Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
187/22.1GAMGL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DO CONCURSO DE CRIMES
CASO JULGADO DA DECISÃO DE CÚMULO JURÍDICO
INDICAÇÃO DAS PENAS CONCRETAS A CONSIDERAR NO CÚMULO JURÍDICO A ELABORAR
INSTITUTO DO DESCONTO
CUMPRIMENTO DA PENA DE PRISÃO EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MANGUALDE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 42.º, 43.º, N.º 1, 77.º, N.ºS 1 E 2, 78.º, N.º 1 E 2, 80.º E 81.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – Ao caso julgado relativo ao cúmulo jurídico aplica-se a cláusula rebus sic stantibus, tal significando que os cúmulos jurídicos anteriormente feitos com as penas a considerar são dissolvidos, retomando autonomia as respectivas penas parcelares.

II – Padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do C.P.P. a sentença que não descreve na matéria de facto provada as concretas penas parcelares aplicadas ao arguido.

III – Fundamental à determinação da pena única é a visão conjunta dos factos, isto é, a relação dos diversos factos entre si, a sua frequência, a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados, a forma de execução, a determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, assumindo um significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal e ao núcleo de bens essenciais, em relação à ofensa de bens patrimoniais.

IV – O instituto do desconto pode ver-se como caso especial de determinação da pena ou regra legal de execução da pena.

V – Independentemente da posição adoptada sobre a natureza jurídica do instituto do desconto, o tempo de privação de liberdade já sofrido pelo arguido à ordem de processo integrado no cúmulo jurídico tem de ser objecto de desconto na pena única determinada, conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 78.º, n.º 2, 80.º e 81.º do Código Penal.

VI – A questão de saber em que momento é que deverá ocorrer a ponderação de tal desconto depende do caso concreto, existindo situações em que pode traduzir-se numa operação relativa ao cumprimento ou execução da pena e outras em que se trate de uma operação própria da determinação da pena.

VII – O regime de permanência na habitação tem por finalidade limitar o mais possível em penas curtas de prisão os efeitos criminógenos da privação total da liberdade, que não contribuem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado.

Decisão Texto Integral:
Relatora: Cândida Martinho
1.º Adjunto: João Abrunhosa
2.º Adjunto: Jorge Jacob

Acordam em conferência os juízes da secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.Relatório

 

1.

…  realizada a audiência com vista à efetivação do cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido no âmbito dos presentes autos com aquela que lhe foi aplicada no processo sumário 130/22...., foi proferida, em 19/4/2023, sentença cumulatória, de acordo com a qual o arguido … foi condenado na pena única de  3 (três ) anos de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria pelo período de 14 (catorze) meses.

 

            2.                                              

            Não se conformando com essa condenação, o arguido recorreu do acórdão extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

PRIMEIRA - Por sentença datada de 15/06/2022, proferida no âmbito dos presentes autos de processo sumário nº 187/22.... … foi o recorrente condenado pela prática em 21/05/2022, em autoria material, na forma consumada e como reincidente de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, …, dois crimes de ameaça agravada, … e dois crimes de injúria agravada, … na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão efectiva;

SEGUNDA - … no âmbito dos autos de processo sumário nº 130/22...., o recorrente já fora condenado pela prática, em 02/04/2022, em autoria material na forma consumada e como reincidente, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, … Na pena de 15 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação;

TERCEIRA - Tendo o Tribunal “a quo” procedido à realização de cúmulo jurídico, foi o recorrente condenado, entre o mais, na pena de prisão única de 3 anos.

QUARTA - O Tribunal começou por definir aquela que é a moldura penal abstracta do cúmulo, a qual vai de 2 anos e 4 meses de prisão a 3 anos e 7 meses de prisão;

QUINTA-O Tribunal concluiu pela aplicação daquela pena de prisão única de 3 anos, baseando-se, para tanto, e no seu entendimento, nas elevadas exigências de prevenção geral relativamente a todos os ilícitos criminais, nas acentuadas exigências de prevenção especial, na acentuada dispersão temporal do empreendimento criminosos do recorrente, apenas interrompido com a privação da sua liberdade, no grau de ilicitude dos factos e a culpa do recorrente globalmente elevada, no facto de o recorrente encontrar-se familiar e profissionalmente bem inserido.

SEXTA - Entende o recorrente que as considerações nas quais se baseia o Tribunal para a aplicação de pena única de prisão de 3 anos não são as mais correctas e que a mesma é exagerada, …

OITAVA - Se concordamos quanto às elevadas exigências de prevenção geral que se verificam quanto aos crimes de violação de imposições, proibições ou interdições e de desobediência, …, o mesmo já não se poderá dizer relativamente aos crimes de injúria agravada e de ameaça agravada;

DÉCIMA PRIMEIRA - Para além dos crimes que integram o concurso, dos 19 crimes que constam do certificado de registo criminal do recorrente,

i) 11 deles, dizem respeito a crimes praticados há mais de 15 anos (!), quando o arguido tinha somente cerca de 20 anos, …, não mais o recorrente voltou a praticar idêntico tipo legal de crime, pelo que é infundado dizer-se que tais condenações revelaram-se um fracasso quanto à prevenção especial, revelando o recorrente um absoluto desprezo pelo sistema judicial;

ii) já os restantes 8 crimes, estão relacionados, directa ou directamente, com os problemas de adição ao álcool de que padece o recorrente, …

