Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2523/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
DESCENDENTE
FRIEZA DE ÂNIMO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Data do Acordão: 09/28/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 72, ALÍNEA B) E 132°, Nº 2, ALÍNEAS A) E I), DO C. PENAL.
Sumário: I. As várias alíneas do n.º 2, do art.º 132, do C. Penal, constituem uma presunção ilidível ou indiciam a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade;
II. Para considerar preenchida a agravante filho da vítima deve, no caso concreto, averiguar-se se as relações existentes correspondem à razão de ser da agravante. Quando, nomeadamente por razões de doença, as relações mãe-filho se encontram seriamente deterioradas por esbatidos os deveres de respeito, amizade e carinho devidos à progenitora, deixa de existir a razão de ser da agravante;

III. A atenuação especial só em casos extraordinários, ou excepcionais pode ter lugar: para integrar a generalidade dos casos, para os casos normais, existem as molduras penais normais, com os seus próprios limites máximo e mínimo.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em Audiência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

No processo comum colectivo nº 42/04.7 JAGRD do Tribunal da Comarca da Guarda, foi o arguido, A..., condenado pela prática de um crime de homicídio p.p. pelo artº 131º do Cód. Penal na pena de 9 anos e 6 meses de prisão.
*
Inconformados, com a decisão vieram interpor recurso o MºPº e o arguido:
*
Conclusões do MºPº:
1) - não se observam circunstâncias que apontem para a desqualificação do crime em razão da ascendência;
2) - o arguido pertencia ao agregado familiar composto pelo pai, a mãe, por si e pela irmã;
3) - a relação dos familiares deste agregado familiar era caracterizada por consideração e respeito, embora suportada com sofrimento por ser uma situação difícil, devido à doença da mãe;
4) - o filho reconhecia a vítima como mãe, embora em alguma medida a sua ima-gem fosse afectada pela doença de que era portadora;
5) - mas mantinha para com ela uma relação de respeito, devoção e carinho que é devido aos progenitores;
6) - alguma diminuição da imagem materna no sentimento e afecto do arguido, não poderia ter relevo tal que suprimisse a representação da noção de descendência;
7) - dando como substituída a imagem da mãe no íntimo do arguido, o tribunal e, por causa disso, afastando a especial censurabilidade do acto criminoso, o tri-bunal violou a norma incriminadora do homicídio qualificado — artº 132º nº 1 e nº 2, alínea a) do C Penal;
8) - a mãe também se esperava respeitada pelo arguido, em virtude da ligação filial e dos valores em que fora educado;
9) - ao agredir a mãe, o arguido apanhou de surpresa a mãe porque nunca fora agredida pelo filho, conduta que evidenciou perfídia e desvio próprio de um mau carácter,
10) - desta forma, violou igualmente o disposto no artº 132º nº 2, alínea i);
11) - e ao não valorizar os mencionados factos segundo se invoca, violou o tribunal o disposto no Artigo 127º do CPP «Livre apreciação da prova - Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente»;
*
Conclusões do arguido:
1 - Por acórdão proferido em 11 de Abril de 2005 pelo Tribunal do Círculo Judicial da Guarda, foi o arguido, ora Recorrente, A... condenado pela prática de um crime de homicídio simples na pena de nove anos e seis meses de prisão.
2 - Entende o Recorrente padecer tal acórdão de manifesto e insanável vício na fundamentação de Direito e determinação da medida da pena aplicada, que, a final, se revela ilegal, desproporcionada, desadequada e injusta, motivo pelo qual dele interpõe o presente recurso.
3 - Atenta toda a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, e com especial relevância os pontos enunciados sob os pontos 5., 20., 21. e 22. do douto aresto, impunha-se reconhecer a verificação, in casu, da circunstância prevista na alínea b) do número 2 do artigo 72.º do Código Penal e a operacionalidade do regime da atenuação especial da pena;
4 - Ao não ter em conta a culpa da vítima - que contribuiu veemente para o trágico acontecimento - na fixação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, o Tribunal a quo ultrapassou os limites da margem de discricionariedade que o legislador lhe confere e violou frontalmente ambos os artigos 40.º, n.º 2 e 72.º, n.º 2 -b) da Lei penal substantiva, impondo-se a revogação, nesta parte, do acórdão recorrido e a prolacção de nova decisão que julgue em conformidade com aquelas disposições.
5 - Ao invocar e fundamentar o grau de culpa do arguido na intensidade do dolo imprimido no cometimento do crime, elemento que anteriormente havia sopesado e valorado no enquadramento jurídico-penal do facto - que qualificou como homicídio simples doloso, o Tribunal a quo incorreu na violação do princípio non bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
6 - Assim, padece, nesta parte, a decisão recorrida de manifesta inconstitucionalidade, que expressamente se argúi, impondo-se a respectiva revogação com as inerentes consequências.
7 - Por fim, atenta a ampla matéria probatória carreada para os autos e publicamente produzida em audiência de julgamento, mormente o teor dos Relatório Social, Relatório Pericial da avaliação psicológica efectuada ao arguido e o Relatório de Exame às capacidades mentais do arguido _prova que ao julgador cumpre apreciar de harmonia com o disposto nos artigos 159.º, 160.º e 163.º do Código de Processo Penal, incontornável se impunha ao Tribunal a quo dar como provada e ter em consideração, na determinação da medida da culpa e consequente fixação da medida da pena, a imputabilidade diminuída do arguido, ora Recorrente;
8 - que determinantemente reclamava a aplicação do regime da atenuação especial da pena.
9 - Ao não ter tal circunstância na devida consideração, incorreu o Tribunal a quo, de forma clara e manifesta, na violação do disposto nos artigos 40.º, n.º2, 43.º, n.º1, 72.º e 73.º do Código Penal Português.
10 - Atento o exposto, e pelos motivos invocados, deverá o presente recurso merecer integral provimento e, consequentemente, ser o acórdão proferido pela Primeira Instância parcialmente revogado em seu lugar se proferindo decisão que julgue em conformidade com a lei vigente, em preito à Justiça.
*

Responderam aos recursos respectivamente o arguido e o Ministério Publico, cada um defendendo a improcedência daquele interposto pelo outro.
