Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/14.8JAGRD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: JUNÇÃO DO REQUERIMENTO DE RECURSO FORA DE PRAZO
JUSTO IMPEDIMENTO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 139.º, N.º 5, E 140.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
1. Não se vislumbra qualquer obstáculo a que um recorrente lance mão do «justo impedimento» para além do prazo normal de recurso, assente que tal situação imprevista aconteceu, em termos de história, para além desse prazo.

2. Como tal, é possível a invocação do “justo impedimento” por factos ocorridos num dos três dias úteis previstos no artigo 107º-A do CPP.

3. A doença súbita de advogado, devidamente atestada por médico, constitui justo impedimento, só havendo que opinar que inexiste culpa humana nesta ocorrência imprevista de doença, sendo razoavelmente de admitir que alguém que foi acometido de uma doença súbita e com alguma duração na tarde do último dia para a apresentação de uma peça processual se possa ter atrasado 31 segundos na sua colocação no CITIUS.


Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:

RECURSO Nº 20/14.8JAGRD-B.C1
Processo Comum Singular
Junção de requerimento de recurso fora de prazo
Justo Impedimento
Juízo de Competência Genérica de Trancoso
Tribunal Judicial da Comarca da Guarda

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
            OS ANTECEDENTES PROCESSUAIS

1.foi proferida sentença datada de 10 de Fevereiro de 2023 com o seguinte DISPOSITIVO (transcrição):
· «a) Condeno o arguido … pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, do Código Penal e 103.º, n.º 1, alínea b) e 104.º, n.º 2, alínea b), do Regime Geral da Infracções Tributárias, na pena 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão;
· b) Condeno a arguida … pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, do Código Penal e 103.º, n.º 1, alínea b) e 104.º, n.º 2, alínea b), do Regime Geral da Infracções Tributárias, na pena 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;
· c)   Suspendo a sua execução de ambas as penas identificadas em a) e b), nos termos do disposto no art. 51.º, n.º 1 e 5 do Código Penal e 14.º, n.º 1 do RGIT, pelo período de 3 (três) anos, suspensão essa condicionada ao pagamento solidário por parte dos arguidos da quantia de 77.220,28€ (setenta e sete mil duzentos e vinte euros e vinte e oito cêntimos), correspondente à prestação tributária devida.
· d) Julgo parcialmente procedente a pretensão de perda de vantagem patrimonial decorrente da prática de crime peticionada e, consequentemente, declaro a perda a favor do Estado do montante de 63.720,28€ (sessenta e três mil setecentos e vinte euros e vinte e oito cêntimos), condenando os arguidos ao seu pagamento».



2. Recorreram ambos os arguidos através de peça processual entrada em juízo pelas 00:31 do dia 17 de Março de 2023.

3. Nesse mesmo dia, pelas 18:23, os ditos recorrentes invocaram o «justo impedimento», nos termos do artigo 140º do Código de Processo Civil, futuramente CPC (ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal, doravante CPP), peticionando, a final, que se considerar tal justo impedimento como provado e, em consequência, se admita o recurso interposto da sentença em causa, apesar de fora do prazo legal.

4. Com data de 30 de Março de 2023, foi proferido o seguinte DESPACHO:
«Vieram os arguidos … interpor recurso da sentença condenatória proferida nos autos a 10 de Fevereiro de 2023, mediante requerimento electrónico dirigido aos autos a 17 de Março de 2023 …
A sentença foi lida e depositada no dia 10 de Fevereiro de 2023 … considerando-se, portanto, nessa mesma data, os arguidos notificados pessoalmente da sentença (cfr. art. 411.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal).
Deste modo, o prazo de 30 dias para interposição de recurso terminaria no passado dia 12.03.2023, contudo, sendo esse um dia não útil (domingo), o mesmo passou para o primeiro dia útil seguinte, ou seja, para o dia 13.03.2023.
Ainda assim, tendo presente o disposto no art. 107.º-A do Código de Processo Penal, sempre assistia aos arguidos a possibilidade de apresentar o recurso em causa até ao 3.º dia útil após o término do aludido prazo, isto mediante o pagamento da multa correspondente, o que, tudo compulsado, remete o efectivo término do prazo para o dia 16.03.2023.
Ora, o recurso em causa foi interposto no dia 17.03.2023, pelas 00:00:31, razão pela qual, reconhecendo que o mesmo foi apresentado fora de prazo, veio o ilustre mandatário dos arguidos justificar a sua apresentação extemporânea, alegando uma situação de justo impedimento.
De forma o mais sucinta possível, veio então alegar o seguinte:
Que no dia 16.03.2023, após ter intervindo em duas diligências, quando se encontrava em casa, por volta das 17:30h, “foi surpreendido por dores de cabeça lancinantes e intensíssimas, náuseas e vómitos, desmaiando logo de seguida”, tendo sido encontrado pela sua esposa desmaiado no chão, razão pela qual a mesma acabou por chamar um médico. Após a chegado do médico, “depois de examiná-lo, diagnosticou visível agitação e preocupação, com queixas de cefaleias, associadas a náuseas, vómitos e perda de consciência com recuperação espontânea, bem como tensão arterial elevada, aconselhando a ida a urgência hospitalar dada a gravidade da condição clínica”.
Por fim, refere que, apesar do aconselhamento médico, decidiu não se deslocar às urgências, optando por ficar em casa na tentativa de terminar o presente recurso, …
Ora, mesmo perante tal esforço, que qualifica de “sobre-humano”, refere que “conseguiu dar entrada com o recurso, via CITIUS, iniciando o envio ainda antes das 00H00, mas concluindo-o escassos 31 segundos após”, …
Para prova do alegado, junta atestado médico (ref.ª  2150492).

                      *
Em sede de contraditório, veio o Ministério Público pugnar, em síntese, pela não admissão do recurso, …
Posto isto, cumpre decidir.
*
Dispõe o art. 107.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que “Os actos processuais podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade referida no número anterior, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento.”.
Quanto à noção de justo impedimento, nada referindo a esse respeito o Código de Processo Penal, há que atentar àquela que decorre do próprio Código de Processo Civil, o qual, no seu art. 140.º, nos refere que “considera-se «justo impedimento» o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato” (ex vi art. 4.º do Código de Processo Penal).

Em termos especificamente jurisprudenciais, a forma como este conceito de justo impedimento tem sido entendido e os critérios valorativos a serem seguidos para o seu preenchimento têm-se apresentado com significativa coerência e uniformidade. …

