Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1976/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
COMPROPRIEDADE
OBRAS DE INOVAÇÃO
Data do Acordão: 09/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 5º JUÍZO CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1360, 1362, 1363,1364, 1405, 1407, 1408 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Numa acção em que se discute a existência de uma servidão de vistas, ao dar-se como provado que o prédio dos Autores tem várias janelas abertas sobre outro prédio (serviente), sem que se tenham precisado as suas dimensões, não se justifica a sanção comi nada no art.646 n.º 4 do Código de Processo Civil.
2. É que termo "janela", embora traduza um conceito técnico-jurídico, tem também um significado corrente, inequivocamente identificável.
3. Apesar de constituída uma servidão de vistas, o titular do prédio serviente pode levar a cabo construções mais baixas, situadas a um nível inferior, por forma a não prejudicar a entrada de ar e luz, ou seja, a função normal da janela.
4. O proprietário onerado com a servidão, embora sujeito à limitação de construir no espaço correspondente ao interstício legal, não perde o direito de propriedade sobre este, devendo apenas guardar a distância de metro e meio na extensão da janela, em que se exterioriza a servidão de ar e luz, e já não em toda a extensão da parede onde as obras foram feitas.
5. Um comproprietário não pode, sem consentimento dos demais, praticar obras de modificação ou transformação na coisa comum.
6. Trata-se, neste caso, do exercício do direito de disposição, previsto no art.1305 do CC, que engloba tanto actos jurídicos de alienação e oneração da coisa, como actos materiais de transformação, direito que só pode ser exercido pelo conjunto dos comproprietários, ou por algum ou alguns, com consentimento dos restantes.
7. A sanção legal para a intervenção ilegítima traduz-se na reposição ao estado anterior, através da demolição, desde logo porque essa actuação é equiparável aos actos de disposição, ineficazes relativamente ao comproprietário que não deu o seu consentimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

1.1. - Os Autores – A... e marido B... – instauraram no Tribunal da Comarca de Leiria, acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os Réus – C... e marido D....
Alegaram, em resumo:
Os Autores são proprietários de um prédio urbano, confinante com um prédio urbano, de que a Autora e Ré são comproprietárias, ambos situados em Vigigal, freguesia de Pousos, Leiria.
Contra a vontade dos Autores, os Réus procederam a obras de inovação no prédio de que a Autora e Ré são comproprietárias que consistira, designadamente, na construção de uma parede encostada à moradia daqueles.
Esta parede tapou a janela da casa de banho, sita ao nível do rés-do-chão, chegando o tecto da construção inovada à base das janelas do primeiro andar, violando, assim, o direito de servidão de vistas, constituído por usucapião.
Em consequência da actuação dos Réus, sofreram danos patrimoniais e não patrimoniais.
Pediram cumulativamente a condenação dos Réus:
a) - A demolir a construção inovada, nomeadamente a parede que encostaram à do prédio dos Autores, e a repor tudo como estava antes do início da obra;
b) – A pagar aos AA quantia não inferior a 500.000$00, a título de danos não patrimoniais;
c) – A pagar aos AA a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, correspondente a gastos feitos para consulta com o seu Advogado, telefonemas e honorários de Advogado e deslocações deste em serviço directo com o presente processo.
Contestaram os Réus, alegando, em síntese, inexistir qualquer compropriedade da Autora e Ré sobre o prédio urbano, não se verificando a servidão de vistas, por não ter decorrido o prazo legal da usucapião, sendo, por isso, lícitas as obras realizadas.
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:
a) - Condenar os RR na demolição das paredes e da cobertura por si levantadas e que lhes permitiram cobrir com um só tecto os três anexos, - cozinha, quarto de banho e quarto – existentes no prédio sito em Vidigal de Baixo e inscrito na matriz urbana da freguesia dos Pousos sob o artigo 53, prédio este de que as litigantes mulheres são comproprietárias;
b) - Condenar os RR. A pagarem aos AA. a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pelas suas condutas;
c) – Absolver os Réus do demais peticionado.