*
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso interposto pelo MºPº, e em consequência, o improvimento daquele interposto pelo arguido.
*
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
*
A sentença recorrida julgou os seguintes
Factos provados:
1. No ano de 2004, o arguido residia na Rua do Chantre, nº 5, na cidade da Maia juntamente com a sua mãe, Dalila de Nazaré Pires Álvaro Barros, o seu pai, Joaquim Santos Barros, e a sua irmã, Maria Margarida Barros e trabalhava como arquitecto estagiário na Câmara Municipal de Nelas.
2. Como a sua mãe tinha uma casa de família em Algodres, sua terra natal, a mesma deslocava-se, com alguma frequência, a essa casa, onde permanecia algum tempo.
3. No dia 7 de Março de 2004, o arguido transportava a sua mãe, no seu veículo de marca Suzuki, modelo Vitara, com a matrícula 49-84-JC, de cor preta, da cidade da Maia até Figueira de Castelo Rodrigo, local onde, em conformidade com as orientações recebidas de seu pai nos momentos imediatamente anteriores ao início da viagem, a deixaria, a fim de a mesma apanhar um táxi que a conduzisse à sua casa em Algodres, enquanto ele, arguido, prosseguia viagem com destino a Nelas.
4. Assim, cerca das 09:00 horas desse dia, o arguido e a sua mãe iniciaram a viagem depois de introduzirem no referido veículo automóvel, de que eram os únicos ocupantes, alguns sacos com objectos de cada um deles.
5. Durante a viagem, entre o arguido e a sua mãe, houve discussões provocadas pelo feitio quezilento e agressivo desta, pelo qual pautava o seu comportamento desde alguns anos atrás.
6. Por volta das 12.00 horas, e como a sua mãe lhe pedisse para parar o carro a fim de fazer as necessidades fisiológicas, o arguido saiu da estrada e estacionou a sua viatura nas proximidades das traseiras de um edifício em construção, pertencente à testemunha João Pereira, que fica próximo do cruzamento da auto-estrada A25 com a estrada que liga Pinhel ao Alto do Leomil, no lugar designado por “Sítio da Lomba”, da localidade de Freixo, área da comarca de Almeida.
7. Uma vez aí, a mãe do arguido saiu do carro para ir fazer as necessidades, altura em que o arguido aproveitou para sair também do carro, dirigindo-se à parte traseira deste e abrindo a respectiva porta com o propósito de daí retirar uma bebida.
8. Nessa altura, a vítima aproximou-se do arguido e ambos voltaram a discutir.
9. No decurso da discussão, o arguido, já exaltado, retirou da parte traseira do carro a pá examinada e fotografada a fls. 67 e com ela desferiu uma pancada na cabeça da sua mãe, em consequência da qual a vítima caiu ao chão.
10. Depois, quando a vítima se encontrava, em consequência daquela pancada, desamparada no chão e incapaz de esboçar qualquer tipo de resistência, o arguido desferiu-lhe, pelo menos, mais uma pancada na cabeça.
11. As pancadas desferidas pelo arguido, com a pá, causaram à vítima uma fractura esquirolosa do rochedo temporal esquerdo, fractura partindo do rochedo esquerdo transversal terminando na porção escamóide do temporal direito, uma fractura longitudinal que vai da concha do occipital até ao buraco occipital à direita da linha média.
12. Tais lesões constituíram causa directa e necessária da morte da vítima Dalila Barros.
13. Passados alguns minutos de ter desferido as pancadas, constatando que a sua mãe estava morta, o arguido foi ao carro buscar um saco de plástico de cor verde e introduziu-o na cabeça daquela.
14. Algum tempo após, o arguido retirou o saco de plástico que envolvia a cabeça da sua mãe e arrastou o cadáver para junto de um declive existente do lado esquerdo da garagem, onde fez uma cova com a pá, e nela enterrou o cadáver.
15. Cerca das 17 horas, o arguido partiu daquele local com destino a Nelas, percorrendo o IP5, e saiu desta estrada no nó de Mangualde.
16. Aí, junto ao edifício denominado “Jomel Móveis”, local onde estava um caixote do lixo, colocou os sacos contendo os pertences de sua mãe e atirou para as proximidades a pá, um par de botas que a sua mãe trazia calçadas no momento em que lhe desferiu as pancadas na cabeça e ainda um par de socas.
17. O arguido ao desferir as pancadas com a pá na cabeça da Dalila Barros sabia que as desferia e quis desferi-las, assim como sabia que provocava as referidas lesões e a morte da vítima, o que também quis, sabendo ainda que o instrumento que usou era adequado a causar o resultado por si pretendido.
18. Sabia o arguido, quando desferiu as pancadas, que a visada era sua mãe.
19. Sabia que a sua conduta era punida por lei.
20. A vítima já há vários anos que padecia de doença do foro psiquiátrico que lhe determinava comportamento conflituoso e agressivo, quer com os membros da família, quer com terceiros, o que prejudicava o convívio social dos membros do agregado familiar e lhes causava temor, ao ponto de se isolarem nos quartos de que cada um dispunha na casa de habitação.
21. O arguido nutria sentimento de vergonha pelo comportamento social da sua mãe.
22. Devido à sua doença do foro psíquico, a vítima nunca dispensou cuidados e afecto à sua família, o que diminuiu no arguido o sentimento de filiação em relação à sua mãe.
23. O arguido é solteiro.
24. Tem como habilitações literárias a licenciatura em arquitectura.
25. Na data da prática dos factos exercia a sua profissão de arquitecto em regime de estágio na Câmara Municipal de Nelas, morando nessa localidade, mas regressando sempre a casa dos pais aos fins-de-semana.
26. Confessou parcialmente, mas de forma relevante, os factos.
27. Colaborou determinantemente na investigação dos mesmos.
28. Não tem antecedentes criminais.
29. Mostrou-se muito pesaroso e contrito com a morte da sua mãe.
30. Encontra-se inserido laboral, familiar e socialmente.
31. É bem considerado no meio em que vive.
