Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3304/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARDOSO ALBUQUERQUE
Descritores: DOAÇÃO DE SALDO DE CONTA BANCÁRIA
PERTENCENTE A TITULAR FALECIDO: SEUS PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 12/07/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 940º E 947º DO C. CIV..
Sumário: I – A doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito ou assume uma obrigação em benefício do outro contraente.
II – Podendo considerar-se como um contrato formal, o que é a regra geral – artº 947º C. Civ. - , comporta uma excepção quanto às doações verbais de coisas móveis, casos em que a doação está dependente da ocorrência concomitante da tradição da coisa doada – contrato real quoad constitutionem .
III - Havendo uma conta bancário em nome do falecido e não havendo documento escrito e assinado por este a fazer doação dessa conta, nem o levantamento e entrega do seu saldo em vida daquele, tem de entender-se que não houve qualquer doação válida em relação a esse depósito .
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Coimbra:

I – A... propôs no Tribunal Judicial de Alcobaça e em 9/06/2000 a presente acção declarativa na forma ordinária contra B...e mulher C..., pedindo depois a intervenção principal ao lado dos RR de vários outros interessados no inventário obrigatório nº1/94 do mesmo tribunal, no número total de 36, incluindo marido e mulher e cujos nomes por evidentes razões de economia se dão aqui por reproduzidos, pedindo, em síntese e com impetração também do benefício de apoio judiciário, a condenação de todos eles a absterem-se de reivindicar o valor de uns depósitos e juros que montam a esc. 5077.269$00, relacionados provisoriamente naquele processo, como pertencentes à herança, com reconhecimento do seu direito à titularidade do mesmo.
Alega, em síntese, que era titular de duas contas de depósito bancário com o seu falecido tio, autor da dita herança e que havia entre eles um acordo segundo o qual se comprometia a tratar do mesmo se acaso necessitasse, destinando-lhe este por sua vez, o dinheiro das contas e representando a abertura das contas expressão de uma vontade do inventariado de lhe doar tal quantia.
Citados para contestarem os RR e intervenientes , fizeram-no apenas os RR Joaquim Costa, António Costa e Joaquim Morais Couto que impugnaram as conclusões do A, com benefício igualmente de apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de preparos e custas e patrocínio gratuito, concedido pela Segurança Social, o mesmo fazendo o Mº Público, em representação dos incapazes.
Ao A foi concedido também o apoio peticionado, circunscrito apenas à dispensa de preparos e custas.
Proferido despacho saneador e elaborada a base instrutória, realizou-se , por fim, a audiência de julgamento, tendo na esteira deste, sido exarada a douta sentença de fls 268 e ss, com absolvição de todos os RR do pedido.
Inconformado, o A recorreu de apelação e na sua douta alegação na 1ª instância, conclui do modo seguinte :
1 – É compreensível que a legislação que rege as disposições de última vontade seja rigorosa e apertada para que se cumpra fielmente essa vontade.
2 – No caso em apreço, o tribunal «a quo» considerou completamente provado que o de cujus pretendia como deliberação de última vontade deixar ao apelante o montante de Esc. 5.077,269$00 (€ 25.325,30) correspondente ao valor existente, à data da sua morte, nas duas contas do balcão de Rio Maior da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Ribatejo e em que ambos figuravam como co. –titulares..
3 – O tribunal refere que o controle dessas contas era feito pelo de cujus, contudo as mesmas só foram objecto de um movimento (depósito) pelo que não se pode falar em controle por parte de qualquer dos seus co-titulares.
4 – Essa convicção não teve a sua materialização efectiva por parte do Tribunal «a quo» como conclusão válida de um silogismo assente em premissas também válidas e cujo motivo ou sustentação deste “ desvio” encontra-se na exigência , nomeadamente do nº2 do artº 497º do CC.
5 – Com o devido respeito, houve tradição da coisa, embora posterior à morte do doador e hoje é opinião dominante , quer na jurisprudência, quer na doutrina que a tradição não tem necessariamente de ser simultânea para que a doação seja válida .
6 – A jurisprudência citada na douta decisão não é coincidente com o caso vertido nos autos e daí só se poderem retirar algumas ilações parciais que não comprometem a pretensão ou pedido do A
7 – Parece que a douta decisão vai ao arrepio do nº1 do artº 62º da CRP e no caso parece que a justiça do caso concreto conduziria em fazer cumprir a derradeira vontade do de cujus ou seja na efectiva doação ao apelante do supracitado valor económico, como parece ter entendido o Mmo Juiz do inventário que ordenou que esta questão fosse discutida nos meios comuns
Os recorridos contestantes contra alegaram, suscitando certamente por lapso que a peça do recorrente não continha conclusões e, no essencial, dizendo que a sentença era de manter à luz da factualidade apurada pelo manifesto não preenchimento dos requisitos da invocado contrato de doação.
