Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1039/22.0T8TMR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO TRABALHO
CONTRATO ATÍPICO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Quando na contestação, perante a mesma base factual, é apresentada uma versão jurídica diversa daquela que era indicada na petição inicial, se no saneador-sentença o tribunal de 1.ª instância, decidir pela versão jurídica do Réu, não violou o princípio do contraditório, consagrado no art. 3.º, nºs. 3 e 4, do Código do Processo Civil, uma vez que as partes já podiam prever tal solução como uma das soluções possíveis a proferir.
II – Se dos autos não resultar, entre a Autora e a Ré, a existência de um vínculo de trabalho em funções públicas, nos moldes constantes do art. 6.º, n.º 3, da Lei n.º 35/2014, de 20-06, não é possível atribuir a competência material aos tribunais administrativos e fiscais, em face do que dispõe o art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
III – Os contratos celebrados ao abrigo da Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, em face dos direitos e das obrigações previstas para quem se compromete a exercer a atividade socialmente útil e para quem aceita recebê-la, reproduz os pontos essenciais constantes dos arts. 127.º e 128.º do Código do Trabalho, ou seja, os direitos e os deveres impostos ao empregador e ao trabalhador no Código do Trabalho.
IV – Pelo que estamos perante um contrato atípico de trabalho, em face da evidente subordinação jurídica daquele que exerce a atividade perante aquele que a recebe.
V – A Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, foi sujeita a cinco alterações, pelo que o prazo de prorrogação dos contratos celebrados tinha de respeitar tal Portaria e as suas sucessivas alterações.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 1039/22.0T8TMR.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
AA[2] (Autora) intentou a presente ação declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, contra “Centro Social Interparoquial de Abrantes”, (Ré), solicitando, a final, que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência:
Seja declarada a ilicitude do seu despedimento;
Seja a Ré condenada a pagar à Autora indemnização por antiguidade, férias ganhas e não gozadas, respetivos subsídios e proporcionais de subsídio de Natal, e retribuições deixadas de auferir no montante de €13.758,47;
Seja a Ré condenada a pagar à Autora indemnização por danos morais em montante não inferior a €5.000,00; e
Seja a Ré condenada em custas e demais encargos do processo, bem como custas de parte.
Alegou, em síntese, que a Autora foi contratada ao serviço da Ré em 10-05-2020 para prestar trabalho por conta e direção da Ré, ao abrigo da Portaria n.º 82-C/2020 de 31-03, no âmbito da Medida de Apoio ao Reforço de Emergência de Equipamentos Sociais e de Saúde, tendo prestado serviço nas instalações da Ré até 27-06-2021, auferindo, durante esse período, como Bolsa do IEFP, uma quantia mensal de €658,22, acrescida de um subsídio de transporte, no montante de €43,88.
Mais referiu que, em 01-05-2021, sofreu um acidente de trabalho que a obrigou a permanecer de baixa médica, porém, não apresentou junto da Ré o respetivo atestado médico, pelo que, em 27-06-2021, foi informada verbalmente pela Ré que estava despedida, em face do número de faltas injustificadas que já dera, não precisando de regressar ao seu posto de trabalho.
Alegou ainda que o seu despedimento não foi precedido de procedimento disciplinar, nem lhe foi remetida qualquer nota de culpa, razão pela qual o despedimento é ilícito
Alegou também que assinou com a Ré contratos sucessivos por períodos de 1 e 3 meses, concretamente, assinou oito contratos, pelo que, nos termos do art. 2.º, n.º 3, da Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, a partir de 09-08-2020, os contratos celebrados entre a Autora e a Ré já não o eram ao abrigo da referida Portaria, tendo, a partir dessa altura, a Autora se tornado trabalhadora da Ré a termo certo, pelo que, tendo sido ilicitamente despedida, tem direito a uma indemnização em montante correspondente a 45 dias por cada ano de antiguidade ou fração, não inferior a três meses de retribuição, montante esse a que atribui o valor de €3.159,45, sendo-lhe ainda devidas as férias que não gozou no montante de €760,61, o subsídio de férias e os proporcionais de férias no montante de €760,61, o subsídio de natal e respetivos proporcionais no montante de €760,60, bem como a que lhe sejam pagas as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado no montante que se fixa até à interposição da ação em €8.425,20 e ainda a quantia de €5.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Realizada a audiência de partes, não foi possível resolver o litígio por acordo.
A Ré “Centro Social Interparoquial de Abrantes” apresentou contestação e pedido reconvencional, requerendo, a final, que a ação seja julgada improcedente por não provada, sendo a Ré absolvida do pedido, devendo o pedido reconvencional ser julgado procedente e, em consequência, ser a Autora condenada a restituir à Ré a quantia de €140,42, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
Alegou, em súmula, que a Autora não foi contratada pela Ré ao abrigo de um contrato de trabalho, mas sim ao abrigo de um contrato de atividade social ou de saúde, tendo, por isso, a Autora se obrigado a executar uma atividade socialmente útil, na área de cuidados pessoais, a exercer na sede da Ré, recebendo, em contrapartida, uma bolsa mensal no valor de €658,22, alimentação referente a cada dia de atividade, transporte ou subsídio de transporte até €43,88, seguro de acidentes e equipamento de proteção individual.
Mais alegou que o contrato celebrado não titula uma relação laboral e de prestação de trabalho, razão pela qual inexiste remuneração, subsídios, contribuições à segurança social, período experimental ou subordinação jurídica, sendo sim um contrato de prestação de uma atividade socialmente útil, ao abrigo de um projeto temporário e excecional.
Alegou também que a cessação do contrato celebrado entre as partes deveu-se ao mero decurso do prazo, tendo-se extinguido por caducidade.