32. Tem bom comportamento anterior e posterior aos factos.
33. Na data em que os factos ocorreram, o arguido havia terminado poucos dias antes, um relacionamento de namoro de vários anos, o que o trazia num estado de perturbação afectiva que lhe diminuía a capacidade de controlo dos impulsos.
*
Factos não provados

Não se provaram outros factos, nomeadamente, não se provou que:
· O arguido tomou a resolução de matar a sua mãe em data anterior a 6/3/2004, por causa do comportamento daquela, e, esperando uma oportunidade para realizar os seus intentos, preparou-se para lhe tirar a vida e reflectiu sobre os meios a empregar, tendo escolhido Algodres, concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, como local para concretizar o seu desígnio que mantinha havia mais de dois dias (pontos 3º, 4º e 21º da acusação pública).
· Estava previsto entre os familiares do arguido que este, no dia 7/3/2004, iria transportar a sua mãe no seu veículo automóvel da Maia até Figueira de Castelo Rodrigo e que a deixaria nesta última localidade a fim de a mesma apanhar um taxi para Algodres (ponto 5º da acusação).
· O arguido decidiu, entretanto, que seria nessa ocasião, nesse preciso dia 7/3/2004, e naquela vila de Figueira de Castelo Rodrigo que mataria a sua mãe, pelo que, na prossecução do plano por si gizado, no dia 5/3/2004, sem que ninguém se apercebesse, retirou de sua casa, na Maia, uma pá, com cabo em madeira e pega em metal, e escondeu-a nas imediações com intenção de a recolher no dia seguinte, quando fizesse a viagem com a sua mãe para Figueira de Castelo Rodrigo.
· No dia 7/3/2004, cerca das 9:00 horas, quando a mãe do arguido já se encontrava no interior do veículo automóvel, o arguido foi buscar a referida pá ao local onde a ocultara e escondeu-a na mala do veículo, sem que a sua mãe se apercebesse.
· O arguido aproveitou a altura em que a sua mãe saiu do automóvel com o objectivo de ir fazer as necessidades para ir buscar à mala daquele a pá que aí transportava e, empunhando-a, aproximou-se da vítima, que se encontrava de costas voltadas para ele e, sem que esta se apercebesse, postou-se atrás dela e daí desferiu-lhe, com a referida pá, uma pancada na cabeça, atingindo-a de surpresa e sem que tivesse hipótese de esboçar qualquer gesto de defesa.
· A vítima foi atingida na região occipital e parietal direita quando se encontrava no chão.
· O arguido colocou o saco de plástico na cabeça de sua mãe quando esta ainda respirava e tossia, apertou-lho em volta do pescoço por forma a sufocá-la e retirou-lho depois de se certificar que já estava morta.
*
O tribunal fundamentou a sua convicção probatória nos seguintes termos:
A convicção do tribunal para a decisão que tomou sobre a matéria de facto assentou na análise e ponderação conjuntas e críticas da prova produzida, ponderada segundo as regras da lógica e da experiência. Nomeadamente, contribuíram para formar a convicção do tribunal:
- a confissão do arguido sobre os factos que lhe são imputados na acusação, a qual, embora parcial, foi livre e sem reservas e versou sobre o facto de ter sido o arguido quem desferiu os golpes com a pá na cabeça da vítima, de a ter morto, de lhe ter colocado um saco de plástico na cabeça e enterrado o cadáver, de a ter transportado no veículo apreendido até ao local onde esta pediu para parar a fim de fazer as suas necessidades fisiológicas, tendo o arguido negado que tivesse formulado o propósito de matar a sua mãe com antecedência em relação ao momento em que lhe desferiu as pancadas com a pá, que tivesse preparado e escondido a pá, que a viagem estivesse prevista entre os familiares, que tivesse agredido a vítima pelas costas e que pretendesse sufocá-la com o saco de plástico e não tendo afirmado expressamente que a tivesse querido matar, embora também não o tivesse negado claramente, respondendo, quando interrogado sobre tal facto, com respostas vagas e algo evasivas, compreensíveis em face da gravidade e emotividade da situação.
- as declarações do arguido sobre as suas condições económicas, sociais, familiares e laborais, que ao tribunal não mereceram razões de dúvida, tendo-as considerado nos termos do disposto no nº 2 do art. 358º do C.P.P.;
- as declarações do arguido sobre os factos constantes dos nºs 3, na parte que respeita às orientações que o arguido recebeu do pai, 5, 6, na parte em que se refere às traseiras de um edifício, 7, na parte que se reporta ao objectivo do arguido quando se deslocou à parte traseira do seu automóvel, 8, 13, na parte em que se refere que a vítima já estava morte, 20, 21 e 22 dos factos provados, que, apesar de não constarem da acusação, o tribunal deles conheceu sem ter dado cumprimento ao disposto no art. 358º do Código de Processo Penal, porquanto foram alegados verbalmente pelo arguido (art. 358º, nº 2 do C.P.P.), tendo formado a sua convicção considerando a coerência das declarações com o padrão de comportamento da vítima que se apurou pela análise das depoimentos das testemunhas que depuseram sobre tal aspecto e considerando ainda a forma pesarosa e coerente como foram prestadas.
- o depoimento das testemunhas António Carvalho Fernandes da Cruz e Afonso Manuel de Jesus Sales, inspectores da Polícia Judiciária, que revelaram conhecimento dos factos por terem participado, naquela qualidade, nas investigações efectuadas na fase de inquérito. Prestaram depoimento sereno, claro, coerente, espontâneo e pormenorizado. Esclareceram o Tribunal da forma como se desenrolaram as investigações desde a obtenção da notícia dos factos, da colaboração do arguido, da configuração do local onde foi encontrada a vítima, designadamente da existência de um ramo de flores silvestres no exterior e de um objecto de cor branca em forma de pomba no interior da cova onde se encontrava o cadáver.
