Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3141/18.4T9VIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO POR REMISSÃO
DECLARAÇÕES DE CO-ARGUIDO
CARGO POLÍTICO
CONCEITO DE FUNCIONÁRIO
SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES
PENAS ACESSÓRIAS APLICÁVEIS A TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO DECURSO DO INQUÉRITO OU DA INSTRUÇÃO DO PROCESSO
PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO E RECUSAR, COM FUNDAMENTO NA SUA INCONSTITUCIONALIDADE, A APLICAÇÃO DA NORMA DO ARTIGO 199.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, INTERPRETADA NO SENTIDO DE A MESMA ABRANGER OS TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS
Legislação Nacional: ARTIGO 164.º, ALÍNEA M), DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA/CRP
ARTIGO 386.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 1.º, 3.º, N.º 1, ALÍNEA I), 11.º, 26.º, 27.º-A E 29.º DA LEI N.º 34/87, DE 16 DE JULHO/CRIMES DA RESPONSABILIDADE DE TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS
ARTIGOS 193.º, N.º 1, 199.º, N.º 1, ALÍNEA A), 204.º, ALÍNEA B), E 345.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – A medida de coação de proibição de contactos é aplicável a titular de cargo político, se as penas aplicáveis aos crimes indiciados forem superiores a 3 anos de prisão, como prevê o artigo 200.º, n.º 1, alínea d), do C.P.P.
II – O membro de órgão representativo de autarquia local é titular de cargo político.
III – Não tendo o legislador aproveitado a Lei n.º 94/2021, de 21/12, para introduzir a possibilidade da aplicação da medida de coacção de suspensão do exercício de funções a titular de cargo político ou para remeter expressamente para o disposto no artigo 199.º do C.P.P. nesse sentido, sai reforçado o entendimento de que se mantém actual a jurisprudência do acórdão do Tribunal constitucional n.º 41/2000.
IV – É inconstitucional a interpretação do artigo 199.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P. no sentido de o mesmo abranger os titulares de cargos políticos, maxime os titulares de órgãos representativos autárquicos, por violação do disposto no artigo 164.º, alínea m), da Constituição da República Portuguesa, atenta a ausência de norma que para ele expressamente remeta na lei que define o regime da responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos.
V – O perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova consiste no risco, sério e actual, de ocultação ou alteração da mesma por parte do arguido.
VI – A perturbação da ordem e tranquilidade públicas consiste na potencialidade de a conduta criminosa do arguido ter potencialidades objectivas (natureza e circunstâncias) ou subjectivas (personalidade) para continuar a causar alarme ou mesmo para manter a atividade delituosa, conclusão que exige um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciada atividade delituosa.
Decisão Texto Integral: *

I. RELATÓRIO

1. … foi o arguido AA …[1]  presente Mmº Juiz de Instrução Criminal para primeiro interrogatório judicial, findo o qual foi proferido despacho, a 12-05-2023 [referência93016868], a considerar que a matéria de facto fortemente indiciada consubstancia a prática pelo arguido, em concurso real:

- na forma consumada e em coautoria com os arguidos …, de um crime de prevaricação, previsto e punido pelos artigos 3º, nº 1, alínea i) e 11º da Lei 34/87, de 16 de Julho, e artigo 28º do Código Penal, cuja moldura abstratamente aplicável é de 2 a 8 anos de prisão;

- na forma consumada e em coautoria com os arguidos …, de um crime de abuso de poderes, previsto e punido pelo artigo 26º, nº 1 da Lei 34/87, de 16 de Julho, e artigo 28º do Código Penal, cuja moldura abstratamente aplicável é de 6 meses a 3 anos de prisão ou multa de 50 a 100 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

Por se ter igualmente considerado estarem preenchidos os pressupostos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 204º Código de Processo Penal, decidiu-se aplicar ao identificado arguido, para além da medida de coação de Termo de Identidade e Residência, as medidas de:

- suspensão do exercício da função de Presidente da Câmara … [artigo 199º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal];

- proibição de contactar, por qualquer meio, por si ou interposta pessoa, com os coarguidos, testemunhas inquiridas nos autos, donos das obras identificados nos autos e funcionários da Câmara Municipal … [artigo 200º nº1 alínea d) do Código de Processo Penal]

           

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, pugnando pela revogação das medidas de coação de suspensão do exercício da função de Presidente da Câmara Municipal … e de proibição de contactar, por qualquer meio, por si ou interposta pessoa, com os coarguidos, testemunhas inquiridas nos autos, donos das obras identificados nos autos e funcionários da Câmara Municipal …

2.1 - O recorrente concluiu a sua motivação do seguinte modo (transcrição).

            «…

3. Por despacho do MP de fls. 244 e seguintes, de 27/04/2021, foi determinada a realização de uma perícia aos processos de contra-ordenação e urbanísticos apreendidos à data, perícia que foi realizada e cujo relatório consta de fls. 279 a 325.

4. O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador (art.º 163º, nº 1 do CPP).

6. Os documentos integradores dos processos de contra-ordenação e urbanísticos que contenham exarados pelos vereadores e pelos funcionários municipais  com as formalidades legais e dentro dos limites da sua competência, constituem documentos autênticos (artº 363º, nº 2 do Código Civil).

7. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (artº 371º, nº 1  do Código Civil).

9. Da totalidade da prova documental susceptível de ser qualificada como correspondendo a documentos autênticos que suporta a totalidade dos processos contra-ordenacionais e urbanísticos que se referem à totalidade dos factos objectivos fortemente indiciados por referência a tais processos … resulta que nenhum comportamento pode ser imputado ao Recorrente por referência a nenhum de tais processos, nem por acção nem por omissão, tendo em conta a delegação/subdelegação de poderes com que o arguido BB … neles praticou todos os actos enquadráveis no disposto na alínea n), do nº 2 do artigo 35º do Regime Jurídico das Autarquias Locais aprovado pela Lei nº 75/2013, de 12 de Setembro.

10. Assim, relativamente ao Recorrente, não podem considerar-se indiciados factos que contrariem os factos que se devam ter por demonstrados em resultado da prova documental por documentos autênticos e da prova pericial constante dos autos, …

…»

3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, …

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer …

5. Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o Recorrente apresentou resposta …[2].

6. O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objeto do recurso.

            …[3].

                                                                       ***

                                                           ***

            Conhecida a questão colocada, o objeto do recurso centra-se nas seguintes questões:

            1ª - A inexistência de fortes indícios da prática dos factos imputados ao Recorrente no despacho recorrido.

            2ª – Inexistência dos perigos e exigências cautelares a que alude e em que se funda o despacho recorrido, bem como a legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas de coação aplicadas.            

2. A decisão recorrida.

O despacho recorrido é do seguinte teor

No âmbito dos presentes autos mostra-se fortemente indiciada a prática, em co-autoria e na forma consumada, … de um crime de prevaricação, … de um crime de abuso de poderes, e … um crime de violação de regras urbanísticas.