DÉCIMA SÉTIMA - Esse problema de álcool não é de forma alguma escamoteado pelo recorrente, …

DÉCIMA OITAVA - Aos problemas relacionados com o consumo excessivo de álcool por parte do recorrente acresce o estado depressivo em que o mesmo se encontrava aquando da prática dos crimes objecto do presente cúmulo;

VIGÉSIMA - É verdade que o empreendimento criminoso do recorrente apresenta acentuada dispersão temporal, mas também é verdade que, independentemente dos motivos que levaram o recorrente a praticar tais crimes, pelo menos, desde a prática dos crimes objecto dos presentes autos, o mesmo não voltou a praticar qualquer tipo de ilícito criminal, o que já acontece há mais de um ano, …

VIGÉSIMA PRIMEIRA - No que concerne à ilicitude dos factos, entende o recorrente, ao contrário do Tribunal “a quo”, que a mesma é diminuta, …

VIGÉSIMA SEGUNDA - O recorrente encontra-se familiar e profissionalmente bem inserido.

VIGÉSIMA SÉTIMA - Entende o recorrente que as condenações de que já foi objecto não foram completamente inócuas, nem tão pouco o mesmo revela um desprezo absoluto pelo sistema judicial, como alega o Tribunal “a quo”;

VIGÉSIMA OITAVA - Tanto assim é que não mais praticou todos aqueles crimes alegados no artº16ºdopresente, alguns dos quais enquadráveis já na chamada criminalidade violenta,o que, salvo o devido respeito, não foi devidamente valorado e ponderado pelo Tribunal “a quo”, numa manifesta violação dos princípios que norteiam a aplicação das penas previstos nos artºs 40º e 71º do C.P.

VIGÉSIMA NONA - Por outro lado, desde que transitou em julgado a sentença no âmbito do processo sumário nº 130/22...., que condenou o recorrente a uma pena de 15 meses de prisão, em regime de permanência na habitação, não mais este praticou qualquer tipo de ilícito criminal, …

TRIGÉSIMA - Em função de todo o exposto não restam duvidas que o Tribunal “a quo” fez uma errada valoração de todas as circunstâncias do caso sub judice, …

TRIGÉSIMA PRIMEIRA - Partindo da moldura penal abstrata do cúmulo jurídico balizada entre um mínimo de 2 anos e 4 meses de prisão e o limite máximo de 3 anos e 7 meses de prisão, deve definir-se um mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do recorrente.

TRIGÉSIMA TERCEIRA - … mostra-se justa, necessária, proporcional e adequada, uma pena única de 2 anos e 10 meses de prisão.

TRIGÉSIMA QUARTA - … o recorrente encontra-se, desde o dia 13/07/2022, a cumprir uma pena de 15 meses de prisão, em regime de permanência na habitação, a qual lhe foi aplicada no âmbito do processo sumário nº 130/22...., sendo certo que … há que proceder ainda ao desconto de 5 dias completos, em virtude de outras condenações sofridas pelo recorrente no âmbito de outros processos;

TRIGÉSIMA QUINTA - O recorrente já cumpriu assim, até hoje, pelo menos, 10 meses e 11 dias de prisão, em regime de permanência na habitação;

TRIGÉSIMA OITAVA - Se descontarmos a pena já cumprida pelo recorrente no âmbito do processo sumário nº 130/22.... à pena única de prisão que se entende dever ser-lhe aplicada, a pena a cumprir por este deverá ser de somente 1 ano, 11 meses e 19 dias, sendo por isso a mesma susceptível de ser cumprida em regime de permanência na habitação.

TRIGÉSTIMA NONA - Entende o recorrente que, sempre que com a realização do mencionado desconto, a pena a aplicar possa ser cumprida em regime de permanência na habitação, por esta passar a ser inferior a 2 anos, como se verifica no caso sub judice, o processamento desse desconto deverá ser efectuado no momento da elaboração da sentença ou do acórdão do cúmulo;

QUADRAGÉSIMA - Devendo a pena única a aplicar ao recorrente ser de somente 1 ano, 11 meses e 19 dias de prisão, a mesma poderá ser cumprida em regime de permanência na habitação …”.

3.

            O Ministério na primeira instância veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência.

            4.

Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, …

II. Fundamentação


Delimitação do Objeto do Recurso

…, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo arguido/recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

- Da excessividade da pena única;

- Da efetivação do desconto a realizar nos termos do disposto nos artigos 80º e 81º, do Código Penal.

- Do cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.