- O depoimento de Joaquim Santos Barros, pai do arguido e marido da vítima, que demonstrou conhecimento directo dos factos sobre que depôs por fazer parte do mesmo agregado familiar daqueles e, por isso, conhecer o modo de vida familiar e os membros da sua família, de que deu conta pormenorizadamente ao Tribunal, designadamente quanto à personalidade do arguido e da vítima e ao ambiente familiar. Prestou depoimento sereno, embora não isento de paixão, mas sem animosidade contra o arguido nem contra a vítima, coerente, embora por vezes com manifestações de autocrítica, pormenorizado e espontâneo. Contribuiu de forma determinante para a formação da convicção do Tribunal no que diz respeito ao facto da a viagem do arguido e da vítima não estar prevista ente os membros da família, porquanto referiu que a vítima, inopinadamente, no dia 7/3/2004, de manhã, decidiu ir para Algodres e que seria o arguido a transportá-la, tendo sido a própria testemunha que foi acordar o arguido e comunicar-lhe que teria de ir levar a vítima a Figueira de Castelo Rodrigo. Foi ainda determinante para a formação da convicção do Tribunal relativamente ao facto não provado de a pá ter sido retirada de sua casa pelo arguido, porquanto referiu que nunca ali teve tal objecto e que nunca o havia visto antes, o que é coerente com o auto de reconhecimento de fls. 99, onde a testemunha referiu não saber a respectiva origem. Referiu ainda, entre o mais, que viu o veículo automóvel do seu filho iniciar a viagem e que o viu, embora não com pormenor, ser carregado com os objectos da vítima e do arguido.
- O depoimento de Francisco Pires Keil Amaral, a qual apenas referiu ser chefe do serviço onde o arguido estagiava como arquitecto; que este era muito competente e que não se apercebeu que o arguido tivesse terminado uma relação de namoro, sendo que não partilhavam conversas sobre assuntos pessoais.
- O depoimento das testemunhas Albina Santos Barros e Fernando dos Santos Barros, Júlio Baptista Pires Álvaro, Maria Manuela Serra Rodrigues Álvaro, tios do arguido, Joaquim Lopes Azevedo Almeida, Valdemar Fernando Gomes da Costa, funcionários judiciais aposentados e ex-colegas de trabalho da vítima, na medida em que prestaram depoimentos coerentes, pormenorizados, serenos, espontâneos e concordantes entre si, no sentido do comportamento quezilento e agressivo da vítima, e revelaram conhecimento directo dos factos sobre que depuseram por conhecerem e terem privado com a vítima.
- O depoimento da testemunha Maria da Graça Costa Carvalho Torres que demonstrou conhecimento dos factos sobre que depôs por ser vizinha do arguido há cerca de 25 anos, na Maia, vivendo em casa geminada com a do pai do arguido. Prestou depoimento fundamentado e pormenorizado, de forma espontânea, clara e serena, dando conta ao Tribunal do comportamento da vítima, do arguido e do respectivo ambiente familiar e de vizinhança.
- O depoimento das testemunhas Elisa Maria Ribeiro da Cunha Folhadela Rebelo, amiga do arguido, Francisco José Amaral dos Santos Gomes, que foi professor do arguido e pai de um amigo deste, Maria Teresa Miranda Folhadela de Macedo Santos Gomes, que foi vizinha da vítima, presidente do conselho directivo da escola secundária que o arguido frequentou e mãe de um amigo deste, que, de forma que ao Tribunal se afigurou isenta, depuseram sobre o comportamento do arguido e a sua maneira de ser, tendo ainda a testemunha Maria Teresa referido conclusivamente, mas depois de ter aludido a factos concretos que sustentavam a conclusão, que a vítima tinha “tinha comportamento complicado, agressivo e algo violento”.
- O depoimento das testemunhas Armando Magalhães Vieira e Graça Marta Albuquerque Pinto Valejo Magalhães Vieira, que demonstraram conhecimento directo dos factos sobre que depuseram por conhecerem o arguido e serem pais da pessoa com quem o arguido mantivera uma relação de namoro durante cerca de 4 anos, relação essa que terminara poucos dias antes de 7/3/2004. De forma que ao Tribunal se afigurou isenta, deram conta do circunstancialismo de tal ruptura e das suas consequências para o arguido.
- O depoimento da testemunha Francisco Manuel de Carvalho Santos Costa, médico psiquiatra que demonstrou conhecimento directo dos factos sobre que depôs por, no âmbito da sua especialidade médica, ter observado o arguido e ter acompanhado a realização do exame pericial, determinado pelo Tribunal, às faculdades mentais daquele. Depois de análise pormenorizada e exaustiva do estado mental do arguido reportado ao momento da prática dos factos e afirmando subscrever na generalidade o relatório que foi feito na sequência do referido exame, referiu, entre o mais, que o arguido “substituiu a imagem da mãe”, o que contribuiu de forma determinante para a formação da convicção do Tribunal no sentido de que o arguido tinha diminuto sentimento de filiação em relação à sua mãe.
- O teor dos documentos juntos a estes autos a fls. 6 a 34, 61 a 70, 73, 82, 89, 90 e 278 (fotografias do local onde foi encontrado o cadáver da vítima e do local onde foi encontrada a pá com que foi agredida e os seus pertences abandonados pelo arguido), 420 (CRC do arguido), 612 a 616-A (cópia de parte de processo para interdição por anomalia psíquica da falecida Dalila Barros que corria termos no Tribunal Judicial da comarca da Maia), 617-A (cópia de certidão passada pelo Hospital de S. João relativa à doença do foro psíquico de que padecia a arguida), 618 (cópia de ofício da Caixa Geral de Aposentações, datado de 23/2/1998, onde se refere que a vítima havia sido considerada incapaz), 619 (cópia de factura e recibo relativos a “consulta de psiquiatria na urgência” do arguido no dia 6/3/2004, a que o arguido fez referência nas suas declarações e o pai do arguido no seu depoimento).
- O teor do auto de exame do local de fls. 103 e 104.
- O teor do relatório pericial de fls. 271 a 278.
- O teor do relatório de autópsia de fls. 380 a 386, designadamente a respectiva conclusão sobre a causa da morte e a descrição das lesões manifestadas.
- O teor do relatório social de fls. 513 a 526.
- O teor do relatório pericial de fls. 650 a 654.
