Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
75/21.9T8IDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ABUSO DO DIREITO
SUJEITOS DA AÇÃO DE PREFERÊNCIA
CÔNJUGE DO ADQUIRENTE
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE IDANHA-A-NOVA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 334.º E 1410.º DO CÓDIGO CIVIL E 34.º DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL
Sumário:
I – O incumprimento definitivo da obrigação de preferência, confere ao preferente preterido meios de tutela que, no caso em que existiu já alienação do objecto sobre que incide o direito da preferência, consiste na acção de preferência prevista no art. 1410º do CC.

II – Visa esta acção de preferência colocar o preferente na posição do adquirente, com efeitos à data da celebração do negócio em relação ao qual se verificou a violação da preferência, tudo se processando como se o negócio tivesse sido originariamente celebrado entre o preferente e o alienante.

III – O efeito do exercício da preferência não é a aquisição de um ius in re, mas sim a aquisição da qualidade de parte ou sujeito de determinado contrato, por via do qual se adquire a posição real sobre a coisa alienada.

IV – São, assim, titulares da relação controvertida na acção de preferência o titular do direito preterido, o obrigado à preferência e o(s) terceiro(s) adquirente(s) do imóvel objecto da preferência.

V – A intervenção do adquirente justifica-se, não para defesa do seu direito de propriedade, mas para defesa da sua posição contratual como adquirente do imóvel objecto da preferência.

VI – Nesta medida, o cônjuge do adquirente do imóvel objecto de preferência, não interveniente no contrato de aquisição não tem de ser demandado na acção de preferência, para que a decisão nela proferida lhe seja oponível.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
SUMÁRIO ELABORADO PELO RELATOR (ARTº 663 Nº 7 do C.P.C.)

(…)


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Proc. Nº 75/21.9T8IDN -C1-Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco - Juízo de Competência Genérica ....

Recorrente: AA

Recorrido: BB

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Sílvia Pires

                                        Luís Manuel Carvalho Ricardo


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Acordam os Juízes da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de COIMBRA



RELATÓRIO

 AA, casada sob o regime de comunhão de adquiridos com CC, veio intentar acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, peticionando a procedência da acção e, nesse sequência:

a) ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição feito na Conservatória do Registo Predial ... em benefício do Réu, com AP. ...08 de 20/10/2020, na descrição predial sob o número 1184 da Conservatória do Registo Predial ..., bem como qualquer outro registo feito posteriormente, quanto ao prédio identificado em 3) da petição inicial, devendo ser reposta a inscrição do direito de propriedade a favor da Autora;

b) o réu ser condenado a reconhecer a existência do direito de propriedade da autora;

c) o reu ser condenado a abster-se de, por qualquer meio, impedir ou perturbar a autora no seu direito.

Para o efeito, alega, em síntese, que é proprietária e legítima possuidora do prédio rústico, sito em ..., adquirido por compra pelo seu cônjuge CC, pelo preço de 7.500,00, e que após essa aquisição passou a integrar o acervo patrimonial comum do casal.

Ocorre que intentada acção de preferência pelo ora R. que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., sob o n.º de processo 27/19...., já com sentença transitada em julgado, foi considerado violado o direito de preferência do ora R. e nessa medida proferida decisão de substituição do aí R., CC, pelo ali A., BB, na qualidade de comprador do aludido prédio, passando este a ocupar o lugar daquele, bem como ordenou-se o cancelamento do registo de aquisição feito na Conservatória do Registo Predial ... em benefício do ali R. CC, bem como qualquer outro registo feito posteriormente, quanto ao referido prédio.

Alega que nunca foi demandada na referida acção judicial, pelo que a decisão proferida no processo n.º 27/19.... é ineficaz contra a autora, sendo o registo provisório que foi convertido em definitivo pela AP. ...08 de 20 de Outubro de 2020, nulo na parte em que agride o direito da autora.

Requereu a intervenção provocada de CC.


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Regularmente citado, o R. deduziu contestação alegando que a A. sempre soube que não tinha sido demandada na acção de preferência com o número de processo 27/19...., não tendo suscitado a sua intervenção e que apenas após ter sido dado provimento à acção de preferência, veio a autora suscitar a questão de não ter sido demandada na acção de preferência, o que integra a excepção de abuso de direito e revela a sua má fé processual, pelo que peticiona a sua condenação em multa e indemnização de valor não inferior a €2.500,00.

Invocou, ainda, a excepção de autoridade de caso julgado, sustentando que em sede de despacho saneador proferido no âmbito da acção de preferência em causa, se considerou a instância regular, sem quaisquer excepções dilatórias que cumprisse conhecer e se declarou a legitimidade das partes. Defende, desse modo, que por decisões judiciais transitadas em julgado ficou decidido e assente não existir nenhuma causa de ilegitimidade passiva por preterição de qualquer tipo de litisconsórcio, pelo que se encontra o tribunal impedido de proferir nova decisão sobre a matéria.

Alega, ainda, que uma acção de preferência gera efeitos substantivos que retroagem à data em que o facto ilícito foi praticado, sendo o facto ilícito a preclusão do direito de preferência do proprietário confinante, pelo que a A. não seria parte legítima, pois que a mesma nunca foi proprietária, nem sequer possuidora, do prédio.

Formula, por último pedido reconvencional, peticionando que, em caso de procedência da acção, seja a A. condenada a pagar-lhe o valor total de €6.620,20 despendido por si com a preparação deste prédio para cultivo.


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A A. apresentou réplica na qual impugnou as excepções em causa e os factos constantes da reconvenção.

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Após, admitida a intervenção de CC, foi proferido despacho saneador que fixou o valor da causa, admitiu a reconvenção deduzida pelo réu, conheceu da excepção de autoridade de caso julgado, relegando para sede de sentença a apreciação da invocação do abuso de direito e da litigância de má-fé.

Foi fixado o objecto do litígio e indicados os temas da prova.


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Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o R. do pedido, julgando igualmente improcedente o pedido de condenação da A. como litigante de má fé e a absolveu desse pedido.

 


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Inconformado com esta decisão, impetrou a A. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

(…).

67. Em suma, em forma de conclusão, a recorrente não agiu, nem age, fora dos parâmetros da boa-fé, nem contribuiu para um exercício abusivo do direito.