Alegou igualmente, quanto à indemnização por danos morais, que inexistem os pressupostos de que depende a atribuição de tal indemnização, desde logo, a total inexistência de uma relação de trabalho.
Por fim, a título reconvencional, alegou a Ré que pagou à Autora, por lapso, durante o período de baixa, parte da bolsa, no valor de €140,42, sendo que, durante o período de baixa, tal bolsa não era devida, pelo que a devolução de tal valor foi solicitada à Autora, que, porém, nunca o devolveu, devendo, por isso, ser a Autora condenada na devolução desse valor à Ré.
Por despacho proferido em 11-01-2023 foi julgado inadmissível o pedido reconvencional formulado pela Ré.
Foi proferido, na mesma data, saneador-sentença, onde foi fixado o valor da ação em €18.758,47, sendo a decisão do seguinte teor:
4.1. Pelo exposto, decido julgar a presente acção totalmente improcedente e absolver o réu Centro Social Interparoquial de Abrantes de todos os pedidos formulados pela autora AA.
4.2. Condeno a A. a pagar as custas da acção, em vista do seu decaimento e sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
4.3. Notifique.
Não se conformando com a sentença, veio a Autora AA interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
1) Após a realização da audiência de partes, entendeu o Tribunal que seria de agendar a realização de audiência de julgamento, vindo a proferir a douta sentença sem que se tenha realizado audiência de discussão de julgamento.
2) A decisão constante da douta sentença recorrida não foi, por outro lado, antecedida da audiência das partes., o que consubstancia a prática de uma “decisão surpresa”, proferida com violação do Princípio do Contraditório, o que implica uma nulidade, a prevista no artigo 195.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPT.
3) A douta decisão constante da douta sentença ora recorrida é nula, por preterição do princípio do contraditório (artigo 3.º do CPC), violando os Princípios constitucionais vertidos nos artigos 2.º, 20.º, 32.º, n.º 2, 202.º e 205.º da CRP;
4) Por força do artigo 3.º do CPC e sob pena de inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º da CRP, o Mmo. Juiz a quo entendendo, oficiosamente, que haveria de decidir em determinado sentido e dispensando a realização da audiência, deveria determinar a audição prévia das partes, evitando a tomada de decisões surpresa feridas de nulidade.
5) A douta sentença ora recorrida é nula, cfr. artigo 195.º do CPC, por violação do disposto nos artigos 3.º e 417.º do Código de Processo Civil e artigos 2.º, 20.º, 32.º, n.º 2, 202.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa, devendo, ipso facto, ser revogada
6) Entre A. e R., foram sendo assinados contratos sucessivos por períodos de 1 e 3 meses. Dispõe o n.º 3 do art. 2.º da Portaria n.º 82-C/2020, de 31 de Março: «Os projetos referidos no número anterior desenvolvem-se no âmbito definido no n.º1, enquadram-se no conceito de trabalho socialmente útil e têm uma duração de um mês, prorrogável mensalmente até um máximo de três meses (…)».Logo, o contrato celebrado entre A. e R. vigorou no âmbito da vigência da referida Portaria e subsumível à mesma, até 09/08/2020.
7) A partir dessa data, a Recorrente continuando a prestar trabalho à Recorrida tornou-se sua trabalhadora, sem termo – arts. 141.º do C.T. Produzindo os contratos subsequentes a essa data os efeitos referidos nos arts. 141.º e 146.º do C.T..
8) Pelo que, a Recorrente passou a ser trabalhadora efectiva da Recorrida em 09/01/2021, após 3 meses de renovação do contrato celebrado após os 3 meses previstos na aludida Portaria. Aplicando-se à relação laboral daí em diante o Código do Trabalho e as Pelo que, à A., deverão as normas legais relativas a um trabalhador com vínculo laboral efectivo.
9) É competente para dirimir o litígio o Tribunal do Trabalho e não o Tribunal Administrativo e Fiscal, pois que este seria o competente até 09/08/2020, de tal data em diante a prestação de trabalho por parte da Recorrente não se enquadrava no regime especial aludido na douta sentença, mas sim no regime geral de contrato de trabalho, revisto no Código de Trabalho, artigo 126.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
10) Pelo que, deverá a douta sentença ora recorrida ser considerada nula e revogada, sendo substituída por outra que julgue o Tribunal competente e ordene a realização da audiência de julgamento, seguindo-se os ulteriores termos do processo até final, ou caso assim não se entenda que julgue o Juízo de Trabalho como competente e decida quanto à matéria em causa nos autos, com respeito pelo contraditório, vindo a final a condenar-se a Recorrida no pedido, com o que se alcançará a desejada JUSTIÇA!
NESTES TERMOS,
Deve o presente ser recebido e com o sempre mui douto suprimento de V.Exas., acolhidas que sejam as razões expostas, porque legais e justas, deverá a douta sentença ora recorrida ser declarada nula, revogando-se a douta decisão com todos os efeitos legais, com o que se fará a desejada JUSTIÇA!
A Ré “Centro Social Interparoquial de Abrantes” apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida, terminando com as seguintes conclusões:
A. Conforme resulta dos factos provados, em 10/05/2020, a AUTORA/APELANTE e a RÉ/APELADA celebraram entre si, um “Contrato de Actividade Social ou de Saúde” ao abrigo de uma medida de apoio ao reforço de emergência de equipamentos sociais e de saúde, de natureza temporária e excecional, para assegurar a capacidade de resposta das instituições públicas e do setor solidário com atividade na área social e da saúde, e assim mitigar as especiais dificuldades sentidas neste sector durante a pandemia da doença COVID-19 (também designada por “MAREESS”), criada através da Portaria n.º 82-C/2020, de 31 de março.
B. No âmbito do referido contrato, a AUTORA/APELANTE passou a executar para a RÉ/APELADA uma actividade socialmente útil de cuidados pessoais, no âmbito de projectos previamente aprovados e delimitados pelo IEFP.
C. Em razão da natureza contratual, excecional, desta medida, o contrato celebrado expressamente estipulou que o mesmo não gera nem titula relações de trabalho.
D. Por outro lado, inexiste qualquer fundamentação legal que titule a conversão dos contratos celebrados no âmbito de MAREESS em contratos de trabalho sem termo, independentemente das condições ou termos estabelecidos em cada um dos projectos e contratos aprovados.
