Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4330/21.0T8STB.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: DESISTÊNCIA DO RECURSO
DECLARAÇÃO EXPRESSA
Data do Acordão: 11/23/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Não tendo o recorrente indicado as peças processuais que deveriam instruir o recurso no requerimento em que formulou as conclusões, mesmo após convite para o efeito, a sua inércia não pode ser entendida como declaração tácita e ficta de desistência do recurso.
2 – O legislador privilegia o duplo grau de jurisdição e pretende diminuir os obstáculos à apreciação das questões aos Tribunais Superiores, a que se associa a ideia fundamental da prevalência do mérito sobre as decisões de forma e, nesta lógica, à luz de poderes de gestão processual depositados no artigo 6.º do Código de Processo Civil, o julgador está vinculado a promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento do próprio recurso.
3 – A aliança entre o princípio da gestão processual e o princípio da adequação formal exige que quando as partes não tenham feito essa indicação, mesmo após convite, deve o juiz ordenar oficiosamente que seja extraída certidão das peças que interessarem ao recurso.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4330/21.0T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Comercio de Setúbal – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção de insolvência de (…), a insolvente veio interpor recurso da decisão que considerou existir desistência de recursos previamente apresentados.
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Por decisão datada de 30/03/2023, por violação dolosa dos deveres previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 4 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, em conformidade com o disposto no artigo 243.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do mesmo diploma, o Tribunal «a quo» decidiu declarar a cessação antecipada da exoneração do passivo restantes relativamente a (…).
Devidamente notificada, a insolvente veio interpor recurso.
Por despacho datado de 23/07/2023, foi admitido o recurso desse despacho, o qual subiria imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo nos termos do n.º 5 do artigo 14.º do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas.
No referido despacho de admissão do recurso o ilustre mandatário foi notificado para indicar as peças processuais com as quais pretendia instruir o recurso e essa determinação foi renovada no despacho proferido a 17/09/2023.
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Por decisão datada de 23/07/2023, o Juízo de Comércio de Setúbal declarou ineficaz a transmissão do veículo ligeiro de passageiros de marca (…), de matrícula (…), ocorrida a favor de (…).
Devidamente notificada, a insolvente veio interpor recurso.
Por despacho datado de 17/09/2023, foi admitido o recurso desse despacho, o qual subiria imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo nos termos do n.º 5 do artigo 14.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
No referido despacho de admissão do recurso o ilustre mandatário foi notificado para indicar as peças processuais com as quais pretendia instruir o recurso.
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Nessa sequência, em 16/10/2023, foi proferido o despacho recorrido, o qual tinha o seguinte conteúdo:
«Notificado para indicar as peças que devem instruir o recurso interposto não veio o recorrente oferecer resposta, pelo que, nos termos do art. 632.º, n.º 5, do CPC, se considera a mesma como declaração tácita de desistência do recurso.
Neste sentido, vide o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/10/2019, proferido nos autos de processo n.º 837/14.3T8LLE-I.E1, onde se decidiu que:
“I. Na apelação que deva subir em separado impende sobre o recorrente o ónus de indicar no mesmo requerimento em que formula as conclusões, as peças do processo de que pretende certidão para instruir o recurso (artº 646º/1 do CPC e artº 15º/2, a), da Portaria nº 280/2013, 26-08).
II. Não tendo o recorrente indicado as peças processuais que deveriam instruir o recurso no requerimento em que formulou as conclusões, nem mesmo após notificação para esse efeito, a sua inércia deve ser entendida como declaração tácita e ficta de desistência do recurso (artigo 632º/5 do CPC), com as legais consequências”.
Nesta conformidade, homologo a desistência dos recursos supra identificados.
Notifique».
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e as alegações de recurso continham as seguintes conclusões:
«1) A sentença recorrida viola os princípios do CIRE e a lei processual.
2) Em momento algum o recorrente manifestou o desinteresse no recurso.
3) Pelo que só podia ser aceite nesses termos e o não foi.
