Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
308/08.7TBPCV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
COM CARÁCTER LIMITADO
COMPLEMENTO DA SENTENÇA COM AS MENÇÕES DO ARTº 36º E DEPÓSITO DE QUANTIA NECESSÁRIA PARA GARANTIR O PAGAMENTO DAS CUSTAS E DÍVIDAS
INCONSTITUCIONALIDADE DO Nº 3 DO ARTº 39º DO CIRE
Data do Acordão: 02/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 39º, NºS 1, 2 E 3, DO CIRE
Sumário: I – O artº 39º do CIRE tem subjacente a si a intenção de simplificação e de economia processual, permitindo ao juiz que decrete a insolvência de forma simplificada.

II – Para tal, basta que no momento da prolação da sentença se conclua, face aos elementos disponíveis nos autos, que o património do devedor existente se mostra presumivelmente insuficiente para a satisfação das custas processuais e das demais dívidas previsíveis da massa insolvente.

III – Porém, o legislador deixou aos legítimos interessados a possibilidade de tal tipo de sentença ser complementada por forma a serem obtidos os efeitos que, normalmente, ocorrem no processo falimentar, mediante a dedução do pedido de complemento de tal sentença – nº 2, al. a) do artº 39º do CIRE.

III - O depósito ou a garantia bancária do pagamento do montante referido no nº 3 do artº 39º do CIRE constituem uma condição de procedência do pedido de complementação da sentença que decretou a insolvência da requerida, à luz do disposto no nº 1 do citado artº 39º.

II – Porém, aquela norma do nº 3 do artº 39º do CIRE é materialmente inconstitucional, por violação dos artºs 20º, nº 1, e 59º, nº 1, al. a), da Constituição da República Portuguesa, quando interpretada no sentido de impor aos credores/trabalhadores, que não disponham de condições económicas para o efeito, a obrigatoriedade de procederem ao depósito ou à prestação de caução para garantia do pagamento do montante ali referido, como condição de deferimento do pedido de complementação daquela sentença que formularam, com vista, nomeadamente, a garantir o pagamento dos seus créditos junto do Fundo de Garantia Salarial.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. Nos autos que, sob o nº 308/08.7TBPCV, correm os seus termos no tribunal judicial da comarca de Penacova, foi decretada – a requerimento dos credores A..., B..., C... e D..., e sem qualquer oposição – a insolvência da sociedade requerida, E..., por sentença proferida em 2008/10/21.

2. Nessa sentença – e após se ter considerado ser de presumir (face aos factos dados como assentes) a insuficiência do património da requerida para satisfazer as custas do processo e as dívidas previsíveis da massa insolvente, e desde logo o crédito dos requerentes e por não estar essa satisfação garantida por outra forma -, decidiu-se, à luz do disposto no artº 39, nº 1, do CIRE, apenas dar cumprimento ao preceituado nas als. a) a d) e h) do artº 36 desse mesmo diploma legal, declarando-se, em consequência, aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter limitado.

3. Notificados de tal sentença, aqueles requerentes da insolvência vieram requerer que a mesma fosse complementada com as restantes menções do artº 36 do CIRE (e a cujo diploma nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a menção da sua origem), e nomeadamente com a designação de prazo para a reclamação de créditos e de dia para a realização da reunião da assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude do artº 156.
Pedido de complemento esse que, em síntese, fundamentaram na estrita necessidade que têm do dinheiro correspondente aos créditos que tinham sobre a requerida e no facto de tendo esses seus créditos origem na relação de trabalho que mantiveram com ela, e mesmo que se venha a apurar a efectiva insuficiência do património da massa insolvente, sempre poderiam vir a accionar o Fundo de Garantia Salarial para a satisfação dos mesmos, precisando para o efeito de apresentar na Segurança Social, para além de outros documentos, certidão comprovativa de terem reclamado os seus créditos no aludido processo de insolvência e bem assim da decisão que os reconheceu e verificou.