Os indiciados crimes são graves, desde logo porque são crimes cometidos no exercício de funções administrativas de titulares de cargos políticos (arguidos … – artigo 3º, nº 1, alínea i) da Lei nº 34/87, de 16 de Julho) e no exercício de funções públicas (arguidos …).

No caso em apreço existem elementos nos autos que permitem, em concreto, demonstrar a existência dos perigos de continuação da actividade criminosa, perturbação do inquérito e perturbação da ordem e tranquilidades públicas.

Os arguidos mantêm-se actualmente em exercício de funções no Município …, nos aludidos cargos.

O arguido AA … mantém-se no cargo de Presidente da Câmara Municipal … e desde 2021 assume o pelouro referente ao ordenamento e urbanismo. Os factos praticados pelos demais arguidos, no que se reporta ao crime de prevaricação, foram em concluio com o arguido AA …, tendo o mesmo conhecimento dos factos acima retratados e pelos quais teve participação activa. …

O arguido BB … mantém-se como Vice-Presidente da Câmara Municipal …, tendo sido encontrados na sua posse queixas concretizadas por moradores locais contra o outro fiscal do Município por não efectuar as obrigações a que estava obrigado a cumprir. …

Pelo menos desde 2019 a 2023, período durante o qual se verificaram várias buscas, os arguidos não alteraram as suas condutas, mostrando assim indiferença pelos cumprimentos dos seus deveres e regras a que os mesmos têm de obedecer. …

Entende-se, por conseguinte, que se verifica o perigo de continuação da actividade criminosa relativamente à ausência de tramitação e/ou tramitação anómala de processos de contra-ordenação e não cobrança de coimas dos mesmos, permitindo-se que não exista qualquer decisão definitiva no prazo legalmente exigido aquando dos embargos levantados, lesando, por conseguinte, o erário público, bem como relativamente à violação das regras/normas do ordenamento e urbanismo.

Por outro lado, existe também perigo de perturbação do inquérito, designadamente no que toca à aquisição e conservação da prova, em face dos contactos ou até pressões que podem ser exercidos pelos arguidos relativamente a outros intervenientes processuais, designadamente, as testemunhas já inquiridas nos autos e terceiros a inquirir, particularmente, funcionários do Município e/ou donos das obras, no sentido de condicionar o seu depoimento, bem como destruir ou ocultar documentos com relevância probatória para os factos em investigação e que ainda possam não se mostrar coligidos.

Os factos indiciados são, ainda em nosso entender, demonstrativos de que, em razão da natureza, circunstâncias dos crimes e atenta a responsabilidade política e funcional dos arguidos, existe perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Com efeito, é necessário assegurar aos cidadãos que qualquer serviço que envolva a prestação de uma actividade pública funciona de acordo com a lei, respeitando o ordenamento jurídico e o ordenamento do território. Está em jogo a eficácia e o prestígio do funcionamento dos órgãos estaduais, bem como a ideia de imparcialidade e respeito pela legalidade no exercício de funções político-administrativas. É a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e a credibilidade das mesmas que devem ser salvaguardadas, garantindo-se para o efeito a fidelidade à lei e ao direito no exercício de funções públicas. No caso em apreço atenta a responsabilidade política e funcional dos arguidos e as repercussões que as mesmas têm perante a comunidade e sociedade em geral, ao ser de forma expressa beneficiados particulares e prejudicado o erário público, torna-se, pois, essencial, acautelar quaisquer comportamentos que abalem a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e na actividade da administração em geral, dissuadindo comportamentos criminosos como os dos presentes autos.

Face aos perigos concretos invocados, a mera sujeição dos arguidos a TIR não se afigura suficiente …

Desde logo … justifica-se plenamente a suspensão do exercício de profissão/função públicas, pois ante as funções ainda exercidas pelos arguidos e todo o circunstancialismo que rodeou a prática dos factos, torna-se imperioso o afastamento dos arguidos destas suas funções, impedindo-se, desta forma, que os mesmos possam prosseguir com a violação grosseira e reiterada das regras/normas do ordenamento do território e do urbanismo, e do regime contra-ordenacional, beneficiando os residentes locais e prejudicando o erário público e o interesse local, bem como impedindo-se que os mesmos possam destruir ou ocultar elementos probatórios com relevância probatória para os factos em investigação e ainda não coligidos (artigo 199º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal).

A suspensão do exercício de profissão/funções públicas é a medida que se revela assim adequada e necessária, mas também suficiente, para salvaguardar as exigências cautelares que nesta fase processual se fazem sentir, bem como proporcional quer à gravidade dos crimes, quer às sanções que previsivelmente serão de aplicar.

Por fim, mas não menos importante, justifica-se a proibição de contactos, por qualquer meio, entre arguidos, bem como a proibição de contactos, por qualquer meio, dos arguidos com as testemunhas já inquiridas nos autos, com os donos das obras identificados na factualidade fortemente indiciada e ainda com os funcionários do Município … (artigo 200º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal).

DECISÃO

Por todo o exposto, em face dos factores expostos e ao abrigo do disposto nos artigos 191º a 193º, 194º, 195º, 196º, 199º, nºs 1, alínea a) e 2, 200º, nº 1, alínea d) e 204º, alíneas b) e c) todos do Código de Processo Penal determina-se que:

- o arguido AA … aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coacção:

. obrigações decorrentes do TIR já prestado nos autos;

. suspensão do exercício da função de Presidente da Câmara Municipal …;

. proibição de contactar, por qualquer meio, por si ou interposta pessoa, com os co-arguidos, testemunhas inquiridas nos autos, donos das obras identificados nos autos e funcionários da Câmara Municipal …»

3. Apreciação do recurso.

Apreciemos, então, as questões que constituem objeto do recurso.

            3.1. – Da inexistência de fortes indícios da prática dos factos imputados ao Recorrente no despacho recorrido.

            Resulta do teor das conclusões 1. a 39. que o Recorrente considera que não existem nos autos indícios da prática dos factos que lhe são imputados no despacho recorrido.

            Isto porque, em síntese, da prova documental e pericial constante dos autos não resulta demonstrada qualquer intervenção da sua parte no que respeita à tramitação dos processos de obras em causa nos autos …

            Compulsado o teor do despacho em crise no que concerne à sua fundamentação, não podemos deixar de concluir que o mesmo obedece às exigências impostas pelo disposto no artigo 194º nº6 do Código de Processo Penal, …

            …

            Prosseguindo.

No despacho recorrido foram considerados fortemente indiciados factos suscetíveis de integrarem a prática pelo arguido, em coautoria, de um crime de prevaricação previsto e punido previsto e punido pelos artigos 3º, nº 1, alínea i) e 11º da Lei 34/87, de 16 de Julho, e artigo 28º do Código Penal, cuja moldura abstratamente aplicável é de 2 a 8 anos de prisão e de um crime de abuso de poderes, previsto e punido pelo artigo 26º, nº 1 da Lei 34/87, de 16 de Julho, e artigo 28º do Código Penal, cuja moldura abstratamente aplicável é de 6 meses a 3 anos de prisão ou multa de 50 a 100 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

            As medidas de coação aplicadas são, a prevista no artigo 199º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal (suspensão do exercício da função de Presidente da Câmara …) e a prevista no artigo 200º nº1 alínea d) do mesmo código (proibição de contactar, por qualquer meio, por si ou interposta pessoa, com os coarguidos, testemunhas inquiridas nos autos, donos das obras identificados nos autos e funcionários da Câmara Municipal …).

