Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
367/21.7T8PSR-A.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: CONFISSÃO
DECLARAÇÃO INEXACTA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Nos termos do disposto no artigo 357.º, n.º 1, do Código Civil, a declaração confessória deve ser inequívoca, o que se justifica atentas as consequências da confissão para quem a profere. Logo, cumpre verificar, com rigor, se a declaração confessória reflete plenamente o pensamento de quem a emite.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 367/21.7T8PSR-A.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…) e (…), embargantes no apenso de oposição à execução que lhes foi movida por (…), Sucursal da Sociedade Anónima (…), SA, interpuseram recurso da sentença proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sor, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, o qual julgou totalmente improcedente a oposição à execução, absolvendo a embargada da mesma.
Na oposição à execução os embargantes, ora apelantes, alegaram, em síntese, o seguinte: à presente execução serve de título executivo o procedimento de injunção n.º 51891/21.0YIPRT ao qual foi aposta fórmula executória em 24.09.2021; no referido título que serve de base à presente execução, é referido que a resolução do contrato ocorreu em 30.04.2019 e que naquela data se encontrava em dívida o montante de € 3.952,33, mas também ali se refere que o total em débito com referência ao contrato de mútuo n.º … (aquele que está em causa nos autos) ascende a € 8.771,49, «sendo impossível de saber de onde resulta tal montante»; já após a resolução do contrato, e por conta do valor em dívida à data da cessação do referido contrato de mútuo, os embargantes procederam ao pagamento da quantia global de € 3.828,99.
Na contestação aos embargos, a embargada diz que existe um evidente lapso de escrita no «terceiro parágrafo da exposição dos factos do requerimento de injunção» e que onde se lê «€ 3.952,33» deverá ler-se «€ 8.771,49», requerendo a retificação de tal lapso de escrita, e reconhece que depois da resolução do contrato os executados procederam ao pagamento do montante global de € 3.828,99 por conta da dívida, valor que foi, por ela (exequente/embargada) devidamente imputado ao capital em dívida (€ 10.408,26) e ainda por conta dos juros entretanto vencidos; conclui que «estando expressamente aceite pelos executados a celebração do contrato, o seu incumprimento, a sua resolução e o facto de os pagamentos terem sido efetuados após a resolução do contrato, (…) o montante peticionado pela ora contestante é perfeitamente válido e legítimo porquanto foram tidos em consideração todos os pagamentos efetuados pelos executados.
Foi realizada a audiência de julgamento, após o que foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
Os recorrentes formulam alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«Assim, face ao exposto e pelo mais que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, não pode deixar de concluir-se que:
1- Deve ter-se por confessado pela embargada/exequente que à data da resolução do contrato, 30.04.2019, estava em dívida a quantia € 3.952,33 (três mil novecentos e cinquenta e dois euros e trinta e três cêntimos);
2- Face aos pagamentos efetuados após a resolução do contrato, na quantia de € 3.828,99 (três mil oitocentos e vinte e oito euros e noventa e nove cêntimos), entre 05.06.2019 e 30.03.2021 e ainda o montante de € 199,79 (cento e noventa e nove euros e setenta e nove cêntimos) no mês de maio de 2021, todos dados como provados, devem ser dados por provados e julgados procedentes os presentes embargos.
Assim, nestes termos, deve a douta sentença, ser revogada, julgando procedentes os embargos deduzidos pelos ora apelantes sendo em consequência os mesmos absolvidos do pedido formulado nos autos principais.
Assim se fazendo JUSTIÇA».

I.3.
Na sua resposta às alegações de recurso, a recorrida defendeu a improcedência da apelação.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A única questão que cumpre decidir é saber se o título dado à execução contém uma confissão da exequente quanto à quantia que se mostrava em dívida à data da resolução do contrato de mútuo outorgado entre a exequente e os executados.

