciência clara de que, com ela, não fica por si mesma justificada a aplicação da moldura penal prevista na lei para o crime doloso respectivo; antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal.» - (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral , Tomo I , Coimbra Editora , 2004 pág. 333.
O dolo neste tipo legal consiste, assim, no conhecimento e vontade de imputar perante terceiros, factos ou palavras ofensivos da honra e consideração de uma pessoa, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei.
A ação típica deste crime consistirá na divulgação de factos (acontecimentos da realidade), incluindo a suspeição, ou então de considerações (palavras ou expressões) injuriosas, tanto na sua dimensão pessoal, como social. No entanto, tanto os conceitos de honra como de desconsideração não devem estar dependentes da perspetiva ou compreensão que cada um tem dos seus valores “morais” ou “ético-sociais”. Daí que os mesmos devam ser insuflados por aqueles valores que emergem do nosso quadro constitucional (art. 26.º, n.º 1 Constituição da República), que alude ao “bom nome e reputação, à imagem”, como legislativo (v. g. 70.º, n.º 1 Código Civil), nomeadamente aquela que diz respeito à tutela geral da personalidade (“personalidade física ou moral”).
Se a norma diz claramente que difamar é, dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão do art.180.º do Código Penal.
Com efeito, “(…) não basta que o visado pelas imputações ou juízos se considere ofendido, para que se possa concluir pelo preenchimento do tipo de crime em causa. Há que ponderar, perante as circunstâncias do caso, a existência, ou não, de ofensa.” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28.02.2007, in www.dgsi.pt.).
A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais. Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos.
E o direito penal tem carácter subsidiário ou fragmentário, como decorre expressamente do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República, ao preceituar que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
O direito à honra e consideração não é um direito absoluto e está sujeito a compressões, por via do exercício ao direito de expressão e ao exercício de outros direitos legítimos, tendo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vindo a entender nesse sentido, pelo que o justo limite da liberdade de expressão de uma parte em processo judicial, é ditado pelas necessidades de defesa da causa. É essa a justa compressão que o direito à honra e consideração da contra-parte deve sofrer.
É o que decorre do art.37.º , n.º1 da Constituição da República Portuguesa , quando preceitua que « todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra , pela imagem ou por qualquer outro meio...». O direito à liberdade de expressão e critica tem limites , como decorre do n.º 3 do mesmo art.37.º da Constituição da República Portuguesa, quando estabelece que « as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal...».
Há pois que conciliar o direito à honra e consideração com o direito à critica, pois um e outro , pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos , ilimitados .
“O significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas no momento em que apreciamos o significado”, o que não significa que não haja palavras “cujo sentido primeiro e último é tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração” cfr. Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, p. 630.
Assim, para que se considere cometido um crime contra a honra, as expressões utilizadas têm que ser apreciadas no contexto situacional em que são proferidas e alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhes confira dignidade penal.
Ora, e revertendo ao caso dos autos, como se refere na sentença recorrida: “No que ao caso concerne, e atenta a factualidade provada e não provada, além de não se ter logrado demonstrar que a arguida tenha actuado com dolo, ou seja, com consciência de que as suas afirmações, e a demonstração do documento em causa, poderiam ser vexatórias, desonrosas e humilhantes para com o assistente—pelo consignado na factualidade provada e não provada e motivação, uma vez que apenas relatou a sua história de vida de acordo com as suas recordações, credíveis e corroboradas pela sua progenitora e tia, e procurou defender a honra da progenitora, em reacção a uma entrevista da sua irmã na semana anterior, sendo as polémicas familiares já sobejamente difundidas—, não está verificado o elemento subjectivo do tipo de crime, o que impõe a absolvição da arguida.
Ademais, também se avança que, ainda que houvesse elemento subjectivo, como também já se consignou em parte na motivação de facto, a conduta da arguida não é susceptível de lesar a honra do arguido, tendo-se somente afirmado que, com base no documento que expôs, o assistente tinha tido acompanhamento psiquiátrico no Hospital Magalhães Lemos, o que é um facto verdadeiro, reconhecido pelo próprio, e a arguida não sabia, e não sabe, porque é que o assistente teve esse acompanhando psiquiátrico, mas esse é, para si, o único motivo que pode justificar o comportamento que descreve que o mesmo teve para consigo durante a sua infância.
Não se deslindou que, com essa referência, a arguida pretendesse estigmatizar as doenças mentais ou apelidar o assistente de «maluco», com o próprio invoca, nem a mera referência a uma doença mental que exista (que, salienta-se, não foi feita, apenas reporte ao Hospital), sobretudo com a crescente consciencialização para a importância da saúde mental, é susceptível de lesar a honra ou ferir a dignidade de alguém, muito menos atentas as circunstâncias do caso concreto. Diferente situação abstracta, e que pode ser configurada como difamação, é alguém reportar-se a uma doença mental como forma de caracterização ou qualificação de outrem, e.g., «és um psicopata». Tal não ocorreu.
Por fim, e ainda que assim não se entendesse, sempre teria de se ponderar se a conduta da arguida seria abrangida pela excepção da verdade (ainda que não se ignore que este não é o momento ideal para essa consideração, por não ter a plenitude de um julgamento onde esse fosse o objecto do processo, pelo que apenas deve ser invocada quando não haja a mínima dúvida), ou pelo menos por a arguida ter sério fundamento para reputar como verdadeiro o que afirmou, o que atenta a consistência dos relatos que corroboram as suas memórias de infância, e a condenação sofrida pelo assistente por ofensas à progenitora da arguida, não será despiciendo (artigo 180.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal).
O artigo 180.º, n.º 3, do Código Penal, consagra que o disposto no n.º 2 não se aplica se se tratar da imputação de factos relativos à vida privada e familiar. Contudo, há que atender que tal é configurado pela doutrina por referência a contextos em que há uma desigualdade de experiências existenciais (mormente actividade de imprensa vs. vida privada do sujeito sobre quem discorra a notícia, onde claramente há a pessoa que exerce actividade profissional (ou não) e nada tem a ver com os factos imputados, e do outro lado a pessoa que os viveu sem interferência daquele)—veja-se, FARIA COSTA, op. cit., p. 624—, o que não é a situação dos presentes autos, pois as memórias descritas pela arguida, e a sua recondução ao assistente, integram não só o âmbito da vida privada e familiar do reputado ofendido, como também a da própria arguida, o que pode contender com a interpretação dessa norma, tivesse que ser feita no caso concreto.
Não obstante, como se expôs, a acusação perece, desde logo, por falta de prova do elemento subjectivo, pelo que se impõe, sem mais, a absolvição da arguida do crime que lhe é imputado na acusação particular, sendo desnecessário prolongar a fundamentação de outros motivos que conduziriam também à sua absolvição.”
Por conseguinte, o recurso improcede também neste particular.
*
Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, mantendo-se a sentença recorrida.
- Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 Ucs.
*
Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 7 de novembro de 2023
Laura Goulart Maurício
Edgar Valente
Margarida Bacelar