Nesta instância, foram colhidos os vistos legais.
Cumpre, portanto, decidir.

II – Os factos dados como provados na 1ª instância foram os seguintes :
1 – Correram por este Juízo uns autos de Inventàrio Obrigatório sob o nº 1/94 por óbito de António Arsénio Júnior e mulher Maria Engrácia Costa , no âmbito dos quais o ora A exerce as funções de cabeça de casal (aln única dos factos assentes )
2 – Aquando do óbito de António Arsénio Júnior, existiam duas contas bancárias no balcão de Rio Maior da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de que o A era co.–titular ( resp. ao q. 1º)
3 – A conta a prazo nº 202971 foi aberta em 17/08/1992 por Arsénio Júnior e pelo A no valor de esc. 500.000$00 (q. 2º)
4 – E em 5/01/1993 foi feito mais um depósito de esc. 3.000.000$00 (q.3º )
5 – A conta a prazo e à ordem nº207369 foi aberta em 13/07/1992 pelo mesmo António Arsénio Júnior com o valor de esc1.000000$00 (q. 4º)
6 – Em 17/08/1992 foram depositados nesta conta mais esc 500.000$00 (q. 5º)
7 – Em 5/01/1993, António Arsénio Júnior instituiu o A co-titular dessa conta (q. 6º)
8 – Sendo ambas as contas , contas solidárias ( q. 7º)
9 – O mencionado António Arsénio Júnior depositava uma confiança diferenciada pela positiva ao A , relativamente aios demais sobrinhos ( q. 8º)
10 – O A , sobrinho de António Arsénio Júnior manifestou por diversas vezes o propósito de tomar conta e cuidar deste quando a falta de saúde dele o exigisse (q. 9º).
11 – Era já na casa do A que ele tomava , muitas vezes as suas refeições (q. 10º)
12 – E foi o A que tratou e pagou todas as despesas com o funeral do tio , sem que tivesse intervindo outra pessoa (q. 11º)
13 – Era intenção do António Arsénio Júnior destinar os valores que se encontravam depositados nas sobreditas contas bancárias em benefício do A (q. 12º )
14 – Era com o A que o falecido mais simpatizava se relacionava e convivia mais de perto (r q. 14º)
15 – Não foi elaborada qualquer declaração escrita relativamente à intenção referida atrás .
16 – O A e o falecido tio assinaram conjuntamente ambas as fichas do banco, nas mencionadas contas (q. 17º)
17 – Os valores depositados nas contas bancárias pertenciam ao António Arsénio júnior ( q. 18º)
18 – O A era co-titular das contas bancárias e que o António Arsénio Júnior podia movimentá-las a débito e a crédito (q.19º)
19 – Que era quem sempre as controlou (q. 20º)
20 – Actuando apenas o A de acordo com o que lhe era pedido pelo tio (q.21º)

III – Sendo as conclusões da alegação respectiva a sede da determinação do objecto do recurso, conforme o disposto nos artºs 684º,nº3 e 690º,nº1 do CPC, por elas logo se vê que tudo se resume à questão de saber se foi correcta a decisão de mérito no tocante a rejeitar a configuração de uma doação válida dos valores depositados nas contas de depósito de que o falecido tio do A e este eram contitulares, à luz dos factos que acima enunciámos.
Pese embora a delicadeza que um assunto desta natureza sempre encerra, temos no entanto que a douta sentença escapelizou com rigor e minúcia todas as vertentes do caso e a outra solução não podia ter chegado senão a de não dar guarida ao pedido.
Desde logo e tornando-se claro, como ponto de partida que era ao falecido tio do A que pertenciam as importâncias depositadas nas duas contas de depósito de que este foi chamado a ser delas também contitular, haveria que saber se houve de facto uma tradição das mesmas para este.
Como é bem sabido, a doação que a lei define ( no artº 940º do CCivil , sendo deste diploma todas as demais disposições, salvo expressa menção em contrário) como o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente, pode considerar-se, além de um contrato formal, que é a regra geral (artº947,nºs 1 e 2) como um contrato consensual, uma vez que a lei prevê a existência de uma obrigação de entrega por parte do doador, situação porém que é exceptuada em relação à doação verbal de coisas móveis, pois a validade desta está dependente da ocorrência concomitante da tradição da coisa doada, o que vale por dizer assumir esta variante da doação a natureza de um contrato real quoad constitutionem.