68. Nestes termos, deve a douta Sentença ser anulada e substituída por douto Acórdão que julgue a ação procedente por provada, com as suas legais consequências.

69. A douta Sentença violou os artigos: 2.º, 18.º, 62.º, 203.º da Constituição da Républica Portuguesa, os artigos do 34.º, 615.º, n.º 1, als. b), c) e d), do Cód. Proc. Civil, o artigo 16.º, al. b), Cód. de Registo Predial e, por fim, o artigo 334.º do Cód. Civil.

Assim decidindo, farão V. Exªs. Exmºs. Senhores Drs. Juízes Desembargadores a costumada, devida e merecida JUSTIÇA.”


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Foram interpostas contra-alegações pelo R., com ampliação do objecto de recurso, tendo concluído da seguinte forma:

(…).


***


Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, as questões que se impõe decidir, são as seguintes:
a) Se a sentença enferma de nulidade por falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão (artº 615 nº1, b) e c), do C.P.C.).
b) Se o entendimento vertido nesta sentença, é inconstitucional por:
· Violação do princípio da protecção da confiança;
· Violação do princípio da indefesa;
· Violação do princípio da defesa do direito de propriedade;
c) Se inexiste abuso de direito da A.
d) Na ampliação do objecto de recurso:
· Se a decisão proferida na acção de preferência é oponível à ora A., não sendo esta titular do direito de propriedade sobre o imóvel objecto de preferência.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“A. Factos Provados

Com relevância para a decisão da causa, ficaram provados os seguintes factos:

1. Pela Ap. ...90 de 2018/10/26 foi registada a aquisição a favor de CC, casado, no regime de comunhão de adquiridos, com AA, do seguinte imóvel:

- Prédio rústico, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com área de cinquenta e quatro mil e cinquenta metros quadrados (54.500 m2) – 5,450 ha – registado na Conservatória do Registo Predial ... com o número ...84, a que corresponde a inscrição matricial sob o artigo ...3, secção F, da freguesia ...;

2. Por via da Ap. ...11 de 2019/06/19, foi levada a registo a acção de processo comum que, sob a numeração 27/19...., correu termos pelo Tribunal Judicial ... – Juízo de Competência Genérica ..., aí se peticionando o reconhecimento, a favor do aí autor e aqui réu, do direito de preferência em relação à venda do prédio referido em 1);

3. O registo referido em 2) foi lavrado como provisório por natureza.

4. Por sentença proferida no âmbito dos autos referidos em 2) e transitada em julgado em 11.06.2020, após confirmação do Tribunal da Relação de Coimbra, foi decidido:

i. Reconhecer o direito de preferência do Autor BB na aquisição do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...3.º, secção F, e descrito sob o n.º ...84 na Conservatória do Registo Predial ..., composto de prado natural, com a área de 5,45 hectares, sito na ..., freguesia ..., ...;

ii. Substituir o Réu CC pelo Autor BB, na qualidade de comprador do prédio referido em i., no documento particular autenticado de compra e venda realizada em 13.10.2018, passando este a ocupar o lugar daquele;

iii. Ordenar o cancelamento do registo de aquisição feito na Conservatória do Registo Predial ... em benefício do Réu CC, bem como qualquer outro registo feito posteriormente, quanto ao prédio identificado em i.”

5. A autora não foi demandada na acção judicial mencionada em 2).

6. O prédio referido em 1) foi adquirido por CC, pelo preço de €7.500,00,00, aquando casado no regime de comunhão de adquiridos com a autora.

7. Na acção referida em 2) o réu, aí autor, alegou o seguinte:

“A) DOS PRÉDIOS 63 E 66

1.º

O Autor é proprietário em propriedade plena do prédio rústico sito na Quinta ..., na freguesia ... d’Acha, concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...6 da secção F, descrito na Conservatória do Registo Predial ... (doravante “Prédio 66”), conforme Caderneta Predial e Certidão Permanente que ora se juntam, respectivamente, como Doc. 1 e Doc. 2 e cujos conteúdos se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

2.º

O Prédio 66, de propriedade do Autor, tem natureza rústica e uma área total de 3,5 Hectares,

3.º

E é confinante ao prédio rústico sito na ..., na freguesia ... d’Acha, concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...3 da secção F, descrito na Conservatória do Registo Predial ... (doravante “Prédio 63”), conforme Caderneta Predial e Prints da Secção Cadastral da secção F da freguesia ..., que ora se juntam, respectivamente, como Doc. 3 e Doc. 4, cujos conteúdos se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

4.º

O Prédio 63, melhor identificado no artigo supra, era da propriedade do 1.º Réu e da 2.ª Ré, em regime de compropriedade, sem determinação de parte ou de direito,

5.º

E tem natureza rústica e uma área total de 5,45 Hectares, conforme certidão permanente que ora se junta como Doc. 5 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais e Doc. 3 já junto.

6.º

Nesta medida, sendo o Prédio 66, de propriedade do Autor, confinante com o Prédio 63, de propriedade do 1.º Réu e da 2.ª Ré, gozava aquele de direito de preferência no caso de venda do prédio destes.

B) DA VENDA DO PRÉDIO

7.º

Sucede que o Autor tomou conhecimento de que o 1.º Réu e a 2.ª Ré haviam vendido, no dia 13 de Outubro de 2018, o Prédio 63, de propriedade destes últimos, ao 3.º Réu, pelo preço de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) conforme fotocópias certificadas do Contrato de Compra e Venda que ora se junta como Doc. 6 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

8.º

Isto sem terem, nem o 1.º Réu, nem a 2.ª Ré cumprido o dever legal de notificação ao Autor, enquanto titular de direito de preferência, do projecto de venda do Prédio 63.