E. Razão pela qual, à relação controvertida não se poderá aplicar as normas dispostas no Código de Trabalho e que tutelam as relações contratuais, carecendo de mérito a construção relativa ao "despedimento" da AUTORA/APELANTE e o consequente pagamento de retribuições e indemnizações.
F. Por esse mesmo motivo, este juízo do trabalho não é materialmente competente para conhecer das vicissitudes dos contratos celebrados no âmbito da MAREESS pois estas são questões atribuídas ao foro administrativo e que envolvem uma terceira entidade, o IEFP, uma das entidades que patrocinava, beneficiava e suportava em larga medida a bolsa paga à AUTORA/APELANTE.
G. A sentença recorrida apreciou a prova detalhadamente e procedeu a uma leitura correcta da mesma, procurando concatenar os documentos apresentados, a ordem cronológica dos factos e a sua lógica da medida em apreço, tendo ficado claro que, ao contrário do que invoca a AUTORA/APELANTE, nunca existiu, entre as partes, qualquer relação laboral, não sendo devidos à AUTORA/APELANTE quaisquer valores.
H. Pelo contrário, a AUTORA/APELANTE parece confundir as duas realidades contratuais e ainda a renovação de contratos com a renovação de projectos, fazendo uma interpretação que não se coaduna com o sentido literal da lei ou com o contrato celebrado entre as PARTES e que a AUTORA/APELANTE não poderia desconhecer nem ignorar.
I. Na verdade, o que a presente acção e recurso revelam é a obstinação da AUTORA/APELANTE em cobrar um valor (indevido) a todo custo, porquanto, se bem se percebe a pretensão recursiva, insiste nas mesmas questões, ignorando o argumentativo deste douto tribunal e a documentação por si assinada.
J. No que diz respeito ao princípio do contraditório, reitera-se que a presente ação foi intentada pela AUTORA/APELANTE, existiu uma Audiência de Partes na qual foi tentada a conciliação das partes e frustrando-se esta, foi à RÉ/APELADA concedido o exercício do contraditório.
K. Apenas após esses momentos, promoveu este douto tribunal a decisão da causa, fazendo-o fundamentadamente.
L. Concluindo-se que, antes de tomada qualquer decisão sobre as questões de facto e direito, tiveram as partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, o que, de resto, o fizeram!!
M. Sendo evidente o cabal cumprimento do princípio do pedido e do contraditório.
N. Dispõe o n.º 2 do art.º 61.º do Código do Processo de Trabalho o seguinte:
“2 - Se o processo já contiver os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir, pode o juiz, sem prejuízo do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, julgar logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa.”
O. Nesse sentido, decidiu este douto tribunal que, não havendo “excepções, nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer”:
“Afigura-se que os autos já contêm os elementos necessários ao conhecimento seguro e consciencioso dos pedidos, sendo que as partes já tiveram oportunidade de discutir as suas posições nos articulados, pelo que passo a proferir a seguinte sentença”
P. Inexistindo qualquer violação do acesso à justiça, do princípio “in dúbio pro reo”, da falta de colaboração entre as partes, ou do estado de direito. Sendo evidente a forma demagógica como a AUTORA/APELANTE cita artigos quase aleatórios sem delimitar qual a sua aplicação ao caso concreto, que diga-se, é nula.
Q. Pelo supra exposto, deverá a pretensão da Apelante ser julgada improcedente in totum.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Juizes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, mui doutamente suprirão, deverá a presente Apelação ser julgada totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, ser confirmada a decisão recorrida,
Como é de inteira JUSTIÇA!
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo subido os presentes autos a este tribunal, onde foi dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, pugnando a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer pela improcedência do recurso.
Não houve respostas ao parecer.
Tendo sido mantido o recurso nos seus precisos termos, foram colhidos os vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Nulidades da sentença;
2) Inconstitucionalidade da sentença;
3) Competência material do tribunal de trabalho;
4) Conversão do contrato celebrado entre Autora e Ré num contrato de trabalho sem termo.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
a) No dia 10 de Maio de 2020, a autora e a ré outorgaram o documento n.º 1, junto com a petição inicial, acordando que, a partir dessa data e com termo a 9/6/2020, aquela executaria para esta uma actividade socialmente útil de cuidados pessoais, no âmbito de um projecto aprovado pelo IEFP, no âmbito da Portaria n.º 82-C/2020, de 31/3;
b) E ainda que o contrato cessa no termo do prazo que foi fixado, salvo se tiver ocorrido prorrogação do projecto aprovada pelo IEFP.
c) Entre A. e R., foram sendo assinados contratos sucessivos por períodos de 1 e 3 meses, desde 10/5/2020 até 10/6/2021.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é saber se (i) a sentença é nula; (ii) a sentença é inconstitucional; (iii) o tribunal de trabalho é materialmente competente para apreciar das vicissitudes do contrato celebrado entre as partes; e (iv) o contrato celebrado entre Autora e Ré se converteu num contrato de trabalho sem termo.
1 – Nulidade da sentença
No entender da Apelante a sentença é nula, nos termos do art. 195.º do Código de Processo Civil, por não ter sido antecedida da realização da audiência prévia e por ter violado o princípio do contraditório, previsto no art. 3.º do Código de Processo Civil.
Dispõe o art. 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que:
1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Determina igualmente o art. 61.º do Código de Processo do Trabalho que:
1 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador nos termos e para os efeitos dos n.os 2 a 7 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 27.º do presente Código.
2 - Se o processo já contiver os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir, pode o juiz, sem prejuízo do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa.