B) Sentença recorrida

            “I. RELATÓRIO

II. FACTOS PROVADOS

1. Nos presentes autos de processo sumário n.º187/22.... foi … condenado, por sentença proferida em 15/06/2022, pela prática em 21/05/2022, em autoria material, na forma consumada e como reincidente, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.353.º do Código Penal, de um crime de desobediência, p. e p. pelos arts.152.º, n.ºs1, al.a) e 3 do Código da Estrada e 348.º, n.º1, al.a) e 69.º, n.º1, al.c), ambos do Código Penal, de dois crimes de ameaça agravada, ps. e ps. pela disposição conjugada dos arts.132.º, n.º2, al.l), 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al.c), todos do Código Penal, e, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de injúria agravada, ps. e ps. pela disposição conjugada dos arts.132.º, n.º2, al.l), 181.º, n.º1 e 184.º, todos do Código Penal, na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria pelo período de 14 (catorze) meses;

2. A condenação referida em 1. transitou em julgado em 27/01/2023;

3. Dando-se como provado nestes autos que:

q) Por sentença datada de 15 de Outubro de 2020, transitada em julgado no dia 15 de Abril de 2021, proferida nos autos de processo sumário n.º175/20...., que correm termos no Juízo de Competência Genérica ..., foi o … condenado pela prática no dia 28 de Setembro de 2020, em autoria material, na forma consuma e em concurso efectivo, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo arts.292.º, n.º1 e 69.º, n.º1, al.a) do Código Penal, de um crime de desobediência, p. e p. pela disposição conjugada dos arts.348.º, n.º1, al.a) e 69.º, n.º1, al.c), ambos do Código Penal, e 152.º, n.ºs1, al.a) e 3 do Código da Estrada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pela disposição conjugada dos arts.153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al.c), ambos do Código Penal, e de um crime de injúria agravada, p. e p. pela disposição conjugada dos arts.132.º, n.º2, al.l), 181.º e 184.º, todos do Código Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria única de 13 (treze) meses;

4. Nos autos processo sumário n.º130/22...., que correm termos este Juízo de Competência Genérica ..., por sentença datada de 2/05/2022, foi … condenado pela prática no dia 2/04/2022, em autoria material, na forma consumada e como reincidente, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.353.º do Código Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, nos termos do disposto nos art.43.º, n.º1s, al.a) e 4, al.c) do Código Penal, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância nos termos regulamentados na Lei n.º33/2010, de 2 de Setembro, subordinando-se o regime de permanência na habitação à condição de o arguido se sujeitar a tratamento médico respeitante ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, incluindo o seu internamento em instituição adequada, caso tal internamento venha a revelar-se necessário, devendo a DGRSP elaborar plano de reinserção social que planifique as actividades e programas que visem a preparação do condenado para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes e debelando a sua problemática aditiva, nos termos e para os efeitos do preceituado no art.20.º, n.º2 do referido diploma legal, desde já autorizando, nos termos do preceituado no art.43.º, n.º3 do Código Penal, as saídas do arguido da habitação onde cumprirá a prisão em regime de permanência na habitação fiscalizada através de sistema de vigilância electrónica para desenvolver a sua actividade profissional na sociedade denominada A..., com sede no lugar ..., concelho ...;

5. A condenação referida em 4. transitou em julgado em 1/06/2022;

6. Tendo ficado provado nos autos de processo sumário referidos em 4. que:

7. Do certificado de registo criminal …junto a fls.333 a 364 consta que para além das condenações referidas em 1. e 4., já condenado:

          …

8. O condenado encontra-se, desde o dia 13/07/2022, a cumprir a pena de 15 meses de prisão, em regime de permanência na habitação, que lhe foi aplicada nos autos de processo sumário referidos em 4.;

9. O condenado iniciou o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria pelo período de 14 (catorze) meses em 17/01/2023, encontrando-se o seu termo previsto para o dia 17/03/2024;

III. FUNDAMENTAÇÃO

IV. ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA

1. REQUISITOS DO CÚMULO JURÍDICO

2. DA MEDIDA CONCRETA DO CÚMULO

Importa, agora, nos termos do disposto no art.77.º, n.º1 do Código Penal, apreciar o concurso de penas impostas ao condenado e absorvê-las numa pena unitária, graduada de acordo com a ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente.

Com efeito, o art.77.º, n.º1 do Código Penal, sob a epígrafe “regras da punição do concurso” estabelece que …

Atento o que ficou exposto, importa começar por definir os limites da moldura penal do cúmulo.

Nos termos do disposto no art.77.º, nº2 do Código Penal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Assim, no caso concreto, a moldura penal abstrata do cúmulo vai de 2 anos e 4 meses de prisão a 3 anos e 7 meses de prisão (tendo em consideração a pena de 2 anos e 4 meses de prisão aplicada nos presentes autos e a pena de 15 meses de prisão aplicada nos autos de processo sumário n.º130/22...., que correm termos este Juízo de Competência Genérica ...).

A fim de determinar a medida concreta da pena unitária, há que considerar as seguintes circunstâncias no seu conjunto:

- a gravidade dos factos praticados pelo condenado, sendo elevadas as exigências de prevenção geral relativamente a todos os ilícitos criminais. …

- as acentuadas exigências de prevenção especial, …

- o empreendimento criminoso do condenado apresenta acentuada dispersão temporal, apenas interrompido com a privação da sua liberdade;

- o grau de ilicitude dos factos e a culpa do condenado foram globalmente elevados;

- o dolo do condenado foi direto e intenso;

- no contexto e motivação dos factos, a conduta do condenado mostra-se bastante censurável;

- o condenado encontra-se familiar e profissionalmente bem inserido.

Considerando todos os supra referidos elementos, julgo adequado fixar a pena de prisão única em 3 (três) anos e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria pelo período de 14 (catorze) meses, pena acessória esta que se mantém.