- O teor do relatório de exame às faculdades mentais do arguido de fls. 655 a 660, considerando essencialmente as suas conclusões e a parte da sua fundamentação que respeita ao exame directo e à discussão e o facto de tal exame ter sido realizado quase um ano depois da prática dos factos em apreço, os quais, assim como a pendência do processo e a situação de prisão preventiva, poderão ter tido interferência na ansiedade do arguido.
Relativamente à intenção de matar, o tribunal ponderou ainda, para formar a sua convicção, a localização das lesões provocadas pelas pancadas no corpo da vítima, a violência destas, o instrumento usado e o facto de terem sido desferidos mais que um golpe na cabeça da vítima com a pá, ponderando tais factos com as declarações do arguido globalmente consideradas.
*

Quanto aos factos não provados, a convicção do tribunal ancorou-se na falta ou insuficiência de prova em relação aos mesmos produzida, considerando, designadamente, que:
- quanto à antecedência da formulação do propósito de matar em relação ao momento da prática dos factos, o arguido negou-o, nenhuma prova directa foi feita e a indirecta não é minimamente segura, uma vez que o arguido referiu que trazia habitualmente no seu automóvel a “pomba branca” que colocou junto do corpo da vítima, pelo que nenhuma certeza pôde o Tribunal alcançar quanto ao facto de o arguido se munir de tal objecto com o objectivo de o utilizar como utilizou. Também quanto a este aspecto, a presença da pá no automóvel não é reveladora de premeditação, uma vez que não se apurou se foi o arguido que ali a colocou ou se foi a própria vítima que, pela doença mental de que padecia, a transportava junto com os seus objectos, como o arguido disse. Mesmo da leitura feita em audiência das declarações prestadas pelo arguido no seu primeiro interrogatório judicial (fls. 122) não foi possível esclarecer este aspecto, tendo em consideração as “explicações” dadas pelo arguido em audiência e o facto de não serem peremptórias as declarações lidas. Acrescem ainda as declarações da testemunha Joaquim dos Santos Barros, pai do arguido, que vão no sentido de a pá não ter sido colocada no automóvel pelo arguido, pelo menos nas circunstâncias referidas na acusação, uma vez que a testemunha não viu e esteve presente enquanto o arguido e a vítima “carregavam” os respectivos sacos, tendo presenciado o início da viagem.
- Quanto ao facto de estar previsto entre os familiares do arguido que este, no dia 7/3/2004, iria transportar a sua mãe no seu veículo automóvel da Maia até Figueira de Castelo Rodrigo, nenhuma prova foi feita nesse sentido, tendo o arguido e o seu pai negado tal situação e apresentado versão contrária e plausível.
- Quanto ao facto de o arguido ter agredido a sua mãe pelas costas e de surpresa, o arguido negou tal situação, nenhuma prova directa ou indirecta se fez, uma vez que a localização das lesões de ambos os lados da cabeça da vítima, sem que se saiba qual a ordem por que foram provocadas e quais as que foram feitas com a vítima de pé e quais as que o foram quando a vítima se encontrava no chão não permitem concluir quais as posições relativas do arguido e da vítima.
- Quanto à intenção de sufocar a vítima com a colocação do saco de plástico na cabeça, valem as razões supra referidas e o facto do relatório de autópsia nada referir a tal propósito.
- Quanto à reflexão sobre os meios empregados, além de nenhuma prova directa ter sido feita, dificilmente permite compreender que fosse escolhida uma pá e um local como o escolhido, tendo em conta a personalidade do arguido.
O depoimento das testemunhas Manuel Augusto Pires Álvaro e João Pereira não contribuíram para a formação da convicção do Tribunal por não terem revelado conhecimentos sobre os factos em discussão, sendo que a segunda das testemunhas referidas, dono do prédio em construção referido nos factos provados, apenas referiu que nele não tinha quaisquer ferramentas.
*
Conhecendo:
Como é sabido, os poderes de cognição deste tribunal de recurso são delimitadas pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Sendo que os tribunais da Relação conhecem de facto e de direito – artº 428º nº1 do CPP Como serão todos os que doravante e indicarem sem menção de diploma..
Como decorre do relatório supra foi interposto recurso pelo Ministério Público e pelo arguido, aquele recorreu de facto e de direito, e este apenas de direito, sendo, nos termos do artº 414º nº7, este tribunal o competente para conhecer de ambos, embora o arguido tenha dirigido o seu ao Supremo Tribunal de Justiça.
*
Recurso do Ministério Público:
Embora tal não resulte com clareza das suas conclusões de recurso onde o recorrente alega factos que não constam directamente da sentença recorrida e que constituem fundamentos dos factos que efectivamente visa modificar com o recurso sobre a matéria de facto, decorre da motivação que a pretensão acerca da matéria de facto se reporta ao nº22 dos factos provados, que entende dever ser modificado e antepenúltimo facto não provado, que entende dever constar dos factos provados.
O facto provado em causa tem o seguinte teor:
”22. Devido à sua doença do foro psíquico, a vítima nunca dispensou cuidados e afecto à sua família, o que diminuiu no arguido o sentimento de filiação em relação à sua mãe”.
Defende o recorrente que de acordo com a prova que indica - designadamente o depoimento do pai do arguido, do próprio arguido e da testemunha Valdemar Costa, e outros familiares do arguido que a vítima tinha períodos de compensação designadamente antes de ser aposentada por causa da sua doença psíquica – que este facto devia ser:
“Em virtude de sofrer de alguns transtornos psíquicos, a vítima deixou periodicamente de prestar todos os cuidados e afecto devidos à sua família, o que causava preocupação e desgosto ao arguido”
Por seu turno, o facto não provado posto em crise tem o seguinte teor:
“O arguido aproveitou a altura em que a sua mãe saiu do automóvel com o objectivo de ir fazer as necessidades para ir buscar à mala daquele a pá que aí transportava e, empunhando-a, aproximou-se da vítima, que se encontrava de costas voltadas para ele e, sem que esta se apercebesse, postou-se atrás dela e daí desferiu-lhe, com a referida pá, uma pancada na cabeça, atingindo-a de surpresa e sem que tivesse hipótese de esboçar qualquer gesto de defesa.”
