Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1630/06.2YRCBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA
RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE SENTENÇA
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
NULIDADE
RECUSA
Data do Acordão: 06/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 2º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 35, 41, 42, 227, 236 CC, DL Nº 446/85 DE 25/10, CONVENÇÃO SOBRE RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE SENTENÇAS ARBITRAIS ESTRANGEIRAS, CELEBRADA EM NOVA IORQUE, EM 10 DE JUNHO DE 1958, RATIFICADA PELO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA N.º 52/94, DE 8 DE MAIO, E APROVADA PARA RATIFICAÇÃO PELA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA N.º 37/94, PUBLICADA NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I-SÉRIE-A, N.º 156, DE 8 DE JULHO DE 1994.
Sumário: 1.- A cláusula contratual «Todos os outros termos e condições que não estejam contraditórios ao acima estipulado, serão de acordo com FOSFA 22, com arbitragem em Londres, nos termos do Regulamento 125 da GAFTA», interpretada como prevendo o recurso a tribunal arbitral, em caso de incumprimento do contrato onde está inserida, é qualificável como cláusula contratual geral, nos termos do n.º 3, do artigo 1.º, do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, se a parte que pretende prevalecer-se dela não provar que a mesma resultou de negociação entre as partes.

2.- Face ao teor da norma do referido n.º 3, do artigo 1.º, do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, a lei, ao impor à parte que pretende prevalecer-se da cláusula, o ónus de provar que a mesma resultou de negociação entre as partes, está também a atribuir-lhe a paternidade da cláusula, isto é, a presumir que a cláusula foi proposta precisamente por quem tem o ónus de mostrar que ela resultou de negociação entre as partes.

3.- Declarada inválida tal cláusula, esta decisão implica a recusa, por parte do tribunal nacional, do reconhecimento da decisão arbitral estrangeira, com fundamento no disposto na al. a), do n.º 1, do artigo V, da Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque, em 10 de Junho de 1958, que prevê, como fundamento da recusa de reconhecimento da decisão arbitral estrangeira, a invalidade contratual da cláusula que atribuiu competência a esse tribunal arbitral estrangeiro.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrente…….B (…), Lda., melhor identificada nos autos.

Recorrida………U (…), S. A., melhor identificada nos autos.


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I. Relatório.

a) O presente recurso insere-se num processo cujo objecto consiste na revisão de duas sentenças arbitrais proferidas por um tribunal arbitral inglês (Tribunal Arbitral da GAFTA –The Grain and Feed Trade Association).

A questão fundamental colocada pelos recorrentes à apreciação do tribunal de 1.ª instância, perante o qual foi solicitada a revisão das duas sentenças arbitrais, consistiu em verificar a validade das cláusulas contratuais que previram o recurso à arbitragem e ao abrigo das quais o tribunal arbitral inglês se julgou competente para proferir decisão sobre os casos que lhe foram postos pela recorrida U (…) S. A. (de seguida designada apenas por U(…)).

Com efeito, a recorrente B (…), Lda., (doravante designada apenas por B (…)) sustenta que tal cláusula é uma cláusula contratual geral e, como tal, sujeita ao regime jurídico instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

Como cláusula contratual geral é inválida porque a recorrente B (…)limitou-se a subscrever tal cláusula, sem que tivesse tido efectivo conhecimento do seu teor e alcance, pois não teve qualquer conhecimento acerca da realidade designada por «FOSFA 22» e por «GAFTA 125» mencionadas nessa cláusula, informações só acessíveis através de contacto com as respectivas associações e mediante pagamento.

No final foi proferida decisão com este teor:

«Pelo exposto, mostrando-se verificados os requisitos legais para o efeito, nomeadamente os previstos na aludida Convenção de Nova Iorque de 1958, julgo procedente a pretensão formulada pela requerente, pelo que revejo e confirmo as decisões arbitrais proferidas pelo Tribunal Arbitral da GAFTA-The Grain and Feed Trade Association, respectivamente em 14 de Janeiro de 2005 e 22 de Abril de 2005, melhor descritas nos factos provados 1 e 4 e juntas aos presentes autos a fls. 7 a 68, passando as mesmas a ser plenamente eficazes e exequíveis em Portugal».

Esta decisão baseou-se, no essencial, no entendimento de que a cláusula contratual relativa à resolução do conflito através da arbitragem, no âmbito da GAFTA-The Grain and Feed Trade Association, não era uma cláusula contratual geral, mas sim uma cláusula que resultou da negociação entre ambas as empresas e daí não poder ser afastada do contrato, por aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

b) A recorrente B (…) recorre, em síntese, porque pretende a alteração da matéria de facto declarada provada, justamente na parte em que o tribunal a quo considerou provado que tal cláusula tinha resultado de negociação entre ambas as empresas, devendo-se concluir, segundo ela, em sentido oposto e, sendo assim, tratando-se de uma cláusula contratual geral da autoria da requerente Unifac e cujo conteúdo não foi explicitado à Requerida, tal cláusula tem de ser afastada do contrato, o que implica a queda do fundamento no qual a Requerente se baseou para recorreu à arbitragem, o que implica, consequentemente, a negação pelo tribunal do reconhecimento pedido.

Concluiu assim:

(…)

c) A recorrida U (…) contra-alegou sustentando a manutenção da sentença com fundamento no facto das cláusulas que previram o recurso à arbitragem terem sido negociadas entre as partes, como foi decidido em 1.ª instância.

E, quanto ao desconhecimento do «Regulamento de Arbitragem», sustentou que a recorrente não tem razão porque a própria Barod, em contrato que celebrou com Hana World Waterbank Corp (doc. 3 junto com a oposição), propôs a utilização de tal regulamento.

Concluiu pela improcedência do recurso.

II. Objecto do recurso.

O reconhecimento de sentenças arbitrais em Portugal encontra-se submetido à disciplina da Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque, em 10 de Junho de 1958, ratificada pelo Decreto do presidente da República n.º 52/94, de 8 de Maio, e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 37/94, publicada no Diário da República, I-Série-A, n.º 156, de 8 de Julho de 1994.

Tendo em consideração a problemática suscitada nestes autos, releva para os mesmos o disposto na al. a), do n.º 1, do artigo V da Convenção, onde se dispõe «1- Que o reconhecimento e a execução da sentença só serão recusados, a pedido da Parte contra a qual for invocada, se esta Parte  fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução  forem pedidos a prova: a) Da incapacidade das Partes outorgantes da convenção referida no artigo II, nos termos da lei que lhes é aplicável, ou da invalidade da referida convenção ao abrigo da lei a que as Partes a sujeitaram ou, no caso de omissão quanto à lei aplicável, ao abrigo da lei do país em que for proferida a sentença; …».