1.2. - Autores e Réus interpuseram recurso de apelação, mas o recurso dos Autores foi julgado deserto por falta de alegações.
Apelação dos Réus – conclusões:
1º) - O M.mo Juiz fez uma interpretação incorrecta das normas do Código Civil e Processo Civil, havendo graves contradições nas respostas aos quesitos.
2º) - Tendo em conta a matéria provada, o M.mo Juiz não devia ter condenado os apelantes na demolição das paredes e da cobertura por si levantadas e que lhes permitiram cobrir com um só tecto os três anexos – cozinha, quarto de banho e quarto – existentes no prédio dito em Vidigal Baixo e inscrito na matriz urbana da freguesia dos Pousos sob o artigo 53, prédio este que as litigantes mulheres são comproprietárias e, nem no pagamento aos Apelados da quantia de € 2.500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pelas suas condutas.
Contra alegaram os Autores sustentando a improcedência da apelação e requereram a condenação dos Apelantes como litigantes de má-fé em multa e numa indemnização, não inferior a € 2.500,00.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).

Por seu turno, no nosso sistema processual civil, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova.

Recurso de facto:

A revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL 329-A/95 de 12/2, instituiu, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto.
Porém, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos nos arts.690 nº1 e 690-A nº1 e 2 do CPC.
O art.690 nº1 do CPC impõe a obrigatoriedade do recorrente de formular conclusões, que delimitam o âmbito do recurso, sob pena do mesmo não ser conhecido.

Após o estabelecimento da gravação da prova e da consequente possibilidade da matéria de facto poder ser alterada em recurso ( art.712 do CPC ), foi acrescentado o art. 610-A do CPC, que determinou que, sob pena de rejeição, o recorrente que impugne aquela matéria deverá especificar os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que levam a decisão diversa da recorrida.

Tanto o argumento histórico, como o sistemático, impõem que tal especificação deverá obrigatoriamente constar das conclusões do recurso ( cf., por ex., Ac do STJ de 5/2/04 ( Bettencourt de Faria ), www dgsi.pt/jstj ).

Os Apelantes não impugnaram a decisão de facto na forma consentida pelos arts. 690 nº1 e art.690-A do CPC.

Ainda que nas alegações tenham procedido à transcrição dos depoimentos de determinadas testemunhas, o certo é que não especificaram os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, requisito indispensável para a apreciação do recurso de facto, tal como prescreve expressamente o nº1 a) do art.690-A do CPC ( “ deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição” ).

Não se trata sequer de mera deficiência, mas de total omissão sobre os pontos de facto nas conclusões, sendo certo que nem eles são ao menos perceptíveis e inteligíveis nas alegações.

A não satisfação deste ónus por parte dos apelantes implica a rejeição imediata do recurso, como resulta directamente da lei, pelo que nem sequer há lugar a convite prévio com vista a suprir tal omissão ( cf., AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª ed., pág.466, LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, pág.466, Ac do STJ de 20/3/03 ( Araújo de Barros ) e de 9/7/03 ( Neves Ribeiro ), www dgsi.pt/jstj ).