C ) DA INTERPELAÇÃO DOS ALIENANTES E DO ADQUIRENTE

9.º

Na senda do conhecimento da venda do Prédio 63 em desrespeito pelo direito de preferência do Autor, enviou este carta registada com aviso de recepção a todos os Réus, interpelando-os para que esclarecessem a razão de ser da preterição do dever de comunicação da intenção de venda, conforme cartas e avisos de recepção que ora se juntam como Doc. 7, Doc. 8 e Doc. 9, cujos conteúdos se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

10.º

Às cartas enviadas apenas respondeu o 3.º Réu, confirmando ter adquirido o Prédio 63 na qualidade de arrendatário/rendeiro rural, conforme carta que ora se junta como Doc. 10 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

11.º

Face a tal alegação, enviou novamente o Autor uma carta a solicitar o envio de qualquer tipo de documentação que comprovasse a sua pretensa qualidade, ao que respondeu o 3.º Réu que tal alegado contrato de arrendamento teira sido celebrado verbalmente, conforme cartas enviadas, pelo Autor e pelo 3.º Réu, que ora se juntam, respectivamente, como Doc. 11 e Doc. 12, cujos conteúdos se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

12.º Nesta medida, não tendo nenhum dos Réus logrado esclarecer a razão de ser de não ter sido o Autor notificado do projecto de venda, certo é que o mesmo foi feito à revelia do seu direito de preferência legal,

13.º

Pelo que terá de ser aqui reconhecido e declarado o direito de preferência do Autor e, em conformidade, determinar que o mesmo passe a ocupar a posição de adquirente no Contrato de Compra e venda do Prédio 63, cancelando-se todos os registos de propriedade e condenando-se o 3.º Réu a entregar-lhe o aludido prédio, livre de pessoas e bens, o que se requer.”

8. E formulou os seguintes pedidos:

A) Julgar a presente acção procedente por provado;

B) Reconhecer e declarar o direito de preferência do Autor em relação à venda do prédio rústico sito na ..., na freguesia ... d’Acha, concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...3 da secção F, descrito na Conservatória do Registo Predial ...;

C) Determinar que o Autor passe a ocupar a posição de adquirente no Contrato de Compra e Venda do referido prédio;

D) Ordenar o cancelamento de todos os registos de propriedade efectuados na base do Contrato de Compra e Venda celebrado entre os Réus e;

E) Condenar o 3.º Réu na entrega do aludido prédio, livre de pessoas e bens, ao Autor.

9. O registo referido em 2) foi convertido em definitivo pela AP. ...08 de 20.10.2020.

10. Em 18.11.2020, a autora intentou providência cautelar contra o réu, que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., sob a numeração 155/20...., requerendo, a título principal, que fosse ordenado o cancelamento da AP. ...08 de 20/10/2020, na descrição predial sob o número 1184 da Conservatória do Registo Predial ....

11. No âmbito do procedimento cautelar referido em 10), veio a ser proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 04.05.2021, transitado em julgado em 25.05.2021, que decidiu, entre o mais:

1. (In)eficácia da sentença proferida na ação de preferência pelo facto de nela não ter sido interveniente.

Defendendo-se o requerido, na sua oposição, mediante a invocação da autoridade de caso julgado da decisão proferida na ação de preferência relativamente à legitimidade das partes na ação de preferência, sustentando encontrar-se o tribunal impedido de conhecer da eventual preterição de litisconsórcios necessário, a decisão recorrida é omissa quanto a tal questão – relativamente à qual adiantamos não ter o Requerido qualquer razão, uma vez que a decisão que recaia unicamente sobre a relação processual limita a sua força obrigatória ao processo (artigo 620º do CPC), apenas fazendo caso julgado formal1.

Como tal, não seria a figura da autoridade de caso julgado que impediria a Requerente, não interveniente nessa primeira ação, de no presente procedimento cautelar, invocar a sua falta de citação em tal ação e a eventual existência de litisconsórcio necessário na qual faz assentar a ineficácia da sentença proferida na ação de preferência.

Reconhecendo a não admissibilidade da invocação da autoridade de caso julgado no caso de inexistência de identidade de sujeitos, em respeito pelo princípio do contraditório, o juiz a quo traz à colação a ideia de que os efeitos de uma ação de preferência – que operam ex nunc, a partir do momento da celebração do negócio –, quando levada ao registo, tornam oponível a terceiros o direito legal de preferência relativamente ao período de mora litis: “Se o preferente registar a ação, a sentença favorável que nela obtiver tem uma eficácia superior à que normalmente deriva do caso julgado porquanto, além de vincular as partes, produz ainda efeitos contra todo aquele que adquirir uma coisa litigiosa, direitos incompatíveis com o preferente”. Mais considera que, tendo o CC adquirido, por contrato de compra e venda, o imóvel em questão, no estado de casado no regime de comunhão de adquiridos com a Requerente, o imóvel em causa integraria o património comum do casal, tornando-se propriedade de ambos; contudo, a procedência da ação de preferência, teria operado a substituição ab inicio do adquirente pelo referido preferente, resulta inutilizado o efeito translativo próprio que decorreria da transmissão original, deixando o direito de propriedade de integrar a esfera jurídica do património comum do casal. Por outro lado, considera que a requerente, apesar de não ter tido qualquer intervenção naquela ação não deixará de se encontrar vinculada pela mesma, “não apenas pela sua eficácia erga omnes mas pelo facto de a mesma ser detentora do mesmo interesse substancial de CC”. A Apelante/Requerente insurge-se contra o decidido alegando não poder ser considerada terceiro para efeitos de registo, pelo que, não tendo tido intervenção na ação de preferência a sentença nela proferida é ineficaz em relação a si.

Nesta parte haverá que dar razão à Apelante.

O caso julgado, seja visto pelo seu efeito negativo de exceção de caso julgado, quer pelo seu efeito positivo de autoridade de caso julgado, não pode nunca prescindir da identidade de sujeitos. Se o caso julgado, na sua vertente positiva de autoridade de caso julgado, e dentro da tríplice identidade que lhe é associada – identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir – (artigo 581º, CPC) pode prescindir da inteira coincidência do pedido e da causa de pedir, o que ele não pode, nunca, prescindir é da identidade de sujeitos. O efeito positivo do caso julgado tem unicamente por sujeitos os destinatários da decisão – as partes da relação processual –, abrangendo unicamente os sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objeto da decisão2 (artigos 619º, nº1 e 581~º, nº2, CPC), sem prejuízo das situações excecionais em que a sentença possa produzir efeitos relativamente a terceiros, como é o caso do adquirente da coisa ou do direito litigioso na pendência da ação declarativa (artigo 263º, nº3). Por outro lado, a eficácia do reconhecimento do direito de preferência efetuado em ação levada a registo só abrange “os terceiros” que, no decurso da ação venham a adquirir direitos incompatíveis com o preferente.