As restantes hipóteses de recusa de reconhecimento mencionadas nas alíneas b) a e), do n.º 1 e no n.º 2, do artigo V, da Convenção, não foram invocadas pela requerida B (…).

Sendo assim, as questões de facto e de direito a resolver no presente recurso são apenas as que se prendem com as hipóteses de recusa do reconhecimento e execução da sentença arbitral previstas na Convenção e, de entre estas, as invocadas pela parte interessada, que, como se disse, respeitam apenas à mencionada alínea a), concretamente à invalidade da cláusula contratual onde se previu o recurso à arbitragem, por ofensa, segundo ela, das disposições legais da lei portuguesa sobre cláusulas contratuais gerais.

É sob este pano de fundo que as questões colocadas nas 74 conclusões do recurso têm de ser unificadas, isto é, repete-se, apenas está em causa a apreciação da matéria relativa à recusa de reconhecimento das duas sentenças, por se verificar uma situação de «…invalidade da referida convenção ao abrigo da lei a que as Partes a sujeitaram…», extravasando do âmbito do reconhecimento questões que não digam respeito à cláusula de arbitragem, como é o caso do alegado comportamento doloso da Requerente, no sentido de fazer crer à recorrente que emitiria uma garantia bancária que assegurasse os fornecimentos da mercadoria, o que não fez, tendo em vista provocar um incumprimento da recorrente.

Estas questões nada têm a ver com a validade ou invalidade da cláusula arbitral, sendo, alias, cronologicamente posteriores ao primeiro contrato celebrado.

Vejamos então.

a) A primeira questão é de incidência processual e respeita à produção da prova.

A recorrente alega que requereu a inquirição das testemunhas (…) diligência que não foi admitida, por se ter considerado, em 1.ª instância, que a audição das mesmas não era necessária ao apuramento da materialidade necessária ao julgamento da causa.

A recorrente sustenta que o direito à prova se encontra consagrado constitucionalmente no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, como componente do princípio geral do acesso ao direito e aos tribunais, que a todos é assegurado, para defesa dos seus direitos e interesses, legalmente protegidos.

Por conseguinte, ao não admitir o depoimento das referidas testemunhas, no apontado contexto, a sentença recorrida incorporou o vício de inconstitucionalidade evidenciado com a recusa da produção da sobredita prova, tendo assim violado o preceituado no referido artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.

b) Em segundo lugar, colocam-se as questões relativas à impugnação da matéria de facto.

  São as seguintes:

I - A recorrente pretende a alteração dos factos considerados «provados» sob o n.º 13, para a resposta «não provados».

Sustenta ainda que a resposta à matéria do facto declarado «provado», sob o n.º 15, não deve ser restritiva.

E, por fim, pretende que os factos declarados «não provados» na sentença, sob os números 1, 2, 3 e 4, sejam declarados «provados».

Quanto aos factos do n.º 13 da matéria provada e 1 a 4 da matéria não provada, sustenta que devem ser considerados provados estes factos:

a) O texto dos contratos referidos em 7. e 10. …[textos datados de 01.09.2003 e de 02.01.2004 redigidos em língua inglesa, nos termos dos quais a B (…) vendia à U (…), respetivamente 100.000 e 25.000 toneladas métricas de grão de soja amarelo brasileiro, ao preço de USD 240,00 por tonelada métrica] … foi proposto pela requerente à requerida.

b) Dos referidos textos contratuais consta uma última cláusula, nos seguintes termos: CONTRACT All other terms and conditions, not in contradiction with the above, as per FOSFA 22, with arbitration in London as per GAFTA 125 rules.

Ou, nos termos da tradução certificada, junta à douta petição:

CONTRATO Todos os outros termos e condições que não estejam contraditórios ao acima estipulado, serão de acordo com FOSFA 22, com arbitragem em Londres, nos termos do Regulamento 125 da GAFTA.

c) Estas cláusulas, que remetem para a FOSFA 22 e para a GAFTA 125, não foram objecto de qualquer negociação entre as partes, tendo a requerida se limitado a subscrevê-las.

d) A U (…) não comunicou à B (…) o teor dos formulários ou dos textos para os quais as referidas cláusulas remetiam, ou sequer lhes deu qualquer explicação sobre os mesmos.

e) Aquando da celebração dos acordos, a B (…) desconhecia o teor quer da GAFTA 125, quer da FOSFA 22.

f) Quer a FOSFA 22, quer a GAFTA 125 são instrumentos privados de difícil acesso, sendo necessário para o efeito, contactar as respectivas associações e adquirir, precedendo factura pro forma, os textos respectivos.

II - Quanto aos factos considerados provados sob o n.º 15, entende que deve alterar-se a circunstância de tempo «Nas datas em que foram proferidas as referidas sentenças arbitrais…» para …. «Ao tempo da celebração dos acordos e nas datas em que foram proferidas as sentenças arbitrais referidas, a U (…)c era membro da GAFTA, sendo que a B (…) não o era, nem nunca o foi».

III – A recorrente pretende ainda que os factos a seguir referidos, que diz ter alegado nos artigos 15.º, 16.º, 18.º, 23.º, 25.º a 37.º, 50.º, 52.º, 53.º, 64.º, 65.º e 69.º da oposição, os quais não foram objecto de pronúncia em 1.ª instância, devem, porém, ser considerados «provados».

Tais factos são estes:

a) As partes são empresas portuguesas e os negócios que desenvolveram, ocorreram em Portugal, onde deveriam ser concluídos, com a entrega da mercadoria num porto de Portugal continental;

b) No quadro da relação substantiva ocorrida entre as partes e em questão, nada a Requerente pagou ou despendeu com a Requerida e esta não obteve qualquer receita ou benefício;

c) A Requerida dedicava-se habitualmente à mera intermediação na importação de mercadorias de natureza alimentar, e designadamente ao comércio de azeite e óleos alimentares, em cisternas, enquanto a Requerente era e é, uma união de importadores de matérias primas, experimentada na importação de grandes quantidades de mercadorias, designadamente grão de soja brasileiro.

d) A Requerida desenvolveu diversas diligências com vista a obter a efectiva entrega à Requerente, das quantidades de grão de soja amarelo brasileiro que se propôs obter para esta, tendo suportado as inerentes despesas.

e) Apesar de a requerente não ter prestado a garantia adequada a que se vinculara, para consumar o negócio.