Por seu turno, é inócua a conclusão 1ª ao apontar “ graves contradições nas respostas aos quesitos “ (sic), pois nem sequer as referenciam, não passando de uma afirmação vaga, imprecisa e até irreflectida.
Em resumo, sendo de rejeitar o recurso de facto e não havendo que proceder a qualquer alteração oficiosa, a matéria de facto descrita na sentença mantém-se intangível.
2.2. - Os factos provados:
1) - Encontra-se inscrito em nome dos AA. na matriz predial urbana da freguesia dos Pousos concelho de Leiria , sob o artº 1911, o prédio sito na Rua da Raposeira, em Vidigal, composto de rés do chão para habitação e arrumos em uma divisão assoalhada e uma cozinha, uma casa de banho e uma garagem, 1º andar para habitação com três assoalhadas, uma casa de banho, vestíbulo, terraço e um sótão para arrumos, varanda e logradouro, a confrontar do Norte com Maria dos Santos, do Sul com estrada camarária, do nascente com caminho público e do poente com Mário dos Santos, com a superfície coberta de 95+95+20 m2 e logradouro com 30 m2 (Alínea A) dos factos assentes).
2) - Por escritura outorgada no dia 6/8/82 na secretaria notarial de Leiria, José Rosa Serôdio e mulher, Cristina do Carmo Pires, declararam serem donos de 4/6 partes indivisas de uma casa de habitação, com dependências e logradouro, no sítio e limite do Vidigal, freguesia de Pousos, concelho de Leiria, a confrontar do Norte com Mário dos Santos, nascente caminho público, Sul José Carreira Alexandre e poente com estrada municipal, omisso na Conservatória do Registo Predial, do declararam fazer doação, em comum e partes iguais, a suas filhas Maria Fernanda Dinis Serôdio e Natália Dinis Serôdio, as quais declararam aceitar a doação, conforme documento junto a fls. 6-7 do apenso de embargo de obra nova e que aqui se dá por reproduzido (Alínea B) dos factos assentes).
3) - Por escritura pública outorgada no dia 21 de Fevereiro de 1996 na secretaria notarial de Leiria, a aqui Ré arrogou-se proprietária, por o haver adquirido por usucapião, do imóvel identificado como prédio composto de rés-do-chão, destinado a habitação com uma dependência e logradouros, com a área de 40 m2 , dependência com 30 m2 e logradouro com a área de 1830 m2 (sito em Vidigal de Baixo) freguesia de Pousos, concelho de Leiria, a confrontar do norte e poente com Joaquim Martins Pereira, Sul com José Reis Melo e nascente com caminho público, inscrito na matriz urbana da respectiva freguesia sob o artº 53 e não descrito na Conservatória do Registo Predial (Alínea C) dos factos assentes).
4) - Por sentença proferida em 2/12/99 no âmbito da acção ordinária que correu termos no 3° Juízo Cível desta comarca sob o nº 431/99, em que foram AA os aqui AA e RR os ora RR, foi reconhecida a autora como comproprietária do prédio objecto da escritura de justificação a que se refere a alínea anterior, ordenando-se o cancelamento do registo de aquisição do mesmo prédio a favor dos RR (Alínea D) dos factos assentes).
5) - Os RR obtiveram, relativamente ao prédio inscrito na matriz sob o art. 53º, alvará de licença com o nº 51/2001, emitido pela Câmara Municipal de Leiria, conforme documento junto a fls. 52 do apenso de embargo de obra nova, cujo teor se dá aqui por reproduzido, e onde consta que a sua utilização é para «garagem e muro e melhoramentos de habitação» (Alínea E) dos factos assentes).
6) - O referido prédio inscrito na matriz sob o artigo 53 confronta a norte com o prédio dos AA, aludido em A) (resposta ao facto nº 1 da base instrutória).
7) - Os RR mandaram fazer no prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 53 obras de inovação e ampliação correspondentes à edificação de paredes e cobertura (resposta ao facto nº 2 da base instrutória).
8) - As quais não foram consentidas pelos AA (resposta ao facto nº 3 da base instrutória).
9) - As obras licenciadas pelo alvará referido em E) não contemplam a ampliação em altura ou largura da casa existente (resposta ao facto nº 4 da base instrutória).