Revertendo ao caso em apreciação, não podemos deixar de acompanhar o entendimento promovido pelo Ministério Público, considerando que, manifestamente, a situação em causa relatada pelo mandatário dos arguidos não configura uma situação de justo impedimento, isto essencialmente por razões que, no nosso entender, nos parecem bastantes simples e que resultam de forma objectiva da factualidade alegada.
Com efeito, o que resulta da alegação em causa é tão só o seguinte (parafraseando):
Após a intervenção do ilustre mandatário em determinadas diligências judiciais em parte do dia 16.03.2023, o mesmo encontrava-se a terminar o recurso, quando terá sido acometido, alegadamente, de doença súbita … Chamado o médico a casa, após ter sido avaliado pelo mesmo, foi aconselhado, para efeitos de diagnóstico complementar, a deslocar-se às urgências, indicação essa que o próprio mandatário rejeitou. Nesse momento, teve destreza suficiente para fazer um juízo valorativo quanto à gravidade da situação e, em concreto, do seu estado/nível de incapacidade para continuar a trabalhar, fazendo uma opção (que reputamos de legítima) em se manter a trabalhar, ao invés de se deslocar às urgências tal como terá sido aconselhado pelo médico.
Bem ou mal, com prejuízo ou não para a sua saúde ou para o seu trabalho, a verdade é que resulta claramente da alegação em causa que foi essa a opção tomada pelo ilustre mandatário, e, ao fazê-lo, naturalmente que assumiu o risco inerente às dificuldades porque alegou passar e que seriam passiveis de o limitar na execução das suas obrigações profissionais.
Salvo devido respeito, tendo optado por ficar em casa precisamente com o intuito de acabar o recurso, conformou-se com toda aquela situação, a qual, objectivamente, ainda que pudesse ter gravidade, não foi suficiente para o impedir de trabalhar (ainda que tal tenha passado, alegadamente, por um relato à sua esposa daquilo que a mesma deveria redigir na aludida peça processual). Aliás, no que concerne à gravidade da dita doença súbita, o relatório médico junto pouco ou nada diz, sendo apenas uma transcrição das queixas que o ilustre mandatário relatou ao clínico (à excepção da tensão arterial que constitui um elemento objectivamente por aquele comprovado), tanto é que foi aconselhado a ir às urgências para um mais eficaz diagnóstico.
Reflexo de que o que está em causa não configura qualquer justo impedimento, é a circunstância de o recurso ter sido concluído e submetido apenas 31 segundos fora de prazo, porquanto, para que o mesmo fosse apresentado tempestivamente, bastava, a título meramente exemplificativo e ilustrativo, uma maior destreza a redigir o requerimento ou a inseri-lo no sistema. Trinta e um segundos são um simples “suspiro” no computo do prazo global de que dispunham para apresentar o recurso.
Dito isto, e tal como o considerado no Acórdão supra mencionado, “A doença para constituir justo impedimento terá de impossibilitar absolutamente a prática atempada do ato por razões que não sejam imputáveis ao requerente, o que sucederá quando a doença seja súbita, imprevisível e grave. A doença invocada não é grave se, apesar dela, a requerente, na qualidade de advogada, tiver continuado a exercer a sua atividade profissional, aceitando o risco de não avaliar, com a necessária atenção e cuidado, cada situação e responder a todas a solicitações atempadamente”, conclusões estas que têm inteira aplicabilidade ao vertente caso, pelo que não podemos deixar de concluir pela não verificação dos pressupostos de que depende a verificação de uma situação de justo impedimento, sendo que a apresentação extemporânea do recurso só a ela poderá ser assacada.
Logo, não tendo os arguidos apresentado tempestivamente recurso, precludido se mostra, por caducidade, o exercício desse direito que lhes assistia, mostrando-se a sentença condenatória, à data daquela sua pretensão, transitada em julgado.
          …».

5. Em 24 de Abril de 2023, reclamaram os recorrentes de tal despacho, nos termos do artigo 405º do CPP.
Fizeram-no, CONCLUINDO nos seguintes termos (transcrição):
«…
3.ª Os arguidos não se conformam com tal decisão, pelo que vêm dela reclamar, ao abrigo do disposto no artigo 405.º, n.º 1, do CPP, considerando que é esse o meio próprio de reação contra a mesma – cfr. jurisprudência supra citada.
4.ª Porque não é líquida a questão de saber se, no caso, o meio próprio de reação contra tal despacho é a reclamação ou antes o recurso, a ser entendimento de V. Exa. que o meio próprio de reação contra tal despacho é o recurso, então desde já requerem os arguidos que este incidente de reclamação seja convolado em recurso, mandando seguir-se os respetivos termos (em separado, imediatamente e com efeito suspensivo – artigos 406.º, n.ºs 1 e 2, 407.º, n.ºs 1 e 2, al. b), e 408.º, n.º 3, do CPP).
5.ª E assim ao abrigo do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC, subsidiariamente aplicável, tal como se defende no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima citado.
6.ª A sentença condenatória foi lida e depositada a 10.02.2023, considerando-se notificada aos arguidos nessa data, pelo que o prazo de 30 dias para interposição do recurso terminava a 13.03.2023, podendo o ato ser praticado num dos três dias úteis seguintes, portanto até ao dia 16.03.2023, mediante o pagamento da multa devida, nos termos do artigo 107.º-A do CPP.
7.ª O recurso entrou às 00:00:31 do dia 17.03.2023, ou seja, 31 segundos depois do termo do prazo, tendo os arguidos procedido ao pagamento da multa devida pela apresentação do recurso no 3.º dia útil posterior ao termo do prazo (2 Ucs).
8.ª No dia 17.03.2023, pelas 18:23:43, o mandatário dos arguidos deu entrada a um requerimento, acima transcrito, invocando justo impedimento na apresentação tempestiva do recurso, decorrente de doença que o vitimou, na tarde do último dia do prazo, …
9.ª O atestado médico, … alude expressamente a que na avaliação o doente «encontrava-se visivelmente agitado e preocupado com queixas de cefaleias associado a náuseas e vómitos, tendo a esposa referido a existência de um episódio de perda da consciência com recuperação espontânea», que «tinha um perfil tensional alto com TA 180/95 e FC 75 bpm», e que «não tendo mais meios para uma correcta avaliação médica nem qualquer tipo de apoio farmacológico, recomendei de imediato, apesar do doente manifestar a necessidade de continuar a trabalhar, a ida ao hospital para ser observado no serviço de urgência dada a condição clínica me parecer grave (…)» (negritos nossos).

15.ª No caso dos presentes autos, o mandatário desmaiou, foi encontrado nesse estado pela sua Mulher, que por isso mesmo chamou o médico a sua casa, e teve cefaleias, náuseas e vómitos, na tarde do último dia do prazo, e não antes.
16.ª O desmaio, com perda de consciência e recuperação espontânea, as náuseas e os vómitos, tudo queixas a que alude o atestado médico são, para qualquer pessoa, como é facto notório, sempre incapacitantes, enquanto durarem, causando prostração subsequente, independentemente da gravidade da doença que as causa.
17.ª A doença do mandatário ocorreu no último dia do prazo, a escassas horas do seu termo (cerca de seis horas); sendo que o ato processual em causa é um recurso penal e não o pagamento de uma multa; e sucedendo que a doença impediu, efetivamente, o mandatário de trabalhar enquanto esteve desmaiado e enquanto esteve a aguardar pelo médico e, depois, enquanto esteve a ser observado por este e, posteriormente, atento o estado físico em que se encontrava;
18.ª Impedimento que, obviamente, teve uma duração muito mais longa do que 31 segundos – o tempo em causa na extemporaneidade da apresentação do recurso; além de que a incapacidade física, psicológica e anímica do mandatário permaneceu muito além da entrega do requerimento na plataforma CITIUS; o que, obviamente também, impediu a tempestividade da apresentação do recurso, por 31 segundos.
19.ª Não tivesse o mandatário sido acometido da dita doença, súbita, imprevisível e grave – grave a ponto de ter desmaiado e de ser necessário chamar o médico – e o prazo em causa teria sido cumprido bem antes da meia-noite.

23.ª O estado físico em que o médico encontrou o mandatário signatário falava por si e era um dado objetivo, que, por isso, foi vertido no atestado médico.