V.

Da (Não) Suspensão da Execução da Pena de Prisão

Pelo que fica dito a pena de 3 (anos) anos de prisão aplicada ao condenado deve ser cumprida de forma efectiva em meio prisional.

            (…)”.

C)Apreciação do recurso

- Da excessividade da pena única

Começa o recorrente por questionar a pena única, a qual reputa de excessiva.

            Estando em causa nos presentes autos uma situação de conhecimento superveniente do concurso, importa ter presente o disposto no artigo 78º, nº1 do CPenal, …

Resulta, por sua vez, do artigo 77º, nº 2, do mesmo diploma legal, que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

No caso vertente, a pena relativamente à qual o recorrente se insurge foi fixada em 3 anos de prisão, dentro de uma moldura penal abstrata em que o limite mínimo correspondeu a 2 anos e 4 meses de prisão e o limite máximo a 3 anos e 7 meses de prisão.

…, como facilmente se constata, a pena de 2 anos e 4 meses de prisão, correspondente ao limite mínimo, mais não é do que a pena única aplicada no âmbito dos presentes autos, resultante do concurso de crimes pelos quais o arguido foi condenado, correspondendo o limite máximo à soma desta pena com aquela que foi aplicada ao arguido no âmbito do identificado processo 130/... (15 meses de prisão).

            Ora, se é certo, por um lado, que os crimes em causa nos presentes autos (cometidos em 21/5/2022) e o crime a que se reporta o processo 130/22.... (cometido em 2/4/2022), estão numa relação de concurso para efeitos de aplicação de uma pena única, nos termos definidos no artigo 77º, nº1, do C. Penal, na medida em que foram todos cometidos antes do transito em julgado da primeira condenação entre as sofridas  -  no caso, a ocorrida no âmbito do processo 130/22.... (1/6/2022) - não é menos certo, por outro lado, que o tribunal recorrido incorreu em erro na formação do cúmulo jurídico em apreço, ao decidir nele não integrar as penas parcelares aplicadas ao arguido no âmbito destes autos, mas antes a pena única a que chegou dessas penas em concurso, tendo sido por referência a esta pena única de 2 anos e 4 meses à qual somou a pena parcelar de 15 meses aplicada no processo 130/... que construiu a moldura do concurso.

Mas há que lembrar “que a pena conjunta é sempre fixada a partir das penas parcelares, mesmo quando anteriormente todas ou algumas delas tenham sido incluídas em cúmulos. Ou seja, os cúmulos anteriores são dissolvidos, calculando-se nova pena conjunta com base nas penas parcelares. Não há, pois, cúmulos de cúmulos” (Ac. do STJ de 21/11/2012, Rel. Cons.Maia da Costa, proc.153/09.2PHSNT.S1).

            Como também se assinalou no acórdão do STJ de 17/10/2012, Rel. Cons.Santos Cabral, proc.nº182/03.0TAMCN.P2.S1:

“I. O pressuposto básico da efetivação da efetivação do cúmulo superveniente é a anulação do cúmulo anteriormente realizado, o que significa que no novo cúmulo entram todas as penas, as do primeiro cúmulo e as novas, singularmente consideradas.

II. Na reelaboração do cúmulo não se atende à medida da pena única anterior, não se procede à acumulação, ainda que jurídica, das penas novas com o cúmulo anterior.

 O novo cúmulo não é o cúmulo entre a pena conjunta anterior e as novas penas parcelares.

III. Não tem, assim, fundamento jurídico considerar como limite mínimo do novo cúmulo a pena única fixada no primitivo cúmulo jurídico” (sublinhado nosso).

A este propósito, refere ainda Tiago Caiado Milheiro, in Cúmulo Jurídico Superveniente, Noções Fundamentais, 2016, Almedina, que “A “operação” consiste em “anular” o cúmulo jurídico anterior, retomando as penas parcelares que tinham sido cumuladas juridicamente plena autonomia, como se nunca tivessem sido englobadas numa decisão cumulatória e, após, realizar um novo cúmulo jurídico, tendo em consideração as penas parcelares do cúmulo “desfeito” e as penas parcelares que não tinham sido consideradas, motivando uma decisão nova, que implica uma reponderação conjunta de toda a factualidade, culpa e personalidade do arguido”.

No caso vertente, o cúmulo jurídico efetuado nestes autos devia ter sido desfeito (o caso julgado relativamente ao cúmulo jurídico vale rebus sic stantibus) e uma vez retomada a autonomia  das penas parcelares havia que construir uma nova moldura do concurso entre estas e a pena parcelar de 15 meses aplicada no processo 130/22.... e, por fim, determinar uma nova pena única que contenha já um juízo final global relativamente a todas as penas que estão entre si em concurso.

Tal não foi feito.

Mas, para além disso, compulsada a sentença recorrida não vislumbramos nela, mais concretamente no ponto 1 do elenco dos factos provados, quais as concretas penas parcelares aplicadas ao arguido no âmbito dos presentes autos pela prática dos crimes pelos quais veio a ser condenado - um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, um crime de desobediência, dois crimes de ameaça agravada e dois crimes de injúria agravada.