10) - Já 09.07.99, aquando da exposição de um cartaz alusivo ao pedido de licenciamento, ao Autores pediram à CML, através de exposição do seu mandatário enviada sob registo que não fosse autorizada qualquer obra no prédio inscrito na matriz sob o art. 53 (resposta ao facto nº 5 da base instrutória).
11) - Jamais o mandatário da Requerente obteve qualquer resposta da CML (resposta ao facto nº 6 da base instrutória).
12) - Os Autores fizeram mais uma exposição à CML, manifestando todo o seu descontentamento pela forma como as obras foram licenciadas, e pediram a intervenção da fiscalização e o embargo das obras, sem obter qualquer resposta (resposta ao facto nº 7 da base instrutória).
13) - Os RR construíram uma parede encostada à moradia dos Autores (resposta ao facto nº 8 da base instrutória).
14) - Que já tapou, por inteiro, uma janela da sua casa, e que é o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1911 (resposta ao facto nº 9 da base instrutória).
15) - O qual confronta, a sul, com o prédio inscrito no artigo 53 e tem várias janelas abertas sobre o mesmo (resposta ao facto nº 10 da base instrutória).
16) - A parede mandada levantar pelos Réus vedou por completo a janela da casa de banho dos Autores, existente ao nível do rés-do-chão (resposta ao facto nº 11 da base instrutória).
17) - E impede os Autores de receber luz e ar do exterior na casa de banho do rés-do-chão (resposta ao facto nº 12 da base instrutória).
18) - O tecto da construção inovada chega à base das janelas do primeiro andar da casa dos Autores (resposta ao facto nº 13 da base instrutória).
19) - É fácil arrombar uma janela da casa dos Autores a partir do telhado da nova construção e entrar nessa casa e roubar os seus haveres (resposta ao facto nº 14 da base instrutória).
20) - As janelas da casa dos Autores foram feitas em data não exactamente apurada, mas seguramente antes de 1983, e sempre foram usadas à vista de toda a agente e sem qualquer oposição (resposta ao facto nº 15 da base instrutória).
21) - A obra dos Autores foi feita com o consentimento e acompanhamento dos doadores, pais das litigantes mulheres (resposta ao facto nº 16 da base instrutória).
22) - Foi o falecido pai da Autora e da Ré mulheres quem dirigiu os trabalhos, na qualidade de procurador dos Autores que estavam emigrados em França (resposta ao facto nº 17 da base instrutória).
23) - Os AA, ao verem-se confrontados com a situação acima descrita, sentem mal estar e grande sofrimento, caracterizado por forte angustia, intranquilidade e falta de sono (resposta ao facto nº 18 da base instrutória).
24) - Os AA não dormem descansados, passam noites a pensar nos problemas e, quando vêm de França para defender o que é seu, têm faltas ao emprego, pelo que ficam impacientes e incapazes de agir com serenidade (resposta aos factos nº 19 e 20 da base instrutória).
25) - Fazem gastos com telefonemas consecutivos de França para Portugal para saberem como correm as coisas (resposta ao facto nº 21 da base instrutória).
26) - Sentem intranquilidade e falta de vontade de vir à terra natal de férias porque estão convictos de vir a ter maus encontros (resposta ao facto nº 22 da base instrutória).
27) - Os AA efectuam gastos com deslocações para consulta com o seu advogado, bem como gastos com telefonemas para aquele e vice-versa (resposta ao facto nº 23 da base instrutória).
28) - Os AA têm de pagar ao seu advogado (resposta ao facto nº 24 da base instrutória).
29) - A casa de habitação onde residem os Autores foi construída a partir de uma velha casa em ruínas que pertencia aos antepassados da Autora Fernanda e da Ré Natália (resposta ao facto nº 27 da base instrutória).
30) - As obras realizadas pelos RR permitiram cobrir com um só tecto os três anexos, - cozinha, quarto de banho e quarto – existentes (resposta ao facto nº 30 da base instrutória).
31) - Anteriormente à realização de tais obras, para aceder à cozinha ou ao quarto de banho a partir dos quartos era necessário passar pela rua, o que em alturas de frio e chuva se tornava muito incómodo (resposta ao facto nº 31 da base instrutória).
32) - Cristina do Carmo Dinis habita na casa de habitação que está implantada no artigo 53 (resposta ao facto nº 34 da base instrutória).

