Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4758/06.5TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: PROTECÇÃO DA CRIANÇA
LEI APLICÁVEL
RESPONSABILIDADE
PATERNIDADE
INTERNAMENTO
Data do Acordão: 01/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º, 3º, 4º, 35º, Nº 1, AL. G), 39º, 62º E 69º DA LPCJP (LEI Nº 147/99, DE 1/09)
Sumário: I – A LPCJP (Lei nº 147/99, de 1/09), que tem por objecto a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, prevê a intervenção quando o representante legal ou quem tenha a guarda de facto da criança ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, não se mostrando que seja necessária uma efectiva lesão, bastando tão só um perigo eminente ou provável (artºs 1º e 3º).

II – Essa intervenção deverá pautar-se pelos princípios orientadores enunciados no artº 4º, referenciando-se, desde logo, o interesse superior da criança.

III – A criança, no entanto, tem o pleno direito de crescer no seio da família que lhe proporcione o afecto e o conforto de suficiente condição sócio-económica que lhe garanta o acesso a um desenvolvimento equilibrado.

IV – Daí que a intervenção deva ser sempre orientada no sentido de os pais assumirem os seus deveres para com a criança, bem como pelo princípio da prevalência da família (princípio da responsabilidade parental).

V – Perante tais princípios, justifica-se e impõe-se que uma menor institucionalizada seja transferida de uma instituição para outra que esteja mais perto do local de residência da sua família, mesmo que essa mudança possa causar algum prejuízo sócio-emocional à criança, embora sob vigilância dos serviços competentes para o efeito.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

Em processo de processo de promoção e protecção da menor, A...., instaurado no Tribunal Judicial de Leiria (5º Juízo Cível), foi proferida decisão que, procedendo à revisão de decisão anterior de acolhimento em instituição da aludida menor, decretou a continuação dessa medida, pelo período de mais dez meses, executada no Lar B...., naquela cidade e determinou, ainda, um regime de visitas da sua progenitora, além de acompanhamento por banda da Segurança Social que deve ser objecto dos respectivos relatórios sociais.

Inconformada, a progenitora da menor, C...., interpôs recurso de agravo de tal decisão, alinhavando conclusões que se podem sintetizar do modo seguinte:

[……………………………………….]

Contra alegou a Digna Magistrada do MºPº, pugnando pela manutenção da decisão sob recursoa e no termo de sua esclarecida alegação emitiu as seguintes conclusões que, seguidamente, se alinham de forma sintética:

1- Dos elementos dos autos não resultam as condições adequadas que permitam o regresso da menor à sua família natural, na residência da progenitora.

2 – Por outro lado, a transferência de instituição para mais perto da residência da progenitora poderá causar prejuízos emocionais, nocivos para o seu desenvolvimento e, portanto para o seu superior interesse.

Foram colhidos os vistos legais e agora cumpre apreciar e decidir.

Os elementos aqui disponíveis permitem consignar como mais significativos os seguintes factos:

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                                  ***

Pretende a Recorrente que sua filha A... seja reintegrada no seio familiar, mas se assim não for entendido, ao menos que seja transferida para a instituição de Chaves, referenciada nos autos.

Antes de abordar essa que é a questão substantiva, dois reparos:

o primeiro para aludir ao despropósito da referência  da Recorrente à nacionalidade da menor e seu eventual regresso ao Brasil, questão que nos autos se não colocou ou abordou e que, por isso, aqui, não cabe tratar. Dir-se-á, porém que a lei portuguesa não deixa de aplicar-se em sede de protecção de menores pelo facto destes deterem nacionalidade estrangeira, como se esclarece, claramente, no artº2º da LPCJP, bastando para tal que residam ou se encontrem em território nacional. Despropositada e gratuita é, também a acusação da Recorrente à Senhora Directora do Lar B... imputando-lhe animosidade e desejo de vingança para com ela sem que tivesse alegado facto ou fundamento sério que o demonstre.

