Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
364/22.5PBTMR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: INCIDENTE DE QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
ACTIVIDADE PROFISSIONAL DE PSICÓLOGO
FACTOS CONCRETOS QUE SE PRETENDEM PROVAR COM O DEPOIMENTO
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: N
Meio Processual: INCIDENTE DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: INDEFERIDO O INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO
Legislação Nacional: ARTIGO 135.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
PONTOS 2 E 2.14 DO CÓDIGO DEONTOLÓGICO DA ORDEM DOS PSICÓLOGOS PORTUGUESES, APROVADO PELO REGULAMENTO N.º 637/2021
Sumário: I – Os psicólogos podem invocar o direito de escusa para efeitos do disposto no artigo 135.º do C.P.P.
II – É de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do meio de prova em causa para a descoberta da verdade.
III – A apreciação, pelo tribunal superior, do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação concreta da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade.
IV – Não tendo sido indicada, no pedido de quebra de segredo profissional, a matéria concreta que se pretende provar com o depoimento em causa ou a eventual inexistência de outros meios probatórios, resulta não estarem verificados os requisitos de que depende o levantamento do sigilo profissional.
V – O indeferimento do incidente derivado da falta de requisitos não impede a dedução de novo incidente devidamente fundamentado.
Decisão Texto Integral: *

           …

            A - Relatório:

1. … no decorrer da audiência de discussão e julgamento, foi proferido o seguinte Despacho:

           “Na medida em que a Testemunha invoca o sigilo profissional (médico), a escusa a depor sobre factos por este abrangidos parece, à luz do requerimento da Testemunha, legitima, visto que se trata de pessoa/psicóloga que faz o acompanhamento da aqui vítima …

Uma vez que a Arguida mantém interesse na inquirição desta Testemunha, cumpre instruir o incidente de levantamento de sigilo médico por si invocado e determinar oportunamente a sua remessa ao Tribunal Superior.

Para o efeito, e uma vez que só na presente data a Arguida teve conhecimento do presente pedido de escusa, concedo e, por isso, notifico a Arguida para, em 10 dias, juntar requerimento escrito invocando os motivos pelos quais entende que o Tribunal Superior deve decidir pela dispensa do dever de sigilo médico em conformidade com o princípio da prevalência do interesse preponderante. No mesmo prazo deverá indicar as peças processuais com que ver instruído o dito apenso.

Notifique.”

                                                           ****

2) Na sequência do mencionado despacho, a 19/9/2023, a arguida veio requerer e suscitar o incidente da prestação de testemunho com quebra de segredo profissional, nos seguintes termos:

“…, Arguida   nos autos à margem referenciados, vem, por este meio, …

Requerer e suscitar o incidente da prestação de testemunho com quebra de segredo profissional,

Mais requerendo a remessa ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra do presente requerimento,

O que faz nos seguintes termos:

B) Dos fundamentos da quebra de segredo profissional

5. A ora Arguida vem acusada, nos presentes autos, de um crime de violença doméstica, …

8. Aos factos  de que a Arguida vem acusada, considerando o enquadramento típico constante da acusação pública, correspondem, pois, penas principais e acessórias bastante gravosas.

9. Acresce, para além das ditas penas, todo o desvalor comunitário e social que se encontra associado …

10. Dando-se a dita acusação pública aqui integralmente reproduzida (para efeitos de expositivos), constata-se que na mesma descrita congérie factual imputada à Arguida e que esta teria praticado sobre a pessoa da menor …, filha do actual companheiro da Arguida … e de ….

11. Mais precisamente, de acordo com a acusação em apreço:

17. A Arguida, notificada para tal efeito, oportunamente apresentou Contestação relativamente à acusação pública e aos PIC formulados contra si …

18. … a Arguida contrapôs que não praticou os factos de que vem acusada, alegando que “sempre tratou bem a menor …”, mais referindo, ademais, que:

19. A Arguida arrolou na sua Contestação, como testemunha, a Ex.ma Sra. Dra. …, Psicóloga, …

20. Ora, a supra identificada  testemunha, após ser notificada para comparecer em julgamento nessa qualidade, enviou aos autos, em 11.8.2023, um email, no qual menciona que:

Assunto: Pedido de Escusa de Audiência de julgamento

23. A Arguida só teve conhecimento do supra mencionado email já em sede de audiência de julgamento de 7.9.2023.

24. No seguimento de lhe ser dado conhecimento de tal, a Arguida, através do seu Ilustre mandatário”, disse e requereu nos seguintes termos:

“A arguida foi confrontada com o requerimento por parte da testemunha por si arrolada, …, requerimento na qual desde logo a mesma pede escusa …

Em face dessa invocação, suscitam-se as maiores duvidas à arguida relativamente à legitimidade desse pedido, desde logo porquanto, o pedido de escusa refere-se a factos, factos esses que a Sr. Dra. … ainda não sabe a que será perguntada, o que acresce que a Sra. Dra. …, já noutro processo de promoção e proteção … que se refere aos menores … elaborou relatórios, com informação que decorre exatamente da sua atividade de acompanhamento psicológico dos menores e nesse conspecto não se vê porquanto o segredo profissional é invocado neste processo quando a mesma testemunha noutro processo noutro Tribunal já elaborou relatórios por escrito obviamente e já prestou informações.