2.3. - Recurso de direito:
Também aqui não deram os apelantes cabal cumprimento à injunção do art.690 nº2 do CPC, limitando-se a afirmar que o tribunal a quo fez uma interpretação incorrecta das normas do Código Civil e Processo Civil e tendo em conta a matéria de facto provada não os deveria ter condenado.
Impunha-se, em princípio, o convite ao aperfeiçoamento ( nº4 do art.690 do CPC ), mas dada a indicação das normas jurídicas violadas nas alegações, a referência feita na 1ª conclusão só pode reportar-se a elas.
A questão essencial que importa decidir consiste em saber se existe fundamento legal para a ordenada demolição das obras realizadas pelos Réus.
Sustentam os apelantes que a Autora e Ré mulheres não são comproprietárias do prédio inscrito na matriz sob o artigo 53, em virtude de haver sido autonomizado, por divisão verbal, operando-se a aquisição originária do direito de propriedade a favor da Ré mulher, por actos de posse conducentes à usucapião.
Só que esta posição não tem qualquer suporte factual, reiterando o que já havia alegado na contestação ( arts.3º a 19º ), onde não concretizaram os factos atinentes à posse ( corpus /animus ).
De resto, a questão da compropriedade foi já decidida por sentença proferida em 2/12/99, no âmbito da acção ordinária nº431/99, que correu termos no 3° Juízo Cível de Leiria ( cf. alínea D/ dos factos assentes ), estando coberta pelo caso julgado.
A sentença recorrida ordenou a demolição das obras realizadas pelos Réus no prédio inscrito na matriz sob o artigo 53 ( construção de paredes e cobertura ) com base em dois fundamentos:
a) - O primeiro, porque violaram o direito de servidão de vistas, constituída por usucapião, a favor do prédio dos Autores, na medida em que taparam uma janela, situada ao nível do rés-do-chão;
b) - O segundo, porque tais obras são inovadoras e foram edificadas sem consentimento da Autora, comproprietária do prédio, conjuntamente com a irmã, a Ré mulher.