Estatui também o art. 62.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo do Trabalho, que:
1 - Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 1 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada uma audiência prévia quando a complexidade da causa o justifique.
2 - A audiência prévia deve realizar-se no prazo de 20 dias, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo 591.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do preceituado no n.º 3 do artigo 49.º do presente Código.

Consagra, por fim, o art. 3.º, nºs. 3 e 4, do Código de Processo Civil, que.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

Apreciemos.
(i) Nulidade da sentença por não ter sido previamente realizada a audiência prévia
Ora, como resulta dos artigos citados, e independentemente daquilo que decorra no Código de Processo Civil para a convocação da audiência prévia, no caso das ações do foro laboral, relativamente à convocação da audiência prévia, aplica-se o disposto no n.º 1 do art. 62.º do Código de Processo do Trabalho.
E, a ser assim, só é convocada a audiência prévia quando a complexidade da causa o justifique, sendo a sua convocação a exceção e não a regra.
Cita-se, a este propósito, o acórdão do TRL, proferido em 13-10-2021:[3] [4]
I– No Código de Processo do Trabalho, ao contrário do previsto no Código de Processo Civil, a audiência prévia é convocada quando a complexidade da causa o justifique.
II– Em nosso entender, o legislador optou por essa solução, perante os interesses em presença no processo do trabalho, os princípios da simplicidade, celeridade e economia processuais que o regem, e a circunstância de se preverem no Código de Processo do Trabalho vários mecanismos com finalidades similares às da audiência prévia.

Deste modo, não tendo o tribunal a quo convocado a audiência prévia não cometeu qualquer irregularidade. Atente-se que nem a Apelante invoca que, no caso em apreço, a causa a decidir é complexa.
Pelo exposto, e quanto à invocada irregularidade processual por não convocação da audiência prévia, improcede a pretensão da Apelante.

(ii) Nulidade da sentença por violação do princípio do contraditório
Considera a Apelante que não foi dado cumprimento ao disposto no art. 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, uma vez que o tribunal a quo decidiu de mérito no saneador sem ter convocado previamente a audiência prévia, nem ter notificado as partes de que iria ser proferido saneador-sentença, considerando, por isso, ter existido uma decisão surpresa.
Conforme já referimos supra, não foi, nem tinha de ser, convocada a audiência prévia. Porém, o art. 61.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, determina que se o processo já contiver os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir, pode o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer, ou decidir do mérito da causa, mas sempre sem prejuízo do disposto nos nºs. 3 e 4 do artigo 3.º do Código de Processo Civil.
Por sua vez, o mencionado art. 3.º do Código de Processo Civil, por um lado, veda ao tribunal, excetuando os casos de manifesta desnecessidade, a possibilidade de decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (n.º 3) e, por outro, estatui expressamente que as exceções deduzidas no último articulado admissível podem ser respondidas pela parte contrária na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final (n.º 4). De igual modo, aliás, o art. 60.º, n.º 5, do Código de Processo do Trabalho, determina que às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final, contrariamente ao que ocorre com o pedido reconvencional, onde se mostra prevista a admissão de articulado de resposta (n.º 1 do art. 60.º do Código de Processo do Trabalho).[5] Porém, tal possibilidade de contraditório apenas se mostra admissível por escrito quando é deduzido pedido reconvencional ou oralmente quando são deduzidas exceções, inexistindo, no entanto, quando, perante os mesmos factos alegados na petição inicial, é apresentada, na contestação, uma versão jurídica diversa. Nessas situações, é jurisprudencialmente consensual que a prolação de saneador-sentença em que é adotada uma dessas soluções jurídicas não constitui decisão-surpresa, nem implica a violação do princípio do contraditório consagrado no art. 3.º do Código do Processo Civil.
Cita-se a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 12-07-2018:[6] [7]
I - A decisão surpresa que a lei pretende afastar com a observância do princípio do contraditório, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos que não perspetivavam de decisões que já eram esperadas.
II - A decisão surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter perspetivado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento.

Cita-se igualmente, pela sua relevância, o acórdão do STJ proferido em 11-03-2010:[8]
3. O princípio da proibição das decisões-surpresa, contido no n.º 3 do art. 3º do CPC, vale apenas para os casos em que a qualificação jurídica que o juiz se propõe adoptar ou a subsunção a determinado instituto que se propõe fazer não correspondam, de todo, àquilo com que as partes, pelas posições assumidas no processo, possam contar.
4. Esse princípio não pode ser levado tão longe que esqueça que as partes são representadas por técnicos que devem conhecer o direito e que, por isso, conhecendo ou devendo conhecer os factos, devem igualmente prever todas as qualificações jurídicas de que os mesmos são susceptíveis.

Na situação que ora nos ocupa, a Ré, na sua contestação, deduziu pedido reconvencional, ao qual, porém, a Autora não apresentou qualquer resposta, apesar de legalmente o poder fazer. Nessa contestação não foram invocadas exceções, tendo apenas a Ré apresentado sobre os mesmos factos uma outra posição jurídica.
A Apelante não veio impugnar a matéria factual dada como provada na sentença recorrida, limitando-se apenas a considerar que o simples facto de a 1.ª instância ter decidido de mérito em sede de saneador implicou, para si, uma decisão-surpresa, visto que era sua expectativa que o processo seguiria para julgamento.
Porém, aquilo que o art. 3.º, nºs. 3 e 4, do Código do Processo Civil, protege não é a expectativa que as partes possam ter sobre a dinâmica processual, antes sim, o conteúdo que consta da decisão proferida, ou seja, viola o princípio do contraditório as decisões que sejam proferidas sobre concretas questões de direito ou de facto sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, já não viola o princípio do contraditório se o tribunal a quo decidir proferir decisão de mérito findos os articulados sem previamente comunicar tal intenção às partes, desde que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que venham a ser decididas.
A legitimidade para a prolação de um saneador-sentença no momento em que o mesmo é prolatado afere-se, assim, nos termos do art. 61.º do Código de Processo do Trabalho.
Ora, no caso dos autos, o tribunal a quo, findos os articulados, entendeu que o processo já continha os elementos necessários para a prolação imediata de decisão, que a simplicidade da causa permitia tal decisão imediata e que as partes já tinham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões a decidir.
A Apelante não põe em causa os dois primeiros requisitos, apenas invoca o terceiro, ainda que a sua fundamentação se afaste do conteúdo da decisão proferida, uma vez que não invoca qual tenha sido o conteúdo da decisão que foi para si uma surpresa.
No entanto, não deixaremos de apreciar a decisão proferida.
A sentença recorrida veio considerar que o contrato celebrado entre as partes não consubstancia um contrato de trabalho, pelo que não é regida pelo Código do Trabalho, mas sim, pela Portaria que instituiu tal tipo de contrato. Ora, essa é exatamente a versão jurídica apresentada pela Ré, sendo que a própria Autora faz menção à referida Portaria, considerando apenas que, a partir de determinada data, a sua situação contratual deixou de estar abrangida por tal Portaria.
Deste modo, não só a posição jurídica constante do saneador-sentença corresponde à versão jurídica apresentada pela Ré, pelo que a Autora tinha dela conhecimento, como, tendo conhecimento da Portaria, a qual é, inclusive, mencionada pela Autora na sua petição inicial, não poderia deixar de prever a posição jurídica adotada pelo tribunal a quo como uma das possíveis decisões jurídicas a ser proferida.
Nesta conformidade, não se mostra violado o princípio do contraditório no saneador-sentença proferido, improcedendo, nesta parte, a pretensão da Apelante.