Ora já atrás vimos que não existe escrito algum através do qual se pudesse demonstrar a manifestação de vontade do falado António Arsénio Júnior de doar as importâncias depositadas ao seu sobrinho e não vale a pena estarmos a especular sobre o alcance a atribuir ao preenchimento das fichas para abertura das contas.
São coisas diferentes o depósito do dinheiro num banco por forma a formalmente o A, enquanto seu contitular poder ele ou o outro contitular levantar o mesmo e que tem que ver com as relações internas do contrato respectivo, relações de quem abre a conta e o banco , de harmonia com um clausulado próprio dessa específica operação bancária e pelos usos ( contrato este que a maioria da jurisprudência e a doutrina qualifica de depósito irregular, v. a este respeito Menezes Cordeiro , Manual de Direito Bancário, 513 e ss) ) e a entrega do dinheiro ao A, pois que o doador, a quem pertencia o objecto do depósito, não ficou privado da livre disponibilidade do mesmo.
E não vale a pena igualmente estarmos a pôr em causa a decisão da matéria de facto no que respeita ao controle dessa mesma conta pelo falecido,( ponto 19 da fundamentação de facto)pois além do A não a ter impugnado, a circunstância de ser o falecido a controlar as contas não constitui um juízo conclusivo, como tal insusceptível de ser levado à base instrutória, mas ainda que o fosse, tal em nada relevaria para afastar os direitos inerentes à titularidade das mesmas, tanto mais que ficou provado também que o A actuava no que respeita ao movimento das ditas contas, apenas de acordo com o que lhe era pedido pelo tio ( ponto 20 da fundamentação de facto)
Parece que era intenção do falecido doar as ditas importâncias ao A face às relações de amizade e proximidade afectiva que entre eles existiam, só que tal intenção não foi devidamente concretizada, através de declaração em documento escrito, e não se provando qualquer tradição das importâncias depositadas, o que sempre pressuporia, como se ajuizou no Acórdão da Relação do Porto de 11/10/2001( in CJ ,ano XXVI, T.4º, 211 e ss) o levantamento e entrega, em vida dessas importâncias ao A ou a sua transferência para outra conta de que este fosse exclusivo titular, teria sempre a aventada doação de assumir a forma escrita, como se estatui no artº 947ºnº2 e isso sob pena de nulidade - artº 220º.
Ou seja não existirá animus donandi, nem entrega pelo simples facto de se consentir na constituição de um depósito bancário em nome simultâneamente do dono do dinheiro e de um seu familiar chegado ( neste sentido, ainda, os Acs da RLxa de 13/10/1988, CJ,Ano XIII, Tº 4º, 120 e do Supremo de 8/05/1973, BMJ, 227º, 133), não sendo certo que um mero depósito ou movimento de fundos numa conta solidária produza por si mesmo os efeitos de uma doação, se considerarmos que a todo o momento, o depositante pode através de um levantamento, retirar as quantias da conta, logo atingindo a irrevogabilidade, enquanto elemento essencial do contrato- artº 969º.
Invoca, igualmente, o recorrente que a jurisprudência vai no sentido de não se exigir a simultâneidade da tradição da coisa com a declaração de doação, coisa que não se discute, só que no caso não houve, não chegou a haver nenhuma tradição, em função e por efeito da constituição dos depósitos bancários ( v. também no sentido da interpretação defendida na sentença, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol.III, 202) donde a exigibilidade da forma escrita, sendo certo que também se não pode equacionar a hipótese de uma doação por morte, como o recorrente pretende fazer crer, por de todo faltarem as formalidades do testamento, nos termos do artº 946ºnº 2 .
Por outro lado e ainda que pudesse entender-se que houve uma promessa de doação, sempre ela para ser válida teria, igualmente, de revestir a forma escrita, como explica aquele autor, visto o citado artº 947ºnº2 o exigir para toda e qualquer doação não acompanhada de tradição e o contrato promessa de doação corresponder a uma doação obrigacional.
Foi pois, bem decidida a acção, em termos de facto e em termos de direito, sentença que por isso se confirma na sua integralidade, não sem de passagem dizermos que a aventada violação do artº 62º nº1 da Constituição que consagra o direito da propriedade privada, expressa na derradeira conclusão do recorrente só pode ser compreendido como mero artifício de retórica, a aquisição da propriedade está regulada na lei e em parte alguma da alegação do recurso se pôs em causa a constitucionalidade dos dispositivos aplicados para denegar a sua pretensão

IV . Pelo exposto , decide-se julgar improcedente o recurso.
Custas a cargo do apelante, levando-se em conta beneficiar o mesmo de apoio judiciário.
Concede-se ao patrono nomeado dos recorridos que contralegaram, os honorários devidos de acordo com a tabela. .