f) Em 23-Set.-2003 foi concluída uma cessão: em decorrência desta, a posição da ora Requerida B (…), derivada do contrato de 1-Set.-2003, era transferida para a HANA World Waterbank Corp (HWWC).

g) A Requerente demandou esta empresa por incumprimento contratual do mesmo fornecimento, em processo autónomo daqueles onde foram proferidas as decisões arbitrais revidendas.

h) Em anexo (A) ao contrato de 23-Set.-2003, foi acordado um “repasse ao contrato de soja em grão de 23/09/2003, entre a B (…)e a HANA World Waterbank Corp pelo qual esta promete à ora Requerida “repassar o valor acordado referente à transferência da operação de venda do produto abaixo identificado...”.

i) Aquando da execução do contrato, o fornecedor brasileiro veio exigir um crédito confirmado, pelo comprador, pelo valor total do contrato (USD $ 24.000.000).

j) A B (…)procurou uma alternativa à referida proposta do fornecedor brasileiro: o contrato continuaria pelas 100.000 Mt, mas o crédito garantido seria aberto apenas para cada embarque (USD $ 6.000.000); após a liquidação, seria aberto outro crédito, sucessivamente e até final.

k) A ora Requerente, U (…), rejeitou a proposta, em declaração dirigida à ora Requerida. 

l) A ora Requerente recusou-se a entregar qualquer garantia bancária ou equivalente, que junto dos bancos permitisse a emissão, por estes, de garantias satisfatórias de pagamento aos fornecedores da mercadoria.

m) A ora Requerente, emitiu declarações de compromisso de pagamento da mercadoria, que simplesmente reproduzem o compromisso de pagamento já assumido com a subscrição dos contratos.

n) Não obstante, a Requerida procurou encontrar soluções para obter o fornecimento da mercadoria à Requerente.

o) Prosseguiram diversos contactos e múltiplas comunicações – entre a ora Requerente, a ora Requerida e a HANA WWC.

p) Perante o contrato de fornecimento de soja inicialmente acordado com a HANNA, a B (…) procurou alternativas.

q) Ocorreram negociações com CORRÊA TRADER, do Rio de Janeiro, que propôs uma venda de grão de soja a USD $ 169,00 o MT.

r) Foi ajustado o frete de um navio destinado a trazer as competentes cargas: a carta partida, relativa ao navio Nogat, data de 4-Dez.-2003.

s) Nesta sequência, foi assinado um acordo com a CORRÊA TRADER: porém, o gerente da CORRÊA TRADER, sofreu um ataque cardíaco, ficando impossibilitado de cumprir o acordado, conforme o comunicado de 9-Dez.-2003.

t) A B (…), tentou, ainda, encontrar um novo fornecedor, mesmo que em condições mais onerosas: veio solicitar, a 29-Dez.-2003, um abaixamento no valor da demurrage.

u) Sem sucesso, apesar dos esforços da Requerida.

v) A carta partida referente ao Nogat foi, nessa data, cancelada, com o armador a protestar pedir compensação pelos danos.

w) A compradora comprometeu-se a entregar à vendedora notas promissórias de garantia do pagamento integral do preço.

x) Tais garantias deveriam ser devolvidas, uma vez efectuado o pagamento.

y) Os acordos em questão foram concluídos, tendo a Requerida e a Requerente conhecimento de que era àquela essencial para a determinação da sua vontade na celebração dos negócios, que as ditas garantias constituíssem documentos bastantes para assegurarem junto da banca, a emissão de garantias bancárias de pagamento aos fornecedores do grão de soja.

z) A requerente nunca entregou à requerida qualquer garantia especial, que tivesse qualquer aptidão para assegurar, designadamente no circuito bancário, o pagamento da mercadoria ao fornecedor estrangeiro.

aa) A U (…) sabia que a B (…) não podia assegurar de modo próprio a emissão de garantia bancária no valor de cerca de USD 24.000.000,00, que assegurasse o pagamento do preço ao exportador, sem que tal garantia não estivesse assegurada, por garantia emitida por sua ordem, enquanto compradora e destinatária da mesma mercadoria.

bb) Como é uso no comércio, quando estão em causa transacções de importação, com o elevado volume de preço que caracteriza aquela em apreço.

cc) E a B (…) nunca assumiria o negócio, sem que o mesmo se estabelecesse nessas circunstâncias.

dd) A Requerente convenceu a Requerida de que emitiria uma garantia adequada ao efeito, mas o certo é que, suportando-se na vacuidade do texto da cláusula que propôs, nunca ofereceu tal garantia adequada, mas antes uma promessa de pagamento que nada acrescenta ao contrato e em nada justifica a estipulada obrigação de restituição após o pagamento do preço.

ee) Visou com esta actuação a Requerente obter uma vantagem à custa da Requerida, assim tendo reunido meios para declarar um incumprimento e submeter a sua apreciação a árbitros designados por si e pela associação de que é associada, com aplicação de regras materiais que lhe proporcionaram vantagem.

c) Em terceiro lugar, colocam-se as seguintes questões de direito.

1 – A primeira questão respeita à definição da lei aplicável ao contrato, à luz da qual se apreciará a validade das respectivas cláusulas.

2 – Em segundo lugar, a recorrente sustenta que a sentença não pode manter-se, na medida em que o ónus da prova quanto à questão de saber se as cláusulas do contrato são ou não são cláusulas contratuais gerais, incide sobre a Requerente/Recorrida e esta não fez tal prova.

Por outro lado, incidia sobre a Requerente a obrigação de informação sobre o conteúdo das cláusulas, sendo a Recorrente credora do correspondente dever.

Ora, a única prova produzida nos autos, e que atrás se identificou, foi no sentido negativo, isto é, de que as cláusulas de remissão para a FOSFA 22 e para a GAFTA 125 não foram objecto de negociação, sendo também certo que a UNIFAC não comunicou à B (…) o sentido dessas cláusulas, designadamente o teor dos textos particulares para os quais remetem.

III. Fundamentação.

A – Questão relativa à produção da prova.

A recorrente sustenta que o direito à prova se encontra consagrado constitucionalmente no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, como componente do princípio geral do acesso ao direito e aos tribunais, que a todos é assegurado, para defesa dos seus direitos e interesses, legalmente protegidos.

E afirma que a rejeição da inquirição, por parte do tribunal, das testemunhas (…), implicou que a sentença recorrida tenha incorporado o vício de inconstitucionalidade evidenciado com a recusa da produção da sobredita prova.

Vejamos então.

Cumpre referir dois aspectos que mostram a improcedência da argumentação adiantada pela recorrente.

Em primeiro lugar, a declaração de inconstitucionalidade versa apenas sobre normas e não sobre decisões.