A Requerente não é um terceiro para efeitos de registo3. A requerente não adquiriu do titular constante do registo qualquer direito incompatível com o do preferente: a requerente e o seu marido seriam os titulares inscritos do património comum de que faria parte o imóvel, não podendo o tribunal invocar os efeitos normais de uma ação de preferência quando o que a autora pretende é atacar a própria ação de preferência, pelo facto de nela não ter sido demandada.

Ou seja, também não é por esta via que se pode afirmar a eficácia da sentença de reconhecimento do direito de preferência relativamente à autora.

Por fim, não faz qualquer sentido negar a probabilidade da existência do direito de que a Requerente se arroga, com o argumento de que, embora registado o direito de propriedade a seu favor, uma vez reconhecida a preferência, os efeitos se retroagem à data de ocorrência do negócio, com efeitos ex-nunc, deixando o direito de propriedade de fazer parte do património comum do casal, para efeitos de daí se retirar não ter a requerente qualquer pretensão ao imóvel. Tal raciocínio pressupõe a eficácia da ação de preferência relativamente à Requerente, quando é precisamente essa eficácia que a Requerente pretende pôr em causa com a ação que se propõe intentar e de que esta providencia é dependente.

Como tal, para aferir da probabilidade séria do seu direito o que haveria de determinar era se, face à lei em vigor, se impunha, ou não, a intervenção do Requerente, enquanto cônjuge do interveniente no negócio sobre o qual é exercida a preferência, e se houve preterição de litisconsórcio necessário. E aqui, a nossa resposta tenderia a ser positiva – a procedência da ação de preferência acarreta a perda do direito de propriedade sobre um imóvel que, por adquirido pelo DD no estado de casado no regime de comunhão de adquiridos, integraria o património comum do casal, só por ambos podendo ser alienado ou por um com o consentimento do outro [artigo 1682º-A, nº1 al. a)]. Como tal, a referida ação deveria ter sido interposta também contra a aqui requerente, por força do disposto no artigo 34º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Como tal, não tendo nela sido demandada, a sentença nela proferida não seria eficaz contra a aqui Requerente.”

Da Contestação

12. A autora teve conhecimento da pendência da acção judicial referida em 2) e dos moldes em que a mesma havia sido intentada.

13. A autora esteve presente na audiência de julgamento realizada no âmbito da acção judicial referida em 2).

14. Antes do começo do julgamento, no hall de entrada do tribunal, a autora esteve reunida com o seu marido, com o advogado de ambos, com o aqui réu e com a vendedora do prédio, a Sra. EE, onde discutiram possíveis alternativas amigáveis ao litígio.

15. A autora sabia que o processo referido em 2) existia, conhecia quem fazia parte dele e o que lá se discutia.

16. A autora sabia que não tinha sido demandada na acção referida em 2).

17. A autora não suscitou a sua intervenção na acção referida em 2).

18. O mandatário da autora foi o mandatário do cônjuge da autora, CC, no âmbito da acção judicial referida em 2).

Da Reconvenção

19. O réu exerceu o seu direito de preferência porque pretendia afectar o prédio referido em 1) à sua exploração agrícola-pecuária.

20. O prédio referido em 1) encontrava-se inapto para qualquer exploração agrícola ou pecuária, estava repleto de mato e pedras grandes e pesadas, na ordem das várias toneladas, espalhadas pelo terreno.

21. O estado do terreno referido em 1), impossibilitava a entrada e a passagem de máquinas agrícolas e não permitia o pasto de animais por não estar devidamente vedado.

22. Tendo obtido provimento da acção de preferência, o réu passou a pagar o IMI do mesmo.

23. O réu inscreveu o prédio no seu parcelário agrícola.

24. O réu deu início aos trabalhos de limpeza e acomodação do terreno para o preparar à sua actividade, no início de 2021.

25. O réu gastou o valor de €4.748,80 com os serviços de limpeza, remoção de mato, rochas e pedregulhos, acondicionamento, ripagem profunda e gradagem.

26. O réu gastou o valor de €337,02 com serviços de demarcação das extremas e divisórias do prédio.

27. O réu procedeu a serviços de limpeza e preparação de trilhos e extremas de acesso ao prédio.

28. O réu gastou o valor de €1.134,20 com serviços de escarificação e com remoção de pedras.

29. O réu não continuou os trabalhos no prédio porque, entretanto, foi citado para a presente acção.


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B. Factos Não Provados

Com relevância para a decisão da causa, não ficou provado que:

A. A autora, sabendo que não tinha sido demandada na acção referida em 2), propositadamente, não suscitou a sua intervenção, para vir intentar a presente acção.

B. Assim que o réu obteve provimento da sua acção de preferência começou a tratar do prédio, tendo tomado posse do mesmo em finais de 2019.

C. O réu gastou o valor de €400,00 com os serviços referidos em 27).


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Consigna-se que, não se levou à factualidade provada ou não provada, a demais factualidade trazida aos autos pelas partes, por se considerar a mesma irrelevante para a decisão a proferir e/ou assumirem teor conclusivo e/ou de direito.”

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Nas suas conclusões vem a recorrente invocar a nulidade da sentença proferida, alegando que o tribunal de primeira instância omitiu a fundamentação de direito da sua decisão, ao considerar que sobre a A. incidia o dever de suscitar a sua intervenção espontânea no processo.

Da existência de nulidades da sentença recorrida, por falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão (artº 615 nº1, b) e c), do C.P.C.)

(…).


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Das apontadas inconstitucionalidades da decisão recorrida por violação do princípio da protecção da confiança, violação do princípio da indefesa e violação do direito de propriedade.

Vem a recorrente invocar que o entendimento defendido na decisão sob recurso viola o princípio constitucional da protecção da confiança, pois que embora o tribunal recorrido reconheça que a sentença proferida na ação de preferência é ineficaz perante a recorrente, por preterição do litisconsórcio necessário e que o registo efectuado com base nessa sentença, é nulo, vem, contra o que seria expectável face à lei, efectuar uma aplicação do direito, intolerável e arbitrária, não se concretizando nos mínimos de certeza e segurança exigíveis a um órgão de administração da justiça.

