Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
720/23.1T8VIS-A. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DANO MORTE CONDICIONANTE DO ACIONAMENTO DO CONTRATO
OBTENÇÃO DE INFORMAÇÃO MÉDICA
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 139., 6, A), ESTATUTO DA ORDEM DOS MÉDICOS
ARTIGOS 81.º; 340.º, 1 E 341.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 3.º, 1 E 3; 4.º; 5.º, 1 E 2; 7.º; 410.º A 414.º; 419.º; 420.º; 429.º; 432.º; 471.º, 3; 527.º, 1; 552.º, 1, D); 571.º; 572.º; 573.º, 574.º; 576.º; 588.º; 596.º E 611.º, 1, DO CPC
Sumário:
Em acção em que se discute a verificação do evento morte como condição de acionamento de contrato de seguro, deve ser admitida pretensão tendente a obter informação médica junto do centro de saúde que acompanhou o falecido, quando a entidade seguradora revele não ter forma de aceder a tais informações, e essas informações possam condicionar a verificação do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco (morte) prevista no contrato.
Decisão Texto Integral:
Relator: António Fernando da Silva
1.º Adjunto: Falcão Magalhães
2.º Adjunto: Henrique Antunes

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. AA, BB, CC e DD intentaram acção contra A... d.a.c. Sucursal em Portugal, reclamando o pagamento do capital seguro, dos prémios pagos mas não devidos e dos juros, em função da celebração de contrato de seguro e da verificação do evento segurado (óbito de um dos tomadores). Alegaram que participaram o seguro, que facultaram as informações adicionais solicitadas pela seguradora, solicitaram informações sobre o pagamento à seguradora e lhes foi respondido por esta que aguardava a resposta a pedido de informações médicas, e que esta não efectuou qualquer pagamento, razão pelo qual actuaram a via judicial.

A demandada contestou, alegando, no que ora monta, que:

- era necessário aferir se o sinistro estava abrangido pelo âmbito de cobertura das apólices de seguro,

- não dispunha dos elementos clínicos necessários para concluir a avaliação do processo de sinistro,

- solicitou à 1ª A. os relatórios médicos e exames relacionados com a causa do falecimento, o que aquela declinou por deles não dispor,

- solicitou por duas vezes essa informação ao médico de família mas não obteve resposta,

- não tem elementos que lhe permitam avaliar se a patologia que os autores invocam como causa de pedir é, por exemplo, anterior à adesão ao contrato de seguro em causa.

Em sede probatória, formulou a seguinte pretensão: «por se tratarem de documentos com evidente relevo para a boa decisão da causa e por serem documentos que não foram disponibilizados à ré, requer-se a V. Exa., nos termos do disposto no artigo 432.º do CPC, se digne oficiar o:

a) Centro de Saúde ..., ACES Dão Lafões, sito na Av. Dr. Francisco Sá Carneiro, 3600-180 Castro Daire, para vir juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura.».

Realizada audiência prévia, nela foi, por despacho, enunciado:

«Objecto do litígio: consequências do decesso do marido e pai dos autores à luz do contrato de seguro de vida celebrado com a companhia ré. Por se referir a matéria que, no actual estado do processo, se encontra controvertida, enuncio o seguinte tema de prova: cláusulas do contrato celebrado.»

Nessa diligência e sobre a referida pretensão da R. recaiu o despacho impugnado, com os seguintes termos:

«A possibilidade de o julgador notificar ou, mesmo, intimar terceiros a entregar, ao processo, documentos que estejam em seu poder, existe e é conferida, presentemente, pelos art.ºs 429º e 430º do código de processo civil. A documentação em causa nem sequer é tendente à prova de factos alegados relevantes para o mérito da causa e vertidos nos temas de prova – como exige, simultaneamente, a lógica das coisas e o art.º 410º do código de processo civil – antes, atento o teor da contestação da ré, para sustentar ou dissipar dúvidas sobre a ocorrência dos mesmos. Pese embora, o que está em causa é a sensibilidade da informação vertida nos documentos em apreço, ligada à saúde do falecido. A seguradora pretende seja junto ao processo, pelo Centro de Saúde ..., “o processo clínico completo da pessoa segura”. Algo tentou já obter, pelo menos, alguns dos documentos integrantes daquele conjunto, e a entidade em causa não acedeu ao pedido, o que nem estranha, desde logo por via quer da legislação referente à protecção de dados pessoais, mormente, a Lei nº 67/98 de 26 de Outubro, além do sigilo profissional e demais argumentos integrantes, por exemplo, do nº 3 do art.º 417º do código de processo civil. Tentando “conciliar” esta pretensão probatória com a dignidade inerente à pessoa do falecido, enquanto ser vivo que foi, ou com o direito dos autores à sua memória, no presente, sugeri que, atenta a causa de morte, fossem solicitados unicamente os elementos relativos à especialidade da cardiologia, pois que tenho por evidente que tudo o demais sempre seria irrelevante para o presente processo; debalde.