2 – Inconstitucionalidade da sentença
Considera a Apelante que, tendo o princípio do contraditório consagração constitucional, ao ser violado tal princípio foi violada a Constituição da República Portuguesa nos arts. 2.º, 20.º, 32.º, n.º 2, 202.º e 205.º
Conforme referimos supra, inexistiu qualquer violação do principio do contraditório, o qual, aliás, se mostra expressamente consagrado no art. 3.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Civil, pelo que, também aqui, improcede a alegada inconstitucionalidade.

3 – Competência material do tribunal de trabalho
Entende a Apelante que é competente materialmente para dirimir o litígio o Tribunal do Trabalho e não o Tribunal Administrativo e Fiscal, pois que este seria o competente até 09-08-2020, porém, de tal data em diante a prestação de trabalho por parte da Apelante deixou de se enquadrar no regime especial aludido na douta sentença, mas sim no regime geral de contrato de trabalho, revisto no Código de Trabalho, concretamente no art. 126.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, pelo que deverá a douta sentença ora recorrida ser revogada, sendo substituída por outra que julgue o tribunal de trabalho competente
Vejamos.
Apesar de o tribunal a quo não ter invocado a questão da incompetência material do tribunal de trabalho, razão pela qual decidiu de mérito, considerou, porém, na sua fundamentação, que a apreciação das vicissitudes do contrato celebrado entre Autora e Ré não eram da competência desse tribunal, mas sim do tribunal administrativo, e fê-lo nos moldes que se cita:
Por último, este juízo do trabalho também não pode conhecer da pretensão da autora quanto às alegadas vicissitudes sob o prisma da relação estabelecida no âmbito de Medida de Apoio ao Reforço de Emergência de Equipamentos Sociais e de Saúde porque isso são questões da competência do foro administrativo, que envolvem igualmente o IEFP que era uma das entidades que patrocinava, beneficiava e suportava em larga medida a bolsa paga à autora – cfr. a decisão supra sobre a inadmissibilidade da reconvenção.

A seção social da Relação de Évora já se pronunciou sobre esta matéria no acórdão proferido em 16-05-2019,[9] cujo sumário igualmente se cita:
3. O contrato emprego-inserção, celebrado entre um desempregado beneficiário de prestações de desemprego, e um município, não constitui um vínculo de trabalho em funções públicas.
4. Assim, face ao art. 4.º n.º 4 al. b) do ETAF, é competente o Juízo do Trabalho para conhecer as questões emergentes de acidentes de trabalho ocorridos no âmbito daquele contrato.

Conforme bem se refere no acórdão proferido em 19-10-2017[10] no Tribunal de Conflitos:[11]
III – Não tendo o trabalhador em causa um vínculo para o exercício de funções públicas de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, o acidente em causa não pode ser considerado como acidente em serviço, nos termos do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de Novembro.
IV – Nos termos do artigo 4.º, n.º 4, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, incumbe aos tribunais judiciais a competência para conhecer de processo visando a reparação das consequências do referido no número 1.

