Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
208/22.8GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ESPECIFICAÇÃO DOS FACTOS INCORRECTAMENTE JULGADOS
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 379.º, N.º 1, ALÍNEA C), 412.º, N.ºS 3 E 4, E 425.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
I – Se um inquérito objecto de suspensão provisória do processo termina com despacho de arquivamento, por as injunções terem sido cumpridas, os factos que nesse inquérito estavam em causa não podem ser posteriormente conhecidos, nem o inquérito reaberto quanto a tais factos,

por força do “caso decidido” formado nesse processo.

II – Quando o recurso visa a alteração dos factos dados como provados ou como não provados estes têm de ser identificados com rigor e individualizados um a um, sendo da responsabilidade do recorrente a demarcação da vinculação temática desse segmento da impugnação.

III – Estender o âmbito do recurso a questões cuja resolução não foi solicitada ao tribunal da relação integra nulidade por excesso de pronúncia e violação do princípio da vinculação temática em sede de recurso, nos termos dos artigos 425.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1, alínea c), do C.P.P.

IV – A procedência quase total da impugnação da matéria de facto objeto do recurso quanto aos elementos objetivos do tipo não leva à condenação quando tenha havido omissão da impugnação dos factos julgados não provados relativos ao elemento subjectivo.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

RELATÓRIO


1. Por sentença datada de 13 de março de 2023, … foi decidido:

Absolver o arguido AA …, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido, pelos artigos 14.º, n.º 1, 152º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, de que vinha acusado.


*


2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões …

1) Entende-se que se encontram incorretamente julgados como não provados os pontos de facto e); f).; g); h); i); l); m; n) e p) …

2) As testemunhas … depuseram de forma séria, coerente e com claro conhecimento de causa, …

3) Por outro lado, apesar de ser um direito que lhe assiste, o arguido, que se encontrava presente na audiência de julgamento, não prestou declarações, pelo que não contribuiu para a descoberta da verdade material, nem para a boa decisão da causa.

4) O artigo 127º do Código de Processo Penal trata da emanação do princípio que vigora no nosso sistema processual penal, o princípio da livre apreciação da prova ou da livre convicção.

5) Assim, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.” …

6) Essa apreciação livre da prova não pode ser confundida com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio.


*


3. Não foi apresentada resposta ao recurso.

*

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer …

*

II.

SENTENÇA RECORRIDA


(transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso)

«(…) A. Factos Provados:

Com interesse para a decisão a proferir, resultaram provados os seguintes factos:

1. Em março/abril de 2013, BB … e o arguido iniciaram um relacionamento amoroso, passando, desde então, a viver juntos, como se de marido e mulher se tratasse, …

2. Desta relação, nasceram dois filhos: CC … e DD ….

3. Do agregado familiar da vítima e do arguido, fazia ainda parte EE …, nascida em .../.../2010, filha de um anterior relacionamento de BB ….

4. Em 2019, BB … apresentou queixa contra o arguido a qual correu termos sob o Inquérito …, no âmbito do qual foi aplicado ao arguido o instituto da suspensão provisória do processo pelo período de um ano.

5. Após a apresentação da queixa referida em 4, o arguido e BB … estiveram separados, um período de tempo não concretamente apurado, após o que, em data também não concretamente apurada, retomaram o relacionamento.

7. No dia 25/02/2022, cerca das 18h30m, BB, o arguido, os filhos comuns do casal e EE deslocaram-se a casa do irmão da vítima, FF …

8. No dia 28/02/2022, BB agarrou nos filhos e em bens de primeira necessidade e decidiu fugir de casa, tendo sido acolhida em casa abrigo, …

(…)

B – Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa não se provou que:

a) CC … nasceu em .../.../2014 e GG … nasceu a .../.../2018.

b) Foi em agosto de 2020 que BB … decidiu dar uma nova oportunidade ao arguido e retomar o relacionamento com o mesmo.

c) Foi em Setembro de 2020 que o casal passou a residir na morada identificada em 6.

d) Passado uma semana de se terem mudado, e, pouco tempo antes do termo do período do referido instituto da suspensão provisória do processo, em meados do mês de setembro de 2021, diariamente, o arguido voltou a iniciar discussões com a vítima, devido a ciúmes infundados.

e) Durante as referidas discussões, diariamente, o arguido acusava BB de manter relacionamentos extraconjugais.

f) Ademais, durante as referidas discussões, diariamente, o arguido dirigia a BB as seguintes expressões: “PUTA”, “VACA”, “A TUA FILHA É MAIS MULHER DO QUE TU”, “ÉS UMA MÁ MÃE”, “NÃO ME DÁS A MIM PARA DAR AOS OUTROS”.

g) Diariamente, o arguido descontrolava-se e, para não bater na vítima, partia vários objectos em casa, designadamente, pratos, o vidro da porta da casa arrendada pelo casal, garrafas de cerveja.

h) Na data referida em 7, chegados a casa de FF …, o arguido e o irmão de BB estiveram, durante toda a tarde, a ingerir bebidas alcoólicas (cerveja), a conversar e a conviver.