Nestes termos, e por respeito pela dignidade da pessoa do cidadão consultado e pela memória do mesmo, presentemente tutelada pelos autores, indefiro esta pretensão da ré.»

Deste despacho vem interposto o presente recurso pela R., a qual concluiu nos seguintes termos:

«1. Vem o presente recurso interposto do despacho de 26.05.2023 em que o Tribunal a quo indeferiu o requerimento probatório da apelante, na parte em que esta requereu que fosse oficiado o Centro de Saúde ... para juntar aos autos o processo clínico completo da pessoa segura, por ter o Tribunal a quo entendido que a documentação em causa não é tendente à prova de factos alegados relevantes para o mérito da causa.

2. Entendimento que apelante não pode aceitar uma vez que quando apresentou a sua contestação não tinha conhecimento de qual era o estado de saúde da pessoa segura à data do óbito, e se esse estado já se verificava aquando da subscrição da apólice,

3. O que cumpria apurar, nomeadamente para aferir se a pessoa segura prestou falsas declarações, comprometendo a avaliação do risco efetuada pela apelante, o que a suceder constitui um facto extintivo da pretensão que os apelados aqui pretendem exercer, que a apelante teria tido a oportunidade de aditar aos temas de prova, nos termos do n.º 6 do artigo 588.º do CPC.

4. Foi por isso que, tendo em conta as consequências da eventual prestação de falsas declarações pelo segurado – isto é, a nulidade do contrato de seguro – a apelante requereu a produção de prova nos termos do art. 429.º do CPC.

5. E caso o Tribunal a quo tivesse – como devia – deferido o sobredito requerimento, e comprovando-se as falsas declarações, a apelante teria apresentado um articulado superveniente nos termos do art. 588.º do CPC.

6. Pelo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo impediu que a apelante exercesse o seu direito à justiça, limitando a defesa dos seus legítimos interesses, o que não se pode admitir.

7. Acresce que, a apelante alegou expressamente não ter tido a possibilidade de avaliar o sinistro e que tal avaliação é um direito seu,

8. O que decorre do n.º 3 do artigo 100.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril e da alínea c), do n.º 5 da cláusula 16.ª das Condições Gerais do contrato de seguro, juntas aos autos como DOC. 2 da Contestação.

9. Por outro lado, a junção de todo o processo clínico da pessoa segura é o único meio de prova que permite à apelante avaliar o sinistro e compete ao juiz autorizar a realização das diligências que se afigurem necessárias e adequadas para apurar todos e quaisquer factos que possam relevar para a decisão da causa.

10. O Tribunal a quo sugeriu a junção aos autos apenas de elementos da especialidade de cardiologia, o que não pode ser aceite uma vez que todas as consequências jurídicas que poderão advir de informações resultantes do processo clínico da pessoa segura, mesmo que não diretamente relacionadas com o sinistro morte, assumem toda a pertinência para a decisão do pleito.

11. A junção do processo clínico completo poderá resultar na aceitação do sinistro, com a consequente inutilidade dos presentes autos, ou no apuramento de factos supervenientes, que deverão ser apreciados pelo Tribunal a quo ao abrigo do princípio do inquisitório (cf. n.º 2 do art. 5.º, 411.º, 611.º e n.º 1 do art. 663.º, todos do CPC).

12. Em concreto, da documentação clínica poderão resultar factos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito alegado pelos apelados, nomeadamente a anulabilidade por prestação de falsas declarações e a pré-existência, as quais se aplicarão, na íntegra, à cobertura de morte.