            Os requisitos específicos da aplicação destas medidas de coação, mormente da prevista no artigo 200º nº1 alínea d) - já que, como vereemos infra, a aplicação da prevista no artigo 199º não cumpre o princípio da legalidade e é inaplicável ao Recorrente[4] -, é a existência de “fortes indícios” da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.

Tendemos a interpretar o conteúdo da expressão “fortes indícios” de forma similar ao que correspondem os “indícios suficientes” a que aludem outros normativos legais, utilizados, por exemplo, para definir um dos pressupostos essenciais para a dedução da acusação e para a prolação do despacho de pronúncia em processo penal (vide artigos 283º, nº1 e 308º, nº1, ambos do Código de Processo Penal).

Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – cf. nº2 do artigo 283º do Código de Processo Penal.

Assim, a existência de fortes indícios da prática de um crime significará que daqueles indícios resulta uma possibilidade razoável de futura condenação do arguido. Pressupõe, pois, uma convicção, fundada nos elementos de prova disponíveis no momento em que a respetiva decisão é proferida – no caso, em fase de inquérito – da probabilidade da futura condenação do arguido[5].

Observa-se, desta forma, o princípio constitucional da presunção de inocência plasmado no artigo 32º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, o qual deve, por isso, incidir diretamente na formulação do sobredito juízo de probabilidade.

Conforme se afirma no recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-02-2023:[6]

I – Os fortes indícios, das alíneas a) a e) do nº 1 do art. 202º do C.P.P. não equivalem a comprovação categórica e sem dúvida razoável, exigível para a condenação, antes significam que os elementos de prova disponíveis no momento da aplicação da medida suportam a convicção, objectivável, de ser maior a probabilidade de futura condenação do arguido do que a da sua absolvição, ou, noutra formulação, quando deles seja possível inferir como altamente provável a futura condenação do arguido ou, pelo menos, como mais provável, a condenação do que a absolvição ou, ainda, quando impliquem a existência de uma base factual consistente que permita seriamente inferir a possibilidade da condenação.

II – O conceito de fortes indícios é equivalente ao conceito de indícios suficientes, do art. 283º, nº 2 do C.P.P., pois ambos assentam numa sólida indiciação de futura condenação, distinguindo-os o momento da decisão no processo.

III – A qualificação dos indícios como fortes, para além da rigorosa ponderação dos elementos de prova disponíveis, depende também do concreto momento processual em que essa ponderação é feita e dos elementos disponíveis nesse momento, podendo essa qualificação modificar-se na sequência do desenrolar da investigação, seja pela aquisição de novos elementos, seja pela degradação dos elementos primeiramente colhidos.

IV – Os mesmos indícios probatórios podem ser suficientes para concluir pela existência de fortes indícios da prática do crime no âmbito da aplicação da medida de coacção e insuficientes para permitirem a dedução da acusação.”

No caso sub judice, o Tribunal a quo, atendendo aos meios de prova produzidos nos autos até àquele momento, que elencou na decisão e examinou concatenada e criticamente, concluiu, de modo que não nos merece censura, estar fortemente indiciada a coautoria pelo arguido dos crimes de prevaricação e de abuso de poderes, …

            Ainda assim, cabe apreciar os motivos de dissensão do Recorrente, o qual considera que o Tribunal fez uma incorreta avaliação das provas existentes no momento da decisão.    

            O primeiro erro apontado à decisão pelo Recorrente é o de da prova documental e pericial constante dos autos não resultar demonstrada qualquer intervenção da sua parte no que respeita à tramitação dos processos de obras em causa nos autos não lhe podendo ser assacado qualquer comportamento ilícito [conclusões 1. a 11.].

            Concorda-se com o Recorrente no que respeita ao valor da prova documental e pericial constante dos autos.

            Contudo, não se pode concordar com a conclusão a que chega o Recorrente de que tais provas não foram devidamente valoradas pelo Tribunal a quo e que, das mesmas resulta não lhe poder ser assacado qualquer comportamento ilícito.

            O Tribunal valorou devidamente essas provas, tanto mais que não consta da matéria de facto indiciada que o Recorrente tenha tido uma intervenção na condução dos processos de obras traduzida em decisões formais tomadas por si no âmbito desses processos. O que o Tribunal considerou indiciado foi que o Recorrente, enquanto autoridade máxima do executivo camarário, por um lado, não cuidou que os procedimentos legais fossem cumpridos, competência que, apesar da delegação de poderes não deixa de ter e que exerceu pressão sobre os demais intervenientes nos processos em causa para que os mesmos não fossem tramitados adequadamente.

            Deste tipo de intervenção existe prova abundante nos autos, conforme exarado na decisão recorrida.

            …

            Passamos agora a analisar o reparo que, no recurso, é feito à circunstância de o Tribunal assentar a sua convicção, em parte, também nas declarações prestadas pela coarguida … perante OPC – [conclusões 25. e 26.].

            Vejamos.

            A coarguida prestou declarações nessa qualidade perante a Polícia Judiciária, sendo que, nessas declarações relatou factos que incriminam o Recorrente e, prestou declarações em sede de interrogatório que precedeu o despacho em crise, perante juiz, em que nada afirmou em seu desabono …

                O Tribunal a quo assentou a sua convicção, para além do mais, no teor daquelas primeiras declarações e, em nosso entender é, pelo menos, discutível que assim devesse ter procedido.

                A questão insere-se na controvérsia relativa ao valor das declarações de coarguido em prejuízo de outro coarguido que, em boa parte, foi ultrapassada pela redação que foi dada, na sua sequência, ao nº4 do artigo 345º no que se refere a declarações prestadas em sede de julgamento.

            Estabelece o artigo 345º nº 4 do Código de Processo Penal que:

                “4 - Não podem valer como meio de prova as declarações de um coarguido em prejuízo de outro coarguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.ºs 1 e 2.”

            Ou seja, desde que se assegure o contraditório, nada obsta a que tais declarações sejam valoradas, não obstante o dever de as mesmas serem cuidadosamente interpretadas, nomeadamente convocando a corroboração das mesmas por outros meios de prova.

             O grau de exigência no cumprimento do princípio do contraditório, tendo em conta o momento em que as declarações a valorar foram prestadas, é objeto de abordagens distintas, quer da doutrina, quer da jurisprudência.

            Vide a este propósito o que afirma Pedro Soares de Albergaria in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Almedina, setembro de 2022, Tomo IV, página 481, remetendo-se para a citação de doutrina e jurisprudência que ali consta em abono das duas posições distintas a este propósito.

            De todo o modo, …, sempre se assinala que, no caso dos autos, nos parece que aquelas declarações não deveriam ter sido valoradas.