E assim sendo, como é, claro está que há ainda que concluir que a sentença recorrida padece do vício decisório a que alude o artigo 410º, nº2, al.a), do CPP, ou seja, de uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício este do conhecimento oficioso deste tribunal de recurso.

Tal vício ocorre quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito, ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adotada.

É algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente.

Porém, no caso vertente, cremos que poderá este tribunal de recurso suprir o assinalado vício, evitando-se o reenvio dos autos à primeira instância nos termos do artigo 426º, do CPP.

Com efeito, constando dos presentes autos a respetiva sentença condenatória e o acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra que a confirmou, documentos assinalados na motivação da decisão recorrida e que permitem deles retirar as respetivas penas parcelares aplicadas ao arguido, nada obsta, claro está, a que se supra a insuficiência verificada, suprimento que passará apenas por elencar tais penas na factualidade provada (arts.428º e 431º,al.a), ambos do CPP).

Em conformidade, passará o ponto 1 da factualidade provada a ter a seguinte redação:

“Nos presentes autos de processo sumário n.º187/22.... foi … condenado por sentença proferida em 15/06/2022, pela prática em 21/05/2022, em autoria material, na forma consumada e como reincidente, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.353.º do Código Penal, na pena de 16 (dezasseis) meses de prisão),de um crime de desobediência, p. e p. pelos arts.152.º, n.ºs1, al.a) e 3 do Código da Estrada e 348.º, n.º1, al.a) e 69.º, n.º1, al.c), ambos do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria pelo período de 14 (catorze) meses, de dois crimes de ameaça agravada, ps. e ps. pela disposição conjugada dos arts.132.º, n.º2, al.l), 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al.c), todos do Código Penal, nas penas de 10 (dez) meses de prisão e 7 meses de prisão e, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de injúria agravada, ps. e ps. pela disposição conjugada dos arts.132.º, n.º2, al.l), 181.º, n.º1 e 184.º, todos do Código Penal, nas penas de 2 (dois) meses de prisão e 1 (um) mês e 15(quinze) dias de prisão, tendo em cúmulo jurídico sido condenado na  pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria pelo período de 14 (catorze) meses”.

Sanado o vício, consideradas as penas parcelares acabadas de elencar e a pena parcelar de 15 meses aplicada ao arguido no âmbito do processo 130/22...., a moldura do concurso, para efeitos de determinação da pena única, passará a ter como limite mínimo 16 (dezasseis) meses de prisão e como limite máximo 4 (quatro) anos, 11 (onze) meses e 15 (quinze) dias de prisão, o primeiro inferior ao encontrado pelo tribunal recorrido e o último mais elevado.

Portanto, sendo esta a moldura do concurso a partir da qual se impunha ter sido determinada a pena única, vejamos agora se, dentro desta, assiste razão ao recorrente quanto à pretendida redução da pena.

Defende o mesmo que as considerações tecidas pelo tribunal quanto à aplicação de uma pena não foram as mais corretas, porquanto, em suma:

- ainda que as exigências de prevenção geral sejam elevadas quanto aos crimes de violação de imposições, proibições ou interdições e de desobediência, já o mesmo não se poderá dizer quanto aos crimes de injúria e ameaça agravadas, sendo estas diminutas;

- as exigências de prevenção especial, ainda que acentuadas, não podem ter a amplitude que o tribunal recorrido lhes dá;

 - todos os crimes praticados a partir de 2011, onde se incluem aqueles que foram objeto dos presentes autos estão relacionados, direta ou indiretamente, com o consumo de álcool por parte do recorrente;

- é o próprio tribunal que reconhece na sentença proferida no processo nº130/22.... que o recorrente tem um problema de consumo excessivo de bebidas alcoólicas e que o tratamento desse problema é a única circunstância capaz de fazer o recorrente infletir nos seus comportamentos;

- não voltou a praticar qualquer tipo de ilícitos criminais há mais de um ano, o que demonstra que o cumprimento da pena de prisão que lhe foi determinada no processo nº130/... em regime de permanência na habitação tem cumprido o seu desiderato.
Vejamos o que aduziu/ponderou o tribunal recorrido em sede de determinação da pena única: “(…)

Ora, para a determinação da pena única atender-se-á aos factos no seu conjunto, em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 77º do CP, designadamente, ao número de crimes cometidos pelo arguido, à natureza dos mesmos e suas consequências.
Atender-se-á também à idade do arguido, à sua personalidade, evidenciada nos crimes que cometeu, conjugada as suas condições pessoais de vida (anteriores e posteriores aos crimes perpetrados).

Fundamental à determinação da pena única é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos – a relação dos diversos factos entre si, a sua frequência, a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados, a forma de execução, a determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido – assumindo, claro está, um significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, e ao núcleo de bens essenciais, em relação à ofensa de bens patrimoniais.

Conforme refere Rodrigues da Costa, In O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, disponível em www.sjt.pt “À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/058 .

Ou, como diz Figueiredo Dias «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique».


No caso vertente, estão em causa dois crimes de violação de imposições, proibições ou interdições, p.p. pelo artº 353º do C.P., um crime de desobediência, p.p. pelos artºs 152, nº 1, al. a) e 3 do C.E. e 348º, nº 1, al a) e 69º, nº 1, al. c), ambos do C.P., dois crimes de ameaça agravada, p.p. pelos artºs 132º, nº 2, al. l) e 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. c) do C.P. e dois crimes de injúria agravada, p.p. pelos artºs 132º, nº 2, al. l) e 181º, nº 1 e 184º, do C.P. , crimes estes cometidos como reincidente.