27.ª E esse atestado contém, na referência ao estado em que o examinado se encontrava, como não podia deixar de ser – é assim em todos os casos, desde que o doente possa verbalizar as queixas –, o resultado da recolha, pelo médico, das queixas feitas pelo próprio e pela sua Mulher, que se destinam a estabelecer um diagnóstico.
Queixas que o médico considerou relevantes, pois, de outra forma, não teria praticado os atos de medição da tensão arterial e do ritmo cardíaco, exames básicos que podiam ser efetuados por ele próprio, naquele momento e naquele local, e que são adequados a esse tipo de queixas – e não a outras, como por exemplo uma dor num pé.
28.ª Mas há mais: o resultado da medição da tensão arterial revela valores consideravelmente altos, razão pela qual o médico, … aconselhou o doente a recorrer às urgências hospitalares
29.ª Ao contrário do que é afirmado no despacho reclamado, o facto de o doente não ter seguido o conselho do médico e não ter recorrido de imediato às urgências hospitalares, e o facto de ter decidido continuar a trabalhar na peça recursiva, para a poder apresentar ainda nesse dia, não afasta nem apaga a situação de doença em que se encontrava e que constituiu impedimento da prática atempada do ato.
30.ª É que não ir à urgência para ser diagnosticado e para se tratar, e continuar, apesar de doente, a trabalhar, não demonstra que estava de saúde e na posse de capacidade plena;
Demonstra apenas o esforço a que se submeteu na tentativa de cumprir o  prazo,
34.ª Salvo o devido respeito, o despacho recorrido contraria toda a lógica, quando refere que ter sido o recurso concluído e apresentado com 31 segundos de atraso demonstra que não houve qualquer justo impedimento,
43.ª Verifica-se o justo impedimento, devidamente alegado e em tempo, tal como a figura vem prevista nos artigos 107.º, n.º 2 e 3, do CPP, e 140.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável subsidiariamente (cfr. art. 4.º, do CPP).
44.ª A doutrina e jurisprudência têm defendido que o que releva para a verificação do justo impedimento é a inexistência de culpa, negligência ou imprevidência da parte ou do seu mandatário na ultrapassagem do prazo.
Entendimento que o despacho reclamado diz acolher, mas que, afinal, não aplica devida e efetivamente.
45.ª A doença do mandatário, como é evidente, não pode ser-lhe imputada a título de culpa e situação em apreço, de doença, tem que ser qualificada como justo impedimento, de acordo com a melhor jurisprudência – cfr. os acórdãos acima citados.

47.ª Deve, assim, considerar-se demonstrado o justo impedimento, com o atestado médico apresentado pelo mandatário dos arguidos, e deve por isso ser admitido, por tempestivo, o recurso que entrou 31 segundos fora de prazo, em resultado direto da doença súbita, imprevisível e incapacitante que o atingiu na tarde do último dia do prazo.



6. Por decisão datada de 17 de Maio de 2023, o Exmº Vice-Presidente desta Relação, por competência delegada do Exmº Presidente da Relação de Coimbra, determinou o prosseguimento deste expediente processual, relativo à impugnação da decisão que recaiu sobre o justo impedimento para a prática do acto, como recurso, determinado a sua remessa à 1ª instância para a sua tramitação como tal.

7. Na 1ª instância, no dia 13 de Junho de 2023, foi proferido o despacho de fls 94, com o seguinte teor:
«Tomei conhecimento da decisão proferida pelo Exmo. Sr.º Vice Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, …
*
Em consequência, porque tempestivamente interposto de decisão recorrível e por quem tem legitimidade para o efeito, admito o recurso ordinário interposto pelos arguidos AA e BB, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo – artigos 399.º, 401º, nº 1, al. b), 403.º, 406º, n.º 2, 407.º, n.º 2, al. b), 408º, a contrario, 411º, n.º 1 e 6, 412º a 414º, todos do Código de Processo Penal.
Notifique e cumpra o disposto no art. 413º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal».

8. Tal recurso subiu em separado, conforme despacho de fls 95.

9. O Exmº Magistrado do MP na 1ª instância respondeu ao – agora - recurso, concluindo que é seu parecer dever negar-se provimento ao mesmo …

10. Nesta Relação, foi proferido Parecer pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, no sentido da procedência do recurso.

11. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, havendo resposta dos arguidos, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.

12. Desta forma, o DESPACHO RECORRIDO é o que se transcreve no ponto 4 deste Relatório, despacho esse datado de 30 de Março de 2023.
Não está, assim, ainda em causa o recurso intentado pela defesa dos arguidos relativamente à sentença condenatória proferida em 10 de Fevereiro de 2023, mas apenas o recurso do despacho de 30 de Março de 2023 (que não admitiu um recurso, julgando improcedente a verificação de qualquer justo impedimento).
Relevam também as alegações de recurso noticiadas no ponto 5. deste Relatório, assente que houve uma convolação da forma processual dessa impugnação de «reclamação» para «recurso» (cfr. artigo 193º/3 do CPC, aqui subsidiariamente aplicado).

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso


Assim sendo, é apenas esta a questão a decidir por este Tribunal:
· foi bem ou mal indeferida a alegação de Justo Impedimento pela defesa dos arguidos relativamente ao requerimento de interposição de recurso da sentença final (fora do prazo legal)?

            2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            2.1. No relatório, já se deu devida conta do filme processual dos autos.
Está, assim, em cima da mesa, apenas, decidir se a invocação do Justo Impedimento no requerimento de fls 58-63 deve ser julgada improcedente, como decidiu a 1ª instância, ou se, ao contrário, deve ser dada razão à defesa, «considerando-se verificado o justo impedimento, revogando-se o despacho recorrido e admitindo-se, por tempestivo, o recurso da sentença condenatória» interposto pelos dois arguidos.

2.2. Estatui o artigo 140º do CPC, aqui aplicável de forma subsidiária por força do artigo 4º do CPP, que:
«1.Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato.
2. A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.
3. É do conhecimento oficioso a verificação do impedimento quando o evento a que se refere o nº 1 constitua facto notório, nos termos do nº 1 do artigo 412º, e seja previsível a impossibilidade da prática do ato dentro do prazo».
Sabemos que o justo impedimento tem legal consagração, a título excepcional, por uma questão de justiça material, funcionando como uma válvula de escape à rigidez estabelecida na lei para a prática de certos actos, atendendo a ocorrências estranhas e não imputáveis ao obrigado à prática do acto.
A redacção do nº 1 do artigo 140º do CPC, define justo impedimento como “o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto”.
Salienta LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, p. 125 que, “O que deverá relevar decisivamente para a verificação do «justo impedimento» – mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do acto – é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo peremptório, a qual deverá naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no nº 2 do art. 487º do CC (…)”.
O conceito de “justo impedimento” assenta, por conseguinte, na inexistência de um nexo de imputação subjectiva à parte ou ao seu representante, com relação à ultrapassagem de um prazo peremptório, encontrando-se, assim, sujeito a pressupostos de ordem substancial e formal.
São pressupostos de ordem substancial:
a) existência de evento que obsta à prática atempada do acto;
b) inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário na ultrapassagem do prazo peremptório.
Cabe, por isso, à parte que não praticou o acto e que invoca, em seu benefício, o instituto do justo impedimento, alegar e provar a sua falta de culpa, negligência ou imprevidência, ao invés da ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo e tem, simultaneamente, de proceder à prática do acto, indicando os fundamentos factuais e apresentando as provas respectivas, a fim do julgador, após audição da parte contrária, aferir das circunstancias em que tal ocorreu, por comparação com o procedimento que um bom pai de família teria adoptado se colocado perante a mesma situação, para concluir pela existência, ou não, de culpa da parte ou do respectivo mandatário, na prática tardia do acto.
Se o evento for imputável a culpa, imprevidência ou negligência da parte, ou se esta contribuiu, por qualquer modo para que aquele se produzisse, está-lhe vedado o recurso ao justo impedimento.

2.3. Vejamos o nosso caso.
As alegações de recuso dos recorrentes deveriam ter entrado no CITIUS até às 00:00 do dia 16/3/2023, já a contar com os 3 dias previstos no artigo 107º-A do CPP.
Tais alegações entraram no CITIUS pelas 00:00:31 do dia 17/3/2023.
Os recorrentes pagaram a multa a que alude o artigo 107º-A do CPP e invocaram, nesse mesmo dia, em requerimento junto ao CITIUS pelas 18:23:43, o Justo Impedimento.