            A questão, mesmo para aqueles que admitem valorar este tipo de declarações prestadas em sede de inquérito, vem sempre colocada em face de declarações prestadas em sede de inquérito na presença de magistrado e de defensor e com a advertência ao declarante do disposto no artigo 141º nº 4 alínea b) do Código de Processo Penal.

            Ora, no caso dos autos, as declarações prestadas pela coarguida … foram-no perante OPC (Polícia Judiciária) sem que a declarante tenha estado assessorada por Defensor e sem que os demais arguidos tenham tido a possibilidade de se fazer representar, não tendo, assim, qualquer possibilidade de contraditar no momento da aquisição da prova.

            Mais, do que se trata nos autos é de fundamentar um juízo de indiciação de factos, uma convicção, fundada nos elementos de prova disponíveis no momento em que a respetiva decisão é proferida – no caso, em fase de inquérito – da probabilidade da futura condenação do arguido.

            É indubitável que, em face do teor dos artigos 355º e 357º do Código de Processo Penal, as declarações em causa só poderiam ser valoradas em sede de julgamento (e por isso suportarem uma condenação) se a respetiva leitura fosse feita a pedido do próprio arguido que as produziu. Ora, no caso dos autos, tendo em conta a postura assumida pela arguida no primeiro interrogatório judicial de arguido não é razoável esperar que a sua estratégia de defesa para o futuro seja no sentido que ressuma dessas declarações, pelo que, sempre as mesmas declarações não poderiam ser valoradas em sede de audiência de julgamento, por não ser expectável a sua leitura nessa sede, a pedido da declarante.

            É bem certo que a fase em foi proferido o despacho em recurso não é a de julgamento e os indícios de que se trata são os destinados à fundamentação da aplicação de uma medida de coação e não de uma condenação, contudo, não pode ignorar-se que os indícios fortes não pode alhear-se da perspetiva de uma futura condenação.

            “O interrogatório, nomeadamente o que nele for referido pelo arguido, quando efetuado por OPC (ou entidade equiparada) não comporta, no entanto, as mesmas consequências do interrogatório efetuado por autoridade judiciária, no âmbito da valoração da prova daí decorrente em sede de julgamento, nomeadamente, a possibilidade da reprodução em audiência de tais declarações, sem ser a sua própria solicitação (cfr. artigo 357º). Esse é um princípio inelutável que não sofre qualquer exceção. A regra da “transmissibilidade” nunca se aplica quando há declarações prestadas pelo arguido perante OPC (ou a funcionários de justiça), ainda que em interrogatório efetuado por estes, desde que não seja a sua própria solicitação.” [7]  

            A arguida foi interrogada por OPC e não por autoridade judiciária; não foi advertida nos termos do disposto no artigo 141º nº4 alínea b) e não se encontrava assistida por defensor, tudo circunstâncias que conferem às declarações prestadas grande fragilidade a que acresce o facto de não ter sido convenientemente garantido o cumprimento do contraditório.

            Assim, censura-se a decisão em recurso no que concerne à valoração destas declarações mas tal não significa que não se acompanhe a mesma no que tange a não ter sido dado crédito às declarações prestadas pela mesma arguida perante o Juiz na parte em que as mesmas são no sentido de negar qualquer responsabilidade do recorrente nos procedimentos adotados no âmbito dos processos de obras em causa nos autos.

            O Tribunal não credibilizou estas declarações, e bem, tendo em conta que as mesmas não têm respaldo na demais prova produzida e abundantemente escrutinada pelo Tribunal e que aponta no sentido dessa responsabilização.

            Em conclusão, considerando a demais prova existente nos autos, a decisão sobre a indiciação de factos não fica, de nenhuma forma comprometida, ainda que não se considere o teor das declarações prestadas pela coarguida perante OPC.

            Finalmente [conclusões 27. a 39.], considera o Recorrente que a decisão em recurso violou o princípio da livre apreciação da prova …

O princípio da livre apreciação da prova, constituindo um princípio estruturante do direito processual penal português, encontra-se vertido no artigo 127º do Código Processo Penal, que preceitua: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente.”

            Tal princípio está intimamente conexionado com o princípio da descoberta da verdade material e contrapõe-se ao sistema probatório fundado nas provas tabelares ou tarifárias que estabelece um valor racionalizado a cada prova, porquanto por via da livre apreciação da prova concede-se ao julgador um âmbito de discricionariedade, ainda que limitada, na valoração de cada uma das provas atendíveis que estribam a decisão de facto.

Assim também tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional, num juízo de conformidade do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal com a Constituição.[8]

In casu, consideramos que o tribunal a quo interpretou corretamente e em conformidade com os ditames constitucionais o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Na verdade, o Mm.º. Juiz explanou, de modo claro e percetível, na fundamentação da decisão sobre os factos indiciados, as fontes probatórias que acolheu para a tomada de decisão, o respetivo conteúdo e alcance, e, outrossim, por que motivo credibilizou umas e descredibilizou outras, sempre dentro dos limites legais da livre convicção, respeitando as regras da experiência e da lógica.

A distinta convicção extraída pela defesa da prova produzida não prevalece, sem mais, sobre a livre apreciação do Tribunal, tanto mais que, reitera-se, a mesma não se revela notoriamente violadora das regras de experiência, pelo contrário, o juízo probatório efetuado pelo Tribunal recorrido é o que se apresenta como mais clarividente e conforme ao sentido da globalidade da prova produzida nos autos. 

            Atento tudo o exposto, improcede o recurso nesta parte.

3.2.Da inexistência dos perigos e exigências cautelares a que alude e em que se funda o despacho recorrido, bem como a legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas de coação aplicadas.

           

3.2.1. Dos pressupostos legais específicos de aplicação das medidas de coação de suspensão do exercício de funções e da proibição de contactos.

O Recorrente, para além de contestar a decisão em recurso na parte em que a mesma considera estarem presentes os requisitos gerais de aplicação das medidas de coação em causa, invocando a violação, por parte do Tribunal a quo do disposto no artigo 204º alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, invoca, igualmente, embora de forma não fundamentada, a violação do disposto no artigo 191º do mesmo código [conclusões 40. a 54.].

Analisando.

Considerando o decidido supra (factos indiciados e qualificação jurídica dos mesmos), pode desde já dar-se por assente que a medida de coação de proibição de contactos, prevista no artigo 200º nº1 alínea d) do código de Processo Penal é aplicável ao caso dos autos e ao Recorrente.

Com efeito, estabelece aquele preceito que:

1 - Se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativa ou separadamente, as obrigações de:

(…)

d) Não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas ou não frequentar certos lugares ou certos meios;

Na medida em que o arguido vem indiciado pela prática de factos suscetíveis de integrarem a prática, em coautoria, de um crime de prevaricação previsto e punido previsto e punido pelos artigos 3º, nº 1, alínea i) e 11º da Lei 34/87, de 16 de Julho, e artigo 28º do Código Penal, cuja moldura abstratamente aplicável é de 2 a 8 anos de prisão e de um crime de abuso de poderes, previsto e punido pelo artigo 26º, nº 1 da Lei 34/87, de 16 de Julho, e artigo 28º do Código Penal, cuja moldura abstratamente aplicável é de 6 meses a 3 anos de prisão ou multa de 50 a 100 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal, mostram-se preenchidos os aludidos requisitos específicos.