13. Com efeito, ainda que acionada a cobertura de morte, o contrato de seguro continua a ser anulável por prestação de declarações inexatas e omissas por parte da pessoa segura, o que será condição bastante para improcedência da acção, sendo absolutamente irrelevante qual foi a patologia que determinou a morte da pessoa segura.

14. Pelo que ao não admitir o requerimento probatório da apelante, assim negando aos autos o acesso ao processo clínico completo da pessoa segura e aos factos e consequências que do mesmo resultem, o Tribunal a quo beneficiou, exponencialmente, os apelados, criando, não só uma desigualdade entre as partes, como, ainda, uma situação de abuso de direito dos apelados, aos quais é permitido acionar o contrato de seguro, sem mais.

15. Entendeu o Tribunal a quo que o acesso ao processo clínico da pessoa segura porá em causa a sua dignidade, e que o Centro de Saúde ... não enviou a informação à apelante com base na Lei n.º 67/98 de 26 de Outubro e no sigilo profissional, quando nenhum dos aludidos fundamentos foi suscitado.

16. Em qualquer caso, não só a apelante facultou à pessoa segura cópia da sua política de proteção de dados (conforme DOC. 2 junto com a Contestação), como a pessoa segura prestou o seu consentimento expresso para que as entidades e profissionais de saúde facultassem à seguradora todos os elementos por esta tidos como convenientes (cf, alínea c), do n.º 5 da cláusula 16.ª das Condições Gerais do contrato de seguro e declaração aposta na proposta de adesão ao contrato, dos documentos n.º 1 e 2 juntos com a Contestação).

17. Assim, o proprietário da informação de saúde prestou, em vida, de forma expressa e inequívoca, o seu consentimento para que a apelante tivesse acesso à sua informação de saúde, o que é suficiente para o cumprimento do exigido no artigo 7.º e 9.º, n.º 2, al. a) do Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de abril, e necessário ao exercício de defesa da apelante, previsto na al. f) do n.º 2 do mesmo Regulamento.

18. Por outro lado, os apelados nunca sindicaram tal consentimento, nem tão pouco se opuseram ao requerimento probatório da apelante, a qual é titular de um interesse direito, pessoal e legítimo, no acesso à documentação requerida.

19. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, 411.º, 429.º, 588.º, 611.º e 663.º, n.º 1, todos do CPC, bem como o artigo 100.º, n.º 3 do DL n.º 72/2008, de 16 de abril, o artigo 7.º, n.º 1 e 9.º, n.º 2, al. a) e f) do Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de abril, e o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

20. Por tudo, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por um outro que defira o requerimento de produção de prova da apelante, na parte em que esta requereu que fosse oficiado o Centro de Saúde ... para juntar aos autos o processo clínico da pessoa segura.»

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, a questão a apreciar radica na avaliação do carácter justificado ou não da diligência probatória requerida.

III. As coordenadas fácticas da questão são as seguintes:

- os AA. accionaram contrato de seguro com base na verificação do evento segurado, o óbito de um dos tomadores.

- a R., para aferir se o evento estava coberto pelo contrato de seguro, em sentido amplo, solicitou elementos médicos tendentes a esclarecer as condições do óbito.

- alegou não ter obtido tais elementos junto do cônjuge do falecido nem junto do médico de família.

- os AA., perante o atraso no pagamento que julgam devido, intentaram a presente acção, reclamando o pagamento do valor decorrente da verificação do sinistro.

- a R. na acção, continuando a invocar a necessidade de avaliar os contornos médicos da situação para aferir da mobilização do seguro, solicitou a obtenção, através do tribunal de elementos clínicos, o que foi indeferido.

- o tomador falecido consentiu no acesso pela R.  ao relatório de autópsia e a outros documentos elucidativos da origem, causas e evolução da doença ou acidente de que resultou o sinistro. (pág. 6 do documento 1 junto com a contestação, acessível nos autos).

IV. 1. As coordenadas jurídico-processuais são as seguintes:

- a partir do princípio do dispositivo (e da autorresponsabilidade), ao réu cabe, em particular, impugnar os factos principais (mesmo motivadamente), e alegar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito contra si esgrimido (excepção) – art. 5º n.º1, 572º al. c) e 576º n.º3 do CPC – com excepções mas parciais e particulares (art. 5º n.º2 ou 412º do CPC).