2.4. Antes de mais, convém tomar posição sobre a questão de saber se este Justo Impedimento poderá ser invocado no decurso do prazo a que alude o artigo 107º-A do CPP, como o foi aqui.
Estamos do lado dos que respondem afirmativamente.
Os que respondem negativamente opinam:
O justo impedimento e o prazo adicional de três dias são dois mecanismos processuais distintos e autónomos, que permitem à parte praticar o acto para além do prazo peremptório legalmente estabelecido, mas que não podem ser cumulados, uma vez que o prazo dos três dias úteis do artigo 107º-A do CPP (ou do 139º, nº 5 do CPC), já é um prazo excecional para além do prazo “normal”.
De acordo com o acórdão do S.T.J. de 27.11.2008, “seria inaceitável que o justo impedimento pudesse funcionar e produzir efeitos relativamente a um período temporal adicional, que está fora do prazo peremptório estabelecido na lei e de que a parte só pode valer-se pagando uma multa, como sanção pelo desrespeito pelo prazo que devia ter observado, presumindo-se que o não observou por negligência”.
Ora, tendo os recorrentes praticado o acto para além do prazo adicional dos três dias úteis, não se pode invocar justo impedimento.
Não concordamos.
E é-nos fácil aderir ao decidido no Acórdão da Relação de Lisboa datado de 27/9/2017 (Pº 10805/15.2T8SNT.L1-4) que assim rezou:
«(…) De acordo com o Dr. ABÍLIO NETO no seu “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 4.ª Edição, Revista e Atualizada, EDIFORUM, março de 2017, pág. 248, Nota 3, «Na redação anterior à Reforma de 1995/96, o n.º 1 deste art.º 146.º definia o justo impedimento como «o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o ato, por si ou por mandatário», definição essa que levava a doutrina a restringir a respetiva previsão legal àquelas hipóteses em que «a pessoa que devia praticar o ato foi colocada na impossibilidade absoluta de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e que um cuidado e diligências normais não fariam prever» (J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao CPC, 1.º-321).
A esta quase responsabilidade pelo risco, a Reforma de 1995 contrapôs uma definição conceitual de justo impedimento muito mais flexível do que a anterior, «
em termos de permitir — como se refere no Relatório — a uma jurisprudência criativa uma elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia da culpa, que se afastou da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam».
O novo conceito de justo impedimento faz apelo, em derradeira análise, ao «meio termo» de que falava Vaz Serra (RLJ, 109.°-267): deve exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não é de lhes exigir que entrem em linha de conta com factos e circunstâncias excecionais.» (sublinhado e negrito da nossa responsabilidade).
Este mesmo autor, na nota seguinte (4), na interpretação que faz do regime legal em vigor, sustenta que «A invocação do justo impedimento, para evitar o efeito extintivo do decurso do prazo, tem de ser feita logo que cesse a causa impeditiva».
O Juiz – Conselheiro JORGE AUGUSTO PAIS DE AMARAL, acerca do «justo impedimento» no quadro do atual (Novo) Código de Processo Civil, afirma o seguinte: «O impedimento é considerado justo quando não permitir, de forma absoluta, a prática do ato a tempo, o que é inconfundível com a dificuldade de o praticar, por maior que essa dificuldade se apresente. Por outro lado, o acontecimento não pode ser imputado à parte ou ao seu representante ou mandatário».
Chegados aqui e tendo em linha de conta que a ilustre mandatária judicial da Autora veio, prévia e conjuntamente com o requerimento de interposição do recurso de Apelação e respetivas alegações, arguir o justo impedimento para a não apresentação de tal peça processual no prazo de 3 dias úteis previsto no artigo 139.º do NCPC, resta dizer que a nossa jurisprudência está dividida no que toca à possibilidade legal da parte ou o seu advogado lançar mão daquele instituto legal no decurso desse prazo suplementar para praticar, desde que liquidando a correspondente multa, o ato processual em questão.
O despacho recorrido, assim como a própria Ré, defenderam tal impossibilidade, indo assim ao encontro da seguinte jurisprudência (indicada em Abílio Neto, obra citada, páginas 245 (Nota 34), 246 (Nota 41), 250 (Nota 23), 252 (Nota 45), 252 (Nota 46) e 254 (Nota 65)] (…)
Tomando já posição nesta controvérsia, diremos que pugnamos pela posição inversa, a saber, que o legislador processual não veda a invocação da figura do justo impedimento mesmo quando já se mostra esgotado o prazo perentório normal e a situação integradora daquele se verifica no âmbito desse prazo complementar do artigo 139.º do NCPC.
Bastará pensar no justo impedimento (reconhecido posterior e legalmente pelo Decreto-Lei n.º 150/2014, de 13/10), em que se traduziu o bloqueio do CITIUS, entre setembro e novembro de 2014, para facilmente equacionar casos de impedimento informático de remessa das peças processuais no último dia do prazo suplementar do artigo 139.º do NCPC e, por uma questão de igualdade e justiça, ter de os fazer abranger pelo referido justo impedimento geral e objetivo, que bloqueava a utilização do CITIUS.
Fundando devidamente a nossa tese ou interpretação do regime legal aplicável, dir-se-á, desde logo, que não se compreende essa restrição do justo impedimento ao prazo perentório normal da prática do ato adjetivo, quando, em termos materiais, pragmáticos e de justiça relativa (como o exemplo antes referido ilustra), nada obsta a que uma qualquer situação pacificamente tipificadora da figura em análise ocorra durante tal prazo de 3 dias úteis e que impeça a prática daquele dentro desse prazo que, convirá dizê-lo, é juridicamente legítimo e neutro, dado não estar subordinado a qualquer outra condição que não seja a da liquidação de uma multa (logo, será insuscetível de qualquer censura jurídica fora do quadro de não pagamento da multa devida).
Convirá realçar ainda que, mesmo aí, quando a parte não faz o seu pagamento imediato, em «simultâneo» com a execução do ato processual em causa, tal não implica a recusa deste último mas antes o convite a depositar uma multa mais avultada, sendo certo que o regime em apreço contém a válvula excecional de escape do número 8 do artigo 139.º, que pode culminar na redução ou mesmo dispensa do cumprimento de tal sanção pecuniária (recorde-se, finalmente, que o Ministério Público, segundo jurisprudência atualmente segura e uniforme, não está obrigado a liquidar essa multa, quando praticar o ato adjetivo dentro do prazo dos números 5 e seguintes da indicada disposição legal).
Se atentarmos na letra, alcance e sentido dos números 4 e 5 do artigo 139.º do NCPC, verificamos que a expressão «
Independentemente do justo impedimento…» não tem, em nosso entender, um significado de exclusão ou incompatibilidade entre tal prazo de 3 dias úteis e o instituto em causa, de maneira a se poder afirmar que este último, ainda que se verifique durante o decurso do primeiro, nunca possa ser suscitado junto do tribunal como causa de não apresentação atempada da peça processual ou da execução do ato judicial.
Aquela frase inicial pode e deve ser lida, segundo a nossa visão do problema, da seguinte forma: sem prejuízo da figura do justo impedimento, logo, sem que a prática do ato nesses 3 dias úteis dos números 5 e seguintes do artigo 139.º pressuponha ou implique o afastamento ou erradicação da invocação do dito instituto já na pendência de tal acréscimo do prazo perentório regular.
O juiz-conselheiro ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, a este respeito, está em consonância com o que acima deixámos defendido, ao afirmar o seguinte (conjugue-se, para uma total compreensão do aqui transcrito, com o texto do mesmo autor, mais abaixo reproduzido no corpo deste Acórdão):
«Qualquer que seja a natureza dos prazos, nada obsta à aplicação do instituto do justo impedimento, regulado no art.º 146.º do CPC, agora ampliado pelo Dec. Lei n.º 125/98, de 12 de Maio, com a introdução de um n.º 3, segundo o qual o juiz deve reconhecer oficiosamente as situações de justo impedimento que resultem de factos notórios que, pela sua natureza, determinem a previsibilidade da impossibilidade de prática do ato dentro do prazo normal, como decorre de situações de greve do funcionalismo judicial, de fenómenos climatéricos ou de outra ordem, que impossibilitem o funcionamento normal das vias ou dos meios de comunicação.» (sublinhado e negrito da nossa responsabilidade).
Existe, convirá dizê-lo, uma divergência, essencialmente de cariz jurisprudencial, acerca da exata configuração ou natureza do prazo de 3 dias úteis do artigo 139.º, sustentando, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8/3/2012, processo n.º 579/11.1TBFLG.G1, relator: Antero Veiga, em www.dgsi.pt (Ponto II do Sumário parcial, com sublinhado e negrito nossos) que «O prazo de três dias em que independentemente de justo impedimento se pode praticar o ato, mediante pagamento de uma penalidade, consagrado no n.º 5 do artigo 145 do CPC, constitui uma mera tolerância e não uma extensão do prazo, ao passo que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/9/2015, sem identificação de Processo, em que foi relator Manuel Fernandes e se mostra publicado em CJ, Ano XL, 2015, Tomo IV, página 317, diz no Ponto I seu Sumário parcial, da responsabilidade do Conselho de Redação da CJ, que «Os prazos perentórios têm o seu último dia diferido para o primeiro, segundo ou terceiro dias úteis posteriores àquele que resulta da marcação pela lei ou da fixação pelo juiz, verificado o condicionalismo estatuído nos n.ºs 5 e 6 do art.º 139.º do CPC.».
ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, obra citada, página 348, pugna pela segunda posição antes exposta:
«Os atos processuais a cargo das partes relativamente aos quais a lei estabeleça um determinado prazo perentório devem ser praticados com respeito por esse prazo, sob pena de extinguir o correspondente direito (art.º 145.º, n.º e, do CPC).
Apesar desta regra, o decurso de um prazo perentório não impede que o ato seja executado num dos três dias suplementares, desde que a parte solicite imediatamente a liquidação de uma multa de montante variável, consoante o dia em que isso ocorra (art.º 145.º, n.º 5, do CPC).
Trata-se de uma norma que contém uma prorrogação automática do prazo perentório e que, na verdade, acaba por conferir à parte um direito que pode exercer num desses três dias subsequentes, sem que tenha de apresentar qualquer razão justificativa ou ficar dependente de fatores de ordem subjetiva emergentes de uma análise casuística do juiz.
Em contrapartida, por forma a limitar o recurso a tal solução e os consequentes reflexos na marcha processual, a parte que usar daquela faculdade sujeita-se ao pagamento de uma multa cujo montante varia na relação direta da maior ou menor dilação existente».
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/10/2012, Processo n.º 1627/04.7TBFIG-A.C1.S1, relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, publicado em www.dgsi.pt, com o Sumário «Pode ser invocado como justo impedimento um facto ocorrido num dos três dias úteis previstos no n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil», toma posição quanto a essa controvérsia, professando, em nossa opinião, a interpretação correta do regime legal que, na sua essência e como já vimos, era similar ao atual (realce-se a identidade de situações entre o caso aí julgado e do dos presentes autos).