Efetivamente se dos autos não resultar, entre a Autora e a Ré, a existência de um vínculo de trabalho em funções públicas, nos moldes constantes do art. 6.º, n.º 3,[12] da Lei n.º 35/2014, de 20-06, não é possível atribuir a competência material aos tribunais administrativos e fiscais, em face do que dispõe o art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[13], e concretamente no seu n.º 4, al. b).
Ora, basta atentar nos factos que foram dados como provados para se constatar que deles não resulta a existência entre a Autora e a Ré de um vínculo de trabalho em funções públicas, pelo que a competência para apreciação das vicissitudes do contrato celebrado entre as partes terá de ser do tribunal de trabalho e isto porque entre as partes se mostra celebrado um contrato de trabalho atípico.
Conforme bem esclarece o acórdão do STJ, proferido em 19-05-2021:[14]
Da análise do contrato que acabámos de transcrever, resulta que o Autor se obrigou para com o Município ... a prestar ao a sua atividade, tendo como contrapartida os direitos previstos na cláusula 3.ª do contrato, que são: a) Uma bolsa de ocupação mensal, de montante igual ao valor do Indexante dos Apoios Sociais; b) Refeição ou um subsídio de alimentação referente a cada dia de atividade, de valor correspondente ao atribuído à generalidade dos trabalhadores do primeiro outorgante ou, na sua falta, ao atribuído aos trabalhadores que exerçam funções públicas; c) O pagamento das despesas de transporte, entre a residência habitual e o local de atividade, se não for assegurado o transporte até ao local de execução do projeto; d) (…); e) Um seguro que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas no projeto de trabalho socialmente necessário.
O n.º 2 da mesma cláusula 3.ª, prevê que o Município se comprometa a respeitar as condições de segurança e saúde no trabalho a que estiver obrigado nos termos legais e convencionais do setor de atividade em que se integra.
Assim, se, por um lado, o Município se obrigou a assegurar essas condições de segurança e saúde no trabalho, por outro, subscreveu um seguro que cobrisse os riscos que pudessem ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas no âmbito do contrato de emprego inserção+.
[…]
Mais resulta do referido clausulado, com relevância para a decisão da causa, que nos termos da cláusula 2.ª, o trabalho do Autor seria exercido no Município de ... de acordo com o horário que legal e convencionalmente está em vigor para o setor de atividade, onde se insere o projeto da medida contrato emprego-inserção+ e conforme acordado entre as partes, ou seja, entre as 09:00 e as 17:00.
Na cláusula 4.ª encontram-se previstos os deveres do Autor, dos quais salientamos os seguintes: aceitar o trabalho que lhe fosse proposto, (desde que compatível com a sua capacidade física, qualificação e experiência profissionais); tratar com urbanidade o primeiro outorgante, seus representantes, bem como outros colaboradores e demais beneficiários; utilizar de forma zelosa os equipamentos que lhe fossem confiados para a execução das suas funções; ser leal ao primeiro outorgante, não transmitindo para o exterior informações de que tenha tomado conhecimento durante a execução do projeto.
Estes deveres são comuns aos deveres previstos pelo legislador para o trabalhador que celebrou um contrato de trabalho, conforme o disposto no art.º 128.º do Código do Trabalho, resultando ainda do referido contrato, em concreto da cláusula 5.ª, um dever de assiduidade por parte do Autor.
Já não resulta expressamente do contrato, mas do disposto no artigo 13.º, n.ºs 3 e 5 da referida Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro, aplicável ao contrato, que o Município, enquanto destinatário do trabalho do autor, era parcialmente responsável pelo pagamento da bolsa que o trabalhador auferia (cabendo a outra parte ao IEFP).
Do exposto resulta que o contrato que o Autor celebrou com o Município de ..., configura uma relação de trabalho por conta de outrem, na medida em que, era aquele Município, enquanto destinatário da atividade prosseguida pelo Autor no exercício das suas funções, quem determinava o trabalho que o mesmo tinha de realizar, a forma como o tinha de desempenhar, quem controlava a prestação efetiva desse trabalho e quem lhe pagava uma bolsa e demais componentes retributivas, motivadas pela prestação do trabalho, ou seja, como contrapartida pelo trabalho prestado, sem se confundirem com a pensão do rendimento social de inserção de que o mesmo era beneficiado.

É verdade que, no caso, não estão em causa contratos de emprego-inserção ou contratos de emprego-inserção+, regulados pela Portaria n.º 128/2009, de 30-01,[15] no entanto, estão em causa tais tipos de contrato ainda que regulados pela Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03,[16] a qual introduziu um regime extraordinário, mantendo-se, porém, nos mesmos termos, por parte daquele que exerce a atividade, o direito (i) à bolsa mensal, cujo pagamento de 10% pertence à entidade beneficiária da atividade; (ii) à alimentação ou subsídio de alimentação ou, na sua ausência, subsídio de valor idêntico ao montante fixado para a generalidade dos trabalhadores que exercem funções públicas; (iii) ao transporte entre a residência habitual e o local onde decorre a atividade ou subsídio de transporte até ao valor de 10% do IAS; (iv) ao seguro de acidentes de modo a cobrir os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas no projeto; e (v) a equipamento de proteção individual adequado à realização da atividade prevista no âmbito do projeto.
Relativamente a estas disposições que constam da referida Portaria, ficou inscrito no contrato celebrado entre Autora e Ré, na cláusula 3.ª, que aquela tem direito a receber desta (i) uma bolsa mensal no valor de €658,22; (ii) alimentação referente a cada dia de atividade; (iii) transporte entre a residência habitual e o local onde decorre a atividade, assegurado pela Ré ou, na sua ausência, subsídio de transporte até ao valor de €43,88; (iv) um seguro de acidentes que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas no projeto de atividade socialmente útil; e (v) equipamento de proteção individual adequado à realização da atividade, bem como informação escrita sobre orientações das autoridades de saúde no contexto da pandemia da doença COVID 19, aplicáveis à atividade.
Por sua vez, a Autora comprometeu-se a respeitar as condições de segurança e saúde no trabalho a que estiver obrigada nos termos legais e convencionais do setor da atividade que exerce, bem como as orientações das autoridades de saúde no contexto da pandemia da doença COVID 19, aplicáveis à atividade.[17]
Resulta ainda do referido contrato que a Autora se obrigou a proporcionar à Ré, que aceita, a execução de uma atividade socialmente útil, na área de cuidados Pessoais, a qual terá lugar nas instalações da Ré, de acordo com o horário legal e convencionalmente que está em vigor para aquele setor de atividade, em horário diurno, salvo caso excecionais.[18]
A Autora obrigou-se, ainda, nos termos da cláusula 4.ª do contrato, a prestar a atividade socialmente útil no âmbito do projeto, desde que (i) seja compatível com a sua capacidade física, qualificações e experiência profissional; (ii) consista na satisfação de necessidades no âmbito do apoio social ou da prestação de cuidados de saúde no contexto da pandemia da doença COVID 19; e (iii) permita a execução das tarefas de acordo com as normas legais de higiene, segurança e saúde no trabalho e de como as orientações das autoridades de saúde no contexto da pandemia da doença COVID 19. A Autora obrigou-se igualmente a tratar com urbanidade a Ré e seus representantes, colaboradores e demais participantes no projeto; a guardar lealdade à Ré, designadamente não transmitindo para o exterior informações de que tenha tomado conhecimento durante a execução do projeto; a utilizar com cuidado e zelar pela boa conservação de equipamentos e demais bens que lhe sejam confiados, pela Ré, no decurso da execução do projeto[19] e a cumprir com assiduidade as suas tarefas.[20]
Ora, este complexo de obrigações recíprocas reproduz alguns dos pontos constantes dos arts. 127.º e 128.º do Código do Trabalho, diríamos até, os pontos essenciais desses artigos, ou seja, os direitos e os deveres impostos ao empregador e ao trabalhador no Código do Trabalho.
Na realidade, em face dos diversos elementos constantes deste contrato, ainda que não estejamos perante um contrato típico de trabalho, não deixamos de estar perante um contrato de trabalho, ainda que atípico, face à evidente subordinação jurídica daquele que exerce a atividade profissional perante aquele que a recebe.
Cita-se, ainda, a este propósito, o sumário do acórdão proferido por esta relação em 27-10-2022:[21]
i) O contrato de emprego e inserção, constitui um contrato que visa a inserção dos desempregados no mercado de trabalho. Diferencia-se dos contratos de trabalho em sentido estrito quanto à natureza do vínculo e à forma de pagamento, mas tem em comum a subordinação típica dos contratos de trabalho. Constitui na sua essência um contrato de trabalho especial por conta de outrem, tipicamente definido.