- esta actuação defensiva está concentrada, como regra, na contestação (e assim seria no caso), com eficácia preclusiva da defesa (art. 573º do CPC), mas com as excepções do citado art. 5º n.º2 e do art. 588º do CPC.

- à alegação associa-se a subsequente actividade probatória, visando revelar a realidade dos factos invocados (na medida em que se mostrem relevantes para a decisão de mérito), o que leva pressuposto o seu enquadramento nos temas da prova quando enunciados (art. 596º n.º1 e 410º do CPC); parece cristalizada a ideia de que os temas da prova correspondem pelo menos à enunciação genérica das questões com relevo factual[1] a resolver em função da decisão de mérito e sobre as quais incidirá a actividade instrutória; tais temas (ainda que não a sua enunciação) terão que ser integrados por factos (os factos contidos nos temas da prova enunciados) – donde que o regime probatório legal, mormente na instrução, associe a prova a factos (art. 411º, 412º, 413º, 414º, 419º ou 420º do CPC, entre outros, ou ainda art. 341º do CC).

- cabendo o desenvolvimento de tal actividade instrutória primacialmente às partes, ao tribunal é atribuído também um papel interventivo, quer por lhe caber auxiliar as partes nessa actividade quer por lhe caber oficiosamente desenvolvê-la em ordem a alcançar a finalidade material do processo (agora despido de uma estrutura estritamente formal), ou seja, a «justa composição do litígio» - o princípio do inquisitório (mitigado) tem o assento básico no art. 411º do CPC, ocorrendo depois manifestações particularizadas para meios de prova tipificados ou em outras normas.

- condição da obtenção de uma decisão materialmente justa é o tendencial esgotamento de toda a controvérsia, conhecendo todos os factos relevantes que a ela respeitem (asserção de que os art. 588º e 611º n.º1 do CPC são expressão) – tendencial porque, quanto a factos essenciais, tal conhecimento continua a depender em grande medida da iniciativa das partes (persistindo intocado o núcleo básico do princípio do dispositivo e do princípio da autorresponsabilidade das partes). 

- a controvérsia deve ser dilucidada num plano de igualdade entre as partes e com respeito pelo princípio do contraditório (na vertente da audição e da influência, mormente probatória, sobre os termos da decisão) – art. 4º e 3º n.º1 e 3 do CPC.

2. Como se viu, o desenvolvimento da actividade probatória processual visa factos alegados, integrados nos temas da prova e que o tribunal pode conhecer (art. 5º n.º1, 552º n.º1 al. d), 572º al. c), 596º n.º1, 410º e 411º do CPC).

No caso, a diligência solicitada não apresenta um carácter estritamente probatório: visa obter meios (documentais) de prova mas também para aferir se existem factos relevantes, ainda ignorados e por isso também ainda não alegados (factos em certo sentido apenas potenciais).

3. Do ponto de vista do demandado, a impugnação dos factos principais e a alegação dos factos constitutivos da base de excepções vêm legalmente construídas como verdadeiros ónus (e não como deveres)[2], a cuja inobservância corresponde, quanto à impugnação, a aquisição dos factos não impugnados, e quanto à matéria da excepção, a preclusão da faculdade de alegar (art. 571º, 573º n.º1 e 574º do CPC).

Os factos que a R. pretende conhecer podem relevar da defesa por impugnação (caso venham a se revelar incompatíveis com os factos constitutivos da pretensão dos AA.) ou da defesa por excepção peremptória (caso sejam compatíveis com aqueles factos, a eles se adicionem, e apenas modifiquem ou extingam o efeito visado; sendo que a contenderem com a fase formativa do contrato, tal também redundará, em princípio, em matéria de excepção – factos impeditivos – art. 571º n.º2 e 576º). Neste momento, por serem os factos desconhecidos, a sua exacta qualificação processual não é possível, mas também não é determinante.