Quanto a este facto entende o recorrente que o próprio depoimento do arguido na parte em que refere nunca ter molestado sua mãe e lhe ter guardado respeito, como foi confirmado pelo pai, permite concluir que a mãe confiava no filho e se esperava respeitada que este que a apanhou de surpresa quando a agrediu da forma descrita na acusação, que não colheu resposta positiva do tribunal.
O problema posto pelo recorrente reconduz-se assim, ao da apreciação e valoração da prova por parte do tribunal recorrido de que trata o artº 127º.
Dispõe esta norma que “ Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre apreciação da entidade competente”.
A este propósito salienta o Sr. Prof. Figueiredo Dias Direito Processual Penal, 1º vol. Coimbra Editora. Lda, pág. 202. “ Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionaridade (…) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de ta sorte que a apreciação há-de ser, em concreto recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo…”
Por outro lado, livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A mais importante inovação introduzida pelo Código nesta matéria consiste, precisamente, na consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do processo de modo a permitir-se um controlo efectivo da sua motivação Conf. Marques Ferreira Jornadas de Direito Processual Penal, o Novo Código de Processo Penal, “Meios de Prova”, Livraria Almedina, pág. 227/228.
Citando o Prof. Marques da Silva Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 126/127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias. “O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível, referente à valoração da prova, intervém as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as interferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência”.
Chamam-se estes ensinamentos á colação para dizer que aos julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas ou mais versões dos factos, só se pode afastar do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o artº 374º nº2.
No caso em apreço, lidos os depoimentos transcritos e examinada a restante prova constante dos autos, não resulta da sua análise conjugada e crítica qualquer razão para que se discorde do juízo valorativo expressamente formulado na decisão recorrida.
Dir-se-á que a prova necessária à formulação de um juízo de convicção não reside na quantidade dos meios de prova produzidos nem na sua natureza directa ou indiciária, mas na qualidade, i. é, com a veracidade e autenticidade, cuja indagação só é possível mediante a aquisição de uma impressão pessoal dos meios de prova, com desataque para a prova por declarações cuja veracidade só é detectável através do contacto oral e directo com as pessoas, única forma de aferir correctamente da sua idoneidade e da autenticidade dos factos por elas transmitidos.
Ou seja, a prova por declarações depende tanto do conteúdo destas como do modo como são assumidas e transmitidas ao tribunal.
Resulta daqui, que o tribunal de recurso ao reapreciar a prova por declarações deva, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido. O mesmo é dizer que “se o juízo recorrido for compatível com os critérios da apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração Paulo Saragoça Matta Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 200, pág. 253.
Refira-se, por último, parafraseando o Prof. A. Varela, que no domínio do direito processual, ao invés do que ocorre com a demonstração no campo da matemática ou com a experimentação no âmbito das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta mas apenas a convicção essencial às relações práticas da vida social Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição pág. 407..
Vale tudo isto para dizer que não obstante as afirmações feitas nas conclusões de recurso com as quais o recorrente pretende modificar a decisão recorrida nos dois pontos indicados terem algum apoio na prova testemunhal designadamente no depoimento do pai do arguido e nas declarações deste quando refere que devido aos valores em que fora educado tinha consideração, respeito e carinho que é devido aos progenitores e que nunca tinha agredido ou maltratado a mãe embora se sentisse triste e envergonhado pelas atitudes tomadas por aquela devido á doença de que era portadora, a prova tanto por declarações como a documental analisadas no seu conjunto, não permitem, a nosso ver, extrair outra conclusão que não aquela que foi extraída pelo tribunal de recurso, designadamente no que se reporta aos factos agora impugnados.
De realçar que no que toca ao facto provado sob o nº 22, embora se conceda que a palavra nunca é demasiado forte, a parte que verdadeiramente interessa, ou seja que o comportamento da vítima - que sofria de psicose delirante crónica, descrito no facto nº 20, e que foi confirmado por todas as pessoas que a conheciam, incluindo familiares, alguns directos desta, antigos colegas de trabalho, vizinhos e amigos do arguido, que confirmaram que esse comportamento quezilento conflituoso e agressivo se mantinha desde á longos anos desde a infância do arguido - diminuiu no arguido o sentimento de filiação em relação à sua mãe, está apoiada em prova pericial - pelo Ex.mo Psiquiatra que acompanhou o exame e que depôs em audiência (fls. 146 da transcrição) – que como consta da fundamentação defendeu que o arguido devido ao comportamento da progenitora “ substituiu a imagem da mãe”.
Esta conclusão, de que o arguido tinha diminuto sentimento de filiação em relação à mãe, face a toda a prova produzida e à saga que ela relata do que foi a vida desta família nuclear, da qual como consta a prova transcrita até os parentes mais chegados se afastaram devido ao comportamento da vítima (conf. p. ex. depoimento do irmão e cunhada da vítima a fls.194 a 197 e fls. 198 a 200, que devido ao comportamento desta nunca lhe deram a morada e que evitavam encontrar-se com ela, e da tia paterna do arguido, Aldina Barros, fls. 193 e 184, que deixou de frequentar a casa do irmão por causa do comportamento da cunhada e que relatou as dificuldades por que passou o irmão nas várias tentativas para internar a vítima, e as dificuldades e receios do agregado familiar do arguido, (ao qual sempre tentou dar o apoio que este não tinha por parte da mãe), também não viola qualquer regra da experiência comum, sabido como é que a doença de que a arguida era portadora e o comportamento que esta lhe determinava não lhe permitiam desempenhar em termos afectivos o papel de mãe, o que necessariamente se tem de reflectir nos sentimentos do filho enfraquecendo-os, o que não quer dizer que este não a estimasse ou não lhe tivesse respeito.
Conclui-se, assim, que a decisão do tribunal, no que toca ao artº 22 dos factos provados, tem inteiro apoio na prova produzida tendo-se movido dentro dos ditames impostos pelo artº 127º.