i) Passado algum tempo, FF … disse que queria falar com a afilhada EE, em privado, facto que enfureceu o arguido e fez com que ele iniciasse uma discussão com FF …, devido aos ciúmes com que ficou dele.

j) Pouco depois, o arguido pretendia sair de casa e BB disse-lhe para esperarem, para jantarem e que depois iam embora.

k) Como o arguido já se encontrava à porta da residência, e o clima estava tenso, para tentar acalmar a situação, BB colocou a sua mão no ombro do arguido, ao mesmo tempo lhe disse: “ANDA PARA DENTRO”.

l) De imediato, na sala da residência, o arguido dirigiu-se à vítima com as mãos estendidas e na direção do pescoço dela.

m) Vendo o que se estava a passar, o menor filho do casal DD começou a chorar compulsivamente.

n) Alertado pelo choro da criança, FF …, que se encontrava na cozinha, correu para a sala, ajudando a vítima, que, para se proteger, já havia colocado um braço à frente do arguido, a se proteger dele, e impedindo-o de lhe apertar o pescoço.

o) Entretanto, FF … decidiu levar a irmã, o arguido e os filhos a casa.

p) Mal entraram em casa, o arguido, que se encontrava alcoolizado, iniciou uma discussão com BB, no decurso da qual lhe dirigiu as seguintes expressões: “ÉS UMA PUTA”, “ÉS UMA VACA”, “ÉS IGUAL Á TUA MÃE, FORAM VOCÊS QUE MATARAM O VOSSO PAI.”

q) Em consequência, BB ficou muito afetada psicologicamente porque o seu pai havia falecido no dia .../.../2018 e a vítima sempre teve uma relação afetiva muito intensa e próxima com o pai, o qual faleceu devido a uma picadela de uma abelha na via pública, à qual era alérgico.

r) O arguido tinha conhecimento de tal facto, bem sabendo que tal episódio era o que mais abalava a vítima, e aproveitava-se de tal facto, para a fragilizar e atingir psicologicamente.

s) No dia 23/02/2022, de madrugada, BB viu o arguido deitado na cama da filha, ao lado dela, com a mão na nádega da filha EE.

t) Foi por não suportar mais a conivência com o arguido, e devido ao episódio descrito em s) que BB decidiu fugir de casa.

u) No dia 21/06/2022, às 12h19m e às 12h38m, respetivamente, através do número ...07, o arguido enviou as seguintes mensagens escritas à vítima: “Não sei porque não sais de mim…sinto tua falta apesar de tudo” e “Tu sabes não preciso dizer e desculpa chatear te só não aguentava mais ficar calado”.

v) Fruto dos comportamentos do arguido, há vários anos, BB sofre de depressão, tendo-lhe sido receitada medicação para o efeito …

w) Todos os episódios suprarreferidos de discussões ocorreram na presença dos três menores, filhos da vítima.

x) O arguido sabia que a vítima era sua companheira, e, sempre que adotou o comportamento supra descritos, atuou com o propósito, concretizado e reiterado, de a ofender e maltratar física e psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

y) O arguido agiu do modo descrito, sabendo que infligia maus-tratos físicos e psicológicos à sua companheira, BB …, humilhando-a e sujeitando-a a tratamentos degradantes e causando-lhe um estado de humilhação, ansiedade e medo permanentes.

z) Atuou sempre o arguido com manifesta insensibilidade perante a integridade física e psíquica da vítima BB, que bem sabia dever respeitar, particularmente por ser sua companheira e mãe dos seus filhos.

aa) O arguido quis provocar dores físicas e mal-estar psicológico na pessoa da vítima, bem sabendo que os provocaria, tendo em conta as regiões do corpo que procurou e conseguiu atingir, querendo, na verdade, dar causa a essas dores e mal-estar, bem sabendo que as suas descritas condutas eram adequadas à produção daqueles efeitos.

bb) O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

*

C – Convicção do Tribunal

Na formação da sua convicção, o Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, foi apreciada segundo a livre convicção da entidade competente e as regras da experiência comum.

Importa começar por referir que o Tribunal não ficou a conhecer a versão do arguido, porquanto o mesmo, no âmbito de um direito que lhe assiste, remeteu-se ao silêncio.

Assim, relativamente aos factos provados descritos de 1 a 3 o Tribunal tomou em consideração as declarações para memória futura, prestadas pela ofendida …

Relativamente aos factos descritos em 5 e 6, os mesmos tiveram por base o depoimento da testemunha …, mãe da ofendida, do qual se pode extrair que o arguido e a ofendida estiveram um curto espaço de tempo (“pouco tempo”) separados, mas depois reataram o relacionamento, …

O facto descrito em 7 resultou da compatibilização das declarações para memória futura prestadas pela ofendida …, com o depoimento da testemunha FF …, irmão da ofendida. …

O facto descrito em 8 teve por base as declarações para memória futura prestadas pela ofendida …

*

Quanto aos factos não provados:

Quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento prova bastante, consistente e isenta de dívidas, que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram.

