Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3002/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
CREDOR HIPOTECÁRIO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
Data do Acordão: 02/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 325º DO CPC, 686º E 759º DO C. CIV..
Sumário: I – Nos termos do artº 325º, nº1, do CPC, qualquer das partes na acção pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária .
II – Nos temos do artº 686º do C. civ., a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

III – Segundo o artº 759º do C. Civ., recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor, sendo que o direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente .

IV- No que tange ao reconhecimento do direito de retenção a favor do autor-promitente comprador, tem o credor hipotecário um interesse igual ao do R.- promitente-vendedor, pelo que o dito credor-hipotecário pode intervir espontaneamente na causa como parte principal, ou ser essa intervenção provocada por quem nela tenha interesse, designadamente pelo autor .

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
A..., residente na Rua Morais Pessanha, nº 22, Bairro da Mendágua, Bragança, intentou acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra “B...”, com sede na Rua dos Combatentes, nº 3, Burinhosa, Pataias, Alcobaça e “C...”, com sede na Rua Moniz Barreto, nº 24, Letra B, Alvalade, Lisboa, pedindo para se:
a) Declarar resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o A. e 1a Ré e consubstanciado no documento n° 2 junto aos autos, por incumprimento definitivo por parte da 1a Ré e por culpa exclusiva desta;
b) Condenar a 1a Ré a pagar ao A. o dobro do sinal passado, no montante de € 125.000,00, acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
c) Reconhecer ao A. o direito de retenção sobre a fracção descrita nos artigos 4° e 5° da petição inicial, até integral e efectivo pagamento do seu crédito;
ou, quando assim se não entender,
d) Reconhecer ao A. o direito de retenção sobre a fracção descrita nos artigos 4° e 5° da petição inicial, como parte integrante do prédio urbano no seu todo definido nos artigos 1°, 2° e 3° do mesmo articulado, até integral pagamento do seu crédito.
Na sua contestação, a R. “B...” requereu a intervenção acessória provocada de “D...”, E... e F..., doravante identificada como G..., alegando que, no caso de ser condenada, irá mover a respectiva acção de responsabilidade civil, a fim de exercer o seu direito de regresso contra os indicados chamados.
Por sua vez, o A. requereu a intervenção principal provocada da G..., alegando, no essencial, que, de acordo com a contestação, esta poderá ser co-responsável pelo incumprimento do contrato-promessa; e que tem interesse directo em demandar a chamada e esta tem interesse directo em contradizer, também porque o seu invocado direito de retenção prevalece sobre as hipotecas registadas a favor daquela.
No despacho certificado de fls. 3 a 8 foi admitida a intervenção acessória provocada e indeferida a intervenção principal provocada.
O A., inconformado com o indeferimento do seu requerimento de intervenção principal provocada da G..., interpôs recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Na alegação de recurso apresentada formulou o agravante as conclusões seguintes [Cuja numeração, começada em 11 e indo até 20, para, aí, recomeçar em 11 e ir até 14, se não entende, pelo que se numerarão com início em 1 e sucessivamente até à última.]:
1) A interveniente é parte legítima porque tem interesse em responder;
2) Esse interesse está no facto de o pedido do recorrente ser, além de outro, o reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio ou prédios dos quais a Caixa Agrícola é detentora do crédito hipotecário.
3) A ser concedido o direito de retenção ao recorrente, tal direito confere ao recorrente o direito de receber o seu crédito primeiro que a Caixa Agrícola, pelo que a Caixa Agrícola tem interesse em contradizer.
4) Sobre o prédio identificado em 1º, 2º, 3º da p.i., nomeadamente sob as inscrições C1, C2, C3 e C4 da descrição sob o nº 3359, as inscrições C1, C2, C3 e C4 da descrição sob o nº 3390; e, as inscrições C1, C2, C3 e C 4 da descrição sob o n.° 3391, todas da freguesia de Pataias e da Conservatória do Registo Predial de Alcobaça, existem hipotecas voluntárias das quais a Caixa Agrícola é credora hipotecária que podem colidir com o direito de retenção do recorrente pedido na acção;
5) O direito de retenção do recorrente nos termos do nº 2 do artigo 759º do C.P.C. prevalece sobre as hipotecas, pelo que, a Caixa Agrícola poderá, querendo, pronunciar-se sobre esse direito de retenção, tendo assim interesse directo em contradizer, assim como, o recorrente tem interesse directo em demandar a Caixa Agrícola.