Sobre os factos, perpetrados entre 2/4/2022 e 21/5/2022, os mesmos são violadores de diferentes bens jurídicos, apresentando na sua globalidade, um grau de ilicitude elevado.

Ademais, foram cometidos com dolo direto, forma mais grave da culpa.

            O modo de execução foi censurável, designadamente no que tange ao episódio ocorrido no dia 21 de maio de 2022 e que envolveu a prática da maioria dos crimes em causa.

            As exigências de prevenção geral são bastante elevadas e fazem-se sentir em relação a todos os crimes em concurso, ao contrário do que defende o recorrente, comungando-se das considerações tecidas na sentença recorrida a tal respeito.

            E delas comungamos também no que tange às acentuadas exigências de prevenção especial.

            De facto, para além do passado criminal do arguido, a evidenciar, juntamente com os factos em apreço, uma personalidade avessa ao direito, não podemos deixar de salientar a falta de vontade do arguido para arrepiar caminho da senda do crime, nem mesmo após ter sentido na pele a experiência de viver privado da sua liberdade.

            As penas aplicadas, mesmos as não privativas da liberdade com o intuito de potenciar a sua ressocialização, claramente que não cumpriram essa finalidade, posto que não só não o demoveram da prática de novos ilícitos criminais, como tão pouco se mostraram eficazes a motivar naquele a consciência da censurabilidade do seu comportamento ou da necessidade de atuação conforme o direito.

De igual modo não evidenciou força de vontade para, uma vez em liberdade, debelar o seu problema de consumo excessivo de bebidas alcoólicas, consumo a que estão associados alguns dos seus comportamentos, problemática que preferiu ignorar, ai se escudando para justificar os seus comportamentos, o que é censurável e evidenciador de uma deformação da sua personalidade, apenas se tendo sujeitado ao tratamento de tal problemática no âmbito da pena que lhe foi imposta no processo 130/... e que se encontra a cumprir.

Porém, no que tange às suas condições pessoais de vida, não pode deixar de trazer-se à liça que o arguido encontra-se familiar, profissional e socialmente integrado, reside com a mãe, esta operária fabril, vem exercendo uma atividade profissional ligada à construção civil, com a qual aufere o salário mínimo nacional, encontrando-se familiarmente integrado.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, não se vislumbrando em que medida a argumentação aduzida pelo recorrente é suscetível de levar a uma redução da pena única, temos para nós, porém, que em face da alteração da moldura penal abstrata do concurso (decorrente do erro de direito em que incorreu o tribunal recorrido), a qual parte agora de um limite mínimo de 16 meses, impõe-se a nossa intervenção corretiva, reduzindo-se, dessa forma, a pena única para 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, pena esta que se julga ponderada em face do conjunto dos factos e da personalidade do arguido revelada nos mesmos.

- Da aplicação do instituto do desconto

Defende ademais o recorrente, no seguimento da pretendida redução da pena única, que encontrando-se desde o dia 13/07/2022 a cumprir a pena de 15 meses de prisão, em regime de permanência na habitação, a qual lhe foi aplicada no âmbito do identificado processo sumário nº 130/22.... (processo que integra o cúmulo), haveria que proceder ao desconto de tal período de privação na pena determinada, desconto este que a efetuar-se permitiria o cumprimento do remanescente em regime de permanência na habitação.

Compulsada a sentença recorrida, proferida em 19/04/2023, embora dela conste que o arguido desde o dia 13/07/2022 encontra-se a cumprir a pena de 15 meses de prisão, em regime de permanência na habitação, nada nela se referiu a respeito do eventual desconto de tal privação da liberdade na pena única determinada.

Defende o Ministério Público na sua resposta, após trazer à liça o disposto nos artigos 80º,nº1 e 81º, ambos do C.Penal, que, à luz destes preceitos legais, “um eventual desconto a realizar terá de ser aferido no momento da execução da pena de prisão a que o arguido foi condenado e, portanto, em sede de liquidação da pena, e não no momento da elaboração da sentença de cúmulo jurídico.

(…)é já nessa fase de execução da pena que caberá ao Ministério Público proceder à contagem do período de privação da liberdade ou da prisão sofridos pelo condenado.

Acresce que do disposto no citado artigo 81º,nº2 do C.Penal não se infere que a expressão “nova pena”, em que deve operar o desconto, se reporte à pena a determinar. O que aquele normativo menciona é que o desconto deve ser feito de forma equitativa na nova pena, ou seja, na nova pena que o arguido tem a cumprir no momento em que é executada”. 
Não cremos, com franqueza, que tenha necessariamente de ser assim.

No caso vertente, independentemente da natureza jurídica do instituto do desconto e da posição que se adote - caso especial de determinação da pena ou regra legal de execução da pena - não há qualquer dúvida que o tempo de privação de liberdade já sofrido pelo arguido à ordem do identificado processo nº130/..., no qual lhe foi aplicada a pena de 15 meses de prisão a cumprir em obrigação de permanência na habitação, tem de ser objeto de desconto na pena única determinada.

