Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2063/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
E ACIDENTE DE VIAÇÃO
SIMULTANEAMENTE
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA DO TRABALHO
Data do Acordão: 11/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: BASES IX E XXXVII, Nº 4, DA LEI Nº 2127 .
Sumário: I - As indemnizações decorrentes de acidentes que sejam simultaneamente de viação e de trabalho não são cumuláveis mas antes complementares, subsistindo, em princípio, a emergente do acidente de trabalho para além da que for paga pelos danos causados pelo acidente de viação e se esta não reparar, por si só, integralmente o dano .
II– O nº 4 da Base XXXVII da Lei nº 2127 de 3/8/1965 condiciona o exercício do direito de regresso por parte da seguradora do acidente de trabalho contra os terceiros responsáveis pelo acidente ao não exercício pelo sinistrado do direito à indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente .
Decisão Texto Integral:
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
1- Relatório
1. A autora, A..., intentou a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a ré, B..., ambas com os demais sinais dos autos, pedindo a condenação desta última a pagar-lhe a quantia de esc. 4.066.869$00, acrescida de juros de mora a contar da sua citação, e ainda o montante das pensões que vier a pagar no decurso da acção, alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
A autora, no cumprimento de um contrato de seguro de acidentes de trabalho, pagou ao sinistrado C... indemnizações e vem-lhe pagando uma pensão por motivos das lesões por aquele sofridas num acidente de trabalho que foi também de viação e bem assim ainda outras importâncias a instituições hospitalares que deram assistência médica ao mesmo por causa das lesões sofridas com tal evento. Acidente esse que, todavia, se deu, quando aquele se dirigia para o seu local de trabalho conduzindo um velocípede, por culpa exclusiva do condutor de um veículo automóvel segurado na ré, em face do que a autora tem sobre esta um direito de regresso, pelo que pretende ser reembolsada pela ré das importâncias que dispendeu em pagamentos ao sinistrado, em assistência hospitalar e bem assim em despesas judiciais, e que totalizavam o montante acima referido.

2. Após ter sido citada para o efeito, a ré contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação.
No que concerne àquela primeira defesa a ré invocou, como excepção peremptória, a prescrição do direito da autora.
No que concerne àquela 2ª defesa, a ré impugnou a versão do acidente de viação apresentada pela autora.
Pelo que terminou pedindo a improcedência da acção.

3. No seu articulado de réplica, a autora pugnou pela improcedência da excepção de prescrição invocada pela ré.

4. No despacho saneador, que teve lugar com a realização de audiência preliminar, afirmou-se a validade e a regularidade da instância, tendo-se relegado para final, e por falta de elementos, o conhecimento da sobredita excepção de prescrição, passando-se depois à organização da selecção da matéria de facto, a qual não mereceu qualquer censura das partes.

5. Procedeu-se à instrução do processo, e da qual se destaca uma certidão junta pela autora contendo o termo de uma transacção lavrada na acção sumária, autuada com o nº 250/97, que correu termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Ourém, em que era autor o sobredito sinistrado C... e a aqui ré, e relacionada com um pedido de indemnização formulado pelo primeiro contra a última por .danos sofridos em consequência do referido acidente de viação (cfr. certidão de fls. 131/134)

6- Entretanto, a autora veio proceder a duas ampliações do pedido inicial, com fundamento em pensões que terá, no decurso da acção, pago ao sinistrado. Ampliações essas consubstanciadas através de pedidos de um acréscimo, à quantia indemnizatória inicialmente pedida, dos montantes, respectivamente, de esc. 1.248.910$00 e de € 4.552,40.
Ampliações essas que foram admitidas pelos correspondentes despachos entretanto proferidos.

7. Mais tarde, procedeu-se à realização do julgamento – sem a gravação da audiência,
7.1 A resposta aos diversos pontos (vulgo quesitos) da base instrutória teve lugar, sem que tivesse sido objecto de qualquer reclamação das partes.