Assim:

No que concerne aos factos descritos em d), e), f) e g), os mesmos resultaram não provados face à ausência de prova bastante, consistente e para além de qualquer dúvida razoável da sua verificação.

Assim, e para além da incongruência já evidenciada quanto aos factos descritos nos pontos 10 e 11 da acusação, no que concerne às datas, também não se mostra possível ao Tribunal, com base nas declarações para memória futura e depoimentos prestados em audiência de julgamento, concluir pela verificação dos factos em questão.

Atente-se, desde logo, que a ofendida, …, referiu, espontaneamente, que a dada altura o arguido começou a dizer que esta “andava metida com os colegas de trabalho”, o que aconteceu quando já moravam em .... Questionada sobre quando é que isso aconteceu, acabou por responder em setembro de 2020.

Questionada de forma direta sobre se o arguido em “setembro de 2020 voltou a dizer que andava a dar a cona, que era uma puta, que era uma vaca?”, respondeu “sim”.

Ora, a acusação localizava o início das aludidas discussões em meados do mês de setembro de 2021 e diariamente. Todavia, das declarações da ofendida resulta o ano de 2020.

Ora, considerando o período da suspensão provisória no âmbito do Inquérito 40/20.... (cfr 362 a 366 e referência 102880654), suscitam-se, sérias reservas ao Tribunal, desde logo, quanto às eventuais datas em que tal possa ter acontecido e a frequência com que possa ter ocorrido. Tanto mais que a ofendida também referiu, a dado momento das declarações para memória futura, que “ele” andava a portar-se bem “até que o acompanhamento dele acabou mesmo”.

Acresce que, quanto à maioria das expressões em questão, concretamente se as mesmas também voltaram a ser proferidas pelo arguido quando já residiam em ... … as mesmas não resultam, desde logo, das declarações para memória futura prestadas pela ofendida.

De referir, ainda, que as testemunhas FF … (irmão da ofendida) e … (mãe da ofendida) fizeram alusão a determinadas expressões que ouviram o arguido proferir dirigidas à ofendida. No entanto, os referidos depoimentos não permitem localizar temporalmente as expressões a que aludiram, pois não lograram esclarecer, em concreto, quando ouviram tais expressões …

De resto, não podemos deixar de referir que, as imputações genéricas, sem indicação precisa do tempo e circunstancialismo em que aconteceram, inviabilizam um efetivo direito de defesa por parte do arguido.

Assim, atento tudo quanto fica exposto, suscitando-se dúvidas ao Tribunal sobre o que efetivamente foi dito pelo arguido, quando, e com que frequência, o Tribunal considerou os aludidos factos como não provados.

Relativamente ao facto descrito em g), importa referir que, em sede de declarações para memória futura, a ofendida foi questionada sobre se, no decorrer das discussões que tinham, nos momentos em que o arguido estava exaltado, era frequente o arguido partir objetos em casa. A tal questão a ofendida respondeu afirmativamente e, questionada sobre que “tipo de objetos”, a mesma falou em tachos, talheres, pratos, copos, garrafas de cerveja. Questionada sobre se em alguma situação o arguido partiu o vidro da porta, fez referência à porta da senhoria (em ...), em que no âmbito de uma discussão, o arguido ia para fechar a porta, a mão escorregou-lhe e partiu o vidro da porta.

No entanto, das declarações para memória futura prestadas pela ofendida não resulta (pelo menos de forma direta) que o arguido partia os objetos para não bater naquela, …

Acresce que, a acusação reporta-se a situações diárias (“diariamente”). Ora, das declarações para memória futura prestadas pela ofendida não se pode retirar, sem mais, que o arguido partia objetos diariamente.

Por outro lado, a ofendida não localizou minimamente quando é que tais episódios ocorreram, …

De referir, ainda, que as situações a que se reportou a testemunha … mãe da ofendida, não ocorreram em ....

Assim, a prova produzida não permite concluir quando, com que frequência, e por que razão (designadamente, se era para não bater na vítima), o arguido partia os objetos em causa.

Face ao exposto, o Tribunal considerou o aludido facto como não provado.

Assim, quanto ao episódio do dia 25 de fevereiro de 2022 temos as declarações para memória futura prestadas pela ofendida e o depoimento prestado pela testemunha FF …, irmão da ofendida.

Sucede que as referidas declarações e depoimento apresentam algumas discrepâncias, concretamente quanto à tentativa de agressão, as quais, diga-se, não são meramente irrelevantes ou relativas a pequenos pormenores.

Importa ainda salientar, que a própria ofendida não concretizou minimamente em que consistiu a tentativa de agressão física a que aludiu, não tendo sequer referido que o arguido, nessa circunstância, lhe tivesse chegado a tocar e/ou agarrar em determinada parte do corpo, designadamente, no pescoço.