A existência da servidão de vistas:
O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção, não pode abrir janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho, sem deixar entre este e cada uma daquelas obras um intervalo de metro e meio ( art.1360 nº1 do CC ).
A existência de janelas ou portas em contravenção do disposto na lei pode importar, nos termos gerais, a constituição de servidão de vistas, por usucapião ( 1362 nº1 do CC ).
Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio, desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras em que a servidão se materializa, o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão das obras ( art.1362 nº2 do CC ).
Não se consideram abrangidos pela restrições da lei, a frestas, seteiras, ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho, no entanto, levantar, a todo o tempo, a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas – art. 1363 nº1 do CC ).
Também não se consideram abrangidas pelas restrições da lei, aplicando-se o disposto no nº1 do artigo 1363, as aberturas, quaisquer que sejam as a suas dimensões, com grades de ferro fixo, ou outro metal (janelas gradadas), de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros ( art.1364 do CC ).
As frestas, seteiras, ou óculos para luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos, a um metro e oitenta centímetros de altura a contar do solo, ou do sobrado e não podem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros ( arts. 1363 nº3 e 1364 do CC ).
Exposto o regime geral, a primeira questão que importa indagar é a de saber se os factos provados são suficientes para a existência da servidão de vistas, cujo ónus da prova impendia sobre os Autores ( art.342 nº1 do CC ).
Consideram os apelantes não estar comprovada a existência da servidão de vistas, porquanto (1) não decorreu o prazo da usucapião ( art.1296 do CC), pois só em 1983 é que ficou concluída a moradia dos Autores; (2) a posse não é pacífica, dado que desde a construção que os Réus se opuseram; (3) as janelas não permitem olhar o prédio vizinho; (4) e a casa dos Autores não têm janelas, mas quando muito frestas irregulares.