Tal Aresto, na sua fundamentação, justifica a sua posição nos seguintes moldes:
«(...) 6. O acórdão recorrido considera que o “
prazo suplementar de 3 dias” corresponde a uma “complacência” para com o vício de deixar para o fim dos prazos a realização dos atos processuais, e que a multa cujo pagamento é condição de validade do ato tem como objetivo sancionar o incumprimento do prazo, presumindo-se que essa inobservância foi negligente; e que, sendo diverso o fundamento que justifica a prática do ato depois de decorrido o prazo, em caso de justo impedimento, não podem “utilizados cumulativamente” os dois meios.
Não se acompanha esta conclusão, nem os motivos que a apoiam.
Desde logo, não se pode partir do princípio de que a lei condescende com a negligência da parte ou do mandatário, ou que a multa sanciona essa negligência; muito menos presumi-la. Recorde-se que, se assim fosse, deveria ser possível evitar o pagamento da multa provando a ausência de qualquer comportamento negligente; o que não acontece.
Recorde-se que o objetivo com que o Decreto-Lei n.º 323/70 veio alterar o artigo 145.º do Código de Processo Civil, no ponto que agora nos interessa, foi o de permitir a prática do ato no dia seguinte ao do termo do prazo sem que a parte tivesse que invocar e provar justo impedimento; e que, como se sabe, nem sempre a exata contagem dos prazos foi simples e isenta de controvérsia.
Seja como for, a verdade é que, ao permitir a prática de atos sujeitos a prazos perentórios depois de estes terem terminado, fora dos casos de justo impedimento, a lei veio, na prática, alongar os prazos, sem impor a apresentação em juízo de qualquer justificação. Tal como sucede, por exemplo, com a junção de documentos de que a parte já dispunha, depois de apresentado o articulado onde foram alegados os factos a provar (artigo 523.º, nº 1 do Código de Processo Civil), a multa exprime a preferência legal pelo cumprimento do prazo perentório; mas não é possível associá-la a uma sanção por menor diligência processual.
Este regime possibilita ainda às partes e aos seus mandatários a gestão do tempo disponível, de acordo com as respetivas conveniências, ponderando se compensa ou não dilatar o prazo mediante o pagamento da multa; mas não legitima qualquer juízo de censura em relação à parte (ou ao seu mandatário) que dele decide beneficiar.
E prossegue, do mesmo passo, o objetivo (salientado por Antunes Varela [...]) da prossecução do “primado da justiça material sobre a pura legalidade formal”, valor decididamente protegido pelo legislador português nas recentes alterações das leis de processo. Recorde-se, por exemplo, o princípio da “prevalência do fundo sobre a forma”, desenvolvido no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95 e inspirador de diversas soluções então introduzidas, ou o objetivo ali proclamado de se “obviar (…) a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efetivação em juízo dos direitos (…)”.
Acresce que a solução adotada no acórdão recorrido, além de contrariar o significado de alongamento dos prazos perentórios em que o regime previsto no n.º 5 do artigo 145.º se traduz, conduz a soluções contrárias às exigências do princípio do processo equitativo, por implicar uma consequência desproporcionada à conduta adotada.
Pese embora um certo alargamento do conceito de justo impedimento que se verificou com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329-A/95, a verdade é que um facto que obsta à “prática atempada do ato” só o integra se for estranho ao controlo da parte e do seu mandatário. A impossibilidade de o invocar num dos três dias previstos no n.º 3 do artigo 145.º torna excessivamente arriscado optar por beneficiar da correspondente extensão, porque essa opção pode conduzir à perda de um mecanismo antigo de proteção da parte contra obstáculos que lhe não são imputáveis e, por essa via, à perda do direito a praticar o ato.
Consequência essa que, nomeadamente no caso a que respeita o presente recurso – perda do direito de recorrer – é manifestamente desproporcionada à atuação processual da parte, que interpôs o recurso de apelação no primeiro dia útil subsequente à ocorrência do facto que invoca como justo impedimento, alegadamente ocorrido no terceiro dia útil a que se refere o n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, ou seja, dentro do prazo de que a parte dispunha para interpor o recurso. [...]».
ABÍLIO NETO, obra citada, a páginas 245 (nota 30) e 249 (notas 10 e 16) identifica ainda, em sentido semelhante, três Arestos dos nossos tribunais superiores:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.2.2001, em AD, 481.°-108, com o seguinte Sumário parcial (Nota 10 das páginas 248 e 249):
«I - Verifica-se uma situação de justo impedimento, quando nos dois dias úteis dos três que se seguiram ao termo normal do prazo para a interposição do recurso de revista o mandatário da parte se encontrava doente «com síndroma febril grave e dispneia, pelo que estava proibido de sair do leito», segundo atestado do médico que o assistiu, que aliás, no mesmo atestado afirma que aquele síndroma febril e dispneia impossibilitavam o «doente de desenvolver o seu trabalho» e «ter consciência das diligências a tomar relativamente à sua profissão».
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.6.2007, Processo n.º 0732619, relator: Manuel Capelo, em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário (Nota 16 da página 249 - link direto: JTRP00040493.dgsi.Net):
I- À invocação e procedência do justo impedimento não se opõe a circunstância temporal de ele ter sido deduzido num dos três dias posteriores ao prazo de apresentação das alegações, porquanto a utilização desse prazo está na disponibilidade da parte, desde que paga a respetiva multa.
II- Se, no referido período de três dias, a parte constata que a audição não é possível, por erro de regravação da cópia, pode invocar o justo impedimento sem que se lhe possa opor o argumento de que teria de proceder à audição da gravação dentro do prazo natural de apresentação das alegações e já não nos três dias subsequentes.
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.2.2011, Processo n.º 947/10.6TBVRL.P1, relator: Teles de Menezes, em www.dgsi.pt, com o seguinte Sumário (Nota 30 da página 245):
I- O justo impedimento pode ser reportado a facto ocorrido no prazo suplementar concedido pelo n.º 5 do art.º 145.º do CPC, embora sujeito ao pagamento da correspondente multa.
II- O mandatário pode lançar livremente mão desse prazo para praticar o ato, sem que por isso lhe possa ser assacada negligência.
Será, portanto, com esta doutrina e jurisprudência como pano de fundo, que iremos nos debruçar sobre a situação concreta que enforma o objeto deste recurso de Apelação.
(…)
A sentença prolatada nos autos, com data de 7/3/2017, foi notificada às partes por cartas datadas de 9/3/2017, sendo que o prazo de 30 dias, em virtude de ter havido impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto (artigo 80.º, nºs 1 e 3 do CPT) terminou no dia 12/4/2017 (quarta-feira) e os três dias úteis do artigo 139.º, n.ºs 5 e seguintes, do Novo Código de Processo Civil, coincidiram com os dias 13/4, 17/4 e 18/4/2017, dado na quinta-feira, dia 13/4, tanto quanto julgamos saber, não ter sido concedida pelo Governo tolerância de ponto aos serviços do Estado como os Tribunais e sexta-feira ter sido feriado (sexta-feira Santa), não contando, para o efeito, os sábado e domingo seguintes (dias 15/4 e 16/4).
Logo, tendo a Autora, através da sua ilustre mandatária, vindo apresentar as suas alegações pelas 9,20,55 horas da manhã do dia 20/4/2017 (quinta-feira) – dia imediato ao termo da sua situação de doença que funda o justo impedimento invocado, segundo a sua alegação -, há que considerar processualmente válida e eficaz a invocação da figura do justo impedimento e, nessa medida e em consequência, que revogar o despacho judicial impugnado e determinar que o tribunal da 1.ª instância admita e aprecie a referida arguição do instituto do justo impedimento pela ilustre mandatária judicial da Autora, com a eventual produção da prova oferecida no final da referida peça processual, caso o tribunal recorrido entenda que a mesma se revela necessária à formação de uma mais profunda, objetiva e exata convicção quanto à plausibilidade e legitimidade do ali alegado, dando depois seguimento à normal tramitação dos autos».
Não carecemos de aditar qualquer acrescida argumentação[1], tal a força persuasiva deste aresto, que assume uma tese mais consentânea com a defesa do primado da justiça material sobre a pura legalidade formal e das exigências do princípio do processo equitativo, assente que a tese contrária implica uma consequência desproporcionada à conduta adoptada.
Note-se que também Miguel Teixeira de Sousa[2] opina que:
«A solução encontrada no acórdão - que acompanha a jurisprudência que nele é citada - é muito discutível.
Se, ainda que mediante o pagamento de uma multa, a parte tem a faculdade de praticar o acto nos três dias subsequentes ao termo do prazo peremptório (art. 139.º, n.º 5, CPC), não há, à partida, nenhum obstáculo à aplicação do regime do justo impedimento (cf. art. 140.º CPC).
Suponha-se, por exemplo, que a parte (ou o advogado) é acometida (ou acometido) de uma doença súbita que exige a sua hospitalização; entender que, porque já se está no "prazo de complacência", essa circunstância é irrelevante implica fazer recair sobre a parte, durante o referido prazo, o risco de um evento que não lhe imputável e que obsta à prática do acto.
As dificuldades que actualmente se verificam no acesso ao Portal Citius ("Sítios", na designação que o acórdão imputa a uma das partes) constituem um bom exemplo do carácter muito discutível da orientação defendida no acórdão.
 A seguir-se esta orientação, isso implicaria a perda do prazo por todas as partes que contavam com o "prazo de complacência" para a prática de um acto antes do aparecimento daquelas dificuldades e que entretanto, em virtude destas, ficaram impossibilitadas de o fazer. Sendo público e notório que as referidas dificuldades são completamente alheias às partes, não é aceitável que, pela circunstância de beneficiarem de um "prazo de complacência", lhes seja imputado o risco do mau funcionamento do Portal Citius e acabem por perder o prazo para a prática do acto.
O regime do justo impedimento é geral: ele abrange a prática de qualquer acto que a parte tenha a faculdade de praticar. Se a parte tem essa faculdade porque está dentro do prazo ou porque beneficia do "prazo de complacência" estabelecido no art. 139.º, n.º 5, CPC, isso tem de ser indiferente.
Aquele regime destina-se a desonerar a parte do risco de um evento que lhe não é imputável e que obsta à prática do acto. Ao contrário do que se entende no acórdão, não parece haver motivos para impor que, durante o "prazo de complacência", esse risco deva correr pela parte».
Como tal, não vemos qualquer obstáculo a que os recorrentes tenham lançado mão do Justo Impedimento para além do prazo normal de recurso, assente que tal situação aconteceu, em termos de história, «vista, claramente vista», no jargão camoniano, para além desse prazo.