Alega ainda, que a decisão em apreço efectua uma restrição inconstitucional e infundamentada do seu direito de propriedade, em clara violação do disposto nos artºs 18, nº2 e 62 da Constituição constituindo ainda uma violação do princípio constitucional da proibição da indefesa, ao impedir a Autora de defender o seu direito de propriedade, junto dos tribunais.

Invoca assim e, em síntese, a recorrente, a violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva previsto no artº 20 da Constituição, que impõe o acesso ao direito para defesa de direitos e interesses legítimos das partes, mediante o estabelecimento de vias processuais adequadas para o reconhecimento destes direitos em juízo, para prevenir ou reparar a sua violação e para acautelar o efeito útil desta acção.

 É este direito de acesso ao direito e à sua realização pelos tribunais, conforme referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[3] um “elemento integrante do princípio material da igualdade (…) e do próprio princípio democrático (…).” 

Todavia, no presente caso todas as imputações de violação de direitos fundamentais imputadas pela Recorrente à decisão recorrida - violação da proteção da confiança, direito de propriedade e proibição da indefesa - partem do pressuposto que a Recorrente era titular de um direito de propriedade sobre o imóvel em causa, o que demanda a prévia análise do juízo feito pela Sra. Juiz a quo sobre a existência de abuso de direito da recorrente.


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Da existência de abuso de direito.

Invoca a recorrente que o tribunal recorrido incorreu em error in judicando, ao considerar que a recorrida, sabedora da existência de uma acção de preferência deveria ter suscitado a sua intervenção no processo. Considerou a este respeito a decisão recorrida que “a autora teve conhecimento da existência dessa acção e dos moldes em que a mesma havia sido intentada, sabendo quem fazia parte dela e o que lá se discutia.

Ademais, ficou provado que a autora esteve presente na audiência de julgamento realizada no âmbito da acção de preferência, tendo resultado provado ainda que, antes do começo do julgamento, no hall de entrada do tribunal, a autora esteve reunida com o seu marido, com o advogado de ambos, com o aqui réu e com a vendedora do prédio, a Sra. EE, onde discutiram possíveis alternativas amigáveis ao litígio.

Provou-se, de igual modo, que a autora sabia que não tinha sido demandada naquela acção e não suscitou a sua intervenção na mesma, sendo que o ora mandatário da autora foi o mandatário do cônjuge da autora na acção de preferência.

O acórdão proferido no âmbito do processo da acção de preferência transitou em julgado em 11.06.2020 e em 18.11.2020 veio a autora instaurar procedimento cautelar contra o réu, previamente à instauração da presente acção.

Tendo sido demonstrada esta factualidade, consideramos que a actuação da autora, ao instaurar a presente acção, configura abuso de direito.

Com efeito, a autora era conhecedora da acção de preferência e do que lá se discutia, não tendo, naquela sede, suscitado a sua intervenção espontânea, sendo que, se o tivesse feito, aí podia fazer valer os seus direitos e apresentar a sua defesa ao lado do seu marido, aí réu.

Ora, a intervenção principal espontânea encontra-se prevista nos artigos 311.º a 315.º do Código de Processo Civil, decorrendo daquele primeiro artigo que, quando esteja pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32.º, 33.º e 34.º desse Código.

De acordo com o artigo 312.º do Código de Processo Civil, o interveniente principal “faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu”, podendo apresentar o seu próprio articulado ou então aderir “aos apresentados pela parte a quem se associa”.

Ora, não tendo suscitado a sua intervenção naquela acção vem, após trânsito em julgado verificado naquele processo, no qual o aí autor obteve vencimento, intentar a presente acção, visando com a mesma impedir que a decisão proferida no âmbito da acção de preferência produza o seu efeito útil normal, com os inerentes prejuízos daí advenientes para o aqui réu, que ali obteve vencimento e viu o prédio em causa ingressar na sua titularidade.

No caso, a autora, sendo conhecedora da existência da acção de preferência, podia ter exercido o seu direito, e suscitar a sua intervenção, mas não o fez. Ora, ao não o ter feito nessa sede, criou a convicção de que jamais iria suscitar essa questão, sobretudo, após se ter estabilizado a situação jurídica subjacente àqueles autos de acção de preferência.

Isto posto, consideramos que o exercício retardado desse direito, através da presente acção, dá lugar a uma grave injustiça e revela um comportamento incorrecto e desleal, ao pôr em causa o que se consolidou na ordem jurídica, posto que a autora não exercitou no tempo devido o direito que lhe assistia, devendo proteger-se, neste caso, a confiança do réu, que perante a conduta objectiva da autora que teve conhecido da acção de preferência e não suscitou a sua intervenção, confiou, legitimamente, que a autora não viesse a exercer esse direito.

Entendemos, por isso, que neste caso, não há qualquer violação do direito de defesa da autora, porquanto, pese embora, processualmente, a mesma não tenha sido demandada naquela acção, a mesma podia ter agido e suscitado espontaneamente a sua intervenção naqueles autos.

E, se é certo que se admite, que a autora não teria conhecimentos jurídicos para saber que o podia fazer, também é certo que podia ter procurado sabê-lo, como o fez para instaurar a providência cautelar e a presente acção.”

Que dizer? O entendimento do tribunal recorrido de que existiu preterição de litisconsórcio necessário na acção de preferência que correu os seus termos, ferindo de nulidade o registo, mas que tal nulidade não opera porque a A. deveria ter atentado no que o tribunal não atentou, é realmente desprovido de qualquer sentido. A entender que existiu preterição de litisconsórcio necessário e que, por essa via, a sentença proferida não produz efeitos em relação à A. e que não constitui título bastante para o registo efectuado, cabia ao tribunal recorrido extrair as respectivas consequências e não transferir para a esfera da A., um dever de regularização dos pressupostos processais que incumbia ao próprio Tribunal. 

O instituto do abuso de direito existe para fazer face ao exercício abusivo, com violação dos deveres de boa fé, daqueles direitos que se encontram na disponibilidade das partes. Consiste afinal num acto ilegítimo, decorrente de a parte incorrer, como refere CUNHA DE SÁ[4] “num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo”, ultrapassados os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social e económico do direito, conforme decorre do artº 334 do C.C.