Verifica-se que a R. cumpriu o ónus de impugnação em termos gerais. Mas a situação que invoca (e a ignorância inerente) impede-a de conhecer factos que podem ter relevo em sede de impugnação (por poderem contraditar os factos constitutivos alegados pelos AA.) e que assim não pode cabalmente discutir na acção (nomeadamente em sede de instrução), ou melhor, que não pode assim opor aos factos constitutivos alegados pelos AA.. Aliás, quanto a estes contra-factos a diligência solicitada é essencialmente probatória (no sentido de que com ela se permite logo contestar, ou não[3], a factualidade constitutiva invocada pelos AA.). De outra banda, também se verifica, pela mesma razão, que a R. não está em condições de cumprir o ónus de alegação quanto a eventuais factos integradores de excepções.

A existência de factos/informações é segura: o complexo de dados médicos associados ao óbito existirá. A sua relação com o objecto do processo também parece suficientemente adquirida (os termos dessa relação é que podem variar com a feição dos factos, mormente porque podem confirmar ou podem infirmar a relação do óbito com os termos contratualizados do evento seguro). Aliás, a importância de tais informações, no quadro da verificação do sinistro, é legalmente reconhecida pela criação da obrigação de informação constante do art. 100º n.º3 do DL 72/2008, de 16.04 (que a R. invoca), justificada quer pelo carácter possivelmente determinante de tais informações, quer pela circunstância de, em regra, a seguradora não estar em condições de, por si, a elas aceder.

Tudo isto, evidenciando a necessidade da diligência, coloca esta diligência no âmbito de irradiação do dever de intervenção do tribunal na realização de diligências probatórias que contribuam para a correcta e integral avaliação do litígio, contido no art. 411º do CPC (que a restrição da norma aos factos que o tribunal pode conhecer não impediria pois, e quanto à matéria da impugnação, sempre seriam factos - ou contra-factos - , a serem conhecidos, integráveis na discussão dos factos principais alegados, e que por isso, por se traduzirem na discussão dos factos constitutivos alegados pelo autor, nem carecem de alegação autónoma). Por outro lado, parece incontroverso que a R. não tem condições para aceder a tais factos por si, considerando que alegou, juntando documentos, que os AA. não dispõem dessa informação, e que o médico a quem se dirigiu não respondeu à solicitação (ao menos assim o justificou, de forma razoável e em termos que aparentemente não foram colocados em crise). Pelo que está impedida de cumprir o encargo correspondente ao ónus que lhe incumbe (de alegação, em primeira linha, mas com reflexos na instrução da causa), por não conseguir aceder aos factos (e meios de prova), não dispondo de meios próprios para superar o obstáculo. Ora, também cabe ao tribunal promover a superação de tal obstáculo, nos termos do art. 7º n.º4 do CPC, e enquanto expressão do geral dever de colaboração (que para o tribunal constitui um poder-dever, vinculado) [neste sentido, o citado art. 411º in fine devia ser entendido, em articulação com o art. 7º n.º4, como abrangendo os factos integradores de excepções que o tribunal previsivelmente poderá conhecer, depois de afastado o obstáculo]. Acresce que aquele obstáculo cria uma assimetria processual (com repercussão no direito de defesa), estando a R. privada de discutir integralmente o sinistro, e só a remoção de tal assimetria pode repor a igualdade (de armas) das partes (art. 4º do CPC) e simultaneamente garantir a expressão exacta do princípio do contraditório (que se mostra «essencial à tutela do demandado, na medida em que assegura que este se possa defender em relação ao conteúdo concreto do pedido apresentado pelo demandante» e «que, no plano da prova, implica que ás partes seja facultada a proposição de todos os meios de prova potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos da causa»). Tudo pressupostos do acesso a uma decisão justa (à «justa composição do litígio», nos termos dos art. 7º n.º1 e 411º do CPC), da qual a adequação da decisão à realidade (aos factos relevantes e a todos os factos relevantes[4]) é condição necessária.

A pretensão mostra-se desta forma, e por esta via, processualmente legitimada.

4. A preclusão inerente à omissão da alegação, mormente dos factos relevantes em sede de excepção, não é, como referido, absoluta (art. 573º n.º2 do CPC). Excepção encontra-se logo no conhecimento superveniente dos factos relevantes (ainda que a superveniência seja apenas subjectiva), a introduzir na lide através de articulado superveniente e com integração nos temas da prova (art. 588º do CPC). Quanto a factos não essenciais, o seu conhecimento é ainda mais amplamente admitido.