II.3.
FACTOS
O julgador a quo julgou provada a seguinte factualidade:
«A) A embargada, no exercício da sua atividade comercial e através do contrato n.º (…), concedeu aos embargantes crédito direto, sob a forma de contrato de mútuo, tendo em vista o pagamento de débitos anteriores destes últimos para com aquela.
B) Foi expressamente acordado que a falta de pagamento das importâncias mutuadas ao abrigo do referido contrato implicaria a obrigação de pagamento do valor que se apurasse estar em dívida, acrescido de juros à taxa anual de 13,60% desde a data em que a resolução do contrato fosse comunicada aos embargantes e até integral pagamento.
C) Os embargantes incumpriram o contrato identificado em A) antecedente, tendo então ficado em dívida a importância global de € 10.408,26.
D) A resolução do contrato identificado em A) antecedente foi comunicada pela embargada aos embargantes com efeitos a partir de 30.4.2019.
E) Entre o dia 5.6.2019 e o dia 30.3.2021, os embargantes procederam, por conta daquela dívida, ao pagamento à embargada do montante global de € 3.629,20.
F) Em resultado do exposto em E) antecedente, o capital em dívida à data da apresentação do requerimento injuntivo – dia 25.5.2021 - correspondia a € 8.771,49.
G) No requerimento injuntivo a aqui embargada veio requerer a notificação dos embargantes para procederem ao pagamento da quantia global de € 11.341,14, sendo € 8.771,49 relativos a capital, € 2.470,82 relativos a juros de mora e € 98,83 relativos a imposto de selo, calculado à taxa de 4% sobre o valor dos juros de mora.
H) No dia 29.5.2021, os embargantes pagaram ainda à embargada a quantia de € 199,79.
I) Ao requerimento injuntivo referido em F) e G) antecedentes foi aposta a fórmula executória no dia 24.9.2021.
*