Assim, suscitam-se sérias dúvidas ao Tribunal sobre o que efetivamente aconteceu naquele dia, designadamente, se o arguido praticou os factos descritos na acusação.

De resto, importa referir que, não obstante a acusação no ponto 16 (facto não provado elencado em h)) fazer referência à ingestão de bebidas alcoólicas (concretamente cerveja) durante toda a tarde por parte do arguido e do irmão da ofendida, enquanto conviviam, o que é certo, é que a ofendida em momento algum das suas declarações (declarações para memória futura) aludiu à ingestão de cerveja (embora tivesse feito referência ao facto de o arguido e o irmão terem estado a beber toda a tarde) e a testemunha FF … negou perentoriamente que, nessa ocasião, em momento prévio à tentativa de agressão, este e o arguido tivessem ingerido cervejas. FF … fez menção ao facto de o arguido, a ofendida, e os filhos, terem surgido na sua casa para jantar, tendo o depoente comprado uma garrafa de vinho.

Acresce que, das declarações para memória futura prestadas pela ofendida e da restante prova testemunhal produzida, … também não resulta a ocorrência dos factos descritos nos pontos 18 e 19 da acusação (factos não provados elencados em j) e k))

Por outro lado, a ofendida não concretizou em que divisão da casa alegadamente ocorreram os factos que descreveu, relativos à tentativa de agressão. A testemunha FF … localizou a tentativa de agressão (mão no pescoço) na cozinha. A acusação refere que “na sala da residência, o arguido dirigiu-se à vítima com as mãos estendidas e na direção do pescoço”.

Relativamente ao facto descrito em o) o mesmo foi contrariado pelo depoimento da testemunha FF …

Relativamente ao facto não provado descrito em p) a prova produzida, designadamente, as declarações para memória futura não permitem concluir que tais expressões tivessem sido proferidas pelo arguido em casa da ofendida.

De referir que, quanto aos factos descritos nos pontos 25 e 26 da acusação (factos não provados elencados em q) e r)), para além de que o pai da ofendida faleceu no ano de 2018, nada mais resultou da prova produzida, …

Quanto ao facto não provado descrito em s) o mesmo resultou da total ausência de prova da sua verificação, …

O facto não provado descrito em u) resultou da ausência de prova bastante, …

Assim, face à ausência de prova bastante e consistente o Tribunal considerou o facto não provado.

Quanto ao facto não provado descrito em v) não foi feita prova bastante da sua verificação.

Os restantes factos foram julgados como não provados na medida em que a sua prova dependia logicamente da prova dos restantes. (…)»


*


III.

QUESTÕES A DECIDIR


… ([1]).

            Assim, a única questão a decidir prende-se com a alteração da matéria de facto, e consequente condenação do arguido. 


*

IV.

APRECIAÇÃO DO RECURSO


              

O recorrente pretende sindicar a valorização dos meios de prova efetuada pelo tribunal recorrido que determinou o não assentamento dos factos objeto do presente recurso, a saber, os factos não provados sob as alíneas e); f).; g); h); i); l); m; n) e p).

Encontramo-nos, assim, no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, a que alude o art. 412º, n.ºs 3 a 6, do Código de Processo Penal.

Neste caso, o recorrente tem de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância, devendo especificar, sob pena de rejeição:

- os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e

- as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal).

            Quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo a recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).

            Estas exigências recursivas resultam da competência jurisdicional atribuída ao tribunal de recurso: o julgamento da matéria de facto em primeira instância é efetuado segundo o princípio da imediação, sendo assegurado um contato direto e pessoal entre o julgador e a prova, encontrando-se o juiz de primeira instância em melhores condições que o tribunal de recurso para apreender a verdade histórica e, assim, a verdade material. Os princípios da oralidade e da imediação permitem um maior contacto entre o julgador e as provas, que “virão a ser apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” ([2]).

O tribunal de segunda instância procede à audição das provas registadas que lhe forem sugeridas no recurso, e sem visualização, ou seja, ficando inibido de verificar as manifestações físicas e expressões das pessoas inquiridas.

Por estas razões, a reapreciação da prova em recurso nunca pode constituir um segundo julgamento (retirando-se da motivação recursiva pretenderem os recorrentes a obtenção de tal desiderato): o duplo grau de jurisdição garante ao interessado o controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através de reexame parcial da prova, e não um novo julgamento.

Acresce que a primeira instância julga a matéria de facto segundo o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no art. 127º do CPP, ou seja, o julgador aprecia os meios de prova segundo a sua valoração e convicção pessoal. O que significa que a Relação controla a existência de eventuais erros de julgamento de acordo com o exame crítico da prova efetuado em primeira instância, que se encontra naturalmente vinculado a critérios objetivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. “Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o beneficio da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum”, tornando-se “necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a incorreção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção” ([3]). 

            Assim, só poderá a Relação concluir pelo erro de julgamento da matéria de facto nos casos em que o recorrente demonstre que a convicção do tribunal de primeira instância sobre determinado facto concreto é inadmissível, porque não foi sustentada por quaisquer dados objetivos, ou porque existem hipóteses decorrentes da prova produzida que impõem resposta diversa à adotada na decisão recorrida.