Já quanto à medida de suspensão do exercício de funções de Presidente da Câmara …, decretada ao abrigo do disposto no artigo 199º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal, tais requisitos não podem ter-se por verificados, desde logo por a sua aplicação ao Recorrente violar, efetivamente, o princípio da legalidade, embora por razões que não foram objeto de qualquer tratamento no presente recurso.

…, não cuidou o Tribunal a quo de ter em consideração que, sendo o Recorrente titular de cargo político, aquela medida de coação não lhe é aplicável, precisamente, porque, como veremos, a mesma não está prevista na lei para titulares de cargos políticos.

É o que resulta da jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional plasmada no acórdão nº41/2000[9] a qual, como veremos, apesar das alterações legislativas, entretanto ocorridas, se mantém atual.

O aresto em causa produziu, a final, a seguinte decisão:

Nestes termos, decide-se:

a) interpretar a norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 199º do Código de Processo Penal, como não abrangendo os titulares de cargos políticos;”

Tal decisão assenta num juízo de inconstitucionalidade orgânica, cujos fundamentos passamos a referir de forma sumária, com o objetivo de aferir se a jurisprudência em causa se mantém (atento o facto de terem decorrido mais de vinte anos sobre aquela decisão) não obstante as alterações na redação dos preceitos em causa e da legislação aplicável e se a mesma é aplicável ao caso dos autos tendo em consideração os contornos do mesmo.

O acórdão em causa foi prolatado no âmbito de processo em que o Tribunal decretou a medida de suspensão de funções a um Presidente de Câmara. Este recorreu invocando, para além do mais, a inconstitucionalidade do artigo 199º do Código de Processo Penal, por violação dos artigos 120º e 121º da Constituição, juntando aos autos parecer do Prof. Vital Moreira, no qual este jurista defende que “os presidentes da câmara municipal não podem ser suspensos das suas funções autárquicas, por falta de credencial legal para essa grave medida de coação.”

O Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso afirmando a conformidade constitucional da interpretação dada ao artigo 199º do CPP, integrando no conceito de função pública o cargo político de Presidente da Câmara.

Foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional com base na invocada inconstitucionalidade acompanhando o mesmo, cópia do aludido parecer, em cuja argumentação se estriba.

O Ministério Público, nas suas contra-alegações, pugna pela improcedência do recurso, apoiando-se maioritariamente no teor do Parecer da Procuradoria-Geral da República nº126/1990 de 24-4-1991, publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Outubro de 1991, no processo nº 126/90, …

O Tribunal Constitucional, escalpelizando os argumentos esgrimidos em ambos os pareceres, funda a sua decisão de inconstitucionalidade acima referida, em síntese, no seguinte (transcrição):

a) – Não se pode entender, como o faz a decisão recorrida, que o conceito de funcionário «em termos penais assume hoje um significado lato indo ao encontro da perspectiva constitucional mais lata do exercício da função pública», uma vez que a Lei Fundamental diferencia de forma clara o regime da função pública daquele próprio dos titulares de cargos políticos, não decorrendo do texto constitucional o pretendido conceito amplo de função pública. Aliás, o próprio Código Penal dispõe, no nº 3 do artigo 386º que «a equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial», assim assumindo aquela diferenciação. Logo, não se pode entender que do Código Penal decorre - ou que este adopta - um conceito lato de funcionário, capaz de abranger os titulares de cargos políticos, pois o que expressamente dele decorre é antes a exclusão dessa «equiparação», remetendo-a para lei especial quando deva ocorrer.

Por outro lado, mal se entenderia a pretendida exclusão dos titulares de cargos autárquicos - nomeadamente dos presidentes de câmara - desse regime especial, face a todos os restantes titulares de cargos políticos, não encontrando tal opção qualquer assento constitucional.

b) - E, nesta conformidade, a Lei nº 34/87, que define e regulamenta os crimes de responsabilidade dos titulares de órgãos políticos - em cumprimento do nº 3 do artigo 117º da Constituição - ao elencar os cargos políticos, no seu artigo 3º, refere expressamente, na alínea i), o cargo de «membro de órgão representativo de autarquia local». Com efeito, os titulares de órgãos autárquicos são eleitos por sufrágio directo, revestindo também o seu mandato natureza electiva e representativa.

c) - Ora, esta pretensa sujeição dos titulares de órgãos autárquicos – in casu, presidentes de câmara - à regra geral do artigo 199º do CPP suscita, desde logo, a questão de saber se uma norma do Código de Processo Penal, constante de um diploma elaborado pelo Governo ao abrigo de uma autorização legislativa, pode regular esta matéria sem incorrer em inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea m) do artigo 164º da Constituição, a qual estabelece a reserva absoluta de competência da Assembleia da República relativamente ao estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais eleitos por sufrágio directo e universal.

Com efeito, esta matéria – aplicação de medida de suspensão do exercício do cargo político em processo penal em curso – é indiscutivelmente matéria relativa ao estatuto dos órgãos do poder local (…) E tanto assim é que, de resto, relativamente aos Deputados à Assembleia da República, essa matéria encontra-se expressamente prevista no respectivo Estatuto. (…) A igual regime estão sujeitos os membros do Governo – cfr. artigo 196º do texto fundamental.

d) - Já, porém, o Estatuto dos Eleitos Locais (Lei nº 29/87, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 97/89, de 15 de Dezembro, pela Lei nº 1/91, de 10 de Janeiro, pela Lei nº 11/91, de 17 de Maio, pela Lei nº 127/97, de 11 de Dezembro e pela Lei nº 50/99, de 24 de Junho) é omisso em relação a esta matéria, razão pela qual a Lei das Autarquias (actualmente constante da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro), apenas prevê os casos de suspensão do mandato a pedido do titular, nomeadamente por doença, afastamento da área da autarquia por período superior a trinta dias ou exercício dos direitos de paternidade ou maternidade (cfr. artigo 77º). E o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, com as respectivas alterações, agora revogado pela Lei nº 169/99, mas em vigor à data da prolação do acórdão recorrido, apenas previa igualmente essa suspensão a pedido do titular.

 É certo que, apesar de a Lei nº 34/87, de 16 de Julho, ao regular a suspensão do mandato dos titulares dos cargos nela enunciados, nada prever para os membros dos órgãos das autarquias locais, o artigo 32º do mesmo diploma determina que «à instrução e julgamento dos crimes de responsabilidade de que trata a presente lei aplicam-se as regras gerais de competência e de processo, com as especialidades constantes dos artigos seguintes».

e) - Ora, como se assinalou, os artigos 34º a 39º da Lei nº 34/87 dispõem em especial no tocante às regras de processo aplicáveis a outros titulares de cargos políticos, designadamente aos membros de Governo e aos Deputados, reproduzindo aquelas regras já enunciadas relativamente à respectiva suspensão (a decidir pela Assembleia da República), não dispondo de qualquer norma semelhante para os membros de órgãos representativos das autarquias locais.