Nestes termos e nos demais, requer-se a Vª. Exª. que seja revogada a sentença com as consequências legais.
Assim se fará a costumada justiça».
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº2, ex vi do artigo 663º, nº2, do referido diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da possibilidade de considerar que ocorreu desistência dos recursos interpostos.
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III – Dos factos apurados
Os factos com interesse para a justa resolução da causa são os que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
Na apelação com subida em separado, as partes indicam, após as conclusões das alegações, as peças do processo de que pretendem certidão para instruir o recurso, tal como resulta da leitura do disposto no artigo 646.º[1] do Código de Processo Civil.
Quando as partes não tenham feito essa indicação, deve o juiz (ou, se ele não o fizer, o relator, ao abrigo do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 652.º)[2] do Código de Processo Civil, convidá-las a fazê-lo, sem prejuízo dele próprio poder ordenar oficiosamente que seja extraída certidão das peças que interessarem ao recurso[3].
Também Abrantes Geraldes defende que «cada parte deve indicar nas alegações as peças do processo de que pretende certidão, primeiro pelo juiz a quo e, depois, pelo relator no tribunal ad quem, cada um dos quais podendo determinar a junção de outros que sejam necessários para a correta apreciação das questões que são objecto de recurso»[4].
Confrontado com a não instrução das impugnações recursais, após haver admitido os dois recursos de apelação, o Tribunal a quo socorreu-se do disposto no n.º 5 do artigo 632.º[5] do Código de Processo Civil e homologou a desistência dos recursos.
Não estamos perante qualquer cenário de caducidade do direito de recorrer, de renúncia ao direito de recorrer, de aceitação expressa ou tácita da decisão e os autos não estão municiados com qualquer acto de desistência. Para além disso, não existe qualquer disposição legal cominar a falta de instrução dos autos com a referida medida nem, na ausência de disposição legal, foi feita a correspondente cominação.
A vontade expressa de desistir não existe nem sobeja espaço para considerar que ocorre uma desistência ficta da interposição do recurso. Pelo contrário, o direito de acesso aos Tribunais é um direito processual fundamental que compreende um amplo espaço de garantias processuais e que não admite a restrição artificial da possibilidade de recurso a não ser em situações previamente delineadas no quadro legal.
Aliás, estamos num domínio o legislador privilegia o duplo grau de jurisdição e, desde que verificados determinados pressupostos e condicionalismos, pretende diminuir os obstáculos à apreciação das questões aos Tribunais Superiores, a que se associa a ideia fundamental da prevalência do mérito sobre as decisões de forma. E, nessa lógica, à luz de poderes de gestão processual depositados no artigo 6.º[6] do Código de Processo Civil, o julgador está vinculado a promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção ou do próprio recurso.
A aliança entre o princípio da gestão processual e o princípio da adequação formal no sentido de ajustar a tramitação, a forma e o conteúdo dos actos processuais[7] impunha assim que, na ausência de cominação legal vinculativa com outro sentido, fosse o juiz da causa a adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual e selecionar as peças mínimas que deveriam integrar a certidão.
Para além disto, surgem problemas atinentes à eficácia do caso julgado material intraprocessual quanto aos precedentes despachos de admissão de recurso, os quais gozam tendencialmente da garantia de imutabilidade ou indiscutibilidade e apenas podem ser objecto de alteração pela Primeira Instância no âmbito da existência de lapso manifesto ou de razões de superveniência, que não se verificam.
Neste capítulo, é entendimento unânime que, em última análise, compete ao relator a decisão de quaisquer questões prévias e incidentais que se suscitem, bem como a instrução do recurso e o próprio julgamento do seu objecto, quando se trate de questões simples ou de recursos manifestamente infundados. Assim, após a admissão de qualquer recurso, fora dos casos acima referidos, fica reservado ao Tribunal Superior a possibilidade de sindicar a aceitação da impugnação recursal no desenvolvimento da tarefa de verificação da existência de alguma circunstância que obste ao conhecimento do recurso.