Nesta conformidade, consigna-se a competência material do tribunal de trabalho para apreciar as questões constantes da ação interposta.

4 – Conversão do contrato celebrado entre Autora e Ré num contrato de trabalho sem termo
Entende a Apelante que o contrato que celebrou com a Ré, por ter sido prorrogado por um período superior ao estipulado pela Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, ultrapassado esse prazo, converteu-se num contrato de trabalho sem termo, nos termos dos arts. 141.º e 146.º do Código do Trabalho.
Estipulava o art. 2.º, n.º 3, da Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, que:
3 - Os projetos referidos no número anterior desenvolvem-se no âmbito definido no n.º 1, enquadram-se no conceito de trabalho socialmente útil e têm uma duração de um mês, prorrogável mensalmente até um máximo de três meses, mediante requerimento a remeter ao Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I. P. (IEFP, I. P.).

Dispunha o art. 7.º, n.º 3, da referida Portaria, que:
3 - A aplicação do presente regime tem a duração de três meses, sem prejuízo da duração dos projetos prevista no n.º 3 do artigo 5.º da Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro, na sua redação atual.

Dispunha, por fim, o art. 10.º que:
1 - A presente portaria vigora pelo período de três meses, com possibilidade de prorrogação em função da avaliação feita.
2 - A presente portaria entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Com a Portaria n.º 162/2020, de 30-06, o art. 2.º, n.º 3, da Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, passou a ter a seguinte redação:
3 - Os projetos referidos no número anterior desenvolvem-se no âmbito definido no n.º 1, enquadram-se no conceito de trabalho socialmente útil e têm uma duração de um mês, prorrogável mensalmente com efeitos até à data de cessação da produção de efeitos da presente portaria, nos termos dispostos no artigo 10.º, mediante requerimento a remeter ao Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I. P. (IEFP, I. P.).

E o art. 7.º, n.º 3, passou a ter a seguinte redação:
3 - O presente regime aplica-se até à data de cessação da produção de efeitos da presente portaria, nos termos dispostos no artigo 10.º, sem prejuízo da duração dos projetos prevista no n.º 3 do artigo 5.º da Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro, na sua redação atual.

Por fim, o art. 10.º, n.º 1, passou a consignar que:
1 - A presente portaria vigora até 31 de dezembro de 2020.

Esta Portaria entrou em vigor em 1 de julho de 2020 (art. 7.º da Portaria n.º 162/2020, de 30-06).
Posteriormente, foi publicada a Portaria n.º 218/2020, de 16-09, que procedeu a profundas alterações na Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, e que, quanto à prorrogação destes contratos e à vigência da própria Portaria, alterou os arts. 2.º, n.º 4 e 10.º, nos seguintes moldes:
Art. 2.º
4 - Os projetos referidos nos números anteriores desenvolvem-se no âmbito definido no n.º 1, enquadram-se no conceito de trabalho socialmente útil e têm uma duração inicial de um a três meses completos, sendo prorrogáveis por períodos de um, dois ou três meses, com efeitos até à data de cessação da produção de efeitos da presente portaria, nos termos dispostos no artigo 10.º, mediante requerimento a remeter ao Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I. P. (IEFP, I. P.).

Art. 10.º
1 - A presente portaria entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos até 31 de dezembro de 2020, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Após a data referida no número anterior, a entidade pode ainda apresentar pedidos ao abrigo do artigo 5.º-A, no prazo de 30 dias úteis após a data de fim do projeto.
3 - Os pedidos efetuados ao abrigo do disposto no artigo 7.º-A devem ser apresentados até 31 de dezembro de 2020, podendo produzir efeitos após essa data.

A Portaria n.º 302/2020, de 24-12, veio novamente proceder à alteração da Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, determinando, sobre a temática em análise, nos arts. 2.º, n.º 5 e 10.º, n.º 1, que:
Art. 2.º
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, os projetos com data de cessação prevista para o último mês de produção de efeitos da presente portaria, podem ser prorrogados por período inferior a um mês, com data limite de 30 de junho de 2021.

Art. 10.º
1 - A presente portaria entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos até 30 de junho de 2021, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

Também a Portaria n.º 128/2021, de 24-06, veio alterar a Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, passando os arts. 2.º, nºs. 4 e 5, e 10.º, n.º 1, a ter a seguinte redação:
Art. 2.º
4 - Os projetos referidos nos números anteriores desenvolvem-se no âmbito definido no n.º 1, enquadram-se no conceito de trabalho socialmente útil e têm uma duração inicial de um a três meses completos, sendo prorrogáveis por períodos de um, dois ou três meses, até ao limite de seis meses consecutivos, com efeitos até à data de cessação da produção de efeitos da presente portaria, nos termos dispostos no artigo 10.º, mediante requerimento a remeter ao Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I. P. (IEFP, I. P.).
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, os projetos com data de cessação prevista para o último mês de produção de efeitos da presente portaria podem ser prorrogados por período inferior a um mês, com data limite de 31 de dezembro de 2021.