Mas daí não decorre necessariamente a conclusão de que aos titulares dos órgãos autárquicos se há-de aplicar o regime geral do CPP, equiparando-os aos funcionários públicos, no que se reporta à suspensão do respectivo mandato como medida de coacção.

O sentido primordial das normas especiais dos artigos 34º e seguintes da Lei nº 34/87 consiste em fazer depender o seguimento do procedimento criminal contra os titulares de órgãos políticos neles indicados da existência de uma prévia decisão política. Ora, é essa imunidade que a Lei nº 34/87 não reconhece aos titulares de órgãos autárquicos.

f) - Neste contexto, a ausência de tratamento especial relativamente aos autarcas nos artigos 34º e segs. da Lei nº 34/87 radica no entendimento de que se considera desnecessário um tal regime especial de imunidades para esses titulares de cargos políticos, sem que daí deva necessariamente decorrer a aplicabilidade do regime geral do artigo 199º do CPP, destinado a tutelar um outro interesse, que já não o da imagem das instituições – aqui, o que releva é o mero interesse processual.

Assim sendo, a norma constante do artigo 199º do Código de Processo Penal, se fosse interpretada no sentido de abranger os titulares de cargos políticos, maxime os titulares de órgãos representativos autárquicos, entraria em colisão com o disposto no citado artigo 164º, alínea m), da Constituição, na ausência de norma que para ela expressamente remeta, na lei que define o regime da responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos.

Não é essa, porém, a melhor leitura da disposição em causa, a qual, interpretada no seu sentido literal, não abrange a situação em apreço.” (sublinhados nossos).

Compulsadas as diversas redações que, entretanto, conheceram, quer os artigos 199º e 386º do Código de Processo Penal, quer a Lei nº34/87 de 16 de julho, verificamos não ter ocorrido alteração legislativa que permita ultrapassar a apontada inconstitucionalidade, uma vez que o legislador continua a não prever a aplicação da medida de coação de suspensão do exercício de funções a titulares de órgãos autárquicos, mantendo-se, assim, atuais, os descritos fundamentos daquele juízo de inconstitucionalidade.

Vejamos.

Quanto ao artigo 199º nº 1 do Código de Processo Penal (disposição em que se funda a decisão em recurso nos autos), corresponde à redação originária aprovada pelo Decreto-lei nº78787 de 17 de fevereiro,[10] com a alteração introduzida pela Lei nº 48/2007 de 29 de agosto e retificação nº105/2007 de 9 de novembro,[11] que modificou a epígrafe, passando de “Suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos” para “Suspensão do exercício de profissão, de função, de atividade e de direitos”. Quanto ao corpo do artigo (na parte pertinente ao caso dos autos), o nº1 desdobrava-se em três alíneas. O texto da anterior alínea c) passou a constar da alínea b). Por seu turno, as anteriores alíneas a) e b), unificaram-se numa única alínea a), eliminando-se a expressão “função pública”, intercalando a palavra “função” entre as palavras “profissão” e “atividade”, acrescentando “públicas ou privadas” e eliminando os dizeres “cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública”.

O artigo sofreu alteração com a entrada em vigor da Lei nº94/2021 de 21 de dezembro, contudo, a redação do nº1 manteve-se inalterada, consistindo a alteração no aditamento de um nº3 relativo a matéria que nada tem a ver com o caso que ora nos ocupa[12].

Quanto ao artigo 368º do Código Penal, cuja redação originária, que foi tida em conta no acórdão do Tribunal Constitucional era a dada pelo Decreto-lei n.º 48/95, de 15/03, conheceu as alterações dadas pelo Decreto-lei nº 48/95, de 15/03, Lei n.º 108/2001, de 28/11, Lei n.º 59/2007, de 04/09, Lei n.º 32/2010, de 02/09, Lei n.º 30/2015, de 22/04, tem, atualmente, a redação dada pela Lei nº 94/2021, de 21/12.

Não obstante, no que concerne à redação do nº3, a mesma não sofreu qualquer alteração, sendo agora o nº4 do preceito com o seguinte teor:4 - A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial.”

Relativamente à Lei nº34/87, cuja versão originária é 16-07-1987, sofreu as alterações dadas pelas leis n.º 108/2001, de 28/11; nº30/2008, de 10/07; n.º 41/2010, de 03/09;  n.º 4/2011, de 16/02; n.º 4/2013, de 14/01; n.º 30/2015, de 22/04 e nº 94/2021, de 21/12, no que concerne à questão em análise, não houve alterações de relevo.

Com efeito, a definição de cargos políticos constante do artigo 3º continua a mencionar, na alínea i) do nº1 “O membro de órgão representativo de autarquia local”.

Por outro lado, no capítulo III relativo aos “Efeitos das penas”, agora “Das penas acessórias e dos efeitos das penas”, o artigo 29º, mantém a redação originária no que concerne a membro de órgão representativo de autarquia local ao dispor que: “Implica a perda do respetivo mandato a condenação definitiva por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções dos seguintes titulares de cargo político: (…) f) Membro de órgão representativo de autarquia local.” 

Aliás, uma das alterações mais relevantes introduzida pela Lei nº 94/2021, de 21/12, aditou o artigo 27º-A que prevê a aplicação de penas acessórias de “proibição do exercício de qualquer cargo político a titular de cargo político que, no exercício da atividade para que foi eleito ou nomeado ou por causa dessa atividade, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, ou cuja pena seja dispensada se se tratar de crime de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de corrupção, fica também proibido do exercício de qualquer cargo político por um período de 2 a 10 anos, quando o facto:

a) For praticado com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos deveres que lhe são inerentes;

b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou

c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício do cargo.”.

Ora, não tendo o Legislador aproveitado o ensejo para introduzir a previsão relativa à aplicação da medida de coação de suspensão do exercício de funções ou para remeter expressamente para o disposto no artigo 199º do Código de Processo Penal, sai reforçado o entendimento de que se mantém atual, a jurisprudência do acórdão do Tribunal constitucional nº41/2000.[13]

Neste sentido, de que a norma constante da alínea a) do nº1 do artigo 199º do Código de Processo Penal não abrange os titulares de cargos políticos e de que, a interpretação no sentido da sua aplicação, padece de inconstitucionalidade, conforme decidido no acórdão do Tribunal Constitucional nº41/2000, vejam-se, para além do autor e obra citada (nota 14), Fernando Gonçalves e Manuel João Alves in “A prisão Preventiva e Restantes Medidas de Coação”, Almedina, novembro de 2003, página 122 a 125; Rui Soares Pereira e João Gouveia de Caires in “Processo Penal”, Almedina 2023, página 368, nota 543; Manuel Lopes Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 17ª edição – 2009, página 491; Maia Costa in “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina 2ª Edição – 2016, página 811 e Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 3ª Edição atualizada, página 563 e Manuel Simas Santos, Manuel Leal-Henriques e  João Simas Santos in “Noções de Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª Edição, página.317.