6) Como julgou o Acórdão de 02.03.2004 do Tribunal da Relação de Coimbra, Col. Jurisprudência 2004, II, pág. 8, a sentença que reconheça um direito de retenção sobre fracção, objecto de um contrato promessa definitivamente incumprido, não é juridicamente indiferente, face à preferência concedida pelo direito de retenção, ao titular de uma hipoteca sobre tal fracção.
7) O direito de retenção concedido ao promitente comprador para quem tiver havido tradição de bem, constitui um prejuízo jurídico para o titular do crédito hipotecário (no caso a Caixa Agrícola) pois a Caixa Agrícola vê colocar-se-lhe à frente um outro crédito com prioridade de pagamento.
8) Para o mesmo acórdão, a sentença que reconheça tal direito de retenção, não faz caso julgado em relação àqueles, juridicamente interessados, e que não hajam tido intervenção no processo em que tal sentença for proferida.
9) Havendo necessidade de, em relação à Caixa Agrícola, se dar a hipótese de se pronunciar sobre o direito de retenção visto o prejuízo jurídico que para si decorrerá, isto é, ver o crédito garantido pelo direito de retenção ficar à frente do crédito hipotecário, e, para o recorrente, a intervenção da Caixa Agrícola assegurará que a sentença faz caso julgado em relação a esta.
10) O recorrente pretende acautelar o seu direito de crédito por incumprimento do contrato promessa, por parte do responsável a apurar em audiência, o qual poderá ser, além da Ré B..., também a Caixa Agrícola, bem como, e mais importante, salvaguardar o seu direito de retenção, face às hipotecas registadas, de forma a que a sentença faça caso julgado em relação à Caixa Agrícola.
11) Nos termos do artigo 325º nº 1 do C.P.C.:
“Qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.”
Na dedução do incidente “o autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar” (nº 3 do citado artigo).
12) 0 A. ora recorrente, alegou e justificou o interesse que através da chamada pretende acautelar, isto é, justificou tudo o que aqui atrás se alega nesta alegações.
13) O tribunal “ad quo” violou o preceituado no artigo 325º do C.P.C., e restantes normas aplicáveis.
14) Pelo que, o tribunal “ad quo” deveria admitir e determinar o chamamento da G...
Não houve resposta.
Foi proferido despacho de sustentação.
Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se devia ou não ter sido admitida intervenção principal provocada da G..., requerida pelo A./agravante.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Para além dos resultantes do relatório antecedente, colhem-se nos autos ainda os seguintes elementos de facto relevantes para a decisão deste agravo:
3.1.1. A fracção referida nas als. c) e d) do pedido, sobre a qual o A. pretende que seja reconhecido o seu direito de retenção, é a que corresponde a um apartamento tipo T3, sito no rés-do-chão direito do “Bloco F”, composto por três quartos, 2 WC, sala, cozinha, hall de entrada e despensa, com um lugar de parqueamento na garagem;
3.1.2. O prédio urbano no qual se integra aquela fracção, referido na al. d) do pedido, é o construído pela R. nos lotes de terreno para construção sitos em Paredes da Vitória, freguesia de Pataias, concelho de Alcobaça, descritos na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob os nºs 3359, 3390 e 3391, todos da citada freguesia, constituído por três edifícios para habitação, distribuídos em forma de “U”, um situado ao longo da estrada Paredes da Vitória – Pataias, integrado por três Blocos, designados por “Bloco A”, “Bloco B” e “Bloco C”; outro, paralelo, situado a nascente daquele, também integrado por três Blocos, designados por “Bloco E”, “Bloco F” e “Bloco G”; e o terceiro situado entre os dois já referidos, para sul, integrado por apenas um Bloco, designado “Bloco D”;
3.1.3. Sobre cada uma das três mencionadas descrições prediais (nºs 3359, 3390 e 3391) estão registadas as inscrições C1, C2, C3 e C4, relativas a hipotecas voluntárias constituídas a favor da G....