A preclusão não constitui, pois, obstáculo, em tese, ao requerido, sendo a alegação ainda admissível (obviamente, trata-se aqui de avaliação que atende apenas à existência do instrumento processual, e que não condiciona a avaliação das condições legais de funcionamento desse instrumento, a realizar se e quando for utilizado).

5. Por força do disposto no art. 432º do CPC, o regime do art. 429º do CPC fixaria ainda os pressupostos da intervenção (a entender no quadro sui generis em causa, em que a diligência visa tanto a junção de documentos como o conhecimento dos factos que eles tenderiam a demonstrar). Estão revelados os pressupostos formais exigíveis: a R. identificou os documentos em causa; a indicação dos factos que o documento visa demonstrar também está realizada, na medida do possível atenta a natureza da situação; os documentos estão em poder de terceiro e a R. revelou por que lhes não conseguiu aceder (art. 429º n.º1 do CPC).

Quanto ao requisito material, importa que o documento tenha interesse para a decisão da causa (art. 429º n.º2 do CPC). O que supõe a sua pertinência e um valor possivelmente influenciador da decisão. Em último termo, baliza-se negativamente pela sua desnecessidade ou inutilidade. Os factos probandos também não têm que ter natureza principal.

Já se deixou aflorada a pertinência e relevância dos dados a que a indagação se dirige. Na verdade, a diligência associa-se ao objecto do processo, entendido genericamente por referência à causa de pedir (verificação da aplicação do contrato de seguro ao evento verificado) e ao pedido (prestações directa ou indirectamente associadas ao contrato de seguro), e na medida em que visa obter informação factual que pode contender com a pretensão dos AA.. Como nota a R., a informação em causa é necessária quer para avaliar se o evento se inclui no âmbito de cobertura do contrato de seguro, quer para aferir da lealdade contratual do tomador – embora se note que a primeira vertente da informação solicitada assume prioridade e essencialidade, por contender directamente com o funcionamento do contrato de seguro tal como assumido pelos AA. e discutido na acção. Aquela diligência relaciona-se até de forma directa com os temas da prova, tal como enunciados («cláusulas do contrato celebrado»), já que é isso justamente que a informação que se quer obter visa esclarecer em primeira linha: a relação entre tais cláusulas e o evento ocorrido. Pode, pois, aceitar-se a pertinência da diligência requerida. Aliás, isso até foi, ao menos em parte, admitido pelo despacho recorrido, quando revelou abertura para obter ao menos parte da informação solicitada. Da mesma forma, aquela conexão de sentido com o objecto do processo também permite aferir o interesse (ou a inexistência de desnecessidade) da diligência (também) probatória.

Por esta via se revela também fundada a pretensão.

6. Quanto à protecção de dados pessoais [5], ao sigilo médico e aos termos do art. 471º n.º3 do CPC, não são invocados como fundamento da decisão (tanto que nem se equaciona nessa decisão em que medida tal invocação se intersecta com a pretensão em causa) mas como justificação da compreensibilidade da actuação do centro de saúde (através do médico interpelado).

Mas, de qualquer modo, não constituem condições, neste momento, obstativas. Desde logo, e de forma determinante, pelo consentimento dado pelo tomador, consentimento prestado para lhe sobreviver sem que tal viole qualquer regra ou princípio - com relevo para o art. 139º n.º6 al. a) do Estatuto da Ordem dos Médicos, para o regime da protecção de dados, desde logo porque os dados pessoais (melhor, o direito à autodeterminação informacional ou direito à reserva informacional enquanto aspecto do direito à reserva da vida privada) estão na disponibilidade do seu titular, e ainda para os art. 81º e 340º n.º1 do CC. Por outro lado, e ainda que assim não fosse, não tendo o tribunal conhecimento de todas as condições relevantes, não se mostra a priori verificada situação que permitisse antecipar e justificar um impedimento absoluto de acesso aos documentos, ou que pudesse tornar ilícita a prova assim obtida. Mesmo a possibilidade de ocorrer uma recusa legítima (art. 417º n.º3 do CPC), para além de não parecer poder ser processualmente antecipada pelo tribunal, não tem o efeito de vedar o acesso à informação, havendo ainda que i. avaliar a legitimidade da recusa e, ii., reconhecida tal legitimidade, ponderar a actuação do incidente de quebra do sigilo – pelo que não seria a invocação só por si bastante para se não acolher a pretensão.