No que tange ao facto não provado, cuja opção pela sua inclusão nesta categoria o tribunal plasmou na fundamentação nos seguintes termos:
Quanto ao facto de o arguido ter agredido a sua mãe pelas costas e de surpresa, o arguido negou tal situação, nenhuma prova directa ou indirecta se fez, uma vez que a localização das lesões de ambos os lados da cabeça da vítima, sem que se saiba qual a ordem por que foram provocadas e quais as que foram feitas com a vítima de pé e quais as que o foram quando a vítima se encontrava no chão não permitem concluir quais as posições relativas do arguido e da vítima”
Nenhuma prova foi indicada pelo recorrente que infirme esta convicção ou falta dela, pois que do facto de o arguido nunca ter agredido a mãe antes, nunca lhe respondendo ás agressões e sempre a ter respeitado, factos que o recorrente chama á colação, quanto muito, permitem que se conclua que a mãe confiava que o filho a não molestaria e que não esperava o comportamento que ele tomou, mas mais do que isto é extrapolar para conclusões que a matéria de facto de modo nenhum permite concluir, como seja a de que o arguido agrediu a sua mãe de surpresa e pelas costas.
De tudo o que ficou dito, resulta que se mantém inalterada a decisão da matéria de facto fixada pela primeira instância, improcedendo nesta parte o recurso do Ministério Público.
*
Apesar de o recorrente fazer depender a qualificação do crime da alteração da matéria de facto nos termos expostos, vejamos, ainda assim e perfunctóriamente, se a que foi considerada assente permite qualificar o crime de homicídio designadamente por integrar as alíneas a) e i) do nº2 do artº 132º como pretende o recorrente na vertente em que discute matéria de direito
O legislador português seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método de combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos – padrão. A qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a especial censurabilidade ou perversidade do agente; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor.
Elementos estes, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a sua consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador Conf. Prof. Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, 1999, tomo I, pág. 25. .
«No artigo 132º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves, que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquela circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
Com referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada a constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade» Teresa Serra, in Homicídio Qualificado tipo de culpa e medida da pena, Almedina 1997, pág. 63 e 64..
Resulta daqui que a verificação das situações referidas nas várias alíneas do nº2 do artº 132º, constituem uma presunção ilidivel, ou indiciam a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade Teresa Serra ob. Citada pág. 67..
Posto isto, vejamos se o crime cometido pelo arguido revela especial censurabilidade ou perversidade.
Qualquer que fosse a relação entre o arguido e a vítima, e independentemente das circunstâncias que rodearam o crime, e na lógica do pensamento que vimos desenvolvendo, o parentesco que os ligava integra aquela presunção, pois que integra automaticamente o exemplo padrão consignado na alínea a) do referido artº 132º nº2.
Esta agravante, que radica no maior desvalor da conduta daquele que atenta contra a vida de um familiar directo vencendo as contra motivações éticas relacionadas com os laços de parentesco, que normalmente se pautam por um elevado grau de afectividade, tem entre nós sofrido contestação como aliás é referido no acórdão recorrido, Conferir Comentário Conimbricense, pág. 30, Teresa Serra, ob. Citada pág. 74 e Ac. STJ de 26 de Fev. 2004, CJSTJ tomo I pág. 207. tem sido contestada pela doutrina, tendo mesmo sido proposta já a sua eliminação. De facto, como salienta Maia Gonçalves Código Penal Anotado 16º ed. pág. 470., depois de dar conta da controvérsia, na doutrina estrangeira e nacional, acerca da manutenção desta agravante: “Ao nível familiar, as pessoas atingem um estado de fixação nas outras, ocorrendo danos psicológicos, o que em muitos casos leva a que, entre pais e filhos, ocorra imputabilidade diminuída. Regra geral, estes casos tendem à atenuação e não à agravação, pelo que a agravação só se justifica quando exista uma especial inferioridade da vítima”
Com isto não se quer significar, e adiantando já o conhecimento do recurso do arguido, que neste caso se tenha de considerar uma diminuição da sua imputabilidade e citando o mesmo autor Que por sus vez cita o Prof. Eduardo Correia in Direito Criminal, 1995, vol. II, pág. 354…Se de facto, por um lado, aumenta a gravidade de ilícito, porque além do mal do crime se violam os deveres de respeito, amizade, subordinação ou disciplina, por outro lado, indicia uma maior capacidade criminosa pelo não respeito dos motivos inibitórios do crime que a tais relações devem andar ligados. (…) Deve porém, notar-se que as referidas relações não deixam de agravar a ilicitude, não só na medida em que provocam maior alarme, como na medida em que podem simplificar a realização do delito, o que lhe tira a natureza de próprias”.
Ou seja, para considerar preenchido este exemplo padrão, integrador da agravante modificativa resultante do parentesco deve em cada caso averiguar-se se no caso concreto as relações existentes correspondem á razão de ser da agravante.
Ora, no caso concreto, devido à doença da vítima e às consequências a nível da falta de afectividade e carinho devidas aos familiares, que a mesma doença necessariamente provoca, e que ficaram provadas, as relações mãe - filho apresentam-se deterioradas o que a nosso ver, tira a razão de ser à agravante a que nos estamos a referir, por esbater no filho os deveres de respeito amizade e carinho devidos à progenitora.
No que tange à alínea i) frieza de ânimo, além de se não terem provado os factos onde o recorrente assentava a verificação desta agravante, Que a nosso ver eram susceptíveis de integrarem a qualificativa” meio insidioso” – Conf. a este propósito Ac. STJ de 20.5.2004 in Col Juris STJ tomo II pág. 197 afigura-se-nos que embora o meio empregue uma pá, e a região atingida, a cabeça, revelem intensidade na decisão de matar, estas circunstâncias só por si não reflectem que o arguido tenha agido a sangue frio, de caso pensado, de forma insensível com indiferença pela vida humana Conf. Simas Santos e Leal Henriques Código Penal Anotado, 3ª ed. pág. 73, provado que ficou que durante a viagem houve discussões entre mãe e filho provocadas pelo feitio quezilento e agressivo daquela (facto provado sob o nº 5), que aliás se manifestava desde há vários anos (nº20), provocando um natural desgaste psicológico no arguido - certo sendo que este já por si se encontrava num estado de perturbação afectiva que lhe diminuía a capacidade de controle dos impulsos (33) - e que imediatamente antes do crime ambos voltaram o discutir, tendo sido esta discussão e a exaltação por ela provocada o “rastilho” que desencadeou a violentíssima atitude do arguido (9).