4. Os autos foram então conclusos à srª juiz a quo com a informação de que “se calcula para efeito de custas prováveis e despesas imputáveis à massa insolvente o montante de € 7.500,00, face às diligências previsíveis, nomeadamente Taxa de Justiça, encargos com a publicação de anúncios, pedidos de certidões junto das Conservatórias e Finanças, averiguações de bens e respectivo pagamento ao administrador”.
4.1 Na sequência dessa informação, e daquele pedido dos requerentes, a srª juiz a quo proferiu então o seguinte despacho: “Notifique os requerentes para depositarem à ordem do tribunal a quantia de 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) para garante do pagamento das custas do processo e dívidas previsíveis da massa insolvente, ou caucionar esse pagamento mediante garantia bancária – cf. o art. 39º nº 3 CIRE. Prazo: 20 dias”.

5. Notificados de tal despacho, os requerentes alegando não terem, por dificuldades económicas, possibilidades de pagar o quantitativo nele referido, pediram, à luz do artº 666, nº 2, do CPC, esclarecimento ao mesmo e no sentido de explicitar se no caso em apreço não deveria o quantitativo referido no aludido despacho ser adiantado pelo Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estrutura da Justiça, e se tal foi ou não ponderado.
Pedido de esse esclarecimento que foi feito no sentido de que no caso era sobre os requerentes que impendia o ónus de proceder ao sobredito pagamento e não àquele Instituto.

6. Pelos aludidos requerentes, foi então interposto recurso de apelação daquele sobredito despacho.
Nas respectivas alegações desse recurso que apresentaram, os requerentes/apelantes concluíram as mesmas no seguintes termos:
A) O despacho recorrido é para além de injusto, ilegal, e inconstitucional. Com efeito,
B) Da sentença de insolvência e até do despacho recorrido, decorre a falta de liquidez da massa insolvente.
C) O Tribunal “a quo” ao exigir o deposito de 7.500,00 € aos ora recorrentes, para completar a sentença nos termos do disposto no artº 36 do CIRE, designadamente designado prazo para as reclamações de créditos, está a impossibilitar, o exercício por estes dos seus direitos de acederem ao pagamento de salários pelo Fundo de Garantia Salarial, e de acederem ao direito e à justiça, direito este com dignidade constitucional.
D) Os ora recorrentes, foram trabalhadores da falida, titulares de créditos salariais em dívida, e, por essa razão,
E) Não tem condições de pagar tal quantitativo de 7.500,00 € que se revela até, manifestamente excessivo.
F) A falta de recursos económicos, não pode ser impedimento ao exercício dos seus direitos.
G) E nem se diga que podiam ter requerido protecção jurídica uma vez que esta só é concedida antes da 1ª intervenção processual, e
H) Como os requerentes não podem prever que o Sr. Juiz não ia completar a sentença, ou que o quantitativo que viessem a ter de depositar fosse tão elevado, não o requereram.
I) O Tribunal “a quo”, podia e devia em face do exposto, ter determinado, que tal quantitativo fosse pago, ou adiantado pelo Instituto de Gestão Financeira, nos termos do artº 26 e 27 do DL 282/07 de 08/07.
J) Ao interpretar o artigo 39, nº 3 do CIRE, nos termos em que o fez, isto é, no sentido de que a sentença só é completada, nomeadamente com o prazo para as reclamações de créditos, desde que os ora recorrentes, trabalhadores, procedessem ao deposito daquela quantia para assegurar as custas do processo e dividas da massa insolvente, viola flagrantemente o disposto no artº 20, nº 1 do CRP, pelo que é tal despacho o inconstitucional por violação daquele normativo.
K) O despacho recorrido, violou por conseguinte o disposto nos artºs 36 do CIRE, e 26 e 27, nº 1, do DL 282/07 de 08/07, porquanto, o Tribunal “a quo”, devia ter procedido à interpretação dos mesmos, no sentido de que os mesmos não podiam, nem podem impedir aos recorrentes o exercício dos seus direitos, e assim, determinar que a quantia necessária à garantia do pagamento das custas e das dividas da massa insolvente, atenta a falta de liquidez da mesma, fosse adiantada pelo Instituto de Gestão Financeira, sob pena de violação de tais normativos e do artº 20 da Constituição da República Portuguesa.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Tal recurso foi recebido como apelação, como subida imediata, em separado dos autos principais e com efeito devolutivo.

9. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
A) De facto.
Com relevância para o conhecimento e compreensão do objecto do presente recurso, deve atender-se, por assentes, aos factos supra referidos no ponto I e ainda:
1) Na sentença que decretou a insolvência da requerida foi, além do mais, dado como provado:
1.1 Que os requerentes/apelantes foram trabalhadores da requerida em consequência do contrato de trabalho que celebraram com ela: o requerente A... em 01/01/92, o requerente C... em Novembro de 1987, o requerente B... em 01/01/1992 e o requerente D... em 01/04/1996.
1.2 Os contratos de trabalho dos requerentes/apelantes foram rescindidos com justa causa pelos mesmos em 03/01/2007, por carta registada com AR, em virtude de falta de pagamento pontual das retribuições.
1.3 Os requerentes/apelantes têm a receber da requerida, a título de créditos salariais, respectivamente, os valores globais de 9.514,20 €, 37.961,68 € e 18.604,98 €, os quais se encontram vencidos e que a requerida não pagou.
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B) De direito.
É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto.
Ora, compulsando as conclusões das alegações do presente recurso – tal como, aliás, decorre do supra se deixou exarado -, a verdadeira questão que aqui nos cumpre apreciar e decidir, traduz-se, a final de contas, em saber se, no caso, os apelantes para obterem o complemento da sentença que declarou a insolvência da sociedade/requerida estão obrigados a previamente depositarem à ordem do tribunal a quantia de € 7.500,00 fixada no despacho recorrido ou então a caucionarem esse pagamento mediante garantia bancária, e, em caso afirmativo, se tal entendimento, alicerçado na norma invocada no referido despacho, se mostra ou não ofensivo de preceitos constitucionais?
Apreciamos, pois.
Para aquilo que para o caso interessa, o artº 39, sob a epígrafe «insuficiência da massa insolvente», dispõe, além do mais, o seguinte:
1- Concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra forma garantida, faz menção desse facto na sentença de declaração da insolvência e dá nela cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do artigo 36º., declarando aberto o incidente de qualificação com carácter limitado.
2- No caso referido no número anterior:
a) Qualquer interessado pode pedir, no prazo de cinco dias, que a sentença seja complementada com as restantes menções do artigo 36º.;
(…)
3- O requerente do complemento da sentença deposita à ordem do tribunal o montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas e dívidas, ou cauciona esse pagamento mediante garantia bancária, sendo o depósito movimentado ou a caução accionada depois de comprovada a efectiva insuficiência da massa, e na medida dessa insuficiência.
4- Requerido o complemento nos termos dos nºs 2 e 3, deve o juiz dar cumprimento integral ao artigo 36º, observando-se em seguida o disposto nos artigos 37º. e 38º., e prosseguindo com carácter pleno o incidente de qualificação da insolvência.
5- Quem requer o complemento da sentença pode exigir o reembolso das quantias dispendidas às pessoas que, em violação dos seus deveres como administradores, se hajam abstido de requerer a declaração de insolvência do devedor, ou o tenham feito com demora.
(…)
7- Não sendo requerido o complemento da sentença:
(...)
b) O processo de insolvência é declarado findo logo que a sentença transite em julgado, sem prejuízo da tramitação até final da incidente limitado de qualificação da insolvência.
(…)
d) Após o respectivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos autos depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente, aplicando-se o disposto nos nºs 4 e 5.
8- O disposto neste artigo não é aplicável quanto o devedor, sendo uma pessoa singular, tenha requerido, anteriormente à sentença de declaração de insolvência, a exoneração do passivo.” (sublinhado nosso)
O preceito acabado de citar tem subjacente a si a intenção de simplificação e de economia processual. Na verdade, tal normativo permite ao juiz que decrete a insolvência de forma simplificada (nos termos ali referidos e nomeadamente sem que sequer haja lugar à fase de reclamação de créditos), bastando para tal que, no momento da prolação da sentença, conclua, face aos elementos disponíveis nos autos, que o património existente do devedor se mostra presumivelmente insuficiente para a satisfação das custas processuais e das demais dívidas (previsíveis) da massa insolvente. O que em termos práticos significará que processo é, a partir dali, declarado findo, evitando-se, assim, toda uma série de actos cuja prática se poderá vir a revelar inútil e dispendiosa.