É o que resulta do disposto no n.º 1, do artigo 277.º, da Constituição da República Portuguesa, onde se proclama que «São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados».

Por conseguinte, a alegação de que a sentença incorporou um vício qualificável como inconstitucionalidade não assume relevo jurídico, pois só releva a identificação de uma norma e a demonstração da sua inconstitucionalidade, situação que não ocorre no caso.

Em segundo lugar, a requerente recorreu do despacho que não admitiu a produção da prova testemunhal requerida.

Sobre tal requerimento recaiu, efectivamente, o despacho de 11 de Julho de 2011, do qual consta:

«Req. de fls. 826: veio a Requerida interpor recurso de agravo do despacho proferido a 04/02/2011, a fls. 823-824, na parte em que se considerou desnecessária a inquirição das duas outras testemunhas indicadas pela Requerida, residentes no Brasil.

Ora, tal despacho foi proferido, como aí é referido, na sequência do despacho proferido a 11/01/2010 (a fls. 804-805), ao abrigo do disposto no art. 1099º, nº 1, 1ª parte, do CPC, o qual estatui que «Findos os articulados e realizadas as diligências que o relator tenha por indispensáveis, (…)».

Tal disposição legal consagra, assim, um poder discricionário ao juiz quanto à determinação da realização das diligências probatórias no processo especial em apreço …».

Este despacho terminou com a decisão de não recebeu o recurso e transitou em julgado.

Por conseguinte, o caso julgado formal (artigo 672.º do Código de Processo Civil) formado no processo, quanto a esta matéria, impede que se volte a suscitar a questão da produção da mencionada prova testemunhal.

Julga-se, por isso, improcedente, esta questão.

B – Matéria de facto impugnada.

(…)


*

Na transcrição da matéria de facto provada que se segue, efectuada a partir da sentença, serão introduzidas as alterações resultantes do acabado de decidir.

C – Matéria de facto provada.

1 – Por sentença de 14 de Janeiro de 2005, proferida pelo Tribunal Arbitral da GAFTA-The Grain and Feed Trade Association, com sede em Londres, foi a requerida B (…), Lda. condenada a pagar à requerente U (…) S.A.:

- a quantia de 9.620.000,00 USD (nove milhões e seiscentos e vinte mil dólares americanos), correspondente na data da propositura da acção (05/04/2006) a €7.888.400,00 (sete milhões, oitocentos e oitenta e oito mil e quatrocentos euros);

- juros sobre este montante à taxa de 5,5% (cinco e meio por cento) por ano, composto de três em três meses, a partir de 3 de Dezembro de 2003 até recepção integral do pagamento;

- as despesas legais razoáveis, incorridas com a apresentação do presente pedido de indemnização;

- os encargos e as despesas inerentes à arbitragem, mais os 100 GBP de preparo para designação de árbitro.

2 - A requerida B (…) foi devida e regularmente citada para esta arbitragem, na qual viria a ser proferida a Sentença arbitral n.º 13-283B, de 14 de Janeiro de 2005, supra referida, mas não interveio na mesma nem nomeou árbitro próprio.

3 - Da sentença arbitral referida em «1» não foi interposto recurso e transitou em julgado.

4 - A requerida B (…) Lda., foi igualmente condenada, por sentença proferida pelo referido Tribunal Arbitral da GAFTA-The Grain and Feed Trade Association, proferida em 22 de Abril de 2005, a pagar à requerente U (…)S.A.:

- a quantia de 3.156.700,00 USD (três milhões e cento e cinquenta e seis mil e setecentos dólares americanos), correspondente na data da propositura da acção (05/04/2006) a € 2.588,494,00 (dois milhões, quinhentos e oitenta e oito mil, quatrocentos e noventa e quatro euros);

- juros sobre o montante de 3.156.700,00 USD à taxa de 5,5% (cinco e meio por cento) por ano, a partir de 14 de Abril de 2004 até à data do recebimento pela UNIFAC do pagamento da indemnização especificada;

- os encargos e as despesas inerentes a esta arbitragem, incluindo o preparo de 100,00 GBP pago pela U (…) quando pediram a designação de um árbitro em nome da B (…)

5 - A requerida B (…) foi devida e regularmente citada para esta arbitragem referida em «4», na qual viria a ser proferida a Sentença arbitral n.º 13-315, de 22 de Abril de 2005, mas não interveio na mesma nem nomeou árbitro próprio.

6 - Da sentença arbitral referida em «4» não foi interposto recurso e transitou em julgado.

7 – Com data de 01 de Setembro de 2003 foi celebrado entre a requerente e a requerida um acordo escrito, em papel com o timbre da B (…), na língua inglesa, através do qual a requerida vendia à requerente 100.000 toneladas métricas de feijão de soja amarelo brasileiro, ao preço de USD $240,00 por tonelada métrica.

8 – No referido acordo consta, para além do mais, uma última cláusula com o seguinte teor, de acordo com a tradução para a língua portuguesa: «CONTRATO Todos os outros termos e condições que não estejam contraditórios ao acima estipulado, serão de acordo com FOSFA 22, com arbitragem em Londres, nos termos do Regulamento 125 da GAFTA».

9 – O acordo referido em «7» foi objecto da referida sentença arbitral de 14/01/2005.

10 - Com data de 02/01/2004 foi celebrado entre a requerente e a requerida um outro acordo escrito, em papel com o timbre da B (…), na língua inglesa, através do qual a requerida vendia à requerente 25.000 toneladas métricas de feijão de soja amarelo brasileiro, ao preço de USD $240,00 por tonelada métrica.

11 – No acordo referido no facto anterior consta, para além do mais, uma última cláusula com o seguinte teor, de acordo com a tradução para a língua portuguesa:

«CONTRATO. Todos os outros termos e condições que não estejam contraditórios ao acima estipulado, serão de acordo com FOSFA 22, com arbitragem em Londres, nos termos do Regulamento 125 da GAFTA».

12 – O acordo referido em «10» foi objecto da referida sentença arbitral de 22/04/2005.