II.3.
Do objeto do recurso
Está em causa no presente recurso a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância que julgou totalmente improcedente a oposição à execução, determinando, consequentemente, o prosseguimento da execução para satisfação da quantia exequenda.
Liminarmente se dirá que no presente recurso não vem posto em causa que o contrato de mútuo em causa nos autos é o n.º (...), que o mesmo foi incumprido pelos executados e que em consequência de tal incumprimento a exequente comunicou aos executados a resolução do referido contrato com efeitos a partir de 30.04.2019.
O dissídio prende-se, sim, com o valor que se encontrava em dívida à data da resolução do contrato: no seu recurso os apelantes defendem que no título dado à execução (requerimento de injunção ao qual foi aposta a fórmula executória) a exequente confessou que na data de resolução do contrato (30.04.2019) estava em dívida o montante de € 3.952,33 (e não o valor de € 8.771,49), a qual terá sido expressamente aceite pelos executados na sua oposição à execução, pelo que tendo em conta os pagamentos efetuados pelos executados já após a resolução do contrato, a instância executiva não deveria ter prosseguido.
Vejamos se assim é.
Como supra assinalámos o título dado à execução consiste num requerimento de injunção no qual foi aposta a fórmula executória.
O título executivo constitui a base da execução, por ele se determinando «o fim e os limites da ação executiva» (artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil). Quer isto dizer que é pelo título executivo que se afere o tipo de ação, o seu objeto e ainda a legitimidade (ativa e passiva) para ela, ainda que o título possa ter de ser complementado (artigos 714.º a 716.º do CPC). A aferição »do fim e dos limites da ação executiva» pressupõe a prévia interpretação do título a realizar pelo tribunal de execução.
Interpretação que deve seguir os critérios de interpretação do negócio jurídico do artigo 236.º do Código Civil.
Como já assinalámos, os apelantes sustentam que «deve ter-se por confessado pela embargada/exequente que à data da resolução do contrato, 30.04.2019, estava em dívida a quantia € 3.952,33».
Na sentença sob recurso escreveu-se, a propósito, o seguinte: «refira-se, por ultimo, inexistir qualquer confissão da embargada em sede de requerimento injuntivo no sentido de à data do incumprimento do contrato o valor em dívida corresponder a € 3.952,33 já que ali aquela afirmou que os embargantes incumpriram o contrato e que ficou em dívida a quantia de € 8.771,49 (naturalmente à data da propositura do procedimento de injunção). A menção à quantia de € 3.952,23 resultou manifestamente, como a embargada afirmou e os embargantes não podem deixar de saber, de um mero lapso de escrita, tanto mais que esse valor é precisamente o que a embargada alegava encontrar-se em dívida no requerimento injuntivo que apresentou na mesma data (25.05.2021), mencionado pelos próprios embargantes no artigo 20.º da oposição, e que veio a estar na origem dos autos de execução pendentes neste juízo com o n.º 340/21.5T8PSR-A. Acresce que do próprio requerimento injuntivo destes autos resulta ser mencionado, por diversas vezes, o valor de capital em dívida de € 8.771,49, facto que os embargantes omitem, sendo sempre requerida a notificação dos mesmos para pagarem essa mesma quantia (e nunca a quantia de € 3.952,33). Donde, as afirmações vertidas nos artigos 7.º e 43.º da oposição apresentada pelos embargantes não podem deixar de ser encaradas como constituindo um lamentável expediente dos mesmos que não podem deixar de conhecer as quantias peticionadas em cada um dos dois processos».
É consabido que a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (artigo 352.º do Código Civil).
A confissão pressupõe uma declaração formal, expressa ou tácita/presumida nos casos especialmente previstos na lei (artigo 314.º do CC e artigos 567.º/1 e 574.º/1, do CPC), cujo conteúdo se esgota numa afirmação de ciência unilateral e que tem por objeto factos materiais. A confissão tem como destinatário a parte contrária, sendo por isso uma declaração recetícia, e “parte contrária” é todo o interessado a quem a confissão favorecer.
Nos termos do disposto no artigo 355.º do Código Civil a confissão pode ser judicial ou extrajudicial, sendo que a primeira é aquela que é feita em juízo; a confissão judicial pode ser espontânea, quando feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual, ou em qualquer outro ato do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado, ou provocada, quando feita em depoimento de parte ou em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal (cfr. artigo 356.º do CC). A confissão espontânea declarada nos articulados pode ser feita por mandatário, vinculando a parte, ainda que aquela esteja munido de procuração com meros poderes forenses gerais (cfr. artigos 46.º, 574.º/2 e 465.º/2, do CPC). Finalmente importa notar que a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo de a lei o dispensar[1] (cfr. artigo 357.º/1, do CC).
Volvendo ao caso sub judice e concretamente ao título dado à execução consta efetivamente do parágrafo 3.º do mesmo o seguinte texto: «O (A/Os) Requerido (a/os) incumpriu (incumpriram) o contrato, tendo ficado em dívida a importância de € 3.952,33 e tendo a resolução do contrato sido comunicada com efeitos a partir de 30.04.2019». Todavia, logo de seguida, escreveu-se o seguinte: «O total em débito pelo (a/os) Requerido (a/os) ao Requerente com referência ao dito contrato n.º (…) ascende assim a € 8.771,49. (…) O (A/Os) Requerido (a/os) deve(m) assim ao requerente, com referência ao incumprimento do dito contrato n.º (…) a importância de € 8.771,49, bem como, nos termos referidos, a quantia de € 2.470,82 de juros vencidos até ao presente – 24.05.2021 – mais a dita quantia de € 98,83 de imposto de selo sobre os juros vencidos, mais os juros que à referida taxa de 13,60% se vencerem sobre o dito montante de € 8.771,49, desde 25.05.2021 até integral e efetivo pagamento, e, ainda, o imposto de selo à taxa de 4% sobre os ditos juros vincendos».
Considerando o critério de interpretação do artigo 236.º do Código Civil e o contexto daquele segmento declaratório, julgamos não assistir razão aos apelantes quando sustentam que a exequente confessou no requerimento de injunção que a quantia em dívida à data da resolução do contrato de mútuo em causa era de € 3.952,33. Com efeito, parece-nos manifesto que a referência, no requerimento de injunção, àquele valor se trata de um manifesto lapso de escrita, o qual, nos termos do disposto no artigo 249.º do Código Civil[2] (apenas) permite a retificação da declaração negocial. Note-se que o regime consagrado no artigo 249.º do Código Civil é aplicável a declarações de vontade não negociais produzidas num processo judicial[3]. Consequentemente, não têm os embargantes / apelantes razão quando afirmam que a requerente confessou naquele parágrafo terceiro que à data da resolução do contrato de mútuo em causa nos autos, estava em dívida apenas) o capital de € 3.952,33.
Não merece, assim, censura o julgamento do tribunal de primeira instância quando considerou «inexistir qualquer confissão da embargada em sede de requerimento injuntivo no sentido de à data do incumprimento do contrato o valor em dívida corresponder a € 3.952,33». Pelo que a presente apelação tem de improceder.

Sumário: (…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
As custas de parte devidas na presente instância de recurso são da responsabilidade dos apelantes (artigos 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do CPC).
Notifique.
Évora, 14 de Setembro de 2023
Cristina Dá Mesquita
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho


__________________________________________________
[1] Vide artigo 314.º do CC, no âmbito das prescrições presuntivas.
[2] Dispõe o artigo 249.º do Código Civil epigrafado de Erro de cálculo ou de escrita que «O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado do próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta».
[3] Maria João Vaz Tomé, pág. 588.