8. Seguiu-se, a fls. 284/291, a prolação da sentença, na qual depois de, com base nos fundamentos aí aduzidos, ter julgado improcedente a excepção de prescrição aduzida pela ré, acabou, a final, por julgar improcedente a acção, absolvendo, consequentemente, a ré do pedido que aquela formulara contra si.

9- Não se tendo conformando com tal sentença, a autora dela interpôs recurso, o qual foi admitido como apelação.

10. Nas correspondentes alegações que apresentou desse recurso, a apelante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“1) A decisão em análise considerou que o sinistrado já tinha intentado acção cível contra a Recorrida, e tendo sido, alegadamente, ressarcido, desoneraria a Recorrida de qualquer obrigação de reembolso relativamente à Recorrente, pelo que decidiu pela improcedência da acção de direito de regresso interposta pela Recorrente nos termos da Base XXXVII.
2) Numa observação mais atenta dos montantes peticionados pela vítima em sede de acção cível intentada contra a Recorrida (documento junto aos autos) facilmente se constata que não há qualquer duplicação de valores, pelo contrário, ambas as indemnizações se completem.
3) Os Montantes Peticionados pelo Sinistrado na Acção Cível resultam da Certidão do Processo Cível junta aos Autos onde se constata que o valor peticionado respeita os seguintes danos:
- Indemnização por danos não patrimoniais no valor de Esc. 3.000.000$00
- Vestuário no valor de Esc. 28.000$00
- Danos Materiais no Veículo no valor de Esc. 20.800$00
- Diferença entre a Pensão que lhe foi atribuída pelo Tribunal de Trabalho (Esc. 44.300$00) e o salário que auferia antes do acidente (Esc. 82.500$00), no valor de Esc. 2892.900$00.
4) Para haver Duplicação tem que haver Coincidência com os Danos Patrimoniais considerados na Acção Cível.
5) Ora, conforme resulta dos factos assentes, a vítima do acidente – na esfera cível – não requereu qualquer indemnização ou ressarcimento de valores a título de:
- assistência hospitalar,
- despesas médicas,
- despesas de transporte,
- despesas judiciais,
- pensões atribuídas pelo Tribunal de Trabalho entre 29-11-96 e 28-02-2003.
6) Por outro lado, consta dos factos assentes da sentença (VII, VIII, IX; XIV) que a Recorrente suportou as referidas despesas, são decorrentes do acidente, e são prestações devidas enquadráveis na alínea a) da Base IX da Lei 2127.
7) Assim, é forçoso concluir que relativamente a tais despesas, não peticionadas pelo trabalhador sinistrado na esfera cível, nunca haveria duplicação ou cumulação mas sempre complementaridade nas indemnizações.
8) Se as Despesas não constavam da Acção Cível nunca podem ser consideradas Duplicadas, pelo que, nesta parte, os fundamentos de facto da sentença sempre estariam em oposição com a decisão.
9)Nesta parte – em que a sentença em análise atribuiu uma duplicação de indemnizações a montantes que nunca haviam sido peticionados – conforme resulta da certidão da petição da acção de indemnização cível intentada pelo sinistrado e junta aos autos – a decisão enferma, pois de nulidade nos termos da aplicação conjugada dos arts. 668º 1 c) e 716º do Cód. Proc. Civil, e deverá ser sanada, em conformidade.
10) É um dado assente e incontroverso que as indemnizações simultaneamente de viação e de trabalho não se acumulam, mas antes se completam até ao ressarcimento total do dano causado ao lesado, subsistindo estas só para além da medida em que não tiverem sido absorvidas por aquelas.
11) Nestes casos, nascem duas responsabilidades específicas, regidas por critérios algo diferenciados (..)
12) Resulta que a Sentença procedeu a uma aplicação formal, literal e meramente aritmética da Base XXXVII, não considerando, como devia ser feito:
- Qual a Natureza dos Montantes peticionados na Acção Cível
- Qual a Natureza dos Montantes peticionados nos presentes Autos
- O facto dos montantes da acção cível e do âmbito laboral terem sido pagos a títulos diferentes
- O facto dos montantes de indemnização cível e laboral não se repetirem mas antes se completarem no caso concreto.