Ora, a eficácia das decisões judiciais perante terceiros ao processo, não se integra no âmbito destes direitos subjectivos das partes.

A existir algum direito da A., mormente o direito de propriedade sobre o imóvel objecto da acção de preferência, não poderia o tribunal recorrido concluir que esta incorre em abuso de direito por não ter suscitado a sua intervenção espontânea nessa acção, pois que tal entendimento violaria não só o princípio da protecção da confiança, como o seu direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrada no artº 20 da Constituição, coartando de forma ilegítima o exercício de um direito juridicamente tutelado.

A questão em apreço, não se resolve no entanto, por apelo ao instituto do abuso de direito, que no caso presente não tem razão de ser, mas demanda antes a prévia averiguação da existência de um direito da A. 


***

Da existência de um direito de propriedade da A.

A este respeito, partiu o tribunal recorrido e a parte recorrente de um manifesto equívoco, apontado pelo recorrido nas suas contra-alegações e fundamento aliás do pedido de ampliação do objecto de recurso, decorrente da incompreensão do regime jurídico da preferência e da acção que visa fazer valer esse direito. É que a recorrente não só não era parte legítima na acção de preferência, como nunca existiu, na sua esfera jurídica, qualquer direito de propriedade, que lhe cabesse acautelar, mediante intervenção naquela acção.

E incorreu ainda a decisão recorrida noutro error in judicando. O entendimento de que os fundamentos jurídicos da decisão proferida no procedimento cautelar que correu por apenso, formam caso julgado, em manifesta oposição aliás, ao que resulta expressamente do artº 364, nº4, do C.P.C.[5]

A decisão proferida no procedimento cautelar, quer quanto à decisão de facto, quer quanto à decisão final, não tem qualquer influência no julgamento da acção principal. Trata-se de uma decisão provisória que nenhuma influência tem na decisão definitiva.

A este respeito, já LEBRE DE FREITAS[6] defendia (em relação ao artº 387 do anterior C.P.C.) que “o efeito do caso julgado é próprio duma decisão de mérito, como tal definidora das situações jurídicas das partes. A preclusão consistente na indiscutibilidade da solução dada às questões por ele abrangidas pressupõe o acertamento definitivo dessas situações jurídicas, só possível num processo que tenha por objecto a afirmação da sua existência e a solicitação da tutela judiciária adequada a esse acertamento. O juízo sobre a probabilidade da existência do direito que tem lugar no procedimento cautelar (o simples fumus boni iuris) afasta, por definição, a ideia de acertamento definitivo que o caso julgado pressupõe (art. 386.º do CPC). Quanto ao juízo sobre o periculum mora, não envolve qualquer decisão sobre a relação de direito material, pelo que, não integrando uma decisão de mérito, não poderia dar lugar ao efeito de caso julgado; por outro lado, ao inverso do juízo sobre o fumus boni iuris, está condicionado pelas circunstâncias de facto ocorrentes ao tempo da sua emissão, constituindo um juízo temporalmente limitado. Finalmente, o juízo sobre a adequação da providência cautelar solicitada é um juízo de carácter tipicamente processual (cf. art. 199.º CPC). O preceito do artigo 387.º-1 do C.P.C. explica-se pela inadequação do conceito de caso julgado à figura da providência cautelar: por ele é proibida a repetição do requerimento de providência quando esta for julgada injustificada ou caducar porque, de outro modo, da não atribuição da eficácia de caso julgado à decisão proferida resultaria a admissibilidade do requerimento de nova providência, ainda que com o mesmo objecto»

Assim e na realidade, a decisão a proferir depende precisamente da averiguação de um requisito prévio: se à autora, ora recorrente, assistia qualquer direito, questão que manifestamente não se mostrava resolvida pela decisão proferida no procedimento cautelar, erigida em facto provado na decisão ora recorrida.

O direito de preferência, como já ensinava o Professor Henrique Mesquita, em termos gerais, confere ao seu titular, a “prioridade ou primazia na celebração de determinado negócio jurídico, desde que ele manifeste vontade de o realizar nas mesmas condições (tanto por tanto) que foram acordadas entre o sujeito vinculado à preferência e um terceiro”.[7]

Este direito confere ao seu titular o direito de primazia na celebração de determinado negócio, nas mesmas condições que um terceiro esteja disposto a oferecer ou a aceitar, sendo que as preferências de origem legal, reconhecem ao seu titular um direito oponível erga omnes que, por essa via, a não ser reconhecido, lhe faculta o recurso à acção de preferência com vista a substituir o adquirente no negócio já realizado.

A nossa lei estabelece como direito legal de preferência, entre outros, o direito de preferência dos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura (artigos 1380° e 1381° do Código Civil).

E mais estabelece o dever do proprietário que pretende alienar um determinado imóvel, de notificar o titular ou titulares do direito de preferência, nos termos do disposto no artº 416 do C.C. comunicando-lhe “o projecto de venda e as clausulas do respectivo contrato”.

Nos termos previstos neste preceito legal esta comunicação – que pode ser efectuada tanto por via judicial como por via extrajudicial – deve referir o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.

Com efeito, a comunicação do projecto de venda implica necessariamente a indicação clara e precisa do objecto e do preço pretendido pelo obrigado à preferência[8], bem como todas as estipulações particulares que sejam relevantes para a decisão de exercício de preferência, tais como o prazo para a celebração da venda ou dação em cumprimento, a forma de pagamento no primeiro caso (nomeadamente as constantes de contrato promessa celebrado entre o obrigado à preferência e terceiro), oferecendo ao destinatário a alternativa de realização com ele da respectiva escritura pública.[9]

Mas quid juris quando esta notificação para preferência tenha sido totalmente omitida, ou não tenham sido observados os requisitos contidos nos artºs 416 a 418 do C.C.? 

O incumprimento definitivo da obrigação de preferência - que tanto pode ocorrer quando o obrigado à preferência não efectue a comunicação do projecto de venda ao preferente para este exercer o seu direito, como, efectuando-a e declarando o destinatário que pretende preferir, não venha a celebrar o negócio nos termos constantes da comunicação e ainda quando, não tendo o beneficiário comunicado a sua intenção de preferir na venda ou dação em cumprimento (caducando assim o seu direito), venha a ser celebrado negócio com terceiro em condições diversas e mais favoráveis[10] - confere ao preferente preterido meios de tutela que, no caso em que existiu já alienação do objecto sobre que incide o direito da preferência[11], consiste na acção de preferência prevista no art. 1410º do CC.