Relativamente à suscitação por parte da mesma testemunha que foi perita noutro processo no Juízo de Família e Menores há que atender que o impedimento do perito prestar testemunho no processo, refere a situações em que a própria pessoa é perita no mesmo processo ao qual é chamada a depor como testemunha e não em outro processo qualquer …

28. Assim, revisitando-se o artigo 135.º do CPP, aí se refere, em primeiro lugar no seu n.º 1, que …

30. É que a testemunha em questão não é médica, mas sim psicóloga, pelo que, salvo o respeito por melhor entendimento diverso, o sigilo a que estaria sujeito não é médico, …

31. Assim, o    segredo profissional   em questão apenas encontraria enquadramento no segmento do n.º 1 do art. 135.º do CPP que menciona “[…] e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo […]

32. No que concerne à actividade profissional de psicólogo, não há, propriamente lei a permitir ou impor tal segredo.

33. No entanto, não se desconhece que foi publicado no “Diário da República”, 2.ª Série, n.º 134, de 13.7.2021, o “Regulamento n.º 637/2021”, que aprova a versão “consolidada” do “Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses”, o qual prevê toda uma secção intitulada “2 — Privacidade e confidencialidade”.

34. No entanto, e salvo o devido respeito, não se pode aceitar a invocação de sigilo profissional por banda da testemunha, nem, muito menos, que este valor sobreleve ao da descoberta da verdade material nos presentes autos, da boa decisão destes e dos direitos da Arguida em requerer o depoimento daquela como meio de prova.

36. Depois, mesmo pretendendo a testemunha invocar a escusa de depoimento em razões de segredo ou confidencialidade profissional, estes apenas são invocáveis relativamente a factos que possam dizer respeito a dados e informações da reserva privada da menor.

37. … a testemunha em questão já elaborou, antes, informações sob a forma de relatório, que resultaram da sua actividade de acompanhamento da menor … e de diálogo com esta, incluindo acerca dos relacionamentos desta com a Arguida (companheira do progenitor pai) e com os progenitores, e aspectos da personalidade da menor atinentes a tais relacionamentos.

43. Pelo que, no caso de se concluir que houve legitimidade do pedido de escusa da testemunha Sra. Dra. …, operando-se a ponderação entre os princípios conflituantes no caso sub judice, sempre se deverá atribuir prevalência ao interesse da descoberta da verdade material e da boa decisão do processo,

44. E, assim, o Venerando Tribunal da Relação decidir pela dispensa do dever de sigilo profissional relativamente ao depoimento da testemunha em apreço.

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            2) O incidente é o próprio. Não há que realizar quaisquer diligências.

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3. Colhidos os vistos, efetuada a conferência, cumpre apreciar e decidir.  

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            B – Apreciando:

A Arguida arrolou na sua Contestação, como testemunha, a Ex.ma Sra. Dra. …, Psicóloga, …

20. Ora, a supra identificada  testemunha, após ser notificada para comparecer em julgamento nessa qualidade, enviou aos autos, em 11.8.2023, um email, no qual menciona que:

Assunto: Pedido de Escusa de Audiência de julgamento

Venho por este meio solicitar escusa de audiência de julgamento referente ao processo comum …, na qual me encontro convocada na qualidade de testemunha.

O meu pedido de escusa apoia-se em princípios éticos e deontológicos da Ordem dos Psicólogos Portugueses, na medida em que acompanho os menores, … em consultas de psicologia, não sendo de todo ético ser testemunha no presente processo.

Mais se informa que sou perita assessora no Tribunal Família de Menores … pelo que não poderei assumir o papel para o qual foi destacada. Acresce, ainda, que o processo em questão ocorreu muito antes do início do acompanhamento psicológico dos menores, pelo que não poderei testemunha algo que não presenciei” …

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Liminarmente, há que salientar que a testemunha em questão não é médica, mas sim psicóloga, pelo que, acompanhando o que consta do requerimento ora em causa, o sigilo profissional que importa apreciar “não é médico, nem é regulado pelos princípios éticos, deontológicos e normas legais atinentes à atividade médica”, pelo que teremos de levar em consideração o segmento do n.º 1, do artigo 135.º do CPP que menciona “… e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo…”

Ora, foi publicado no “Diário da República”, 2.ª Série, n.º 134, de 13.7.2021, o “Regulamento n.º 637/2021”, que aprova a versão do “Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses”, o qual prevê toda uma secção intitulada “2 — Privacidade e confidencialidade”, na qual, como princípio geral, podemos ler: “Os/as psicólogos/as têm a obrigação de assegurar a manutenção da privacidade e confidencialidade de toda a informação a respeito do seu cliente, obtida direta ou indiretamente, incluindo a existência da própria relação, e de conhecer as situações específicas em que a confidencialidade apresenta algumas limitações éticas ou legais.”