13) Por outro lado, é também um dado assente que os critérios que presidem a ambas as jurisdições e nomeadamente ao cálculo e arbitramento das indemnizações é indistinto, de onde a consideração da complementaridade das indemnizações dos dois foros.
14) Na esfera cível, nos termos do disposto do art. 563º do Cód. Civil a obrigação de indemnizar existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
15) Na esfera laboral o montante da indemnização obedece a um valor fixo, calculado segundo as regras específicas estabelecidas na Base XIV ao passo que na esfera cível a indemnização visa repor a situação que existiria se não tivesse havido acto ilícito, sendo a reconstituição integral da situação o respectivo limite, podendo, pois, considerar variáveis como a taxa de juro, a taxa de inflação e actualização dos salários, contemplando o recurso à equidade.
16) Na esfera laboral a indemnização não é considerada pelo valor do salário integral, ao contrário da esfera cível que considera o valor do salário integral, e as já mencionadas taxa de inflação e progressão de carreira com actualização dos salários.
17) Por isso o problema da não cumulabilidade das indemnizações devidas por acidente simultaneamente de viação e de trabalho e da consequente perda pelo sinistrado, ainda que temporária, do direito à indemnização fixada no foro laboral supõe a demonstração de que o dano considerado já foi objecto de integral reparação pelo responsável de acidente de viação (..).
18) É assente que São autónomas as responsabilidades por acidente de viação e por acidente de trabalho, nascidas dum mesmo evento, pelo que a vítima pode, além da indemnização pelo acidente de trabalho, se não reparar todos os danos, reclamar o suplemento da indemnização a quem responder pelo acidente de viação (..)
19) Ficou demonstrado que no processo cível, o sinistrado ao peticionar os danos, não peticionou as quantias que já havia recebido a título de acidente de trabalho.
20)Sendo um acidente de trabalho simultaneamente de viação, é de desonerar de pagamento das pensões a entidade responsável pela reparação do primeiro, até ao montante em que a verba recebida pelos danos patrimoniais, satisfeita pelo responsável do segundo, se mostre consumida e absorvida pelo montante das pensões(...).
21)Existe no processo prova de que o sinistrado não foi ressarcido pelo mesmo dano mas antes requereu na esfera cível o complemento dos valores ressarcidos na esfera laboral.
22) Nesta parte – em que a sentença recorrida atribuiu uma duplicação de indemnizações a montantes que foi feita prova de não serem duplicados mas antes complementares conforme resulta da análise conjugada da certidão da petição da acção cível e da fundamentação de facto da sentença – a decisão enferma, pois, de nulidade nos termos da aplicação conjugada dos arts. 668º 1 c) e 716º do Cód. Civil, que deverá ser sanada, em conformidade.
23) Dado encontrar-se provada nos autos a única e exclusiva responsabilidade do acidente, do condutor do QF, seguro na Recorrida, bem como os valores suportados pela Recorrente, a Recorrida deverá ser condenada a reembolsar a Recorrente dos montantes peticionados, nos termos da Base XXXVII da Lei 2127”.

11. Nas contra alegações que apresentou, a ré pugnou pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.

12. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
1- Delimitação do objecto do recurso.
Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos (cfr. artºs 690, nº 1, e 684, nº 3, do CPC), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – fine - do artº 660 do CPC).
É também sabido que, dentro de tal âmbito, deve o tribunal resolver todas as questões que lhe sejam submetidas a apreciação, exceptuando-se aquelas questões cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras (cfr. 1ª parte do nº 2 do artº 660 do CPC).
Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
1.1 Ora calcorreando as conclusões do recurso verifica-se que as questões que importa aqui apreciar e decidir são, essencialmente, as seguintes:
a) Saber se a sentença recorrida enferma do vício de nulidade previsto no artº 668, nº 1 al. c)?
b) Saber se à autora assiste o direito de, por via do instituto do direito de regresso, reclamar da ré as quantias indemnizatórias peticionadas nestes autos?
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2. Os factos
Pela 1º instância foram dados como, assentes, por provados, os seguintes factos.