Visa esta acção de preferência colocar o preferente na posição do adquirente, com efeitos à data da celebração do negócio em relação ao qual se verificou a violação da preferência, tudo se processando como se o negócio tivesse sido originariamente celebrado entre o preferente e o alienante.

E é este efectivamente o traço diferenciador deste direito de preferência e da acção que o visa fazer valer que dá resposta à questão da existência de um direito da requerente sobre o imóvel e da sua legitimidade processual passiva na acção movida pelo preferente preterido.

É que o exercício do direito de preferência não visa a defesa de um direito de propriedade, nem da sua procedência resulta a perda do direito de propriedade do primitivo adquirente.   

Como assinala PINTO LOUREIRO[12], por virtude do exercício do direito de preferência, não se verifica nem a nulidade do negócio celebrado entre o alienante e o adquirente, nem uma segunda transmissão do bem, agora para o preferente, uma vez que “o exercício do direito de preferência postula a existência de um contrato válido, destinado a subsistir no seu todo, salvo quanto ao nome do adquirente (…) por força da sentença a proferir na acção, o nome daquele se sobreporá ao deste (…) tudo se passando como se por motivo de erro de escrita o nome do adquirente tivesse de ser rectificado judicialmente.

Ou seja, tudo se processa como se o primitivo adquirente nunca tivesse existido, na medida em que este é substituído no próprio contrato de aquisição do imóvel pelo preferente preterido. Nessa medida, a intervenção do adquirente justifica-se, não para defesa do seu direito de propriedade, mas para defesa da sua posição contratual como adquirente do imóvel.

Não é, assim, legítimo afirmar que por via da escritura pública outorgada com o adquirente, se transmitiu para este a propriedade do imóvel, transferida posteriormente para o preferente. Só nessa situação, seria exigível a intervenção do cônjuge casado em regime de comunhão com o adquirente. 

Assim sendo, o adquirente não preferente não é titular, nem nunca o foi, de qualquer direito de propriedade sobre o imóvel, que por essa via também se não comunicou à autora, independentemente do seu regime de casamento. A A. não era assim titular de qualquer direito de propriedade sobre o imóvel que resultasse afectado pela decisão proferida.

Não se pode assim concordar com a posição expressa na decisão recorrida no sentido de que foi preterido o litisconsórcio necessário, por a acção de preferência se integrar naqueles acções que têm de ser movidas contra ambos os cônjuges, devendo ser demandados na acção de preferência, “para além do adquirente, também o respectivo cônjuge, ainda que não outorgante da respectiva escritura, a menos, pois, que ambos sejam casados segundo o regime de separação de bens (neste sentido, Francisco de Almeida, in Direito Processual Civil, Vol. I, nota de rodapé 853, pág. 394), posto que a procedência da referida acção acarreta a perda do direito de propriedade sobre um imóvel que, vigorando o regime de comunhão geral ou de comunhão de adquiridos, só por ambos pode ser alienado ou por um com o consentimento do outro.”.

Não é efectivamente assim, ainda que se considere o direito de preferência um direito real, pelas características de oponibilidade erga omnes e pelo direito de sequela sobre o bem objecto de preferência, quer se considere que tem natureza obrigacional de conteúdo negativo ou que constitui um direito potestativo constitutivo de um direito de crédito.[13]

Em qualquer caso, volvendo a Henrique Mesquita[14]
A declaração judicial de que o autor é o titular do direito (de preferência) não tem por efeito a constituição de um novo direito ou sequer a aquisição de um direito pré-existente, antes visa significar a substituição do adquirente pelo preferente no negócio jurídico realizado, tudo se passando juridicamente, após a substituição e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente. O efeito do exercício da preferência não é a aquisição de um ius in re, mas sim a aquisição da qualidade de parte ou sujeito de determinado contrato, por via do qual se adquire a posição real sobre a coisa alienada.”

Esta conclusão resolve a questão da legitimidade e da existência de um litisconsórcio necessário passivo, que efectivamente existia, mas das partes que intervieram neste contrato.

Com efeito, a acção de preferência tutelada pelo artº 1410 do C.C., indica-nos que o titular, na posição activa, deste interesse, é o titular do direito de preferência, neste caso, aquele ou aqueles, a quem foi dado de arrendamento uma parte do imóvel ou uma fracção autónoma e a quem não foi dado conhecimento da venda ou da dação em cumprimento.

Parte passiva, conforme constitui jurisprudência unânime, na acção de preferência são o adquirente e alienante[15], que terão de ser demandados sob pena de preterição de litisconsórcio necessário. São, assim, titulares da relação controvertida na acção de preferência o titular do direito, o obrigado à preferência e o terceiro adquirente do imóvel. 

Como refere ANTUNES VARELA[16], a acção de preferência nasce, por um lado, de um acto ilícito originário do obrigado à preferência (não cumprimento da obrigação de comunicação prevista no art. 416º do C.C., comum a todos os direitos legais de preferência – artºs 416º, nº 1, 1117º, nº 2, 1380º, nº 4, 1409º, nº 2, 1507º, nº 1, 1535º, nº 2 e 2130º todos do C.C.), sendo aliás causa constitutiva do exercício do direito; por outro, com a acção de preferência, visa o preterido substituir-se ao adquirente dando o tanto por tanto e de a exigir inclusivamente a quem quer que a tenha adquirido (no que se manifesta o direito de sequela.

Esta relação jurídica complexa que nasce da violação originária da obrigação de dar preferência, impõe a demanda conjunta do alienante e do adquirente, sob pena de, como refere o autor citado[17], se abrir a porta “à prolação de decisões contraditórias, podendo acontecer, por exemplo, que seja julgada procedente uma acção de preferência com base na violação de algum dos deveres… e logo a seguir em acção que o preferente (ou o adquirente…) venha a intentar contra o alienante para ser indemnizado dos prejuízos que sofreu, o demandado faça prova de que cumpriu integralmente os deveres a que estava vinculado … e que a acção de preferência, já julgada favoravelmente, e não tinha fundamento…

No entanto, a lei não exige a demanda do cônjuge do adquirente do imóvel, pois que se não integra em qualquer das acções previstas no artº 34 do C.P.C. Não se trata de acção de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos poderiam ser alienados, pois que não existe por via da procedência desta acção a aquisição pelo preferente de um ius in re, nem a consequente perda desse ius in re pelo adquirente, mas antes a substituição de uma parte num negócio translativo do direito de propriedade, por outra.