Quanto ao apelo à dignidade do falecido, parece deslocada. Não só pelo aludido consentimento prestado, ou por parecer estar o tribunal a substituir-se ao titular (ou sucessores na titularidade) dos interesses protegidos[6] (sem que esteja em causa caso limite), como sobretudo por se não ver em que medida a obtenção da informação lesaria de forma significativa aquela dignidade, em alguma das suas facetas concretizadoras (pois a dignidade da pessoa humana enquanto princípio primeiro apresenta uma expressão axiológica tão vasta, já «que concentra numa unidade significativa todas as razões do valor da pessoa para o Direito», que se não mostra funcional no caso sem se revelar qual a sua concreta expressão atingida). Sem embargo de, se fosse caso disso, ainda caber ao tribunal adoptar medidas de contenção (v. o lugar paralelo do art. 418º n.º2 do CPC, literalmente não aplicável mas racionalmente extensível) que restringissem a intromissão ao mínimo essencial.

7. Não sobejam razões que, salvo o devido respeito por opinião contrária, obstem à realização da diligência requerida; pelo contrário, existem razões para a acolher.

8. Na procedência da pretensão colocada no recurso, inexiste parte vencida, para os termos do critério da causalidade previsto no art. 527º n.º1 do CPC (os AA. não contestam a pretensão nem contra-alegaram). Tende-se a referir que o critério do proveito (também derivado do art. 527º n.º1 do CPC) não opera nestes casos por estar pensado para situações cuja regulação, inerente a diversos sujeitos, exige a intervenção judicial, sem que ocorra real decaimento de sujeitos intervenientes, ou em que a regulação da situação se traduz em benefício para todos, ou exige a intervenção de todos: caso em que se atende ao valor que cabe a cada interessado. Assim, parece ajustado considerar nestes casos que a responsabilidade caberá ao responsável final pelas custas do processo pois o recurso só se justifica em função da acção e assim o seu sentido tributário, não havendo decaimento nesse recurso, será determinado pelo decaimento a final (este diferimento não parece problemático pois é certo o termo da acção e assim a avaliação tributária aqui pressuposta, sem incertezas relevantes). Como está determinada a parte interessada, a aplicação (tida por analógica) do art. 532º n.º3 do CPC, também já defendida, não parece equacionável (também não existe o mesmo interesse de todas as partes na diligência, ou o igual proveito para as partes que também integram a previsão da norma).

Assim, a imputação da responsabilidade tributária será definida pelo acertamento final da acção.

V. Pelo exposto, decide-se revogar o despacho recorrido, determinando-se que este seja substituído por outro que acolha a pretensão deduzida.

Custas devidas nos termos do acertamento tributário final da acção.

(…)





[1] A enunciação dos temas da prova em termos conclusivos ou mesmo jurídicos, aceite, não obscurece a natureza e finalidade instrutória da enunciação (citado art. 410º do CPC), nem a sua subordinação à determinação factual final que sustenta a decisão de mérito (art. 607º n.º3 do CPC).
[2] A qualificação é dominantemente aceite (com tradução na letra da lei, embora não caiba ao legislador fixar a conceitualização mas apenas o regime) mas não tem carácter determinante no caso, não justificando desenvolvimentos adicionais.
[3] A incerteza é inerente ao meio de prova: só depois de adquirido se pode avaliar o seu sentido probatório.
[4] Sem prejuízo naturalmente, do princípio do dispositivo, que limita o tribunal e o dever de colaboração, mas em termos que o caso vertente não convoca.
[5] A Lei 67/98, invocada, foi revogada pela Lei 58/2019, de 08.08 (onde o dever de sigilo foi ampliado com deveres de confidencialidade: art. 10º).
[6] Pese embora seja controvertido o alcance do art. 71º do CC (se envolve um prolongamento dos direitos de personalidade para depois da morte, ou se transfere esses direitos para os sucessores do falecido, ou se tutela interesses dos sucessores mas medidos em função da dignidade do falecido), sempre seriam os AA. os titulares dos meios de disposição/reacção, sendo que estes não reagiram ao pretendido.