*

            Sob os enunciados pressupostos, passamos a conhecer da impugnação deduzida pelo recorrente Ministério Público.

                        Conhecendo,

Ø Factos não provados em e) e f):

Como meios de prova para concluir de forma diversa da provada, oferece o recorrente os seguintes:

- Declarações para memória futura prestadas pela ofendida …

- Depoimento da testemunha FF …

            - Depoimento da testemunha …, mãe da ofendida, …

            E qual a fundamentação constante da sentença sob recurso?

            Afirma a Exma. Juíza a quo:
“Atente-se, desde logo, que a ofendida, em sede de declarações para memória futura, referiu, espontaneamente, que a dada altura o arguido começou a dizer que esta “andava metida com os colegas de trabalho”, o que aconteceu quando já moravam em .... Questionada sobre quando é que isso aconteceu, acabou por responder em setembro de 2020.
Questionada de forma direta sobre se o arguido em “setembro de 2020 voltou a dizer que andava a dar a cona, que era uma puta, que era uma vaca?”, respondeu “sim”.

Ora, a acusação localizava o início das aludidas discussões em meados do mês de setembro de 2021 e diariamente. Todavia, das declarações da ofendida resulta o ano de 2020.
Ora, considerando o período da suspensão provisória no âmbito do Inquérito 40/20.... (cfr 362 a 366 e referência 102880654), suscitam-se, sérias reservas ao Tribunal, desde logo, quanto às eventuais datas em que tal possa ter acontecido e a frequência com que possa ter ocorrido. Tanto mais que a ofendida também referiu, a dado momento das declarações para memória futura, que “ele” andava a portar-se bem “até que o acompanhamento dele acabou mesmo”.
Acresce que, quanto à maioria das expressões em questão, concretamente se as mesmas também voltaram a ser proferidas pelo arguido quando já residiam em ... (“andava a dar a cona, que era uma puta, que era uma vaca”) a ofendida limitou-se a confirmar as mesmas, questionada sobre o arguido as havia voltado a proferir em setembro de 2020, não tendo sido reproduzidas pela ofendida de forma suficientemente espontânea. Quanto às demais expressões a que se reportava a acusação (“A TUA FILHA É MAIS MULHER DO QUE TU”, “NÃO ME DÁS A MIM PARA DAR AOS OUTROS”), as mesmas não resultam, desde logo, das declarações para memória futura prestadas pela ofendida.

De referir, ainda, que as testemunhas FF … (irmão da ofendida) e … (mãe da ofendida) fizeram alusão a determinadas expressões que ouviram o arguido proferir dirigidas à ofendida. No entanto, os referidos depoimentos não permitem localizar temporalmente as expressões a que aludiram, pois não lograram esclarecer, em concreto, quando ouviram tais expressões …
…»

            Note-se que a ofendida apresentou anteriormente queixa contra o arguido, pela prática de um crime de violência doméstica, em 2019, tendo o inquérito sido objeto de suspensão provisória do processo. Conforme foi conhecido na sentença como questão prévia (não incidindo sobre tal questão o recurso), tendo o arguido cumprido as injunções impostas nesse processo e o mesmo terminado com despacho de arquivamento (que, nos termos do art. 282º, n.º 3, do Código de Processo Penal não pode ser reaberto), os factos que nesse inquérito estavam em causa não podem ser agora conhecidos (por força do “caso decidido” formado – cfr. o nosso Acórdão de 18.5.2022 proferido no proc. 187/21.9GABBR-A.C1, em www.dgsi.pt).

            Sucede que não pode ser reaberto quanto aos factos que foram objeto de tal processo (que foram omitidos do conhecimento do tribunal), não abrangendo outros, designadamente os alegadamente praticados no período da suspensão provisória do processo.

            Posto isto,

            Resume-se o fundamento da Exma. Julgadora ao facto de não ter apurado em concreto se as expressões proferidas pelo arguido e relatadas pela ofendida terão tido lugar em setembro de 2020 ou antes do ano de 2021, o que as testemunhas que as confirmam não conseguem de igual modo esclarecer de forma unânime.

            O âmbito temporal dos factos em causa neste processo encontra-se perfeitamente definido, a saber, desde data concretamente não apurada, mas após a apresentação da queixa que originou o proc. n.º 40/20.... (facto provado em 5) e 21.6.2022, data do último ato relatado neste processo.

Ou seja, um período temporal de cerca de 1 ano e meio, que não se pode considerar excessivo, tendo em conta que a relação entre arguido e ofendida iniciou em março/abril de 2013 (facto provado em 1).