Nesta medida, não resultando preterido qualquer litisconsórcio necessário, a acção estaria sempre condenada ao insucesso, pois que a A. não é titular dos direitos que aqui pretendia fazer valer. O direito de preferência do R. reconhecido na acção judicial que correu termos entre o preferente, o alienante e o adquirente é oponível erga omnes e, por essa via, também à A. 

Não existe assim abuso de direito da A., ao contrário do que considerou a decisão recorrida, mas antes total ausência do direito que por esta acção se pretendia fazer valer na esfera jurídica desta A.

Mantém-se assim a improcedência da acção, mas com fundamento na inexistência do direito e não de abuso de direito.   


*

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta 3ª secção, em julgar improcedente a apelação interposta e procedente a ampliação e, em consequência, julgam a acção improcedente, embora com fundamentos diversos dos consignados na decisão recorrida.
***

Custas da acção e do recurso pela A. (artº 527 nº1 e 2 do C.P.C.).


                                                                                    Coimbra 07/11/23



[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3ª edição revista, 1993, págs.162/163.
[4] CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto, Abuso de Direito, 2ª reimpressão, 2005, Almedina, pág. 103.
[5] Vide entre outros, Ac. do STJ de 12/07/2018, relator Gonçalves Rocha, proc. nº 2971/15.3T8PDL-B.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[6] LEBRE DE FREITAS, José, “Repetição de providência e caso julgado e caso de desistência do pedido de providência cautelar” Revista da Ordem dos Advogados, 1997, I, pág. 473/475.
[7] MESQUITA, Henrique Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, 1990, pág. 189.
[8] BARATA, Carlos Lacerda, Da Obrigação de Preferência, ob. cit., pág. 111.
[9] FURTADO, Jorge Henrique da Cruz Pinto, Manual do Arrendamento Urbano, 2º ed., Almedina, pág. 630.
[10] Neste sentido BARATA, Carlos Lacerda, Da obrigação de Preferência. Contributo para o estudo do artigo 416º do Código Civil, Coimbra Editora, Reimpressão, 2002, pág. 141.
[11] Por intermédio de um negócio válido, uma vez que se o negócio vier a ser declarado nulo ou anulável, o bem retorna à esfera jurídica do obrigado à preferência, por via do disposto no artº 289 do C.C., com efeitos retroactivos, desaparecendo, por essa via o negócio, em relação ao qual se verificaria a violação da obrigação de preferência.  
[12] LOUREIRO, José Pinto, Manual dos Direitos de preferência, Vol. II, Coimbra Editora, 1945, pág. 309.
[13] Neste sentido, ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil- Reais, 5ª edição, Coimbra, pág. 574 (no entanto este autor, a propósito do direito de preferência do arrendatário, em artigo publicado em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, 2002, Vol. III (Direito do Arrendamento Urbano), a págs. 273, suscite dúvidas sobre a qualificação deste direito como real (se os direitos inerentes de aquisição participam do regime dos direitos reais); VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I , 7ª edição, Almedina, pág. 358, 359; CORDEIRO, António Menezes, Direitos Reais II, 1979, pág. 784; LEITÃO, Luís Manuel Telles Menezes, Direitos Reais, Almedina 2009, págs. 519 e 522; ainda no mesmo sentido FERNANDES, Luís Alberto Carvalho, Lições de Direitos Reais, 4ª edição (reimpressão) Quid Juris, 2006, págs. 160, defende a natureza real destes direitos de preferência legais e com eficácia real, por via das características da inerência e da sequela, posição igualmente acolhida por RAMOS, José Luís Bonifácio, Manual de Direitos Reais, AAFDL, 2017 que, a págs. 432/433, lhes atribui a natureza de direito real de aquisição, “na sub-categoria dos direitos aquisitivos que incidem sobre a coisa objecto.”. Contra se têm pronunciado COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, 8ª edição, Coimbra, 2000, pág. 407 e MESQUITA, Manuel Henrique, Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, 1990, págs. 222-225, considerando, no entanto, este autor, a págs. 229, que o direito de prelação “dotado de eficácia erga omnes deve considerar-se sujeito, como se de um ius in re se tratasse, ao princípio do numerus clausus.”. Por sua vez, BARATA, Carlos Lacerda, Da Obrigação de Preferência- Contributo para o estudo do artigo 416º do Código Civil, Coimbra Editora, Reimpressão, 2002, págs. 150 e segs., defende que se trata esta de uma obrigação de conteúdo negativo e GUEDES, Agostinho Cardoso, na sua tese de doutoramento, O Exercício do Direito de Preferência, Publicações Universidade Católica, Porto 2006, págs. 341, define o direito de preferência como um direito potestativo constitutivo de um direito de crédito.

[14]Ob.cit, págs. 221, 222.
[15] LEITÃO, Luís Manuel Telles Menezes, Direitos Reais, Almedina, pág. 522 e segs.
[16] VARELA, João de Matos Antunes, Das obrigações em Geral, Vol. I, 7ª edição, Almedina, págs. 367; no mesmo sentido, defendendo a natureza híbrida (obrigacional e real) da relação legal de preferência, da qual “resulta que o exercício desse direito por via de acção assenta num facto ilícito do obrigado à preferência (os aqui Réus) – violação do dever de comunicação ao preferente. Por isso, não só o preferente se pode substituir, como se referiu, ao adquirente na titularidade da coisa, como o alienante violador do dever legal de informação pode ser compelido a indemnizar pelos prejuízos causados, quer o preferente, quer o adquirente (7), como decorre da aplicação do princípio da boa fé – artigos 227º e 762º do CC”, vd. o ac. do TRG de 31/10/18, proferido no proc. 96/17.6T8PRG.G1, Relator Pedro Damião e Cunha.
[17] Ibidem, págs. 309.