Vejamos, agora, se a jurisprudência mencionada supra é aplicável ao caso dos autos tendo em consideração os contornos do mesmo.

Resulta dos factos indiciados nos autos que o Recorrente foi eleito presidente da Câmara Municipal … nas eleições autárquicas que se realizaram, …, cargo que atualmente ocupa.

Portanto, é titular de cargo político nos termos do disposto no artigo 3º nº1 alínea i) da Lei nº34/87 de 16-07.

De acordo com o artigo 1º da mesma Lei, é-lhe aplicável o regime aí previsto, enquanto definidor daquilo que são crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos cometidos no exercício das suas funções e das sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos.

Por outro lado, resulta indiciada nos autos a prática, pelo Recorrente de um crime de prevaricação e de um crime de abuso de poderes, previstos e punidos, respetivamente, nos artigos 11º e 26º da mesma lei 34/87 de 16-07.

Nestes termos, tem plena aplicação ao caso dos autos, concretamente, ao Recorrente, a jurisprudência acima mencionada, isto é, que a interpretação do artigo 199º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal no sentido de o mesmo abranger os titulares de cargos políticos, maxime os titulares de órgãos representativos autárquicos, entra em colisão com o disposto no artigo 164º alínea m) da Constituição da República Portuguesa, atenta a ausência de norma que para ele expressamente remeta na lei que define o regime da responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos.

Considerando tudo o exposto, é forçoso concluir que a decisão em recurso violou o disposto no artigo 191º do Código de Processo Penal – princípio da legalidade – ao aplicar ao Recorrente uma medida de coação que não está prevista na lei para o seu caso.

Procede, pois, o recurso, nesta parte, embora por razões que não integram as aduzidas no recurso, devendo a decisão recorrida ser revogada na parte em que aplica ao Recorrente a medida de coação prevista no artigo 199º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal.

3.2.2. - Da inexistência dos perigos e exigências cautelares a que alude e em que se funda o despacho recorrido, bem como a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de coação de proibição de contactos.

Assente que apenas é aplicável ao Recorrente a medida de coação de proibição de contactos, nos autos, proibição de contactar, por qualquer meio, por si ou interposta pessoa, com os coarguidos, testemunhas inquiridas nos autos, donos das obras identificados nos autos e funcionários da Câmara …, prevista no artigo 200º nº1 alínea d) do Código de Processo Penal, cumpre averiguar se estão presentes os requisitos gerais da sua aplicação, concretamente, os previstos nas alíneas b) e c) do artigo 204º do Código de Processo Penal, conforme decidido pelo Tribunal a quo.

Subscrevemos integralmente a decisão recorrida nesta parte.

É bem certo que as considerações tecidas têm em vista, maioritariamente, a aplicação da medida de suspensão do exercício de funções que, como se decidiu supra, não é aplicável, contudo, nada impede que se reconheça a presença dos perigos em causa, mesmo que, apenas, na perspetiva da aplicação da medida muito menos gravosa que é a de proibição de contactos. O menos está contido no mais.

Ora, não podemos subscrever este entendimento.

            Quanto à delegação de poderes, … (a atuação do Recorrente vai muito para além da intervenção direta e formal nos processos), assinalando, também, que o Recorrente está indiciado da prática dos factos em coautoria com o arguido …

            …

Em segundo lugar e, no que tange ao perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, …

Também não se concorda com o Recorrente …. Com efeito, o tipo de atuação indiciada nos autos revela uma personalidade que usa erradamente os poderes que o seu cargo confere, não se inibindo de exercer influência sobre as pessoas que trabalham na Câmara para prosseguir interesses pessoais e de terceiros. Mais, tal personalidade, revelada nos factos faz acreditar que o Recorrente, confrontado com os presentes autos venha a pressionar as testemunhas já inquiridas nos autos, os coarguidos e os funcionários da Câmara no sentido de impedir que os mesmos deponham de forma que prejudique a sua posição.

O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova é, claramente e apenas, um perigo para a prova e consiste no risco, sério e atual, de ocultação ou alteração da mesma por parte do arguido. Trata-se de uma exigência cautelar para salvaguarda do potencial probatório, incluindo a sua genuinidade.

            Perante a sua verificação, a medida de coação aplicada serve para evitar a manipulação das fontes probatórias que já se encontram nos autos ou que possam vir a ser obtidas, ou seja, para obstar ao seu inquinamento por parte do arguido. Visa-se, assim, evitar esse perigo, com base na forte suspeita de que aquele destrua, modifique, oculte, suprima ou falsifique meios de prova, influa de maneira desleal nos coarguidos, testemunhas ou peritos ou induza outros a proceder dessa forma.

            No entanto, tem de ser possível, em concreto, a indicação das circunstâncias, objetivas e subjetivas, que tornam altamente provável uma intervenção inquinadora das fontes de prova. Ou seja, o perigo terá de surpreender-se em factos que indiciem a atuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação por qualquer das apontadas formas, não bastando a mera possibilidade de o arguido agir no sentido de prejudicar a investigação para que, sem mais, se possa afirmar a existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito.

            Ora, é o que se verifica no caso do Recorrente, atenta a imagem global da sua atuação ilícita e o facto de ocupar, ainda, o cargo de Presidente da Câmara (cujo exercício, aliás, retomará, após a presente decisão).

            É, pois, de concluir que se mostra verificado, em concreto, o perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova – Artigo 204, alínea b) do Código de Processo Penal – improcedendo o recurso, também nesta parte.

            Finalmente, aduz o Recorrente que, no que concerne ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, a decisão em recurso interpretou erradamente o disposto no artigo 204º alínea c) do Código de Processo Penal, uma vez que dela não consta qualquer alusão à perturbação decorrente de um seu comportamento futuro, …

            A este propósito, ensina Germano Marques da Silva[14] que «Assim, se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está indiciado no processo pode justificar-se a aplicação de uma medida de coação. Também a perturbação da ordem e tranquilidade públicas terão de ser imputadas a perigo de futuro comportamento do arguido, resultantes da sua própria postura ou atividade.»

            Com efeito, esta perturbação da ordem e tranquilidade públicas tem em vista a salvaguarda futura da paz social, que foi afetada com a conduta criminosa revelada pelo arguido e que tem potencialidades, objetivas (natureza e circunstâncias) ou subjetivas (personalidade), para continuar a causar alarme ou mesmo para manter essa atividade delituosa.

            Para o efeito torna-se necessário efetuar um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciada atividade delituosa, juízo esse que deverá estar conexionado com a existência dessa conduta ilícita e não com quaisquer preocupações genéricas de defesa ou de alarme social, que sejam jurídico-penalmente neutras ou com situações de alarme social despidas de qualquer ilicitude.