E foi com base nesse juízo conclusivo que, no caso, a srª juiz a quo proferiu, à luz do citado nº 1 do artº 39, a sentença supra referida decretando a insolvência da sociedade requerida.
Porém, o legislador deixou ainda, através do nº 2 al a) do citado preceito legal, aos legítimos interessados a possibilidade de tal tipo de sentença ser complementada por forma a serem obtidos os efeitos que, normalmente, ocorrem no processo falimentar, o que significa, em termos práticos, a possibilidade de requerem a continuação do processo. E isso sucederá se os interessados deduzirem o pedido de complemento de tal sentença antes da mesma transitar em julgado, e mais concretamente no prazo de 5 dias após serem notificados da mesma. Possibilidade que, diga-se (muito embora não seja essa situação que ocorreu nestes autos), pode mesmo vir ainda ocorrer após o trânsito em julgado de tal sentença, com a instauração de um novo processo nos termos e condições do que se encontra estipulado na al d) do nº 7 do referido preceito legal.
E foi a complementação dessa sentença que os ora apelantes, após dela terem sido notificados, vieram oportunamente pedir.
Porém, em tal situação (em tudo idêntica àquela outra prevista na al. d) do citado nº 7), a possibilidade da sentença poder ser complementada fica, nos termos que decorrem do estatuído nº 3 do mesmo normativo legal, dependente de os interessados em tal complementação depositarem à ordem do tribunal o montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas e dívidas, ou então de caucionarem esse pagamento mediante garantia bancária.
Depósito ou a garantia bancária (em alternativa) esses que constituem, assim, um verdadeira condição sine quo non da procedência do pedido de complementação da sentença, ou seja, sem eles o tal pedido será indeferido (vidé, a propósito, Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. I., Quid Júris, pág. 204, nota 5”).
Tendo por pano de fundo a sentença simplificada, de que acima falámos, o evitar, além do mais, dispêndios de toda uma actividade processual, quando as evidências apontam para que todo o acervo dos bens do devedor insolvente não se mostre suficiente para pagar sequer as custas processuais e as dívidas previsíveis da massa insolvente, parece evidente que esse pressuposto visa garantir, à partida, esse pagamento.
Como já acima já deixámos expresso, os ora apelantes (ex-trabalhadores da sociedade declarada insolvida) fundamentaram o seu pedido de complementação da dita sentença, no facto de necessitarem do dinheiro referente aos créditos que, naquela qualidade, adquiriram sobre aquela sociedade e ainda no facto de, no caso de se vir a apurar a insuficiência do património da massa insolvente para os saldar, sempre poderiam vir então accionar o Fundo de Garantia Salarial para a satisfação dos mesmos, precisando para o efeito de apresentar na Segurança Social, para além de outros documentos, certidão comprovativa de terem reclamado os seus créditos no aludido processo de insolvência e bem assim da decisão que os reconheceu e verificou.
Ora, esse propósito estipula do o artº 380 do actual Código de Trabalho (aprovado pela Lei nº 99/2003 de 27/8), que “a garantia do pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessão, pertencentes aos trabalhadores, que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência …é assumida e suportada pelo Fundo de Garantia Salarial, nos termos previstos em legislação especial”.
Em regulamentação do Código de Trabalho, e particularmente daquele seu artº 380, foi entretanto publicada a Lei nº 35/2004 de 29/7 (cfr. artº 316 e ss).
Lei essa que, depois de ali reafirmar (e bem assim as condições em que tal se processa) a garantia do pagamento dos créditos dos trabalhadores que se encontrem na situação definida no citado artº 380 daquele diploma laboral, estipula que o Fundo de Garantia Salarial efectua o pagamento de tais créditos mediante requerimento do trabalhador donde conste, designadamente, a identificação do empregador e bem como a descriminação dos créditos objecto do pedido (artº 323, nº 1), estipulando-se ainda, nos termos do artº 324, al. a), que esse requerimento é instruído (tendo em conta a situação em apreço) com a certidão ou cópia autenticada comprovativa dos créditos reclamados pelo trabalhador emitida pelo tribunal onde corre o processo de insolvência.