É o que resulta das disposições conjugadas dos artigos 78º, nº2, 80º e 81º, do C.Penal.

A questão está em saber em que momento é que deverá ocorrer a ponderação de tal desconto.

Temos para nós que tudo depende do caso concreto, existindo situações em que pode traduzir-se numa operação relativa ao cumprimento ou execução da pena e outras em que se trate de uma operação própria da determinação da pena.

Como se referiu no Ac. do STJ de 22/6/2023, proferido no âmbito do proc.8657/21.2T8LRS, em que foi Rel. Cons. António Latas, acórdão, “o instituto do desconto tem entre nós natureza híbrida, no sentido em que tanto pode traduzir-se no cumprimento de mera regra relativa à execução da pena, como em operação que integra a determinação judicial da pena. Isto é, quando apenas estiver em causa o apuramento de eventuais períodos de detenção, cumprimento de medidas processuais ou o cumprimento parcial de pena de prisão, a ter em conta no momento da liquidação da pena a que se reportam os artigos 477º e 479º, C.P.P., parece-nos que constituirá mera regra relativa ao cumprimento ou execução da pena.

Diferentemente, traduzir-se-á em operação própria da determinação concreta da pena, quando a medida e efeitos do desconto a realizar possam ter reflexos no conteúdo da decisão a proferir, conformando-a de acordo com aspetos relevantes do regime substantivo das penas. É o que sucederá se estiver em causa ponderação e decisão sobre o desconto correspondente a pena de multa (art. 80º nº2 CP), em caso de substituição de pena anterior (art. 81ºC.Penal) ou de medida processual ou pena sofridas no estrangeiro (art. 82º), sendo igualmente a situação verificada quando do desconto a realizar resultar medida efetiva da pena não superior a 2 anos de prisão, que possa vir a ser cumprida no Regime de Permanência na Habitação (art. 43º nº1 b) C.Penal), por decisão do tribunal de condenação.

Em todos estes casos caberá ao tribunal de condenação decidir do desconto juntamente com as demais questões relativas à determinação judicial da pena, diferentemente do que sucede em casos de mera liquidação a pena”.

            Na senda destas considerações e descendo ao nosso caso concreto, podemos já concluir que no momento em que o tribunal a quo procedeu à determinação da pena única, a questão da medida e dos efeitos da eventual ponderação do desconto a realizar nenhum reflexo iria ter no conteúdo da decisão a proferir, e dai que tal questão não tivesse sido expressamente abordada. 

De facto, tal desconto não teria a virtualidade de alterar, de imediato, a situação pessoal do arguido, nem de fazer questionar a possibilidade da pena ser cumprida no Regime de Permanência na Habitação, porquanto, face à pena única aplicada (3 anos de prisão), mesmo a descontar-se o tempo de privação da liberdade já cumprido a essa data, a pena ultrapassava os 2 anos.

            Já o mesmo não se passa agora.

Como evola do já decido, este tribunal de recurso, perante o erro de direito em que incorreu o tribunal recorrido na construção da moldura penal abstrata do concurso, procedeu a uma nova operação de determinação da pena única, na sequência da qual a reduziu para 2 anos e 8 meses de prisão efetiva.

Porém, não podemos ficar por aqui, pois a equacionar-se o desconto do tempo já cumprido em obrigação de permanência na habitação, o remanescente da pena é suscetível, em abstrato, porque inferior a 2 (dois anos), de ser cumprido em obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.

Com efeito, resulta do disposto no artigo 43º, nº1, do C.Penal, que “Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
a) (…)
b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80º a 82º”.
c) (…)”.

Por conseguinte, parece-nos evidente que se torna necessário e útil colocar a questão do desconto neste momento (no quadro da determinação da pena e não em momento posterior ao trânsito em julgado, aquando da liquidação da pena e sua homologação), pois, a proceder-se ao mesmo, o arguido poderá ainda beneficiar da possibilidade de cumprir  o remanescente da pena única em  Regime de Permanência na Habitação, desde que, claro está, venha a concluir-se pela verificação dos demais pressupostos de que depende a aplicação de tal instituto, porquanto, para tal, não basta a verificação de tal pressuposto formal, impondo-se ainda aferir se o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena, sendo como é incontroverso que o cumprimento da pena a coberto de tal regime é mais favorável do que em estabelecimento prisional.

Para o efeito, solicitou-se à primeira instância os elementos julgados pertinentes para aferir da situação processual do arguido à ordem do processo no qual cumpre a pena de 15 meses de prisão (englobada no cúmulo), em regime de permanência na habitação, designadamente informações a respeito do modo de cumprimento da mesma – se decorreu sem incidentes e se o arguido cumpriu as condições impostas  no plano de reinserção social elaborado pela DGRSP – vindo a apurar-se, com base nos relatórios de acompanhamento da execução da pena que nos foram remetidos, que o arguido tem mostrado recetividade e manifestado vontade em cumprir os objetivos propostos no Plano de Reinserção Social, cumprindo as orientações que lhe são fornecidas, sem registo de ocorrências reportadas para o sistema de monotorização eletrónica, mantendo a sua atividade profissional na área da construção civil e o acompanhamento no CRI (Centro de Respostas Integradas), de ..., devido ao seu problema de alcoolismo, comparecendo em todas as consultas que lhe foram agendadas por tal serviço de saúde.