I - A Autora, no exercício da sua actividade da indústria de seguros, celebrou com “Construções Martins e Reis Lda” um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, pelo qual assumiu a responsabilidade pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho ocorridos com os trabalhadores da empresa, contrato esse titulado pela apólice nº 2071022, incluindo os acidentes in itinere;
II - No dia 28 de Novembro de 1996, pelas 07h15m, na Rotunda Sul, Fátima, comarca de Ourém, ocorreu um acidente, simultaneamente de viação e trabalho, em que intervieram o veículo ligeiro de mercadorias matrícula QF-02-50, conduzido por José Sousa Gaspar e o velocípede com motor, matrícula 1-VNO-32-14, na altura conduzido por C...;
III - Naquele dia e hora, o C...conduzia o seu velocípede e realizava como habitualmente o percurso normal da respectiva residência para o local de trabalho, em execução do contrato de trabalho;
IV – Naquele dia e hora o veículo QF-02-50 contornava a identificada rotunda na fila mais distante do eixo e o velocípede circulava na via mais próxima do eixo, seguindo ambos lado a lado;
V- Em consequência do acidente, o velocípede 1-VNO-32-14 caiu ao solo e o respectivo condutor foi projectado para o pavimento e arrastado pelo solo;
VI - Como consequência directa e necessária do acidente, o C... ficou politraumatizado, sofreu traumatismo cranio-encefálico com perda de conhecimento, e hematoma subdoral crónico frontal esquerdo e contusões hemorrágicas no lobo parietal direito e temporal esquerdo com atrofia pós traumática do lobo temporal esquerdo de que resultaram sequelas psicológicas com diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional, bem como traumatismo da mão direita com cicatriz palmar que prejudica os movimentos e perda de três falanges do dedo mínimo direito e anquilose com dedo em flexão permanente do dedo anelar direito que implicaram intervenção cirúrgica e internamento hospitalar;
VII - Pela assistência em hospital privativo do sinistrado a Autora liquidou a quantia de 1.360.940$00, com despesas de hospital externo a Autora dispendeu a quantia de esc. 662.421$00 com despesas de transporte que o sinistrado teve de efectuar por motivo do acidente a Autora dispendeu 145.958$00;
VIII - A título de incapacidade temporária absoluta (ITA) em que o sinistrado esteve por força do acidente entre 29.11.96 e 14.05.97, a Autora pagou 308.035$00;
IX - Com despesas judiciais a Autora despendeu a quantia de 58.800$00;
X – A rotunda supra referida permite, pelo menos, duas filas de trânsito (resposta ao quesito 1º);
XI – No local a via é de traçado plano e na altura do acidente era dia (resposta aos quesitos 2º e 3º);
XII – O veículo QF-02-50, ao passar pelo velocípede 1-VNO-32-14, tocou neste (resposta ao quesito 7º);
XIII – O embate deu-se entre o retrovisor esquerdo e o taipal do mesmo lado do veículo QF e o corpo do António Pedro, condutor do velocípede (quesito 8º);
XIV – A título de pensões por força do acidente, a Autora liquidou ao sinistrado as seguintes importâncias:
- 240.175$00, referente ao período entre 01.01.98 e 31.05.98;
- 912.665$00, referentes ao período entre 01.06.98 e 31.11.99;
- 1.248.910$00, referentes ao período entre 01.12.99 e 31.10.2001;
- € 4.552,40, referentes ao período entre 01.11.2001 e 28.02.2003;
XV – No Tribunal Judicial de Ourém correu termos a acção sumária emergente de acidente de viação nº 250/97 do 1º juízo, em que foi autor C... e ré B..., acção que terminou por transacção nos termos da qual, a ré aceitou pagar ao autor a quantia de 3.750.000$00 (cf. documento de fls. 131 e sgs. cujo teor aqui se dá por reproduzido);
XVI- Acção essa que deu entrada naquele tribunal em 19/09/1997, começando o autor-sinistrado por aí reclamar (através da correspondente pi) da então, como agora, ré, e com base nos alegados prejuízos ou danos sofridos com o sobredito acidente, as seguintes quantias parcelares indemnizatórias:
a) esc. 4.000$00, 6.000$00, 8.000$00 e 10.000$00, correspondentes, respectivamente, ao valor de uma camisa, de umas calças, de uns sapatos e meais e de um casaco que então ficaram destruídos;
b) esc. 20.800$00, correspondente ao valor necessário para reparar os danos sofridos no velocípede que então conduzia;
c) esc. 2.892.900$00, correspondente ao total da diferença entre o montante (de esc. 44.340$00 x 13 meses) mensal da pensão que lhe foi arbitrada no tribunal de trabalho e o montante necessário para perfazer a importância do total do salário mensal que então auferia (de esc. 82.500$00 x 14 meses), e tendo por base ao grau de IPP de 26, 25% de que então ficou afectado e a data limite de 70 anos;
d) esc. 3.000.000$00, a título de danos não patrimoniais;
montantes esses (num total de esc. 5.941.700$00) acrescidos dos respectivos juros legais, vencidos desde a citação da ré e até ao seu pagamento integral.