Ora, da leitura de tal diploma regulamentar é de concluir, desde logo, que certamente se olvidou a possibilidade de existência de processos de insolvência em que poderá não haver lugar à fase da reclamação de créditos. E essa possibilidade ocorre, como já vimos, quando a sentença que decreta a insolvência é proferida, de forma simplificada, à luz do citado artº 39, nº 1, do CIRE.
Por outro lado, resulta, por sua vez, que o trabalhador/credor só poderá, em caso de insuficiência do património do devedor insolvido, obter junto do Fundo de Garantia Salarial a satisfação do seu crédito se apresentar, na instrução desse seu pedido de pagamento, documento comprovativo de ter reclamado o seu crédito no processo de insolvência.
Ora, de tudo isso resulta ainda que, tendo a sentença que decretou a insolvência do devedor sido proferida à luz do disposto no citado artº 39, nº 1, do CIRE, o trabalhador/credor terá necessidade que processo prossiga (com a complementação da sentença), pois só assim poderá ali reclamar o seu crédito e, consequentemente, poder depois (no caso de se comprovarem os indícios de insuficiência do património do devedor insolvido para dar satisfação ao pagamento do seu crédito) ir junto daquele Fundo assegurar o pagamento desse mesmo seu crédito.
Mas que para que o processo prossiga (com a complementação da sentença) por forma, a além de mais, a permitir a reclamação de créditos, já vimos que, como condição de tal imposta pelo nº 3 do citado artº 39, necessário se torna que o credor nisso interessado (no caso são ex trabalhadores do devedor) deposite à ordem do tribunal o montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e dívidas ali referidas, ou então que caucione esse pagamento mediante garantia bancária.
Ora, toda a configuração da situação que vimos descrevendo ocorre no caso sub júdice com os ora apelantes (cujos créditos emergiram do contrato de trabalho que mantiveram com a sociedade declarada insolvida), os quais, como vimos, formularam pedido de complementação da sentença visando, no essencial, criar condições, no caso de o património daquela se comprovar insuficiente para o efeito, para poderem depois obter junto do Fundo de Garantia Salarial o pagamento daqueles seus créditos.
Para esse efeito, e dando cumprimento ao estatuído no sobredito nº 3 do citado artº 39, a srª juiz a quo calculou e fixou o montante da garantia do pagamento das custas e dívidas ali previstas em € 7.500,00.
Porém, os apelantes alegaram não terem, por dificuldades económicas, possibilidades de pagar tal quantitativo.
Pagamento esse que, nos termos do estatuído no nº 3 do artº 39, consubstancia, como vimos, o pressuposto de deferimento do pedido de complementação da sentença que formularam, isto é, sem tal pagamento não poderão, por força de tal normativo, obter o prosseguimento do processo, com todas as consequências que daí decorrem, e que supra já deixámos expandidas.
Mas tal situação - no caso de se comprovarem as alegadas dificuldades económicas dos apelantes que os impossibilitam de proceder do depósito de tal montante a fim de garantir o seu pagamento ou de caucionarem o mesmo por garantia bancária – afronta flagrantemente o comando o artigo 20, nº 1, da nossa Constituição, onde se dispõe que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Norma essa (o nº 3 do citado artº 39) que – quando interpretada no sentido de ser igualmente aplicada a interessados que não disponham de condições económicas que lhe permitam efectuar o depósito garantistico do pagamento nela referido ou mesmo constituir a caução bancária para o mesmo efeito, e mais ainda quando esses interessados são trabalhadores que visam, com o pedido de complementação da sentença que decretou a insolvência, lograr obter condições legais que lhe permitam depois garantir o pagamento dos seus créditos junto do Fundo de Garantia Salarial - contempla em si uma solução que se mostra, em tais condições, excessiva, desadequada e violadora não só daquele direito consagrado no citado artº 20 da C.R.Port., como, inclusive, ainda (no caso de trabalhadores) daquele outro consignado na al. a) do nº 1 do artº 59 dessa nossa Lei Fundamental.