Ficou provado que:
O prédio dos Autores ( moradia ) confina pelo lado sul com o prédio de que a Autora e Ré mulheres são comproprietárias ( inscrito na matriz sob o art.53 );
O prédio dos Autores tem várias janelas abertas sobre o prédio nº53;
As janelas da casa dos Autores foram feitas em data não exactamente apurada, mas seguramente antes de 1983, e sempre foram usadas à vista de toda a agente e sem qualquer oposição (resposta ao facto nº 15 da base instrutória).

O Código Civil não define o conceito de janela, como justifica HENRIQUE MESQUITA na RLJ ano 128, pág.151 e 152, ao escrever a dado passo:
“ O Código Civil vigente, tal como o Código de Seabra, não diz o que deve entender-se por janela, usando este vocábulo com o sentido que tem na linguagem corrente.
“ As janelas e as frestas são aberturas feitas nas paredes dos edifícios, mas que se distinguem não só pelas respectivas dimensões, como pelo fim a que se destinam.
“ As frestas são aberturas estreitas, que têm apenas por função permitir a entrada de luz e ar.
“ As janelas, além de serem mais amplas do que as frestas, dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que tais aberturas proporcionam (1), olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo (2).
No nosso antigo direito, conforme já referimos, considerava-se janela toda a abertura, deixada na parede de um edifício, por onde coubesse uma cabeça humana.
Mas este critério, que foi formulado para edificações que apresentavam com frequência, em virtude das técnicas de construção ou dos materiais utilizados, aberturas (janelas) de dimensões muito exíguas, não parece hoje o mais adequado. No conceito de janela devem incluir-se apenas as aberturas através das quais possa projectar-se a parte superior do corpo humano e em cujo parapeito as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, para descansar, para conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para desfrutar as vistas”.
Pois bem, a decisão da matéria de facto reporta-se à abertura de janelas na parede sul da casa dos Autores, tal como estes haviam alegado, sem precisarem as suas características.
Mas o termo “janela”, embora traduza um conceito técnico-jurídico, tem também um significado corrente, inequivocamente identificável, não se justificando a sanção cominada no art.646 nº4 do CPC.
Neste sentido, o Ac do STJ de 22/4/04 ( Ferreira Girão ), www dgsi.pt ), para quem “ a carga semântica (em termos imagéticos e ideográficos) do vocábulo janela está de tal modo interiorizada pela generalidade das pessoas, que basta meramente alegá-lo para logo se identificar a sua concreta configuração e se alcançar a sua específica funcionalidade, de modo a que, quando inserido em normas legais, se possa proceder, sem quaisquer equívocos, à correcta interpretação da respectiva valência jurídica “.
Sendo assim, não procede a objecção dos apelantes de que a casa dos Autores não têm janelas, mas antes frestas irregulares.
A usucapião ( art.1287 e segs. do CC ) é uma forma de aquisição originária de direitos, cuja verificação depende de dois elementos – a posse ( corpus/animus ) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa e as características da posse.
Na servidão de vistas, constituída nos termos do art.1362 do CC, o “corpus” revela-se pela simples existência da obra, dado que o objecto da servidão não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da janela que deite sobre o prédio nas condições do art.1360 do CC, presumindo-se o “ animus” naquele que efectua a construção ( art.1252 nº2 e Acórdão uniformizador do STJ de 14/5/96, DR II Série, de 24/6/96 ).
Comprovada que está a posse da servidão, ela assume a natureza de pública e pacífica, carecendo de fundamento a afirmação dos apelantes de que deduziram oposição desde o início, facto não demonstrado.
Segundo os apelantes não decorreu ainda o prazo da usucapião ( art.1296 do CC), pois só em 1983 é que ficou concluída a moradia dos Autores, contrariamente ao decidido na sentença, ao considerar suficiente o prazo de 15 anos.
No caso concreto, porque a posse não é titulada, presume-se de má-fé ( arts.1259 e 1260 nº2 do CC ), sendo de 20 anos o prazo da usucapião ( art.1296 do CC ), com início a partir do momento da conclusão da obra ( cf. Ac da RC de 17/12/2002, C.J. ano XXVII, tomo V, pág.31 ), a menos que esteja elidida a presunção, ou seja, que os Autores estivessem de boa fé, reportada ao momento da conclusão da obra, sendo então o prazo de 15 anos.
Dispõe o art.1260 nº 1 do CC, que “ a posse será de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem “.
Não obstante alguma controvérsia, entende-se hoje, de forma prevalecente, que o conceito de boa fé no instituto da posse é de natureza psicológica, logo possui de boa fé quem ignora que está a lesar o direito de outrém, independentemente do problema da desculpabilidade ou censurabilidade da ignorância ( cf., por ex., ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol.III, 2ª ed., pág.18, HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, pág.91, ORLANDO DE CARVALHO, Introdução à Posse, RLJ ano 122, pág.292 ).
Sendo as janelas feitas em data não exactamente apurada, mas seguramente antes de 1983, e demonstrando-se que as obras se realizaram com o consentimento e acompanhamento dos doadores, pais das litigantes mulheres, tendo sido, de resto, o pai delas quem dirigiu os trabalhos, agindo como procurador dos Autores, é legítimo concluir que tais obras ocorreram antes da doação ( 6 de Agosto de 1982 ).
Daí que tendo havido consentimento dos então proprietários do prédio serviente, naturalmente que a posse é de boa fé, sendo, por isso, de 15 anos o prazo da usucapião, já decorrido.
Afirmada que está a existência da servidão de vistas, constituída por usucapião, não podiam os Réus construir sem respeitar a distância de metro e meio, o que não fizeram, com ostensiva violação do disposto no art.1362 nº2 do CC.
Isto é seguro relativamente à parede que edificaram, encostada à moradia dos Autores, tapando totalmente a janela da casa de banho, situada ao nível do rés-do-chão.
Já o mesmo não sucede quanto às janelas do primeiro andar, pois o tecto da construção apenas chegou à base.
Ainda que seja fácil arrombar uma janela da casa dos Autores a partir do telhado da nova construção e entrar nessa casa e roubar os seus haveres, não parece ser suficiente para afectar a servidão de vistas.
Com efeito, apesar de constituída a servidão de vistas, poder-se-á levar a cabo construções mais baixas, situadas a um nível inferior, por forma a não prejudicar a entrada de ar e luz, ou seja, a função normal da janela ( cf. ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol.III, 2ª ed., pág. 221 e 222 ).
O proprietário onerado com a servidão, embora sujeito à limitação de construir no espaço correspondente ao interstício legal, não perde o direito de propriedade sobre este.
O que tem é de guardar a distância de metro e meio na extensão da janela, em que se exterioriza a servidão de ar e luz e já não em toda a extensão da parede onde essas obras foram feitas.
De resto, era já este o entendimento expresso a propósito do Código Civil de 1867 ( cf. CUNHA GONÇALVES, Tratado, XII, pág.87 e RLJ ano 96, pág.336 ), o qual se mantém actual.
Em resumo, apenas a parede edificada pelos Réus encostada a moradia dos Autores e que tapou a janela da casa de banho, ao nível do rés-do-chão afectou a servidão de vistas, o que é suficiente, por si só, para ordenar a respectiva demolição, tal como foi decidido.
Porém, ainda que as demais construções não violem o art.1362 nº2 do CC, resta averiguar se Réus estavam legitimados a fazê-las, entrando-se, assim, no segundo fundamento aduzido na sentença para ordenar a demolição.
É que, como se explicita na sentença recorrida, as obras realizadas pelos Réus exorbitam claramente os poderes de administração ordinária, conferido a qualquer dos comproprietários pelo art.1407 do CC, logo não podiam ser feitas sem o consentimento da Autora mulher, dada a situação de compropriedade.