O segundo reparo, de estranheza, prende-se com a circunstância de a Recorrente incluir no número das disposições normativas pretensamente violadas pela decisão sob recurso o artº668º e suas als b, c e d do CPC que remetem para as causas de nulidade da sentença. É que por mais que se esquadrinhassem as suas alegações, aí, não se descortinou qualquer referência a essa matéria, implicando essa omissão a impossibilidade de pronúncia por este tribunal de recurso.
Quanto à questão de fundo:
 No capítulo dos direitos, liberdades e garantias, consagra o art.º 36 da CRP, que todos têm o direito a constituir família, tendo os pais, o direito e o dever de educação e de manutenção dos filhos, não podendo os filhos ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
Dispõe, por sua vez, o art.º 69, da CRP, que as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão, devendo o Estado assegurar especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal.
Daí que a LPCJP, que tem por objecto a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, preveja a intervenção, para o caso que agora nos interessa, quando o representante legal ou quem tenha a guarda de facto da criança ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, não se mostrando que seja necessária uma efectiva lesão, bastando tão só um perigo eminente ou provável (artº1º e 3º).
A intervenção a fazer deverá pautar-se pelos princípios orientadores, enunciados no art.º 4, referenciando-se, desde logo, o interesse superior da criança, no sentido que a intervenção deve atender prioritariamente aos interesse e direitos da criança, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto, tendo assim, em conta o direito da criança a um desenvolvimento normal e equilibrado, quer em termos físicos, como psíquicos, mas também considerando as suas condições específicas, os diferentes estádios de desenvolvimento e as normais vicissitudes decorrentes da interacção humana.
Para além do princípio da intervenção precoce e mínima, consagra-se também o princípio da proporcionalidade e actualidade, devendo assim a intervenção ser a necessária e adequada ao perigo em que a criança se encontre, no momento em que a decisão é tomada, só podendo interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário para essa finalidade.
Por fim, deve ainda a intervenção reger-se pelo princípio da responsabilidade parental, isto é, deverá ser orientada para que os pais assumam os seus deveres para com a criança, bem como pelo da prevalência da família, no sentido que deverá ser dada prevalência a medidas que integrem o menor na sua família, em detrimento das de colocação familiar ou institucional, no caso de se reconhecer que a inserção familiar se mostra a melhor maneira de se obter o desenvolvimento saudável e harmonioso de uma criança.
Remetendo, ora, para o caso dos autos não pode deixar de se concordar com a sucessão das decisões que optaram pela intervenção judicial para a institucionalização da menor que, aliás, a Apelante não enjeitou, face às circunstâncias de genuíno risco que a antecederam.
Esta consideração, no entanto, não invalida o que temos por inquestionável no tocante ao direito da criança de crescer no seio da família que lhe proporcione o afecto e o conforto de suficiente condição socioeconómica que lhe garanta o acesso a um desenvolvimento equilibrado. Este que é o paradigma e modelo histórico da valorização do indivíduo e da socialização da criança só pode ser colocado de lado, nomeadamente, pela medida de institucionalização, como um meio ou recurso a utilizar em situações limite que não permitem outra resposta imediata.
Parece ser este o trilho que, também, serviu de norte às decisões que têm sido adoptadas nos autos, como, aliás, é reportado na decisão sob recurso. Ora, sendo esse objectivo estratégico (por assim dizer) correcto para o encaminhamento final da menor, afigura-se-nos que nesta última decisão, salvo o devido respeito, em vez de se avançar nessa direcção, se deu um passo para o lado.
Na verdade, se o objectivo estratégico continua a ser o da reintegração da menor no seio de sua família, na qual a mãe da menor é o único elo de ligação desta aos restantes elementos que a compõem, não se afigura como adequada ou útil, por exemplo, actuação que se centra, praticamente, na sua permanente “diabolização” por banda de quem tem por dever, até ético, de evitar esse tipo de confronto. Em vez disso – e seria bom que se não olvidasse a sua condição de emigrada/desenraizada -melhor teria sido se fossem adoptadas medidas e soluções capazes de ajudar a mesma progenitora a corrigir-se, a superar-se como único caminho para se alcançar tal objectivo.
Insistência em desvios desse objectivo, bem patentes nas discrepâncias de orientação manifestadas nos relatórios dos serviços da Segurança Social de Vila Real e da equipa da instituição onde a menor permanece, não devem ser permitidos pelo tribunal, nem que, para isso, se tenha de substituir àqueles na recolha dos elementos credíveis para uma decisão sustentada.
Já se disse que a institucionalização da menor foi medida acertada para colocar um termo a situação que descambava rapidamente em prejuízos irrecuperáveis para a menor. Agora, acrescenta-se que a sua permanência em instituição de acolhimento ainda se justifica, não só para consolidar o equilíbrio que se vem verificando na sua forma de estar, mas também para permitir o que tem sido descuidado: o trabalho junto de sua família natural de modo a criarem-se por esse lado condições para o seu regresso. E sob esta perspectiva é que se não entende o fundamento para a recusa de sua transferência para instituição idêntica no local de sua residência. Senão vejamos:
No caso sob análise, são evidentes, ainda, alguns escolhos, a que a separação física da menor e dos elementos de sua família não é alheia. E seria de todo absurdo, negar-se, apesar de tudo, a existência de laços entre a menor e a sua mãe, se bem que esta continue com as fragilidades enunciadas no exame acima referenciado, em termos da capacidade de levar a cabo o seu papel junto daquela. Fragilidades que, porém, não podem ser entendidas como anátema ou vício genético se é que não se devem às dificuldades de aculturação e à pobreza. Fragilidades que são superáveis, como no mesmo relatório se faz constar, desde que aí, também, se faça algum investimento, tanto mais que se não traduzem em contra indicações inultrapassáveis pela sua gravidade potencial ou pelo risco para a segurança e a protecção da menor.
Sendo evidentes o apaziguamento da situação e os progressos em termos do projecto de vida comum que levam a menor a manifestar-se favorável à solução do seu regresso ao convívio dos seus, certo é também que são ainda referenciadas ou se adivinham insuficiências, nomeadamente a nível das condições socioeconómicas desta família, bem como necessidades de apoio familiar para prevenção e protecção nos embates do dia a dia, de modo a, propiciar a segurança, a estabilidade e a confiança na sua superação.
Ora, nesta perspectiva, e com estes condimentos que devem ser potenciados e desenvolvidos, essencial é um mais intenso relacionamento e convívio da menor não só com a sua progenitora, mas também com os demais elementos da família, mormente, os irmãos que constituem o outro elo de integração no seu seio, através de visitas regulares e de permanência conjunta em períodos de férias. Relacionamento com estas características tem como condição objectiva evidente a proximidade que a institucionalização no Lar B... não permite e a do Lar em Chaves facilita.
Dir-se-á (como no relatório acima citado) que o seu afastamento de Leiria lhe acarreta prejuízo sócio-emocional. É bem possível uma vez que a menor aí tem estado radicada, frequenta a escola, terá algumas de suas afectividades, seus amigos, a sua rotina, etc., situação, enfim, comum a tantos casos de mobilidade familiar. Porém, se o objectivo é conciliar a defesa de seu superior interesse com a prevalência da família para a qual toda a medida de internamento deste tipo flui (sob pena de sua negação), concerteza que hipotético sacrifício que se lhe pede sempre será suplantado pela manutenção dos contactos, hoje viáveis por múltiplas formas e, sobretudo, pelo objectivo de reunificação familiar, sendo certo que essa transferência pode e deve ser preparada pela equipa multidisciplinar da instituição sob a direcção e o controlo do tribunal.
Deste modo, e sob a batuta do mesmo tribunal (artº59º, 2), cabe elaborar projecto nesse sentido e executá-lo de modo a que prejuízos de outro tipo, como os da frequência escolar, não sejam prejudicados e ao mesmo tempo solicitar aos serviços da Segurança Social de Vila Real a reactivação do pedido de internamento no Lar que havia sido definido e a sua preparação e execução junto da entidade que o dirige e dos familiares da menor.
Consumada a transferência, localmente, deve ser trabalhado pela equipa da instituição ou outra, com vertente multidisciplinar, o reingresso a breve prazo da menor no seio familiar, junto da menor e de sua família, mormente, de sua mãe, visando o melhor exercício das funções parentais, ao nível dos cuidados afectivos, com respeito pelo bem estar físico e psicológico da menor, facultando-lhes se necessário, apoio psicológico, pedagógico e económico, ao menos no âmbito dos subsídios de âmbito escolar.
Em suma, afigura-se-nos que este é o momento de viragem numa situação que não pode eternizar-se, até no âmbito, estritamente legal e que, de algum tempo a esta parte, passou a arrastar-se, degradando-se na proporção correspondente à perda dos objectivos que a deviam nortear.
Cabe ao Tribunal definir as etapas conducentes à transferência da menor, traçando o adequado acompanhamento da menor e sua família e aos serviços técnicos de apoio, a definição dos projectos nesse sentido, de forma a que, não havendo impedimentos quanto ao seu internamento em Chaves ou dificuldades inultrapassáveis no que tange à sua transferência escolar, essa transferência se possa consumar no período das férias escolares de Páscoa.
Até lá, mantém-se o mais que foi objecto da decisão sob recurso – contactos e visitas - e, posteriormente à transferência, preparar a reunificação familiar, como acima se adiantou.
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Nestes termos:
1. Confirmam a decisão proferida no tocante à revisão da medida de internamento, mas ordenam a sua execução em instituição sediada no local de residência da família da menor A... (Chaves), devendo esta para o efeito, ser transferida no próximo período de férias de Páscoa, sem prejuízo, no entanto, de sua actividade escolar, nos termos acima aludidos.
2. Paralelamente, e sob a orientação do Tribunal, deve ser pedida a colaboração da equipa de técnicos da instituição onde a menor permanece e da equipa local de Chaves para, junto da mesma menor e de sua família, prepararem a sua transferência e, posteriormente, a sua reintegração familiar, nos termos e com os objectivos acima referenciados.
Sem custas.