13 – O texto inicial dos acordos referidos em 7 e 10 foi proposto e enviado pela requerente U (…) à requerida B (…), para esta o analisar e propor alterações, tendo a B (…)remetido à Requerente este texto contratual assinado por si, o qual foi depois também assinado pela Requerente, apenas amputado ou acrescentado em relação ao texto remetido pela Requerente, das seguintes palavras ou segmentos de texto:

a) No que respeita ao contrato de 1 de Setembro de 2003:

Amputado de «Insurance Policy Certificate» e «FGIS Certificate(s)» que constavam da cláusula intitulada «DOCUMENTS»;

Amputado de «Final at discharge or…», «All final at discharge or…» e «Final at discharge or…» que figuravam nas cláusulas intituladas, respectivamente, «WEIGHT», «QUALITY» e «SAMPLING AND ANALYSIS»;

Amputado da segunda alternativa iniciada pelas palavras «USD 243.00 per Mt…» mencionada na cláusula intitulada «PRICE»;

Amputado da sigla «C.I.F» mencionada na cláusula intitulada «PARITY», designação substituída no contrato por «C&F»;

Amputado de «Insurance Policy Certificate» e «FGIS Certificate(s)» que constavam da cláusula intitulada «DOCUMENTS»;

b) No que respeita ao contrato de 2 de Janeiro de 2004:

Acrescentado de «2004» na cláusula intitulada «COMMODITY SPECIFICATIONS»;

Alterado na sua totalidade quanto à cláusula «CUANTITY»;

Substituição na cláusula intitulada «WEIGHT» do texto proposto «Final at discharge or at loading from vessel/barges as per certificate issued by first class control entity, at buyer´s option and account » pelo texto « Final at loading as per certificate issued by first class control entity, at Buyers option and account»;

Amputado de «All… at discharge or…» e «…discharge or…» e acrescentado de «…on the vessel…» , na cláusula intitulada «QUALITY»;

Amputado de «…at discharge or…» na cláusula intitulada «SAMPLING AND ANALYSIS»;

Amputado da cláusula intitulada «SURVEYING AT LOADING» na sua totalidade;

Acrescentado de «C&F LISBON» na cláusula intitulada «PRICE»;

Amputado da segunda alternativa iniciada pelas palavras «USD 243.00 per Mt…» mencionada na cláusula intitulada «PRICE»;

Substituição do primeiro e segundo parágrafos da cláusula intitulada «PARITY» em que o texto proposto foi «C.I.F. Free Out Lisbon, Portugal;

Discharge port can be Setubal by agreement between sellers and buyers if carrying vessel is suitable to (L.O.A. max. 205  metres and draught max 10 metres)» pelo texto «C&F free out, Lisbon or Setubal ports (Portugal) to be declared  by buyer till five days before ETA Portugal»;

Substituição da parte final do texto da cláusula intitulada «INSURANCE» em que o texto proposto foi «…a first class E.U. or Switzerland Insurence Company previous accepted by buyers», por «Companhia de Seguros Fidelidade».

Acrescentado de «…and to be accepted by buyer» na parte final da cláusula proposta denominada «TYPE OF VESSEL»;

Substituição no primeiro parágrafo do texto da cláusula intitulada «PAYMENT» das palavras «…in Portugal, to be declared by Unifac…» pelas palavras «…to be declared by Buyer…»;

Acrescentado de «4 (four)» no primeiro item da cláusula intitulada «DOCUMENTS»;

Amputado de «US Analysis and Certificate(s) of Quality», «Insurance Policy Certificate» e «FGIS Certificate(s)» que constavam da cláusula intitulada «DOCUMENTS»;

Amputado da cláusula intitulada «PERFOMANCE BOND»;

Acrescentado de «…sent… any of the parts…/fax or e-mail…» no terceiro item da cláusula intitulada «OTHER CONDITIONS».

14 – Através de e-mail enviado a 22/10/2003, às 16,09 horas a requerida comunica à requerente, para além do mais, o seguinte: «Deste modo sugiro que avance com o processo junto da Gafta, com a possibilidade de, no desenrolar dos acontecimentos se poder suspender a acção, caso se concretize o fornecimento por parte da Hana».

15 – Nas datas em que foram proferidas as referidas sentenças arbitrais a Unifac era membro da GAFTA e a Barod não o era, nem nunca o foi.

D – Restantes questões objecto do recurso.

1 – A primeira questão que se coloca consiste em saber qual a lei aplicável para efeitos de averiguar da validade das cláusulas em questão.

Sobre esta matéria é de considerar que nem se trata de uma questão sobre a qual haja litígio, pois ambas as partes apontam para a lei portuguesa como a aplicável ao contrato.

Nem pode ser de outra forma, pois as partes são empresas portuguesas, têm a sede em Portugal e o contrato foi celebrado em Portugal, sendo o lugar do cumprimento também em Portugal.

Não há, pois, quanto à formação do contrato, conexão com qualquer outra ordem jurídica.

Assim, é à luz da lei portuguesa que tem de ser analisada a questão da eficácia da aludida cláusula contratual (artigos 41.º, n.º 1, 42.º, n.º1 e 35.º, n.º1, todos do Código Civil).

Passando à questão seguinte.

2 – A segunda questão consiste em saber se a cláusula «All other terms and conditions, not in contradiction with the above, as per FOSFA 22, with arbitration in London as per GAFTA 125 rules» («Todos os outros termos e condições que não estejam contraditórios ao acima estipulado, serão de acordo com FOSFA 22, com arbitragem em Londres, nos termos do Regulamento 125 da GAFTA»), que consta de ambos os contratos, é uma cláusula contratual geral.

A resposta é afirmativa.

Com efeito, como resulta do facto provado n.º 13 «O texto inicial dos acordos referidos em «7» e «10» foi proposto e enviado pela Requerente à requerida Barod, para esta o analisar e propor alterações…».

As alterações propostas pela Barod foram as indicadas no facto provado n.º13, entre as quais não se encontra a cláusula em questão, que é a última, quer no «contrato modelo» proposto pela Unifac, quer em ambos os contratos depois firmados entre as partes.

Ora, tal cláusula (reproduzida em ambos os contratos) «All other terms and conditions, not in contradiction with the above, as per FOSFA 22, with arbitration in London as per GAFTA 125 rules») não foi objecto de quaisquer alterações por parte da B (…) o que significa que a aceitou, em ambos os contratos, tal qual lhe foi proposta pela U (…) o mesmo é dizer, não resultou, em ambos os contratos de negociação prévia entre B (…) e U (…)

Chegava-se à mesma conclusão pela aplicação da regra do ónus da prova que consta do n.º 3, do artigo 1.º, do RCCG, onde se dispõe que «O ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo».

Por conseguinte, mesmo que não se tivesse provado que a cláusula em causa, constante de ambos os contratos, tinha sido subscrita sem ter existido negociação prévia sobre ela, a regra do ónus da prova que incide sobre a Unifac e que esta não superou, levaria à conclusão de que tal cláusula não tinha sido objecto de negociação prévia.