Ora, o regime de permanência na habitação tem por finalidade limitar o mais possível em penas curtas de prisão os efeitos criminógenos da privação total da liberdade, que não contribuem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado.

A respeito das finalidades visadas com a execução da pena de prisão, dispõe o artigo 42º do C.Penal que  “a execução da pena de prisão servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”.

Como se refere no Ac. da Relação de Évora de 22/11/2018, proferido no âmbito do processo 1029/18.2PCSTB.E2, disponível, in dgsi.pt, “… diferentemente do que sucede relativamente à substituição da pena principal por pena de substituição em sentido próprio, em que o juízo de adequação e suficiência é reportado às finalidades das penas tal como estabelecidas no art. 40º do C. Penal, o critério legal de aplicação do RPH em alternativa à execução em meio prisional, é reportado – corretamente, em nosso ver – às finalidades específicas da execução da pena de prisão tal como estabelecidas no art. 42º C. Penal, que define claramente como orientação específica da execução da pena de prisão, a reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

Significa isto que na decisão a proferir sobre a aplicação alternativa do RPH relevam sobremaneira necessidades de prevenção especial positiva, assumidas tradicionalmente como critério orientador da execução da pena de prisão, independentemente de a decisão prévia de não substituir a prisão ter ficado a dever-se a razões de prevenção geral ou especial. Tendo o tribunal de condenação optado pelo cumprimento efetivo da pena de prisão, o que se impõe agora decidir é se a opção pelo RPH, que, legitimamente, merece os favores do legislador, satisfaz de forma adequada e suficiente a orientação para a reintegração social do recluso acolhido no art. 42º CP como finalidade primeira da execução da prisão, sendo que só muito residualmente deixará de aplicar-se o RPH por exigências de prevenção geral, ainda que o art. 42º não afaste totalmente a relevância das necessidades de prevenção geral ao referir-se à defesa da sociedade e à prevenção de futuros crimes, que abrange a prevenção geral”.

In casu, não obstante as exigências de prevenção especial que se fazem sentir, …, cremos que elas não impõem o cumprimento da pena de prisão pelo arguido em meio prisional, ficando asseguradas com o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos à distância, regime a que o arguido já se encontra sujeito e que vem cumprindo sem qualquer registo de incidentes, mantendo-se integrado no agregado familiar constituído por si e pela sua mãe, a exercer uma atividade profissional na área da construção civil e a ser acompanhado no CRI, no âmbito do tratamento do alcoolismo.

É verdade que as anteriores condenações, incluindo condenações em pena de prisão, não afastaram o arguido da prática do mesmo tipo de crimes, mas mesmo que se considere não restar outra alternativa que não seja a condenação do arguido em prisão efetiva, isso não significa que se imponha o cumprimento da prisão em reclusão. Pelo contrário, pois não foi essa a opção do nosso sistema de penas, que continua a considerar a prisão intramuros como a última ratio do sistema, o que foi claramente reafirmado com as alterações de 2017 ao alargarem o âmbito de aplicação do RPH a condenações até 2 anos.

No caso que nos ocupa, cremos, com franqueza, que estando o arguido no bom caminho e tendo tal regime de cumprimento da pena de prisão vindo a contribuir para a sua ressocialização, fazê-lo agora ingressar no meio prisional tal representaria um retrocesso em tal processo de ressocialização, com todos os efeitos perniciosos dai decorrentes.

 Tal regime de permanência na habitação mostra-se assim suficiente não só para evitar que o arguido reincida (dissuadir o agente da prática de novos crimes), como também para satisfazer aquele limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico, tanto mais que estamos perante crimes que integram a pequena criminalidade.

Por tudo o exposto, sem necessidade de outras considerações, procedendo-se ao desconto do tempo de privação da liberdade sofrido em cumprimento da pena à ordem do processo sumário 130/22.... (integrado no cúmulo jurídico), deverá o remanescente da pena única ser cumprido em regime de permanência na habitação, a que alude o artigo 43º, do Código Penal, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, regime que será o já determinado na sentença proferida no âmbito do identificado processo, dando-se continuidade aos objetivos já traçados e mantendo-se as autorizações concedidas, devendo a primeira instância proceder às diligências necessárias.

III. Dispositivo


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
A) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido AA, na pena única de 3 (três) anos de prisão, condenando-se agora o mesmo na pena única de 2 (dois) anos e 8(oito) meses de prisão.
B) Proceder ao desconto, nesta pena única, do tempo de prisão já cumprido à ordem do processo sumário 130/22.... em obrigação de permanência na habitação.
C) Determinar que o remanescente da pena única seja cumprido em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, regime esse que será o já determinado na sentença proferida no âmbito do identificado processo, dando-se continuidade aos objetivos já traçados e mantendo-se as autorizações concedidas, devendo a primeira instância proceder às diligências necessárias.
D) Manter o demais decidido.

 

Se por qualquer motivo já não for possível a concretização das condições necessárias à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, o condenado terá de cumprir a pena em estabelecimento prisional.

Sem custas

(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art.94º, nº2, do C.P.P.)