XVII- Por sentença proferida, em 14/11/97, nos autos de acção especial de acidente de trabalho, autuados sob o nº 130/97, foi a ora autora, por causa do sobredito acidente, condenada a pagar ao referido C...:
a) uma indemnização de esc. 2.400$00 (por despesas com deslocações obrigatórias);
b) esc. 576.419$00 de pensão anual e vitalícia, a pagar em duodécimos, acrescida de uma prestação suplementar em Dezembro de cada ano, de montante idêntico ao duodécimo devido nesse mês, e com efeitos a partir de 5/06/97. (factos estes, os descritos sob os nºs XVI e XVII, que constam, respectivamente das certidões, não impugnadas, juntas a fls. e 131 e ss e de fls. 122 e ss, e que este tribunal decidiu acrescentar à matéria de facto, à luz do disposto no artº 712, nº 1 al. a), do CPC).
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3- O Direito
3.1 Apreciação da 1ª questão acima enunciada.
Da alegada nulidade da sentença por alegada contradição ou oposição entre os seus fundamentos e a decisão (artº 668, nº 1 al. c), do CPC).
Só ocorrerá esta causa de nulidade quando a construção da sentença é viciosa, isto é, quando «os fundamentos invocados pelo juíz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto” (conf. Prof. Alb. dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141”). Ou melhor, quando das permissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta à que logicamente deveria ter extraído (vidé ainda , Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.).
Ora calcorreando a decisão em apreço afigura-se-nos que todas essas permissas e dados factuais e jurídicos, bem como o discurso lógico-discursivo e decisório correspondente, se encontram clara e inequivocamente enunciados e externos.
Não existem nem contradição nem ilogicidade alguma. A decisão, depois de analisar, indagar e juridicamente balizar o “thema decidendum”, extraiu em conformidade o seu juízo jurídico-subsuntivo. Na elaboração do correspondente silogismo judiciário, não se detecta, pois, a nosso ver, qualquer oposição ou contradição. O afirmado no teor das conclusões nºs 9º e 22º da motivação do recurso não corresponde, salvo o devido respeito, ao sentido da decisão.
Torna-se patente que a apelante não concorda com o sentido decisório a final extraído, mas o que não pode é apontar qualquer vício ou erro de raciocínio no desenvolvimento daquele silogismo.
Saber se a decisão (de mérito) final está ou não em conformidade com as regras do direito aplicáveis aos factos dados como apurados, a ponto de a solução final a extrair ser outra que não aquela que foi tomada, nada tem a ver com o aludido vício de nulidade (questão essa que iremos a seguir abordar).
Ou seja, a tribunal a quo disse o que na realidade queria dizer e o que disse expressou-o claramente em termos perfeitamente coerentes e inequívocos, pelo que se terá de concluir que, a esse propósito, não ocorreu qualquer construção viciosa da sentença.
Pelo que quanto a tal questão deverá, nessa parte, improceder o recurso da apelante.

3.2. Quanto à 2ª questão supra enunciada
- Do direito (de regresso) da autora receber da ré as quantias indemnizatórias peticionadas nestes autos.