Estamos, pois, perante uma cláusula contratual geral que cai sob a alçada normativa do RCCG aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

Vejamos agora a questão seguinte.

3 – A recorrente B (…) sustenta que incidia sobre a requerente U (…) o dever de informação sobre o conteúdo da cláusula relativa à arbitragem, sendo certo, diz, que a U (…) não comunicou à B (…) o sentido dessa cláusula, designadamente o teor dos textos particulares para os quais remetia.

Ou seja, a B (…) pretende o afastamento de tal cláusula, em ambos os contratos, com base no argumento de que a U (…) não a informou dos «textos» para a qual tal cláusula remetia.

Vejamos mais de perto.

Na cláusula diz-se: «Todos os outros termos e condições que não estejam contraditórios ao acima estipulado, serão de acordo com FOSFA 22, com arbitragem em Londres, nos termos do Regulamento 125 da GAFTA».

Aparentemente esta cláusula contém alguma opacidade no que respeita à visualização e compreensão do seu alcance.

Pergunta-se, então: o que é que um declaratário normal, nos termos do artigo 236.º do Código Civil, colocado na posição da B(…), teria entendido ao ler esta cláusula?

Entenderia, sem esforço, que havia referência a uma «arbitragem em Londres».

Mas, uma arbitragem em Londres a respeito de quê?

Pela análise gramatical e semântica das palavras, concluiria que a arbitragem em Londres se referia a «Todos os outros termos e condições que não estejam contraditórios ao acima estipulado».

O que seriam os outros «termos e condições»?

Aparentemente seriam cláusulas não previstas no contrato, a incluir supletivamente ou por integração, pois só outras cláusulas poderiam entrar em contradição com o «acima estipulado», isto é, com as outras cláusulas, no caso, com «as cláusulas acima estipuladas», que são as cláusulas redigidas no contrato.

Seria isto que o declaratário entenderia numa primeira fase.

Só num segundo momento o declaratário normal colocaria a hipótese de vir a existir um conflito relativo ao cumprimento do contrato e se interrogaria se tal hipótese caberia ainda na letra da cláusula em questão.

Quanto à resposta a tal interrogação, a U (…) responderia «sim», pois o sentido que lhe atribui consiste na previsão do recurso à arbitragem em Londres, a efectuar pela GAFTA, de acordo com o seu Regulamento 125, em caso de incumprimento do contrato, para efeitos de atribuição de indemnização à parte credora.

Vejamos, então, se, tomando a perspectiva da B (…) esta chegaria à mesma resposta, acaso se interrogasse sobre se o eventual incumprimento do contrato estaria abrangido na mencionada cláusula (a última em ambos os contratos).

Ora, ao ler «Todos os outros termos e condições» entenderia «tudo o que não constar do texto contratual»;

 Depois, ao ler «que não estejam contraditórios ao acima estipulado», perceberia «e não contrarie o que se encontra previsto no contrato»;

Ao ler «serão de acordo com FOSFA 22…», entenderia «ficam sujeitos a «FOSFA 22»;

E «com arbitragem em Londres, nos termos do Regulamento 125 da GAFTA» perceberia que «haveria arbitragem em Londres e seria efectuada nos termos do Regulamento 125 da GAFTA».

Por conseguinte, um declaratário normal colocado na posição da Barod, após leitura da cláusula e num segundo momento integrado por alguma reflexão, perceberia o seguinte a respeito dessa última cláusula:

«Tudo o que não constar do texto contratual e não contrariar o que se encontra previsto no contrato, fica sujeito a FOSFA 22 e haverá arbitragem em Londres a qual será efectuada nos termos do Regulamento 125 da GAFTA».

É de concluir, pois, que a letra da cláusula comporta o sentido que a U (…)c lhe atribui, isto é, em caso de incumprimento (cláusula omissa), haverá recurso a arbitragem.

Mas, apesar da letra da lei comportar este sentido, tal não equivale a afirmar que tal sentido era percebido por um declaratário normal colocado na posição da Barod, ou seja, que esse declaratário se apercebesse que em caso de incumprimento contratual por alguma das partes a decisão seria tomada por arbitragem.

É que, quando as partes assinam um contrato, não estão a pensar, em regra, em não o cumprir, mas sim em cumpri-lo, pelo que a previsão da arbitragem poderia não ser ligada pela B (…) a uma hipótese de incumprimento, mas sim a qualquer outra situação contratual que a mesma poderia nem vislumbrar no momento.

Mas se foi assim ou não foi que os factos se passaram nesta parte, tendo em conta a posição subjectiva da B (…), não é possível saber.

Porém, como se disse, o teor literal da cláusula comporta o recurso à arbitragem em caso de incumprimento.

Continuando.

Um declaratário normal, colocado na posição da B (…), se continuasse a reflectir sobre o alcance da cláusula em questão, deparar-se-ia com esta questão: «O que é FOSFA 22? O que é Regulamento 125? O que é GAFTA?».

Ora, se o declaratário não soubesse antecipadamente o que significavam estas palavras ou siglas, ficava com um défice de informação que não lhe permitiria antecipar o que poderia acontecer em caso de incumprimento contratual, quer da sua parte, quer da parte contrária, caso colocasse a questão de tal cláusula se aplicar a situações de incumprimento do contrato que assinou com a intenção de cumprir.

No caso dos autos, não há qualquer prova de que a B (…) soubesse, antecipadamente, o que significavam as expressões ou siglas «FOSFA 22», «Regulamento 125» e «GAFTA».

É aqui que se surge a questão da relevância da aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais ao caso.

Ou seja: o facto de não existir prova de que a recorrente B (…) conhecesse o significado das expressões ou siglas «FOSFA 22», «Regulamento 125» e «GAFTA», constantes da indicada cláusula contratual, existente em ambos os contratos, com a mesma redacção, sendo, como já se concluiu, uma cláusula contratual geral, tem alguma relevância face ao regime das cláusulas contratuais gerais?

Antes de responder, cumpre indicar alguns aspectos justificativos da existência do regime das cláusulas contratuais gerais.

Como é do conhecimento jurídico comum, as relações comerciais, em especial as ligadas ao consumo de bens e serviços, atingiram na última metade do século XX um tal volume que se tornou impossível, em numerosos domínio da actividade comercial, celebrar contratos segundo o paradigma contratual que se encontra previsto no Código Civil, isto é, precedido de negociações demoradas e completas sobre todas as cláusulas que vêm a figurar no contrato, tal como, de alguma forma, resulta do disposto no artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil, onde se dispõe que «Quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte».