Não se tratando, pois, de benfeitorias necessárias, as obras em causa, de inovação em coisa comum, só podem ser consideradas como benfeitorias úteis, visto que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, lhe aumentam o valor (art.216 nº3 do CC ).

Mas quanto a estas, bem como quanto às voluptuárias, assim como quanto a inovações que não constituam benfeitorias, não há comparticipação obrigatória imposta por lei, valendo para a sua realização as regras normais aplicáveis à gestão da coisa, ou seja, as dos arts. 1407, 1408 e 985 do CC, que, numa correcta interpretação, exigem o consentimento unânime de todos os comproprietários para os actos que excedem o âmbito da gestão normal da coisa comum, o âmbito da respectiva administração.

Na verdade, tratou-se de obras de inovação, melhoramentos introduzidos no prédio, reconduzidos a benfeitorias úteis, pelo que careciam do consentimento da Autora, também ela comproprietária ( cf. HENRIQUE MESQUITA, loc.cit., pág.255, ANTUNES VARELA, loc.cit., pág.359, Ac RP de 24/2/94, C.J. ano IX, tomo I, pág.245 ).

Os comproprietários interessados em determinado acto que exceda a gestão normal, se não conseguirem o acordo de todos os demais e considerarem aquele acto essencial para os seus objectivos, podem sempre pôr termo à compropriedade mediante divisão da coisa comum nos termos do art. 1412 do CC, pelo que não se encontram indefinidamente sujeitos à vontade dos discordantes.

Tendo os doadores, pais da Aurora e Ré mulheres, reservado para si o usufruto ( cf. escritura de doação ), alegaram os Réus na contestação que as obras eram de reparação extraordinária, a solicitação dos usufrutuários ( art.1473 nº1 do CC ), mas não lograram demonstrar os factos pertinentes, extintivos do direito dos Autores ( art.342 nº2 do CC ), como resulta das respostas negativas aos quesitos 32º e 33º e resposta restritiva ao quesito 34º da base instrutória.

Por conseguinte, já não estamos perante uma modificação ou transformação justificada pelo uso do comproprietário ( art.1406 do CC ) mas antes de uma modificação ou transformação da coisa comum que só ao conjunto dos comproprietários é lícito efectuar, dado o disposto no artº1405 nº1 do CC.
Trata-se, neste caso, do exercício do direito de disposição, previsto no art.1305 do CC ( o qual engloba tanto actos jurídicos de alienação e oneração da coisa, como actos materiais de transformação), direito que só pode ser exercido pelo conjunto dos comproprietários, ou por algum ou alguns, com consentimento dos restantes.
A modificação operada pelos Réus reconduz-se a uma intervenção ilegítima sobre a coisa comum, já que não autorizada pela Autora e contra a qual esta reagiu.
A sanção legal traduz-se na reposição ao estado anterior, através da demolição, desde logo porque a actuação dos Réus é equiparável aos actos de disposição, ineficazes relativamente ao comproprietário que não deu o seu consentimento.
Por outro lado, na situação paralela das obras de inovação, sem aprovação da maioria, levadas a cabo nas partes comuns de prédio em regime de propriedade horizontal ( art.1425 do CC ), cuja similitude é relevante, também se entende ser a demolição a sanção adequada ( cf., por ex., Ac do STJ de 4/10/95, BMJ 450, pág.492 ).

Em síntese conclusiva, não tendo a sentença recorrida violado as normas jurídicas indicadas, improcede a apelação.

E não se evidenciando que os apelantes tenham litigado de má fé, na acepção definida no art.456 nº2 do CPC, designadamente por uso abusivo do processo, pois limitaram-se a exercitar o direito ao recurso, improcede o pedido de condenação, adrede formulado pelos apelados.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Rejeitar o recurso sobre a impugnação da matéria de facto.
2)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a douta sentença recorrida.
3)
Julgar improcedente o pedido incidental de condenação por litigância de má fé, requerido pelos apelados.
4)
Condenar os apelantes nas custas.
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COIMBRA, 28 de Setembro de 2004.