2.6. Resolvida essa primeira questão, indaguemos então agora se é de fazer proceder a alegação do Justo Impedimento.
Estamos a falar de um episódio de doença súbita que acometeu o ilustre mandatário dos recorrentes na tarde do último dia para recorrer (contados os 3 dias da multa, já se viu).
Tal episódio é provado pelo documento médico[3] junto que isso mesmo atesta:
«Fui chamado de urgência no dia 16 de Março de 2023, cerca das 18 horas para avaliar CC pela esposa do mesmo.
Na minha avaliação encontrava-se visivelmente agitado e preocupado com queixas de cefaleias associado a náuseas e vómitos, tendo a esposa referido a existência de um episódio de perda da consciência com recuperação espontânea.
Na observação tinha um perfil tensional alto com TA 180/95 e FC 75 bpm.
Não tendo mais meios para uma correcta avaliação médica nem qualquer tipo de apoio farmacológico, recomendei de imediato, apesar do doente manifestar a necessidade de continuar a trabalhar, a ida ao hospital para ser observado no serviço de urgência dada a condição clínica me parecer grave (…)».
Como tal, não pode este tribunal duvidar em absoluto da ocorrência desse facto naturalístico evidente – o mandatário dos recorrentes é acometido de doença súbita pela tarde do dia 16/3/2023, o último dia do prazo de recurso.
O despacho recorrido entendeu que:
«Salvo devido respeito, tendo optado por ficar em casa precisamente com o intuito de acabar o recurso, conformou-se com toda aquela situação, a qual, objectivamente, ainda que pudesse ter gravidade, não foi suficiente para o impedir de trabalhar (ainda que tal tenha passado, alegadamente, por um relato à sua esposa daquilo que a mesma deveria redigir na aludida peça processual). Aliás, no que concerne à gravidade da dita doença súbita, o relatório médico junto pouco ou nada diz, sendo apenas uma transcrição das queixas que o ilustre mandatário relatou ao clínico (à excepção da tensão arterial que constitui um elemento objectivamente por aquele comprovado), tanto é que foi aconselhado a ir às urgências para um mais eficaz diagnóstico.
Reflexo de que o que está em causa não configura qualquer justo impedimento, é a circunstância de o recurso ter sido concluído e submetido apenas 31 segundos fora de prazo, porquanto, para que o mesmo fosse apresentado tempestivamente, bastava, a título meramente exemplificativo e ilustrativo, uma maior destreza a redigir o requerimento ou a inseri-lo no sistema. Trinta e um segundos são um simples “suspiro” no computo do prazo global de que dispunham para apresentar o recurso».