Assumimos desde já o entendimento de se mostrar insuficiente a argumentação expendida pelo Exmo. Juiz a quo para considerar como não provado o facto em análise: na verdade, ouvidas as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, esta localizou bem no tempo os factos, relatando que o arguido “se portou bem” durante o período de um ano em que foi acompanhado em consultas (no âmbito da suspensão provisória do processo crime anterior), voltando ao comportamento anterior no mês de setembro, logo que passou esse ano. Situou os factos na casa de ..., tendo por duas vezes, no início e no final do seu depoimento, fixado o reinício da prática dos factos por parte do arguido um ano após o acordo que deu para o acompanhamento do arguido, sendo que apenas uma vez mencionou o ano de 2020.

Manifestamente a referência da testemunha ao ano de 2020 (sendo que antes ainda referiu levemente o ano de 2019) resultou do facto de ter acabado de responder à questão da data em que apresentou pela 1ª vez queixa contra o arguido, que afirmou ter ocorrido em 2019. O que corresponde ao teor da certidão junta aos autos. No entanto, confrontado o depoimento da assistente com a certidão do proc. de 2020 verificamos o seguinte: os factos em causa nesse processo anterior ocorreram até 7.7.2020, o despacho judicial de concordância com a proposta suspensão provisória do processo data de 8.9.2020, tendo sido fixado em 1 ano o prazo da suspensão.

Assim, obviamente que segundo o relato consistente da ofendida o arguido reiniciou a sua conduta dirigida à ofendida em setembro do ano de 2021, que apenas interrompeu a 28.2.2022, data em que a ofendida foi para uma casa abrigo.

Não atingimos porque razão a Exma. Juíza a quo afirma não ter a ofendida reproduzido as expressões que lhe eram dirigidas pelo arguido “de forma suficientemente espontânea”: na verdade, a ofendida foi muito clara quando esclareceu que as discussões eram diárias, e que diariamente o arguido lhe dirigia tais epítetos que, na verdade, de cada vez que aos mesmos se referia não reproduzia. O que é consentâneo com a normalidade da prestação de um depoimento.

Os factos foram confirmados pelos demais meios de prova indicados na impugnação.

Ficam pelo exposto removidas as dúvidas que determinaram que o julgador de 1ª instância declarasse tais factos como não provados.

Deste modo, alteram-se os factos não provados em e) e f), passando a constar dos factos provados o seguinte:

- A partir de meados de setembro de 2021 o arguido discutia diariamente com a vítima BB, acusando-a de manter relações extraconjugais;

- Durante as referidas discussões, diariamente, o arguido dirigia a BB as seguintes expressões: “PUTA”, “VACA”.

Mantendo-se como não provado que:


*

Ø  Facto não provado em g):

Como meios de prova para concluir de forma diversa da provada, oferece o recorrente os seguintes:

- Declarações para memória futura prestadas pela ofendida …

Ora,

            E qual a fundamentação constante da sentença sob recurso?

            Afirma a Exma. Juíza a quo:
“…das declarações para memória futura prestadas pela ofendida não resulta (pelo menos de forma direta) que o arguido partia os objetos para não bater naquela, não resultando, de resto, o contexto em que o arguido partia os objetos.

Acresce que, a acusação reporta-se a situações diárias (“diariamente”). Ora, das declarações para memória futura prestadas pela ofendida não se pode retirar, sem mais, que o arguido partia objetos diariamente.

Por outro lado, a ofendida não localizou minimamente quando é que tais episódios ocorreram, ….”

Ouvidas na íntegra as declarações prestadas pela ofendida, afirma esta que quando discutia consigo o arguido partia com frequência vários objetos em casa, nomeadamente pratos …

Em consonância, deve ser dado como provado o seguinte facto:

- Ainda durante as discussões, o arguido partia frequentemente objetos em casa, nomeadamente pratos.

E como não provado:


*

Ø             Factos não provados em h), i), l), m) e n):

Como meios de prova para concluir de forma diversa da provada, oferece o recorrente os seguintes:

- Declarações para memória futura prestadas pela ofendida …

- Declarações da testemunha FF …

Ora, consta da fundamentação da sentença:
Assim, quanto ao episódio do dia 25 de fevereiro de 2022 temos as declarações para memória futura prestadas pela ofendida e o depoimento prestado pela testemunha FF ….
Sucede que as referidas declarações e depoimento apresentam algumas discrepâncias, concretamente quanto à tentativa de agressão, as quais, diga-se, não são meramente irrelevantes ou relativas a pequenos pormenores.
Após descrever os dois depoimentos, contradiz-se e refere:

Assim, a versão apresentada em sede de declarações para memória futura pela ofendida e a versão da testemunha FF … quanto ao que efetivamente aconteceu no dia 25 de fevereiro de 2022, …, não se mostram totalmente convergentes. E as discrepâncias detetadas não se referem a meros pormenores.

Importa ainda salientar, que a própria ofendida não concretizou minimamente em que consistiu a tentativa de agressão física a que aludiu, …

Ouvidas na íntegra as declarações prestadas pela ofendida e pela testemunha FF, confirmamos as naturais discrepâncias, mas que não afetam o núcleo factual em causa, a saber, que o arguido, naquela data (25.2.2022), em casa do irmão da ofendida, tentou agredi-la, não o tendo conseguido em virtude da intervenção do primeiro; e que estava presente o filho menor DD, que chorou.