Mais, do respetivo ponto 2.14, consta o seguinte:

“2.14 — Situações Legais. Sempre que haja solicitação legal para a divulgação de informação confidencial sobre o cliente (registos, relatórios, outros documentos e ou pareceres), é fornecida a um destinatário específico, apenas a informação relevante para a situação em causa, tendo em conta os objetivos da mesma, podendo haver recusa de partilha de informação considerada não essencial. O cliente é previamente informado desta situação, bem como dos conteúdos da informação a revelar, exceto em situações em que tal for manifestamente impossível. E Caso os/as psicólogos/as considerem que a divulgação de informação confidencial pode ser prejudicial para o seu cliente, podem invocar o direito de escusa (de acordo com o disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal).”

            Assim sendo, é inegável que podem os psicólogos invocar, em determinadas situações, o direito de escusa, para efeitos do disposto no artigo 135.º, do CPP.

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            Resulta do disposto no citado artigo 135.º do CPP, que é de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do meio de prova em causa para a descoberta da verdade.

Afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 492) o seguinte: “cabe ao tribunal superior decidir se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento /informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos”.

Explica Luís Filipe Pires de Sousa (Prova Testemunhal, 2016 – reimpressão, Coimbra, Almedina, p. 246) o seguinte: “A decisão final sobre a justificação da escusa invocada pela testemunha pautar-se-á sempre pelo princípio da proibição do excesso. O segmento da norma do Artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que apela à “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, constitui, de per si, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo”.

Por conseguinte, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação concreta da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade.

No caso presente, é desconhecida a matéria concreta que se pretende provar com o depoimento em causa ou a eventual inexistência de outros meios probatórios, uma vez que não foi indicada, em termos concisos, a factualidade previsivelmente do conhecimento da testemunha e abrangida pelo sigilo profissional, nem qualquer elemento relativo à relevância do depoimento em causa.

Assim sendo, não poderá esta Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional, o qual se não poderá decretar.

Neste sentido, cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 04-03-2015 (relator: o Exmo. Desembargador Vasques Osório), proferido no processo n.º 60/10.6TAMGR-A.C1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se concluiu o seguinte:

“- A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a atuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo; - No requerimento que deu origem ao presente incidente não foram indicados os factos, eventualmente conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de Advogado, suscetíveis de demonstrarem a absoluta necessidade ou imprescindibilidade do seu depoimento; - Por isso, não existe razão objetiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes com os elementos disponíveis, deva ser quebrado aquele segredo”.

Mostrando-se inviável, pelos motivos expostos, o preenchimento dos requisitos de que depende o levantamento do sigilo profissional, cumpre indeferir o incidente, o que não impede a eventual dedução de novo incidente devidamente fundamentado, se assim vier a ser entendido.

Aliás, conforme consta da respetiva ata de audiência de discussão e julgamento (fls. 2 a 11), o Ilustre Defensor Oficioso, no requerimento que fez e que deu origem ao presente incidente, afirma, além do mais, que “o pedido de escusa refere-se a factos, factos esses que a Sra. Dra. … ainda não sabe ao que será perguntada, …

Saliente-se que, na sequência do mencionado requerimento, dada a palavra à Digna magistrada do Ministério Público, esta defendeu que a mencionada testemunha deveria ser convocada para a audiência de discussão e julgamento, para que, e em função das questões que lhe viessem a ser colocadas, pudesse, então, manifestar a sua vontade no sentido de deveria, ou não, invocar o sigilo profissional.

Pois bem, é esse justamente, o caminho a seguir no caso presente.

A testemunha deve comparecer em audiência de discussão e julgamento, de forma a ser inquirida, como é o dever de qualquer testemunha convocada para tanto, podendo o direito de escusa ser invocado, se for caso disso, face a perguntas concretas que demonstrem a imprescindibilidade do depoimento.

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            C - Decisão:

            Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em indeferir o incidente de levantamento do sigilo profissional

            Sem custas.

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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.

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                                                  Coimbra, 8 de novembro 2023

                                                 José Eduardo Martins

                                               Ana Carolina Cardoso

                                                  Isabel Valongo