Como pano de fundo, do caso em apreço, temos o sobredito acidente que envolveu o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula QF-02-50, conduzido por José Sousa Gaspar e o velocípede com motor, matrícula 1-VNO-32-14, na altura conduzido por C..., encontrando-se a responsabilidade civil pelos danos causados pelo último transferida para a ré, enquanto que no que no concerne ao primeiro condutor o mesmo era trabalhador da firma “Construções Martins e Reis Ldª”, a qual tinha então celebrado com a autora um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, e pelo qual esta última tinha assumido a responsabilidade pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho ocorridos com os trabalhadores dessa empresa.
Acidente esse que na 1ª instância foi caracterizado simultaneamente de viação e de trabalho, concluindo-se ainda aí ter sido o condutor do veículo segurado da ré o exclusivo responsável pela sua produção. Caracterização e conclusão essas que não mereceram qualquer censura das partes, que as aceitaram, pelo que devem ter-se, tais questões, como definitivamente assentes, ou seja, de que estamos na presença de um acidente simultaneamente de viação e de trabalho, e cuja produção se deveu exclusivamente à responsabilidade do segurado da ré.
Pretende, agora, a autora, com a presente acção, ser reembolsada pela ré daquelas importâncias, acima descriminadas sob os nºs VII, VIII, IX e XIV
do ponto nº 2 da matéria de facto dada como assente, que teve dispender a favor do sinistrado, por força daquele contrato seguro celebrado com a sua entidade patronal de então e daquela sentença que foi proferida na acção especial de acidente de trabalho e a que se alude no nº XVII daquela matéria de facto.
Para o efeito, e como fundamento do exercício desse direito, invoca o disposto na base XXXVII, nomeadamente, nos seus nºs 1 e 4, da Lei 2127 de 3/8/1965, por força da qual se considera sub-rogada nos direitos do referido sinistrado.
Vejamos então se, no caso presente, assiste à autora o direito de obter tal reembolso da ré.
Dispõe nº. 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº. 522/85, de 31 de Dezembro, que "quando o acidente for simultaneamente de viação e de trabalho aplicar-se-ão as disposições deste diploma, tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de trabalho”. (sublinhado nosso)
À data da ocorrência do acidente (em 28/11/96) encontrava-se em vigor a citada Lei nº 2127, que promulgou as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais. Lei essa que será, assim, a aplicável ao caso presente, não obstante ter sido entretanto revogada pela Lei nº 100/97 de 13/9 (artº 42).
Para além do disposto na Base IX (onde se estabelece o âmbito das prestações abrangidas pelo direito de reparação do trabalhador-sinistrado), importa, sobretudo, ter presente o teor da Base XXXVII, da citada Lei que rezava assim:
“1. Quando o acidente for causado por companheiros da vítima ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção de regresso contra aqueles, nos termos da lei geral.
2. Se a vítima do acidente receber dos companheiros ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade patronal ou seguradora, esta considerar-se-á desonerada da respectiva obrigação e terá direito a ser reembolsada pela vítima das quantias que tiver pago ou dispendido.
3. Se a indemnização arbitrada à vítima ou aos seus representantes for de montante inferior aos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.