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3.2. De direito
Nos termos do artº 325º, nº 1 do Cód. Proc. Civil [Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem outra menção.], qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
Tem direito a intervir na causa aquele que em relação ao objecto da mesma tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 27º e 28º, bem como aquele que, nos termos do artigo 30º, pudesse coligar-se com o autor, sem prejuízo do disposto no artigo 31º (cfr. artº 320º).
O interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu (artº 321º).

Nas alíneas c) e d) do pedido o A. impetrou o reconhecimento do direito de retenção, em primeira linha, sobre a fracção correspondente a um apartamento tipo T3, sito no rés-do-chão direito do “Bloco F”, composto por três quartos, 2 WC, sala, cozinha, hall de entrada e despensa, com um lugar de parqueamento na garagem, ou, assim não se entendendo, sobre a mesma fracção como parte integrante do prédio urbano construído pela R. nos lotes de terreno para construção sitos em Paredes da Vitória, freguesia de Pataias, concelho de Alcobaça, descritos na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob os nºs 3359, 3390 e 3391, todos da citada freguesia, constituído por três edifícios para habitação, distribuídos em forma de “U”, um situado ao longo da estrada Paredes da Vitória – Pataias, integrado por três Blocos, designados por “Bloco A”, “Bloco B” e “Bloco C”; outro, paralelo, situado a nascente daquele, também integrado por três Blocos, designados por “Bloco E”, “Bloco F” e “Bloco G”; e o terceiro situado entre os dois já referidos, para sul, integrado por apenas um Bloco, designado “Bloco D”;
Sucede que a G... é credora da R. “B...”, tendo registadas a seu favor várias hipotecas sobre as parcelas de terreno para construção onde foram erigidos os três edifícios que constituem o prédio em que a fracção supra referida se integra.
Nos termos do artº 686º do Cód. Civil, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Contudo, segundo o artº 759º do mesmo diploma legal, recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor, sendo que o direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
Ou seja, da mesma forma que à R. interessa o não reconhecimento do direito de retenção do A., igualmente à G... interessa esse não reconhecimento, já que este poderia fazer perigar a garantia real constituída pelas hipotecas de que os seus créditos beneficiam. O que significa que a G..., no que tange ao reconhecimento do direito de retenção do A., tem um interesse igual ao da R. “B...” podendo intervir espontaneamente na causa como parte principal. E, consequentemente, podendo a sua intervenção principal ser provocada por quem nela tenha interesse, isto é, no caso, pelo A..
Com efeito, o A. tem interesse na intervenção principal da G..., convindo-lhe que a esta se estenda o efeito de caso julgado (artº 328º) do eventual reconhecimento do seu direito de retenção, por forma a impedir que, em posterior concurso de credores, aquela se defenda com a circunstância de não ter tido qualquer intervenção no processo e, por isso, não estar obrigada a submeter-se ao aí decidido [Cfr. Acórdão desta Relação de 02/03/2004, in CJ, XXIX, II, 8, referido na alegação de recurso.] . Assim fica acautelado o eventual crédito do A., uma vez que, mercê da prevalência do direito de retenção sobre as hipotecas, obteria cobrança à frente dos créditos hipotecários.
Afigura-se-nos, pois, que estão reunidos todos os requisitos substanciais e formais relativos à intervenção principal provocada da G..., razão pela qual se entende que vingam as conclusões da alegação de recurso, o que conduz ao provimento do agravo e à consequente revogação do despacho recorrido.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido e admitindo-se a intervenção principal provocada da G..., como associada das RR..
Sem custas (artº 2º, nº 1, al. g) do Cód. Custas Judiciais).
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Coimbra,