Invoca a colagem ao caso de vida discutido no Acórdão da Relação de Guimarães, datado de 8/3/2021 e que em sumário decidiu:
«I. Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato, cfr. nº 1 do artigo 140º do CPC, ex vi do artigo 4º do CPP.
II. A referida definição legal de justo impedimento, que saiu da Reforma do CPC de 1995, constitui um conceito indeterminado que importa densificar e concretizar, o qual faz apelo ao conceito de culpa, perfilhado no nº 2 do artigo 487º do C. Civil, ou seja, à diligência do bonus pater familias, à diligência que o homem médio teria nas circunstâncias do caso concreto, sem prejuízo do especial dever de diligência que incumbe aos advogados na observância dos prazos perentórios.
III. A doença para constituir justo impedimento terá de impossibilitar absolutamente a prática atempada do ato por razões que não sejam imputáveis ao requerente, o que sucederá quando a doença seja súbita, imprevisível e grave.
IV. A doença invocada não é grave se, apesar dela, a requerente, na qualidade de advogada, tiver continuado a exercer a sua atividade profissional, aceitando o risco de não avaliar, com a necessária atenção e cuidado, cada situação e responder a todas a solicitações atempadamente».
Ou seja, para o tribunal recorrido houve doença mas ela não pode ser considerada grave ao ponto de justificar que se lance mão do Justo Impedimento.
O caso de Guimarães é diverso do nosso.
Aí, uma mandatária alegou a sua doença e a dos seus dois filhos, mas a verdade é que nesses autos estamos a falar de doença não súbita mas sim prolongada por vários meses, ocorrida muito tempo antes do termo do prazo para a prática do acto processual (no dito caso, era o pagamento de uma multa processual).
No nosso caso, e ao contrário do relatado pelo aresto de Guimarães, temos um episódio súbito e agudo de doença – alguém que está em frente ao seu computador a ultimar umas alegações de recurso que teriam de dar entrada até à meia-noite desse dia, e é acometido de dores de cabeça lancinantes e intensas, náuseas e vómitos, com desmaio.
Terá estado desmaiado algum tempo, tendo sido encontrado pela sua Mulher – entretanto regressada a casa vinda de fora - que logo chamou um médico a casa que constatou o estado de doença do mandatário em causa e que isso mesmo atestou em documento junto aos autos.
E foi essa a tarde atribulada do ilustre mandatário dos recorrentes nesse dia 16 de Março, dia em que teria mesmo de apresentar as suas alegações de recurso num processo criminal onde estava em causa a condenação dos seus clientes pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada e o pagamento, enquanto condição de suspensão da execução de duas penas de prisão, da quantia considerável de € 77.220,28.
Não se duvida que as queixas do «paciente» eram de molde a permanecerem no seu corpo e espírito, sendo notoriamente incapacitantes enquanto durarem, causando uma natural prostração subsequente.
Estávamos a escassas horas da meia-noite, sendo essa a hora em que as alegações teriam de estar concluídas e submetidas ao CITIUS.
Não duvidamos, um segundo que seja, e até pelo respeito que nos merecem os ilustres mandatários forenses que, todos os dias, lado a lado connosco, magistrados, lutam pela «Justiça dos Homens (ou dos Seres Humanos)», que não tivesse sido o mandatário em causa acometido da súbita doença, as alegações entrariam em juízo até á meia-noite (e convém lembrar, pois de detalhes também é feita a história, que essas alegações entraram no CITIUS apenas 31 segundos após tal hora fatal).
A questão em causa será esta:
O doente ignorou o aviso médico de recorrer a ajuda hospitalar e correu o risco, continuando a trabalhar (ignorando este tribunal a partir de que efectivo horário dessa tarde é que o mandatário em causa teve cabeça e saúde para continuar a fazer o que estava ainda incompleto – com certeza, que todos os acontecimentos da tarde duraram algum tempo a desenrolar, admitindo-se, sem grande esforço, que terá apenas retomado a redacção da peça recursória no início da noite em causa, assente que o médico chegou a casa do doente pelas 18 horas – cfr. atestado médico junto).
Isso deverá correr contra si?
Parece-nos que não.
Como bem aduz a defesa:
«Ao contrário do que é afirmado no despacho reclamado, o facto de o doente não ter seguido o conselho do médico e não ter recorrido de imediato às urgências hospitalares, e o facto de ter decidido continuar a trabalhar na peça recursiva, para a poder apresentar ainda nesse dia, não afasta nem apaga a situação de doença em que se encontrava e que constituiu impedimento da prática atempada do ato.
É que não ir à urgência para ser diagnosticado e para se tratar, e continuar, apesar de doente, a trabalhar, não demonstra que estava de saúde e na posse de capacidade plena, demonstra apenas o esforço a que se submeteu na tentativa de cumprir o prazo, revela unicamente responsabilidade profissional, revela encarar-se a profissão – a Advocacia – como uma missão, como viver sempre para o outro.
Nada mais do que isso!».
Concorda-se em absoluto.
Também nós concordamos que o facto de o recurso ter sido concluído e apresentado com 31 segundos de atraso demonstra que houve justo impedimento.
Deveremos ainda acrescentar que, no momento em que a doença se verifica, na tarde do último dia do prazo, é manifesto que o mandatário não tinha qualquer possibilidade de encontrar um colega no qual pudesse substabelecer e que pudesse inteirar-se do processo e terminar o recurso, por absoluta falta de tempo (mesmo que o entregasse à sua Mulher, também advogada mas que, segundo as suas palavras, de que não podemos e devemos duvidar, «não conhecia minimamente o processo).
Como decidiu o acórdão da Relação de Lisboa de 22/6/2017 (Pº 285/14.5TJLSB.L1-2):
«Como desde há muito tem sido entendimento jurisprudencial a doença do advogado da parte só constitui justo impedimento se for súbita e tão grave que o impossibilite, em absoluto, de praticar o acto, avisar o constituinte ou substabelecer o mandato – v. a título meramente exemplificativo, Ac. STJ, de 26.2.1960: BMJ, 294.°-271, de 18.03.1993 (Pº 085089), no qual se decidiu que O interessado não pode colocar-se ao abrigo de justo impedimento quando tenha havido de sua parte, negligência, culpa ou imprevidência, se o evento era susceptível de previsão e ele não se acautelou contra a sua possível verificação - sibi imputet.
Na verdade, sempre se tem entendido que as doenças dos mandatários judiciais só em casos limite em que sejam manifesta e absolutamente impeditivas da prática de determinado acto e, além disso, tenham sobrevindo de surpresa, inviabilizando quaisquer disposições para se ultrapassar a dificuldade – v. g., substabelecimentos, com ou sem reserva, pedidos de substituição – podem ser constitutivas de justo impedimento.
Igualmente se referiu no Ac. STJ de 27.9.1994, ao analisar a relevância da doença do mandatário para efeito de enquadramento na previsão do então n.° 1 do artigo 146° do CPC, que se teria de estabelecer as seguintes distinções:
a) A doença de um advogado que lhe não permite sair de casa no decurso do prazo para praticar um acto processual constitui justo impedimento, se ele esteve impossibilitado de esforço mental que lhe permitisse comunicar com o constituinte ou com outra pessoa;
b) Essa mesma doença constitui igualmente justo impedimento se, embora não o impedindo de estabelecer tal comunicação, se prova que o acto (no caso, uma alegação) não podia ser praticado por outro advogado;
c) Tal doença já não constitui justo impedimento quando não impede o advogado de utilizar meios alternativos equivalentes para praticar o acto, designadamente quando o não impede de comunicar com o seu constituinte ou com outro advogado que a parte tenha constituído seu mandatário no processo que o possa praticar.
Como se afirmou no Ac. R. L. de 09.03.2010 (Pº 1651/02.4TAOER-A.L1-5), acessível em www.dgsi., “(…) não colhe a alegação de que não contactou outro colega porque convinha ser ela própria a praticar o acto, pois era ela que melhor conhecia o processo, defendendo de forma mais eficaz os interesses das suas constituintes. Ninguém é insubstituível, nem a lei permite a derrogação de qualquer prazo peremptório à espera que um mandatário da parte se restabeleça para que o processo prossiga os seus termos. O acto é da parte, o advogado é apenas representante desta. Quando o advogado escolhido não está em condições de exercer o mandato, a parte tem de diligenciar pela escolha de outro que o esteja, caso aquele não tome a iniciativa de substabelecer noutro colega de profissão. O processo não pode ficar indefinidamente parado à espera que o mandatário impedido, por doença, se restabeleça, o que poderia demorar meses ou mesmo anos, com manifesto prejuízo para a justiça e os interesses dos cidadãos envolvidos no respectivo processo (…)” – cfr. neste mesmo sentido Ac. R.L. de 10.03.2011 (Pº 22046/08.0YYLSB-A.L1-2), no qual a ora relatora foi ali 2ª adjunta».
Também decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 7/10/2021 (Pº 517/21.3T8AMT.P1) que:
«I. Sentir febre, dores de cabeça e cansaço só constitui uma situação de justo impedimento à comparência a uma audiência de julgamento quando essas manifestações atinjam, objectiva e comprovadamente, uma dimensão de tal ordem que a prática do acto represente um esforço desumano, desrazoável e desproporcionado para a pessoa.
II. O risco de dano apreciável é o risco de prejuízos significativos, para cuja demonstração não bastam meras hipóteses, possibilidades, previsões ou suposições, e são necessários factos que, analisados com objectividade, revelem ou indiciem o perigo das consequências que se querem evitar».
No nosso caso, houve uma doença súbita – incapacitante, não se duvida - do mandatário na tarde do dia 16/3/2023.
E tal doença é evento imprevisto.
Barbosa de Magalhães, em brilhantes alegações de recurso reproduzidas em file:///C:/Users/HP/Downloads/%7B9b0ca1a5-9e7a-41bb-8271-4d583c424d1e%7D.pdf, deixa escrito que:
«a) O evento que fundamenta o justo impedimento é o evento imprevisto e não o evento imprevisível.
b) Evento imprevisto é o que excede os limites das previsões normais, ou seja, tudo aquilo com que não pode razoavelmente contar-se.
c)- Evento imprevisível é o insusceptível de qualquer previsão, o que ninguém seria capaz de prever».
Fere a nossa sensibilidade jurídica e o respeito que devemos ao exercício das nobres funções forenses levadas a cabo pelos Senhores Advogados, considerar que um atestado médico que observa as queixas de cefaleias, náuseas e vómitos do mandatário, que atesta a sua elevada tensão arterial e que afirma parecer-lhe grave a situação clínica, recomendando o recurso à urgência hospitalar, não faz prova da doença do mandatário, e que interpreta a apresentação de um recurso com 31 segundos de atraso como a prova da capacidade do mandatário para praticar o acto tempestivamente.
Fechar olhos a este incidente de saúde do ilustre mandatário dos recorrentes implica uma intolerável restrição do direito de defesa consagrado no artigo 32º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
E, se assim é, então a doença súbita de advogado, devidamente atestada por médico, constitui justo impedimento, violando o despacho judicial proferido o disposto no art. 140º do CPC, só havendo que opinar que inexiste culpa humana nesta ocorrência imprevista de doença, sendo razoavelmente de admitir que alguém que foi acometido de uma doença súbita e com alguma duração na tarde do último dia para a apresentação de uma peça processual se possa ter atrasado caprichosos 31 segundos na sua colocação no CITIUS (e já sabemos que, no caso, o início de tal introdução terá naturalmente ocorrido antes da meia noite, correndo sempre algum tempo em tal tarefa que não é instantânea, tanto mais que a peça processual vinha acompanhada por documentos, com inserção autónoma e não muito célere).