4. A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº1, se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar do acidente. Também à entidade patronal ou seguradora assiste o direito de intervir como parte principal no processo em que a vítima exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que alude esta Base”. (sublinhado e negritos nossos)
Constitui hoje entendimento praticamente pacífico que as indemnizações decorrentes de acidentes que são ao mesmo tempo de viação e de trabalho não se somam entre si, isto é, não são cumuláveis, mas antes complementares, subsistindo, todavia, em princípio, a emergente do acidente de trabalho para além da que foi paga pelos danos causados pelo acidente de viação e se esta não reparar, só por si, integralmente o dano (porque se tal acontecer, aquela deverá considerar-se extinta). Sendo tais indemnizações complementares, tal significa que só se completam ou subsistem até ao total ressarcimento dos prejuízos causados, sendo, todavia, independentes uma da outra, pelo que o lesado poderá e deverá optar por uma delas, e que feita essa opção só poderá receber da outra o que for necessário para completar o ressarcimento integral do seu dano. Regra essa de inacumulabilidade das indemnizações (neste tipo de acidentes) que só acontece ou se verifica no que concerne aos danos patrimoniais e já não, portanto, em relação aos danos não patrimoniais, dado que estes não são devidos nas indemnizações por acidentes de trabalho, por a Base IX da citada Lei nenhuma referência a eles fazer. (vidé, por todos, e propósito, Ac. do STJ, de 24/1/2002 in “CJ, Acs. do STJ, Ano X; T 1- 54, e ss”, Ac. da RLx de 1/10/2002 in “www.dgsi/pt/jtrl”; Cruz de Carvalho in “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Livaria Petrony, 1980, págs. 132/133 e ss” e Vitor Ribeiro in “Acidentes de Trabalho – Reflexões e Notas Práticas, Livraria Rei dos Livros, págs. 227/238).
Com interesse, para a resolução do caso sub júdice convirá ainda assinalar o seguinte:
Antes da sua revogação pelo citado DL nº 522/85 de 31/12 (artº 40), encontrava-se em vigor, em plena vigência da Lei 2127, o DL 408/79 de 25/9, que instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Desse diploma constava o artº 21 que prescrevia, no seu nº 1, o seguinte: “quando o lesado em acidente de viação beneficie do regime próprio dos acidentes de trabalho, por o acidente ser simultaneamente de viação e de trabalho, o segurador de trabalho ou o responsável directo, na falta deste seguro, responderá pelo acidente de trabalho, tendo o direito de haver do segurador do responsável pelo acidente de viação ou do fundo de garantia automóvel, na falta de seguro, o reembolso das indemnizações pagas, nos termos dos números seguintes e do que vier a ser regulamentado”. (sublinhado nosso)
Tal norma, acabada de transcrever, previa, assim, um reembolso efectuado directamente pela seguradora da responsabilidade civil à seguradora da responsabilidade por acidente de trabalho.
Porém, no citado DL n º 522/85, que revogou, repete-se, aquele DL n º 408/79, não se encontra previsto o reembolso directo entre aquelas seguradoras, pelo que a disciplina dos casos em que o acidente revista simultaneamente as características de acidente de viação e de trabalho voltou novamente a constar apenas da acima citada Base XXXVII da Lei 2127 (situação que, diga-se, ainda hoje se mantem com a revogação desta lei pela Lei nº 100/97 de 13/9 – cfr. artº 31).
Posto isto, debrucemo-nos outra vez, mas ainda mais de perto, sobre o caso em apreço.
Do acima exposto, e nomeadamente da matéria factual apurada, resulta que o sobredito acidente foi causado por um terceiro (o condutor do veículo ligeiro).
Situação essa que, em princípio, faculta à autora o direito de ser reembolsada das quantias que entretanto pagou - nos termos e por força da citada Lei dos Acidentes de Trabalho (cfr. base IX) –, e que se encontram descriminadas na matéria de facto, através do direito de acção de regresso contra tal responsável, ou seja, no caso contra a ré seguradora da responsabilidade daquele, e à luz do disposto nos nºs 1 e 4 da Base XXXVII da Lei 2127.
Porém, ficou também apurado que o sinistrado, com data de 19/9/97 instaurou uma acção de indemnização civil contra a também aqui ré, seguradora do responsável pelo acidente (de viação) em causa, reclamando desta uma indemnização pelos danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, descriminados no nº XVI do ponto 2 dos factos assentes, e que terá sofrido em consequência do referido acidente (ocorrido em 28/11/1996). Acção essa que veio a terminar através de uma transacção ali lavrada entre o autor-sinistrado e a ali, tal como aqui, ré, na sequência da qual o primeiro reduziu o montante peticionado para a quantia de esc. 3.750.000$00 (hoje € 18.704,92) e a segunda se comprometeu a pagar ao mesmo tal importância.