Art. 10.º
1 - A presente portaria entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos até 31 de dezembro de 2021, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

Por fim, a Portaria n.º 314/2021, de 22-12, procedeu à alteração dos arts. 2.º, n.º 5, e 10.º, n.º 1, da Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, nos seguintes termos:
Art. 2.º
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, os projetos com data de cessação prevista para o último mês de produção de efeitos da presente portaria podem ser prorrogados por período inferior a um mês, com a data limite de 31 de março de 2022.

Art. 10.º
1 - A presente portaria entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos até 31 de março de 2022, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

Resulta da análise das sucessivas alterações que:
- na versão inicial (Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03) o projeto tinha a duração de um mês prorrogável mensalmente até um máximo de três meses, terminando o período da sua vigência em 01-07-2020;
- com a primeira alteração (Portaria n.º 162/2020, de 30-06), que entrou em vigor em 01-07-2020, os projetos continuavam a ter a duração de um mês, prorrogável mensalmente até ao fim da vigência dessa Portaria, ou seja, até 31-12-2020;
- com a segunda alteração (Portaria n.º 218/2020, de 16-09), que entrou em vigor em 17-09-2020, os projetos podiam ter a duração de um a três meses completos prorrogáveis também de um a três meses até à data da cessação da produção de efeitos dessa Portaria, ou seja, até 31-12-2020;
- com a terceira alteração (Portaria n.º 302/2020, de 24-12), que entrou em vigor em 25-12-2020, manteve-se a duração dos projetos de um a três meses completos prorrogáveis também de um a três meses até à data da cessação da produção de efeitos dessa Portaria, que, com esta Portaria, passou a ser em 30-06-2021;
- com a quarta alteração (Portaria n.º 128/2021, de 24-06), que entrou em vigor em 25-06-2021, apesar de se manter a duração dos projetos de um a três meses completos prorrogáveis também de um a três meses, estabeleceu-se, pela primeira vez, um limite para a prorrogação consecutiva, determinando-se que tal prorrogação não poderia ultrapassar seis meses consecutivos.
- Com a quinta e última alteração (Portaria n.º 314/2021, de 22-12), que entrou em vigor em 23-12-2021, manteve-se em vigor o regime estabelecido pela anterior Portaria.
No caso dos autos, a Autora celebrou com a Ré, em 10-05-2020, um contrato no âmbito da Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, sendo tal contrato sucessivamente renovado, ao abrigo das ulteriores alterações legislativas, vindo a cessar definitivamente em 10-06-2021. Ora, a alteração legislativa que veio a proibir a prorrogação superior a seis meses consecutivos apenas entrou em vigor em 25-06-2021, ou seja, após a cessação do contrato dos autos, pelo não se lhe aplicou.
Nesta conformidade, o prazo de prorrogação do contrato celebrado nos autos, nos termos da Portaria n.º 82-C/2020, de 31-03, e respetivas alterações, nunca foi ultrapassado, pelo que não se mostra verificada situação mencionada pela Autora.
Aliás, o tribunal a quo, apesar de ter invocado, na sua fundamentação, a incompetência material, sem que, no entanto, daí tivesse retirado qualquer consequência jurídica, não deixou de apreciar esta situação, invocado igualmente a inexistência de qualquer situação de ultrapassagem do prazo previsto de prorrogação consecutiva na referida Portaria e respetivas alterações.
Pelo exposto, apenas importa concluir pela improcedência, nesta parte, da pretensão da Apelante.
Concluiu-se, assim, pela improcedência total do recurso interposto, em face da parte decisória que consta da sentença recorrida, ainda que, em relação à competência material do tribunal de trabalho, se tenha adotado fundamentação diferente.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, ainda que com fundamentação parcialmente diferente.
Custas pela Apelante (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário.
Notifique.
Évora, 26 de outubro de 2023
Emília Ramos Costa (relatora)
Paula do Paço
Mário Branco Coelho

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.
[2] Doravante AA.
[3] No âmbito do processo n.º 9999/20.0T8LSB.L1-4, consultável em www.dgsi.pt.
[4] Veja-se, em idêntico sentido, o acórdão do TRE proferido em 26-01-2010, no âmbito do processo n.º 834/08.8TTSTB.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Desde que o valor da causa exceda a alçada do tribunal, o que é, aliás, a situação dos autos.
[6] No âmbito do processo n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Em idêntico sentido, o acórdão do STJ proferido em 27-09-2011 no âmbito do processo n.º 2005/03.0TVLSB.L1.S1 e o acórdão do TRL proferido em 24-02-2021 no âmbito do processo n.º 2157/20.5T8SNT.L1-4; consultáveis em www.dgsi.pt.
[8] No âmbito do processo n.º 1860/07.0TVLSB.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[9] No âmbito do processo n.º 1602/18.4T8TMR.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[10] No âmbito do processo n.º 015/17, consultável em www.dgsi.pt.
[11] Vide também os acórdão do STJ proferido em 19-05-2021 no âmbito do processo n.º 2953/17.0T8BCL.G1.S1; e do TRP proferidos em 23-11-2020 no âmbito do processo n.º 4627/19.9T8MAI.P1 e em
[12] Por contrato de trabalho em funções públicas, por nomeação ou em comissão de serviço.
[13] Doravante ETAF.
[14] No âmbito do processo n.º 2953/17.0T8BCL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[15] Devidamente atualizada, cuja última versão resulta da Portaria 20-B/2014, de 30-01.
[16] E respetivas alterações – Portaria n.º 162/2020, de 30-06, Portaria n.º 218/2020 de 16-09, Portaria n.º 302/2020 de 24-12, Portaria n.º 128/2021 de 24-06 e Portaria n.º 314/2021 de 22-12.
[17] Cláusula 3.ª, n.º 2 do Documento 1 junto com a petição inicial.
[18] Cláusulas 1.ª e 2.ª
[19] Cláusula 4.ª
[20] Cláusula 5.ª
[21] No âmbito do processo n.º 34/16.3T8PTG.E1, consultável em www.dgsi.pt.