Mais ainda se tivermos em conta, por um lado, o montante elevado cujo pagamento é preciso concretamente garantir, por outro, que nas situações em causa, como aquela que ocorre no caso em apreço, tudo indicia que os autores de tal pedido de complementação da sentença poderão não lograr a satisfação dos seus créditos por insuficiência do património da massa insolvente (o que, nos termos da parte final da citada norma do nº 3 do artº 39, desencadeará automaticamente que o depósito seja movimentado ou caução seja accionada), e, por fim, ainda que, nem mesmo através do recurso à possibilidade prevista no nº 5 de tal preceito, posteriormente nem sequer lhes é garantido o reembolso daquele montante adiantado.
E a tal conclusão não obstará sequer o facto de - à luz da actual redacção dada, pelo artº 2 do DL nº 282/2007 de 7/8, aos artºs 26, nº 8, e 27 da Lei nº 32/2004 de 22/7 (que aprovou o Estatuto do Administrador da Insolvência) - em tais situações a provisão da remuneração do administrador da insolvência e bem assim do reembolso das despesas por ele suportadas ser adiantada pelo Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, I.P., sendo certo ainda que o instituto do benefício de apoio judiciário não a abrange sequer o pagamento das dívidas da massa insolvente a que alude o citado artº 39, nºs 1 e 3.
E daí que citada norma do nº 3 do artº 39, quando interpretada e aplicada com a dimensão e o sentido que supra deixámos expressos, se revele materialmente inconstitucional por violação dos artºs 20, nº 1, e 59, nº 1 al. a), da CRPort. (neste sentido, vidé acórdão do Tribunal Constitucional nº 602/2006, proferido em 14/11/2006 e publicado no DR nº 249, II S de 29/12/2006, o qual teve por objecto a norma da al. d) do nº 7 do citado artigo 39, sendo que, como se pode observar ao longo da sua fundamentação, ali se equipara a situação de tal norma à situação prevista no nº 3 daquele mesmo preceito legal).
Porém, como supra deixámos referido, o juízo de inconstitucionalidade que atrás formulámos, em relação à norma do nº 3 do artº 39, assenta na impossibilidade de os interessados/apelantes, por dificuldades económicas, procederem ao depósito à ordem do tribunal do montante de € 7.500,00 fixado pela srª juiz do processo para garantir o pagamento das custas e dívidas referidas em tal normativo, ou então de caucionar esse pagamento mediante garantia bancária.
Dado que as mesmas foram alegadas, importa, assim - dado que nenhuma prova foi produzida a tal propósito –, indagar da comprovação ou não das dificuldades económicas aduzidas pelos ora apelantes, como impossibilitantes de os mesmos procederem ao depósito daquele montante ou do caucionamento do mesmo por garantia bancária.
Indagação probatória essa que deverá, assim, ocorrer na 1ª instância.
E, após tal, decidir-se ali em conformidade o pedido de complementação da sentença formulado pelos ora apelantes, ou seja, de deferir (sem a exigência do prévio depósito ou caução garantisticos referidos no nº 3 do artº 39, por nessa dimensão se mostrar materialmente inconstitucional nos termos que supra se deixaram expressos) ou indeferir tal pedido, consoante os ora apelantes – depois de convidados a fazê-lo - façam ou não prova daquela alegada impossibilidade por dificuldades económicas.
E nesses termos e para tal efeito, e à luz do disposto no artº 712, nº 4, do CPC ex vi artº 17 do CIRE, decide-se anular a decisão do despacho recorrido.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em anular a decisão do despacho recorrido, com vista a na 1ª instância previamente se indagar e comprovar se os ora apelantes dispõem ou não de condições económicas para proceder ao depósito do montante que foi calculado nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3 do artº 39 do CIRE ou então ao caucionamento desse montante por garantia bancária, decidindo-se depois o pedido por aqueles formulado, de complementação da sentença que decretou a insolvência da requerida, em conformidade com o que supra se deixou exarado.
Sem custas.
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Coimbra, 2009/02/17