Este estádio prévio ao contrato, durante o qual as partes «se sentam à mesa das negociações» e analisam conjuntamente todos os pontos do contrato e este vem a ser o resultado da fusão de ambas as vontades, embora com cedências de parte a parte ou só de uma parte, tornou-se inviável quando as empresas tiveram de celebrar centenas ou milhares de contratos em curtos espaços de tempo ([1]).

Por outro lado, uma empresa não seria eficiente de tivesse em relação ao mesmo tipo de bem ou serviço que fornece, contratos com uma multiplicidade e diversidade de cláusulas, todos eles a regular um mesmo tipo de matéria contratual, consoante a individualidade de cada cliente.

Nestes casos, por imperativos de eficiência económica, tornou-se necessário estabelecer padrões contratuais iguais para todos os clientes.

As centenas ou milhares de contratos ficarão reduzidos, do ponto de vista da sua normatividade e interpretação, a um único contrato padrão, susceptível de ser reproduzido em massa apesar da diversidade dos clientes.

Nos futuros contratos individuais apenas variará o nome do cliente/contraente e, eventualmente, o quantitativo da prestação monetária a pagar por parte do aderente.

Porque a realidade é assim, a realidade impôs-se ao direito e o direito teve de a aceitar e regular tal como ela se lhe apresentou.

Claro está que este novo tipo de prática contratual gerou e gera inúmeros problemas, pois tende a favorecer o autor do contrato e a prejudicar aquele que não tem qualquer poder no sentido de ditar o teor das cláusulas contratuais, isto é, o aderente.

A este respeito o ANTÓNIO PINTO MONTEIRO diz-nos que «Esses problemas são fundamentalmente, de três ordens: no plano da formação do contrato, aumentam consideravelmente o risco de o aderente desconhecer cláusulas que vão fazer parte do contrato; no plano do conteúdo, favorecem a inserção de cláusulas abusivas; no plano processual, mostram a inadequação e insuficiência do normal controlo judiciário, que actua a posteriori, depende da iniciativa processual do lesado e tem os seus efeitos circunscritos ao caso concreto.

Em face disto, um controlo eficaz terá de actuar em três direcções: pela consagração de medidas destinadas a obter, em cada contrato que se venha a concluir, um efectivo e real acordo sobre todos os aspectos da regulamentação contratual; pela proibição de cláusulas abusivas; e pela atribuição de legitimidade processual activa a certas instituições (como o Ministério Público) ou organizações (como as associações de defesa do consumidor) para desencadearem um controlo preventivo (que além de permitir superar a habitual inércia do aderente se mostra bem mais adequado à generalidade e indeterminação que caracteriza este processo negocial), isto é, um controlo sobre as “condições gerais” antes e independentemente de já haver sido celebrado um qualquer contrato» ([2]).

No caso dos autos, a questão que acima ficou identificada prende-se com o primeiro aspecto considerado, ou seja, com a obtenção de um efectivo e real acordo sobre todos os aspectos da regulamentação contratual.

Na verdade, uma cláusula para obrigar as partes tem de ser o resultado de um consenso sobre o seu conteúdo, o que implica que a parte que não a elaborou careça de, pelo menos, conhecer o seu conteúdo, pois se isso não acontecer não se pode afirmar que houve consenso acerca dela e não havendo consenso não se pode falar de contrato, pelo menos nessa parte.

Este consenso, claro está, não significa apenas acordo do aderente quanto às vantagens que o contrato lhe traz, mas também relativamente às desvantagens que ele acarreta.

O que releva é, como se disse, o acordo quanto a umas e outras; um acordo em que o aderente tem conhecimento do conteúdo de cada cláusula.

A pergunta que se coloca, então, no presente caso, é esta:

A obtenção de um efectivo e real acordo pressupunha que o B (…) soubesse o que eram «FOSFA 22», «Regulamento 125» e «GAFTA»?

Verifica-se que o contrato não presta esta informação e nada nos autos indica que a B (…) soubesse o significado de tais expressões ou siglas.

Qual a importância deste conhecimento/desconhecimento?

A relevância é esta:

Em caso de eventual incumprimento e na ausência de consenso sobre a indemnização, a cláusula diz que a indemnização não seria estabelecida pelos tribunais portugueses, nem de acordo com a lei portuguesa, mas sim fixada na cidade de Londres, por um tribunal arbitral inglês, identificado como GAFTA –The Grain and Feed Trade Association, e segundo as regras jurídicas estabelecidas no «Regulamento 125» da GAFTA.

Ora, não ter informação sobre a entidade que iria exercer a arbitragem, para além do seu nome, e sobre as regras aplicáveis à determinação da indemnização em caso de incumprimento, representam, no momento da assinatura do contrato, uma informação que podia ter influído na decisão de contratar, no todo ou noutros termos.

Com efeito, a parte que colocasse a hipótese de querer cumprir, mas admitisse a possibilidade de poder vir a não cumprir, muito embora sem qualquer culpa sua, poderia não querer contratar se um determinado regulamento de arbitragem previsse, por exemplo, indemnizações em qualquer caso de incumprimento, inclusive não imputável a culpa do faltoso.

Verifica-se, por conseguinte, que a cláusula aqui em análise remete para um regulamento de arbitragem, certamente composto por inúmeras outras cláusulas, cujo conteúdo foi desconhecido da B (…) quando assinou o contrato, mas que em caso de incumprimento determinaria a forma processual e substantiva de chegar à respectiva indemnização.

Daí que tal informação seja de considerar relevante para a tomada da decisão de contratar e devesse ter sido transmitida pela U (…) à B (…)antes da assinatura do contrato e não o foi.

Vejamos agora a relevância desta situação face ao regime das cláusulas contratuais gerais.

Sobre esta matéria, o n.º 1, do artigo 6.º, do RCCG, dispõe que «O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique» e na al. b), do artigo 8.º, do mesmo diploma determina-se que se consideram «…excluídas dos contratos singulares: a)... ; b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo».

Ora, já se deixou demonstrado que a B (…)carecia de ser informada pela Unifac sobre o que significavam as palavras ou siglas «FOSFA 22», «Regulamento 125» e «GAFTA», que constavam da dita cláusula.

Não o tendo sido, a U (…) não cumpriu o dever imposto pelo mencionado artigo 6.º do RCCG e a sanção é a exclusão de tal cláusula de ambos os contratos ([3]).

Excluída tal cláusula dos contratos, cumpre ter em consideração o disposto no n.º 1, do artigo 9.º, do RCCG, onde se determina: «… os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos».

É o caso.

Desaparecendo as cláusulas em questão, o litígio, na falta de consenso das partes acerca da sua resolução, terá de ser dirimido pelos tribunais portugueses.