Como já se disse, a decisão em crise mostra-se, fundamentada nos factos e não nos merece reparo, quando afirma que:

“Os factos indiciados são, ainda em nosso entender, demonstrativos de que, em razão da natureza, circunstâncias dos crimes e atenta a responsabilidade política e funcional dos arguidos, existe perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Com efeito, é necessário assegurar aos cidadãos que qualquer serviço que envolva a prestação de uma actividade pública funciona de acordo com a lei, respeitando o ordenamento jurídico e o ordenamento do território. Está em jogo a eficácia e o prestígio do funcionamento dos órgãos estaduais, bem como a ideia de imparcialidade e respeito pela legalidade no exercício de funções político-administrativas. É a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e a credibilidade das mesmas que devem ser salvaguardadas, garantindo-se para o efeito a fidelidade à lei e ao direito no exercício de funções públicas. No caso em apreço atenta a responsabilidade política e funcional dos arguidos e as repercussões que as mesmas têm perante a comunidade e sociedade em geral, ao ser de forma expressa beneficiados particulares e prejudicado o erário público, torna-se, pois, essencial, acautelar quaisquer comportamentos que abalem a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e na actividade da administração em geral, dissuadindo comportamentos criminosos como os dos presentes autos.»

Assinale-se, em jeito de conclusão, que do que se trata não é da certeza de que, no futuro, o Recorrente continuará a sua atividade perigosa, perturbará o inquérito ou a ordem e tranquilidade públicas, antes se trata de um juízo de probabilidade da verificação desses comportamentos e consequências, atendendo aos factos e à personalidade neles demonstrada.

Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de 22-02-2023, já mencionado supra: “O perigo é sempre um risco, uma probabilidade de acontecimento, e não um facto histórico, e por isso, a sua afirmação tem que, em cada caso, ser inferida de factos suficientemente indiciados.”

Improcede pois, o recurso também nesta parte.

Uma palavra final para a observância dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade – Artigo 193º nº1 do Código de processo Penal – tendo em conta a medida de coação de proibição de contactos, única aplicável.

Na verdade, esta medida de coação, atentos os perigos acima assinalados, se alguma desadequação revela em relação ao caso do Recorrente, é no sentido da sua eventual insuficiência, por isso, parece-nos que surge inquestionável a sua necessidade, adequação e proporcionalidade, sendo manifestamente desadequado, em face da verificação dos mesmos perigos, a sujeição, como pretendido pelo Recorrente, apenas à medida de coação de TIR.

Aqui chegados, devemos ter em consideração o desenho da medida de proibição de contactos dado pela decisão em recurso para aquilatar se, revogando-se a medida de suspensão do exercício de funções, a mesma mantém a sua adequação.

No contexto em que tal medida foi aplicada, isto é, tendo-se também aplicado a medida de suspensão do exercício da função de Presidente da Câmara …, a mesma fazia todo o sentido, atentos os perigos enunciados …

No atual contexto, em que se revoga a medida de coação de suspensão do exercício da função de Presidente da Câmara Municipal …, salvo qualquer outra ocorrência que altere este status quo, o Recorrente retomará o exercício de funções.

 Nesse cenário, proibir o recorrente de contactar por qualquer meio, por si ou interposta pessoa, com os funcionários da Câmara Municipal …, impedi-lo-ia, na prática, de exercer as funções que pode agora retomar, em claro prejuízo do funcionamento daquele órgão autárquico, o que deve evitar-se.

Atento o exposto, revoga-se, também, a decisão recorrida, na parte em que determina a proibição de contactos do Recorrente por si ou interposta pessoa, com os funcionários da Câmara Municipal ….

Como referido supra, em face das exigências cautelares manifestadas no caso, mormente as decorrentes do perigo de continuação da atividade criminosa, não será despiciendo que o Tribunal a quo reveja a situação coativa do Recorrente, ponderando a suficiência e adequação da medida de coação aplicada (proibição de contactos por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa, com os coarguidos, as testemunhas inquiridas nos autos e donos das obras identificados nos autos).

            III. DISPOSITIVO

Nos termos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em, embora com fundamentos distintos, conceder parcial provimento ao recurso interposto por AA …, e:

a) recusar, com fundamento na sua inconstitucionalidade, a aplicação da norma do artigo 199º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de a mesma abranger os titulares de cargos políticos, maxime os titulares de órgãos representativos autárquicos, por violação do disposto no artigo 164º alínea m) da Constituição da República Portuguesa.

b) revogar o despacho recorrido na parte em que aplica ao Recorrente a medida de coação de suspensão do exercício da função de Presidente da Câmara Municipal … e na parte em que aplica a medida de coação de proibição de contacto por qualquer meio, por si ou interposta pessoa, com os funcionários da Câmara Municipal …, confirmando-a no mais.

            Sem custas.

*

            Dê-se, de imediato, conhecimento à primeira instância do teor da presente decisão, remetendo-se cópia da mesma.


(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

                                               Coimbra, 08-11-2023       

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (Relatora)

Cândida Martinho (1ª Adjunta)

Jorge Jacob (2º Adjunto)

 (data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


        


[1] Na mesma ocasião, foram, igualmente, presentes e sujeitos a interrogatório judicial, os coarguidos BB …, CC …, DD … e EE ….
[2]

[3]
[4]
[5] Com este entendimento, veja-se Jorge Noronha Silveira, “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, pp. 173-174. Simas Santos/Leal-Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, I Volume, 2ª Edição, Rei dos Livros, p. 995, entendem que a expressão “fortes indícios” inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura; não basta que essa suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma medida tão gravosa como esta (prisão preventiva) em relação a alguém que pode estar inocente ou sobre o qual não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade venha a ser condenado pelo crime imputado.
[6] Acórdão prolatado no âmbito do processo nº1142/22.7JACRB-B.C1, Relator: Vasques Osório, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[7] José Mouraz Lopes In in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Almedina, setembro de 2022, Tomo II, página 305
[8] Vide acórdão do Tribunal Constitucional nº1165/96 de 19-11-1996, in DR, Série II, de 06.02.1997, juízo de constitucionalidade também afirmado pelo acórdão do mesmo Tribunal nº 464/97, de 01.07.1997, in R, Série II, de 12.01.1998.

[9] Acórdão de 26-01-de 2000, prolatado no âmbito do processo nº481/97, publicado no DR, II Série, nº243 de 20 de outubro, páginas 16 997 e seguintes
[10]Artigo 199.º
Suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos
1 - Se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se disso for caso, com qualquer outra medida legalmente cabida, a suspensão do exercício:
a) Da função pública;
b) De profissão ou actividade cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública; ou
[11]Artigo 199.º
Suspensão do exercício de profissão, de função, de actividade e de direitos
1 - Se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a 2 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se disso for caso, com qualquer outra medida de coacção, a suspensão do exercício:
a) De profissão, função ou actividade, públicas ou privadas;”
[12]
[13] Vide, neste sentido, Tiago Caiado Milheiro, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo III, 2ª Edição, Coimbra 2022, páginas 229 e 230,
[14] - In ob. cit., vol. III, 5ª edição, págs. 359-360.