Esclareça-se que não é exigível que os depoimentos das várias testemunhas que presenciam um facto sejam rigorosamente coincidentes:

Na verdade, “…o testemunho não é a exata reprodução de um fenómeno objetivo, porque é modificado pela subjetividade da testemunha, e se, por isso, duas testemunhas dificilmente podem prestar depoimentos idênticos, deduzir da diversidade que se nota na sua acareação, que uma delas deva, necessariamente, estar de má fé, é um erro.

Efetivamente, às vezes, um depoimento sem lógica, contraditório, é considerado pouco fiel, porque se julga que a testemunha não se recorda bem, ou então insincero, ao passo que os testemunhos correntes dão uma impressão de fidelidade e veracidade, e pode ser o contrário, provindo o primeiro de uma dificuldade em se exprimir, ou de um fenómeno de timidez, ao passo que a naturalidade do segundo pode derivar de uma hábil preparação (…) Há, portanto, um certo coeficiente pessoal na perceção e na evocação mnemónica, que torna, necessariamente, incompleta a recordação, de forma que não há maior erro que considerar a testemunha como uma chapa fotográfica, deduzindo de não ser completo o seu depoimento que ela é reticente” ([4]).

Quanto à referida “imprecisão” da tentada agressão nas declarações da ofendida, não a vislumbramos: a ofendida declarou que o arguido lhe tentou bater, sem esclarecer de que modo, tendo o arguido sido afastado pelo irmão que, assim, impediu a agressão, enquanto o irmão precisou a forma como essa agressão estava a ser iniciada. Nada de contraditório encontramos.

Em consonância, serão considerados como provados os seguintes factos:

- Na data referida em 7, o arguido dirigiu-se à vítima com as mãos estendidas na direção do pescoço daquela;

- O filho menor do casal, DD, chorava;

- Alertado pelo choro da criança, FF … correu para ajudar a vítima e afastou o arguido, impedindo-o de agredir fisicamente a vítima.

E como não provado:


*

Ø Facto não provado em p):

Como meios de prova para concluir de forma diversa da provada, oferece o recorrente os seguintes:

- Declarações para memória futura prestadas pela ofendida …

Ora, da fundamentação da sentença quanto à não prova deste facto consta o seguinte:
“…a prova produzida, designadamente as declarações para memória futura, não permitem concluir que tais expressões tivessem sido proferidas pelo arguido em casa da ofendida.”

No entanto, das declarações prestadas pela ofendida resulta claro que o arguido proferiu as referidas expressões após saírem da casa do irmão da ofendida e no interior da habitação – que só pode ser a do casal.

Em consonância, considera-se como provado o seguinte facto:

- Mal entraram em casa, o arguido, que se encontrava alcoolizado, iniciou uma discussão com BB, no decurso da qual lhe dirigiu as seguintes expressões: “ÉS UMA PUTA”, “ÉS UMA VACA”, “ÉS IGUAL Á TUA MÃE, FORAM VOCÊS QUE MATARAM O VOSSO PAI.


*

Procede, nestes termos, a deduzida impugnação da matéria de facto, alterando-se os factos provados na sentença da seguinte forma:


*

Nenhum outro facto dos declarados como não provados na sentença proferida foi objeto de impugnação pelo recorrente Ministério Público, que de forma clara limitou a sua discordância quanto à avaliação da prova produzida aos factos não provados sob as alíneas e); f).; g); h); i); l); m; n) e p).

Designadamente, não foram objeto de impugnação os factos relativos ao elemento subjetivo e consciência da ilicitude, constantes dos factos não provados da sentença, a saber:

x) O arguido sabia que a vítima era sua companheira, e, sempre que adotou o comportamento supra descritos, atuou com o propósito, concretizado e reiterado, de a ofender e maltratar física e psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

y) O arguido agiu do modo descrito, sabendo que infligia maus-tratos físicos e psicológicos à sua companheira, BB, humilhando-a e sujeitando-a a tratamentos degradantes e causando-lhe um estado de humilhação, ansiedade e medo permanentes.

z) Atuou sempre o arguido com manifesta insensibilidade perante a integridade física e psíquica da vítima BB, que bem sabia dever respeitar, particularmente por ser sua companheira e mãe dos seus filhos.

aa) O arguido quis provocar dores físicas e mal-estar psicológico na pessoa da vítima, bem sabendo que os provocaria, tendo em conta as regiões do corpo que procurou e conseguiu atingir, querendo, na verdade, dar causa a essas dores e mal-estar, bem sabendo que as suas descritas condutas eram adequadas à produção daqueles efeitos.

bb) O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Consabidamente, o crime de violência doméstica por cuja prática o recorrente pretende ver o arguido condenado por via do recurso interposto reveste a natureza de crime doloso, conforme decorre dos arts. 152º, n.º 1, e 13º do Código Penal.