Por tudo o que foi dito, entende-se que atendendo às circunstâncias que antecederam o crime - e afigura-se-nos que só estas interessam para aquilatar do aumento da culpa revelador da especial censurabilidade ou perversidade ínsitos à integração no artº 132º- este não deve integrar o homicídio qualificado mas antes o crime de homicídio simples não merecendo qualquer censura a integração feita pelo tribunal “a quo”.
Face ao insucesso do recurso do Ministério Público, vejamos se procede o
Recurso do arguido:
Entende o arguido que o tribunal não levou em conta o que classifica de “culpa da vítima” reflectida nos pontos 5., 20,21 e 22 dos factos provados, e que a seu ver integra a circunstância prevista na al. b) do artº 72º do Cód. Penal, a impor uma atenuação especial da pena.
A atenuação especial da pena radica numa acentuada diminuição da culpa e das exigências de prevenção de modo que a imagem global do facto se revele especialmente atenuada face aos casos normais previstos pela norma incriminadora.
Como escreve Figueiredo Dias Conf. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crimes, ed. Noticias pág. 306, e demais doutrina aí citada. Na jurisprudência conf. entre muitos Ac. STJ 29 de Abril de 1998, CJ STJ, tomo 2 pág. 191
“ A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência e a doutrina que a segue quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos normais, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprio”.
Não nos parece que os factos onde o recorrente se apoia para dizer que houve culpa da vítima, e que são essencialmente aqueles que levaram o tribunal a desqualificar o crime em razão do parentesco, possam sequer integrar a circunstância atenuante especial configurada na al. b) do nº2 do falado artº 72º, ou seja, no caso que aqui interessa, que a conduta do agente tenha sido determinada por provocação injusta, pois que o facto de a vítima, devido á sua doença, ter um feitio quezilento e agressivo, que originou o desbotamento dos laços de afectividade entre ela e o arguido, feitio que se manifestou durante a viagem que antecedeu o crime bem como a discussão havida entre ambos imediatamente antes deste, não podem, de modo algum configurar, provocação para tão violenta reacção como foi aquela do arguido que atingiu a sua mãe, pelo menos duas vezes, com uma pá na cabeça provocando-lhe, como quis e previu, a morte.
Com efeito, o comportamento da vítima contemporâneo e anterior ao crime, sem deixar de ter uma carga atenuativa, apresenta-se manifestamente desproporcionado ao resultado morte desencadeado e querido pelo arguido, de modo a permitir afastar o caso que nos ocupa dos normais casos de homicídio voluntário.
Por outro lado, não se vê que o tribunal tenha violado o princípio da proibição da dupla valoração ou qualquer preceito constitucional, quando considerou a intensidade do dolo depois de ter desqualificado o crime.
O problema da dupla valoração apenas se podia pôr nos termos em que foi colocado pelo recorrente se o elemento intelectual tivesse sido considerado para agravar o crime Com. Teresa Serra, ob citada pág. 106 e 107. e não no caso inverso.
Com efeito, quando se afastou a especial censurabilidade ou perversidade do agente entendeu-se que a culpa devido às circunstâncias já analisadas, não era de tal modo grave que levasse o tribunal a classificar o homicídio como qualificado com a consequente agravação da medida da pena, mas daqui não resulta que dentro dos limites da pena prevista para o homicídio simples, se tenha de ter em conta o grau de culpa que como é sabido, é a pedra de toque da punição no nosso sistema penal.
Entende ainda o recorrente que o tribunal devia ter tido em conta a sua imputabilidade diminuída, chamando à colação o relatório pericial às suas faculdades mentais que não foi tomada em conta nos factos provados contrariando o disposto nos artº 159º, 160º e 163º Note-se que o referido relatório conclui que o arguido deverá ser considerado imputável para o crime que lhe é atribuído, mas poderá (sublinhado nosso), ser tida em consideração a atenuação da imputabilidade..
Em primeiro lugar, não se vê que o tribunal tenha desconsiderado o relatório às faculdades mentais do arguido inserto a fls. 655 a 660, pois, como resulta da fundamentação se serviu dele para apurar a matéria de facto que deu como provada, como melhor resulta da fundamentação da decisão acima transcrita, nem que tenha violado o artº 163º do CPP, que presume tal prova subtraída à livre apreciação do julgador, certo sendo que com ela concordou, como melhor consta da sentença recorrida na parte em que graduou a pena, considerando que a atenuação da imputabilidade que o relatório pericial admite que seja tomada em consideração, não implicava, e parece-nos que bem, uma atenuação dos limites da pena mas considerou-a a par das outras circunstâncias atenuantes na medida da pena que fixou perto do limite mínimo, dentro de uma moldura penal de 8 a 16 anos, a pena foi fixada em 9 anos e 6 meses o que é revelador do valor dado às circunstâncias atenuantes, designadamente as que constam do referido relatório (conf. parte final de fls. 706 e 707 da decisão sob censura), que merece a nossa inteira adesão e, por isso passamos a transcrever:
“ (…) há a considerar que o facto de o arguido ter actuado em estado de exaltação e, na data em que os factos ocorreram, ter terminado poucos dias antes, um relacionamento de namoro de vários anos que o perturbava afectivamente e que o facto de nunca ter beneficiado de comportamento afectuoso da parte da vítima poderão ter limitado, embora de forma ligeira, a sua capacidade de motivação. Porém, tal situação que poderá qualificar-se de imputabilidade diminuída, devendo ser considerada na concretização da medida da pena não assume relevo suficiente que determine atenuação especial da pena nos termos do artº 72º do Código Penal, porquanto não diminui de “forma acentuada” a culpa do arguido.
Conclui-se assim, que nenhuma censura merece também neste ponto a decisão recorrida.
*
Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedentes os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido, e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
*
Por o MºPº estar isento de custas, apenas o arguido as pagará com a taxa de justiça que se fixa em 8 UC.
*
Coimbra,