E, como tal, no presente cenário, julga-se assim procedente o recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que ordene a subida separada de ambos os recursos em apreço, com a prática pelo Julgador a quo dos actos de gestão processual que munam os procedimentos das peças processuais necessárias à justa composição do litígio.
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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que ordene a subida separada de ambos os recursos em apreço, com a prática pelo Julgador a quo dos actos de gestão processual que munam os procedimentos das peças processuais necessárias à justa composição do litígio.
Sem tributação, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi
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Évora, 23/11/2023

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura

(Revendo a minha posição anterior tomada no acórdão proferido no Proc. n.º 837/14.3T8LLE-I.E1, datado de 24/11/2019, no qual fui 1º Adjunto, entendo agora que a desistência do recurso tem de ser expressa (cfr. artigo 632.º, n.º 5, do C.P.C.) e, por isso, quer o juiz a quo, quer o relator do tribunal ad quem, podem determinar – nos termos do disposto no artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C. – a junção aos autos de quaisquer certidões que sejam necessárias para a boa apreciação das questões que sejam objecto de recursos interpostos pelas partes, tendo-se ainda em conta o princípio do dever de gestão processual ínsito no artigo 6.º do C.P.C.).

Cristina Maria Xavier Machado Dá Mesquita



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[1] Artigo 646.º (Instrução do recurso com subida em separado):
1 - Na apelação com subida em separado, as partes indicam, após as conclusões das alegações, as peças do processo de que pretendem certidão para instruir o recurso.
2 - No caso previsto no número anterior, a secretaria deve facultar aos mandatários, durante o prazo de cinco dias, as peças processuais, documentos e demais elementos que, por terem sido apresentados em suporte físico e não tendo sido digitalizados, apenas constem do suporte físico do processo.
[2] Artigo 652.º (Função do relator):
1 - Ao relator incumbe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente:
a) Corrigir o efeito atribuído ao recurso e o respetivo modo de subida, ou convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respetivas alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º;
b) Verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso;
c) Julgar sumariamente o objeto do recurso, nos termos previstos no artigo 656.º;
d) Ordenar as diligências que considere necessárias;
e) Autorizar ou recusar a junção de documentos e pareceres;
f) Julgar os incidentes suscitados;
g) Declarar a suspensão da instância;
h) Julgar extinta a instância por causa diversa do julgamento ou julgar findo o recurso, por não haver que conhecer do seu objeto.
2 - Na decisão do objeto do recurso e das questões a apreciar em conferência intervêm, pela ordem de antiguidade no tribunal, os juízes seguintes ao relator.
3 - Salvo o disposto no n.º 6 do artigo 641.º, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.
4 - A reclamação deduzida é decidida no acórdão que julga o recurso, salvo quando a natureza das questões suscitadas impuser decisão imediata, sendo, neste caso, aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos nºs 2 a 4 do artigo 657.º.
5 - Do acórdão da conferência pode a parte que se considere prejudicada:
a) Reclamar, com efeito suspensivo, da decisão proferida sobre a competência relativa da Relação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o qual decide definitivamente a questão;
b) Recorrer nos termos gerais.
[3] José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 128.
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 843.
[5] Artigo 632.º (Perda do direito de recorrer e renúncia ao recurso):
1 - É lícito às partes renunciar aos recursos; mas a renúncia antecipada só produz efeito se provier de ambas as partes.
2 - Não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida.
3 - A aceitação da decisão pode ser expressa ou tácita; a aceitação tácita é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer.
4 - O disposto nos números anteriores não é aplicável ao Ministério Público.
5 - O recorrente pode, por simples requerimento, desistir do recurso interposto até à prolação da decisão.
[6] Artigo 6.º (Dever de gestão processual):
1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
[7] Sobre o princípio da adequação forma pode ser consultado João Pedro Pinto-Ferreira, in Adequação Formal e Garantias Processuais na Ação Declarativa, Almedina, Coimbra, 2022.