Muito embora na referida transação não se tenha feito a destrinça dos montantes atribuídos aos danos que ali se visou ressarcir (nomeadamente no que concerne aos danos patrimoniais e não patrimoniais), deve-se, todavia, reconhecer, face ao teor da matéria fáctica apurada (cfr. nºs VII,VIII, IX, XIV, e XVI), que os danos cuja indemnização se pedia inicialmente naquela acção civil não coincidiam com os danos que a ora autora teve de indemnizar, por força da Lei dos Acidentes de Trabalho, e de cujos montantes pretende nesta acção ser reembolsada, tendo, todavia, com fonte emergente comum o sobredito acidente.
Ora, e como bem se sublinhou na douta sentença recorrida, o nº 4 da Base XXXVII da citada Lei 2127 condiciona o exercício do direito de regresso por parte da seguradora (ou da entidade patronal, se for o caso), contra os terceiros responsáveis pelo acidente - com vista a obter o reembolso das quantias indemnizatórias que pagou pelo também acidente trabalho e à luz das leis que regem o mesmo -, ao não exercício pelo sinistrado do direito à indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente, ou seja, tal acção de regresso por parte da seguradora do acidente de trabalho fica condicionada ao facto de o sinistrado não ter, no prazo de um ano a contar da dato do acidente, exigido judicialmente, aos terceiros responsáveis pelo acidente de viação, a correspondente indemnização pelos danos sofridos com tal acidente.
Ora no caso em apreço, e como resulta da matéria factual acima exarada, não se verificou tal condição, já que o sinistrado demandou, dentro de um ano após a ocorrência do sobredito acidente de viação, a seguradora do responsável pela produção do mesmo, exigindo-lhe uma indemnização por danos sofridos com ele (e para o caso, e salvo o devido respeito, pouco importa, a nosso ver, que as indemnizações pedidas em ambos os processos, a acção civil emergente de acidente de viação e nesta mesma acção com vista a obter o reembolso das quantias pagas a título de acidente de trabalho, digam respeito a danos em si não coincidentes), e cuja reparação veio a obter nos termos e pela forma supra referidos.
E nessas circunstâncias, e tal como resulta ainda da 2ª parte do citado nº 4 da aludida Base XXXVII, o único meio ao dispor da autora, seguradora do acidente de trabalho, para fazer valer, neste caso, contra a ré, seguradora do acidente de viação, o direito de ser reembolsada das quantias acima aludidas, era ter então requerido a sua intervenção, como parte principal, naquela acção civil que oportunamente foi instaurada pelo sinistrado (sendo certo que destes autos nada consta ou sequer foi alegado quanto às razões porque essa intervenção não foi feita).
Logo, não se verificando, no caso em apreço, nenhuma das condições estatuídas no citado nº 4 da citada Base XXXVII, não poderá a autora exercer, como pretendia, através desta acção, o direito de regresso contra a ré – seguradora, com vista a obter dela o pagamento das quantias acima descriminadas e que teve de desembolsar no âmbito do seguro relativo ao acidente de trabalho, sendo ainda certo que, como atrás se deixou já expresso, após a revogação o DL nº 408/79 de 25/9 (e nomeadamente do seu artº 21) deixou de ser legalmente possível o reembolso directo entre as seguradoras do acidente de trabalho e de viação, e nomeadamente depois de ter sido paga pela última uma indemnização ao sinistrado por danos sofridos no acidente de viação. (cfr. ainda artº 18 do DL 522/85 de 31/12, e nºs 2 e 3 daquela Base) - Neste sentido vidé ainda, e para maior e melhor desenvolvimento, o, quanto a nós, brilhante acordão acima citado do STJ, de 24/1/2002 in “CJ , Acs. do STJ, Ano X; T 1- 54” e ainda Garção Soares e Maia dos Santos in “Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, livraria Almedina Coimbra, página 42, em anotação ao artº 18”.
Nestes termos, e pelo exposto, decide-se julgar, in totum, improcedente o recurso, confirmando-se a douta decisão recorrida.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso (de apelação), confirmando-se a sentença da 1ª instância.
Custas pela autora-apelante.

Coimbra,