2.7. É isto o bastante para fazer proceder o recurso na sua globalidade.

2.8. Em sumário, diremos:
1. Não se vislumbra qualquer obstáculo a que um recorrente lance mão do «justo impedimento» para além do prazo normal de recurso, assente que tal situação imprevista aconteceu, em termos de história, para além desse prazo.
2. Como tal, é possível a invocação do “justo impedimento” por factos ocorridos num dos três dias úteis previstos no artigo 107º-A do CPP.
3. A doença súbita de advogado, devidamente atestada por médico, constitui justo impedimento, só havendo que opinar que inexiste culpa humana nesta ocorrência imprevista de doença, sendo razoavelmente de admitir que alguém que foi acometido de uma doença súbita e com alguma duração na tarde do último dia para a apresentação de uma peça processual se possa ter atrasado 31 segundos na sua colocação no CITIUS.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso intentado por AA e BB, revogando o despacho recorrido na medida em que se considera como verificado a invocação do «justo impedimento», devendo a 1ª instância admitir o recurso intentado pelos referidas partes relativamente à sentença condenatória proferida em 10 de Fevereiro de 2023.
Sem custas.

Coimbra, 10 de Outubro de 2023
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

 Relator: Paulo Guerra
Adjunta: Alcina da Costa Ribeiro
Adjunto: Cristina Pêgo Branco



[1] Também o acórdão da Relação de Guimarães de 31/10/2018 (Pº 49/18.7T8BRG-A.G1) decidiu que:
«I. Os prazos perentórios fixados na lei ou pelo juiz têm o seu último dia diferido para um dos três dias úteis subsequentes, sem prejuízo do disposto nos nºs 5 e 6 do art. 139º, do C. P. Civil.
II. É possível a invocação do “justo impedimento” por factos ocorridos num dos três dias úteis previstos no n.º 5 do art. 139º, do C. P. Civil».
[2] https://blogippc.blogspot.com/2014/09/jurisprudencia-27.html
[3] Cfr. Aresto da Relação de Lisboa de 26/2/2020 (Pº 198/19.4T8BRR-A.L1-4) que decidiu o seguinte neste ponto: «Tendo sido invocado como motivo de justo impedimento toda uma situação de doença de ilustre mandatário de uma das partes, a demonstração dessa situação impeditiva apenas seria suscetível de ser concretizada através de médicos que acompanhem ou tivessem acompanhado a doença do ilustre mandatário ou através de atestados ou declarações pelos mesmos emitidos e não através de testemunhas que nada têm a ver com o foro clínico».
Ou o aresto do STJ, datado de 23/2/2021 (Pº 671/19.4T8FNC.L1. S1) que decidiu que:
«I. O legislador processual não veda a invocação da figura do justo impedimento mesmo quando já se mostra esgotado o prazo perentório normal e a situação integradora daquele se verifica no âmbito desse prazo complementar do artigo 139.º do NCPC.
II. Se, ainda que mediante o pagamento de uma multa, a parte tem a faculdade de praticar o acto nos três dias subsequentes ao termo do prazo peremptório (art. 139.º, n.º 5, CPC), não há, à partida, nenhum obstáculo à aplicação do regime do justo impedimento (cf. art. 140.º CPC)».