O resultado do recurso interposto, mormente da procedência quase total da impugnação da matéria de facto objeto do mesmo, apenas conseguiu a prova dos elementos objetivos do tipo legal de crime pelo qual o arguido se encontrava acusado. No entanto, devido à omissão de uma impugnação dos factos não provados onde consta quer a consciência da ilicitude do arguido, quer o dolo, em qualquer uma das suas formas, outra solução não resta que considerar como não preenchidos todos os pressupostos, objetivos e subjetivos, para a condenação do arguido, não podendo nessa parte proceder o recurso.

Na verdade, não suscita dúvidas que este tribunal de recurso se encontra impedido de alterar os factos transcritos, por não terem sido objeto de impugnação: é que a especificação dos “concretos pontos de facto” a que se refere o art. 412º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorretamente julgado ([5]). As alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29.8, que alteraram o regime de impugnação da matéria de facto em recurso, tiveram precisamente por escopo, além da clarificação do dever de transcrição dos depoimentos, tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem decisão distinta.

Mas anteriormente, já o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 23.7.2007 afirmava que "A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objeto do recurso em matéria de facto, e para a consequente intervenção do tribunal de recurso".

O Acórdão do mesmo Tribunal de 19.5.2010 consignou ainda o seguinte:

IV- Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP: as indicações aqui exigidas são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.

V - É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto.

E o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.2010:

VII - A lei é exigente quanto ao modo de impugnação do recurso em matéria de facto, de harmonia com o disposto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, sendo que a modificabilidade da decisão da 1.ª instância apenas ocorre nos termos apontados no art. 431º do CPP, entre os quais a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412.º, n.º 3, do mesmo diploma. Na impugnação da matéria fáctica não basta mera referência ou indicação genérica dos pontos de facto e das provas dissonantes, mas deve especificar-se os concretos pontos de facto e as concretas provas que impõem decisão diversa.

VIII - Por isso, o tribunal de 2.ª instância, apesar de ter poderes de cognição em matéria de facto, não pode sem mais, sindicar os meios de prova de que se socorreu o tribunal da 1.ª instância ao dar como provados determinados factos e não outros. Torna-se necessário a indicação expressa dos concretos pontos de facto e das concretas provas que para esses concretos pontos de facto, impõem solução diversa. Acresce, como determina o art. 412.º, n.º 4, do CPP, que as concretas provas que impõem decisão diversa devem fazer-se “por referência ao consignado na aca, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Também na doutrina se tem entendido que o recurso incidente sobre a impugnação da matéria de facto exige muito cuidado, de forma a serem cumpridas todas as regras específicas previstas na lei. Assim, visando o recurso a alteração dos factos dados como provados ou como não provados, estes têm de ser identificados com rigor: “A lei refere os «concretos pontos de facto» pretendendo significar que os factos (provados ou não provados) que o recorrente considera incorretamente julgados têm de ser individualizados um a um([6]) (sublinhado nosso).

Em suma, o imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades fatores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o tribunal ([7]).

Ora, a eventual alteração dos factos não provados concernentes ao elemento subjetivo e à consciência da ilicitude não tem na sua base qualquer vício da decisão, pois não enferma a sentença proferida em 1ª instância de nenhum dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que sempre seriam de conhecimento oficioso.

Deste modo, para proceder à alteração daqueles factos os mesmos teriam de ter sido impugnados nos termos do n.º 3 do art. 412º, conforme expressamente resulta do art. 431º do Código de Processo Penal. Estender o âmbito do recurso a questões cuja resolução não foi solicitada a esta Relação redundaria numa nulidade do acórdão por excesso de pronúncia e uma violação do princípio da vinculação temática vigente em sede de recurso – arts. 425º, n.º 4, e 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.

Em consequência, devido à não prova da consciência da ilicitude e dos elementos subjetivos do tipo de crime previsto no art. 152º, n.º 1, do Código Penal, impõe-se manter a absolvição do arguido.


*

V.

DECISÃO


Nos termos expostos julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem tributação.

Coimbra, 25 de outubro de 2023

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

José Eduardo Martins (1º adjunto)

Alcina da Costa Ribeiro (2ª adjunta)





[1]
[2] Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212..
[3] Ac. desta Relação de 4.5.2016, no proc. 721/13.8TACLD.C1; cf. ainda o Ac. RC de 12.9.2012, no proc. 245/09.8GBACB.C1, em www.dgsi.pt
[4] Enrico Altavilla, “Psicologia Judiciária, Personagens do Direito Penal”, cit. no Ac. da Relação de Évora de 9.1.2018, relatado pelo Des. Martinho Cardoso, em www.dgsi.pt
[5] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, ª ed., pág. 1144.
[6] Cf. Germano Marques da Silva, “Direito Processual Penal Português – Do Procedimento”, Ed. Univ. Católica, págs. 336-337
[7] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 5.12.2007, rel. Raul Borges. Todos os arestos citados encontram-se em www.dgsi.pt