Esta conclusão implica a recusa do reconhecimento das duas decisões arbitrais, com fundamento, precisamente, no disposto na al. a), do n.º 1, do artigo V, da Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque, em 10 de Junho de 1958, ao qual já acima se aludiu.


*

Coloca-se, porém, ainda uma questão, referida pela recorrida nas contra-alegações, e que é esta: há um terceiro contrato onde também se prevê o recurso à arbitragem.

Com efeito, existe também o contrato celebrado em 23 de Setembro de 2003, entre a Hana Word Waterbak Corp, a Barod e a Unifac, contrato este que vem mencionado na decisão arbitral que recaiu sobre o primeiro contrato celebrado em 01 de Setembro de 2003.

Neste terceiro contrato existe uma cláusula, com o n.º 15, semelhante a esta cláusula comum a ambos os contratos, que vem sendo analisada.

A relevância desta questão consiste no seguinte:

A competência arbitral atribuída à entidade arbitral GAFTA deriva não só do contrato celebrado em 01 de Setembro de 2003, cuja cláusula, já se viu, deve ser excluída, como também do contrato celebrado em 23 de Setembro de 2003.

Sendo assim, como é, coloca-se a questão de saber se a cláusula arbitral constante do contrato celebrado em 23 de Setembro de 2003 é válida ou não é face à argumentação que acabou de ser exposta, pois, se for válida, não há razão para negar a competência ao tribunal arbitral quanto ao primeiro contrato.

Vejamos.

A resposta a esta questão consiste em afirmar que este segundo contrato não altera a conclusão geral a que já se chegou.

Com efeito, no cabeçalho deste outro contrato, antes da redacção da primeira cláusula, consta o seguinte:

«O presente contrato resulta da transferência do contrato n.º 6034/011, datado de 1 de Setembro de 2003, entre B (…)Lda., e  U (…) S.A….» (cfr. tradução de fls.241).

Não é viável concluir, por isso, que a cláusula de arbitragem existente neste contrato, de 23 de Setembro de 2003, foi proposta pela B(…) à U (…).

Verifica-se, por conseguinte, que este contrato reproduz, nesta parte, o anterior,  celebrado em 1 de Setembro de 2003 e nada mostra que a B (…) tivesse ficado mais esclarecida em relação ao significado das expressões ou siglas «FOSFA 22», «Regulamento 125» e «GAFTA».

Seja como for, caso não se aceite esta conclusão, prevalecendo-se a Recorrida desta cláusula, então, face à aplicação da regra que consta do n.º 3, do artigo 1.º, do RCCG, onde se dispõe que «O ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo», incumbia-lhe provar que a cláusula resultou de negociação entre as partes, sob pena de se considerar uma cláusula contratual geral.

Porém, como tal facto (negociação prévia) não se encontra provado, tem de se considerar que esta cláusula foi também subscrita pela B (…) sem ter existido negociação prévia sobre ela, ou seja, é uma cláusula contratual geral.

Esta afirmação não permite responder à pergunta: mas, afinal, quem propôs a cláusula a quem? A cláusula foi proposta pela B (…)? Se foi, pode agora ela invocar a falta de dever de informação por parte da U(…)?

Ora, face ao teor da norma do referido n.º 3, do artigo 1.º, do RCCG, tem de se considerar que a lei, ao impor à parte que pretende prevalecer-se da cláusula, o ónus de provar que a mesma resultou de negociação entre as partes, está também a atribuir-lhe a paternidade da cláusula, isto é, está a presumir que a cláusula foi proposta precisamente por quem tem o ónus de mostrar que ela resultou de negociação entre as partes.

Claro está que, caso a parte que pretende prevalecer-se da cláusula prove que a cláusula foi proposta pela outra parte, cumpre automaticamente, o mencionado ónus.

Colocam-se, pois, em relação a esta cláusula do contrato celebrado em 23 de Setembro de 2003, as mesmas questões que se colocaram antes quanto às outras duas cláusulas, iguais na sua redacção, constantes dos outros dois contratos.

Era essencial para a B (…) conhecer o teor de tal cláusula.

Ora, como \já se deixou referido, a B (…) carecia de ser informada pela U (…) sobre o que significavam ou eram as palavras ou siglas «FOSFA 22», «Regulamento 125» e «GAFTA» que constavam da dita cláusula.

Não o tendo sido, a U (…) não cumpriu o dever imposto pelo mencionado artigo 6.º do RCCG e a sanção é também a exclusão de tal cláusula deste contrato onde intervém a empresa Hana Word Waterbak Corp como vendedora.

Ora, concluindo-se pela supressão de tal cláusula de todos os três contratos, isso implica que tenha de se negar o reconhecimento das sentenças arbitrais, uma vez que é suprimida a cláusula contratual que atribuía competência ao tribunal arbitral para dirimir o conflito resultante do alegado incumprimento do contrato.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e decide-se nega-se o reconhecimento das duas sentenças arbitrais.

Custas pela Requerente.


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 Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura



[1] «…os negócios formam-se e executam-se a um ritmo de todo incompatível com um esquema negocial que faculte aos intervenientes um consciente exercício das suas liberdades de celebração e de estipulação» - Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil, I, tomo I, pág. 597, pág. 597.
Diz ainda este autor que «A manutenção efectiva de negociações pré-contratuais em todos os contratos iria provocar um retrocesso na actividade jurídico-económica em geral. A quebra nos mais diversos sectores da actividade seria inimaginável, pois a rapidez e a normalização seriam postas em crise. Todos seriam prejudicados. Verifica-se ainda que certos sectores económicos só funcionam na base dos grandes números: pense-se nos seguros ou na banca. Para que possam ser feitos cálculos de risco, é necessário que todos os contratos tenham a mesma configuração. As cláusulas contratuais gerais são, aí, ontologicamente necessárias, além de quanto foi dito.
As cláusulas contratuais gerais devem, pois, manter-se, por necessidade» - ob. cit. pág. 600.
[2]  O Novo Regime Jurídico dos Contratos de Adesão/Cláusulas Contratuais Gerais. Separata da Revista da Ordem dos Advogados, ano 62, I. Lisboa, Janeiro de 2002, pág. 8-9.
[3] Neste sentido o Parecer junto aos autos de António Menezes Cordeiro/Carlos Lacerda Barata, «A presença, num contrato celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais, de dispositivos que não tenham sido devidamente comunicados ou informados não corresponde ao consenso real das partes: ninguém pode dar o seu consentimento ao que, de facto, não conheça ou não entenda» -  pág. 72 do respectivo texto.