Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
181/22.2GHCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS
REITERAÇÃO
PODER-DEVER DE CORRECÇÃO
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: LEGISLAÇÃO NACIONAL
ARTIGO 152.º-A, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL

CONVENÇÃO INTERNACIONAL
ARTIGO 29.º DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA
Sumário:
I – A ONU e o Conselho da Europa já emitiram várias recomendações vincando que as crianças são verdadeiras titulares de direitos necessitando, devido à sua vulnerabilidade, de especial atenção e protecção, no que assume um papel muito especial a família.

II – Se é verdade que as finalidades educativas abrangem o poder de correcção de condutas, é sabido que esse poder se manifesta através do exemplo e da palavra, nunca por via de posturas agressivas e violentas, física e psicologicamente.

III – Urge cada vez mais abandonar “métodos educativos” que anteriormente vigoraram numa sociedade que aceitava pacificamente intolerâncias e abusos na educação das crianças, geradores de enormes malefícios no seu desenvolvimento, cabendo aos tribunais um papel relevante nos resquícios que ainda restam desse tipo de violência a coberto de uma pretensa “educação”.

IV – No cumprimento do dever de educação não são aptos nem admissíveis comportamentos de intimidação, agressão física e psicológica, violação da reserva da vida privada e retaliação, pois tais comportamentos colocam em causa o equilíbrio emocional, afetivo e a liberdade do menor.

V – A introdução do crime de maus tratos, pelo artigo 152.º-A do Código Penal, teve em vista alargar a punibilidade dos maus tratos para além das

pessoas com a relação especial com a vítima, não exigindo o tipo a coabitação com as vítimas especialmente indefesas.

VI – O crime de maus tratos abrange os maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a atividades perigosas, desumanas ou proibidas, resultando da simples leitura da alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º-A que para a sua verificação não é necessária reiteração da conduta.

VII – As reacções desproporcionais e desadequadas a comportamentos de menores, que excedam de forma inaceitável o poder-dever de correção/educação à luz da consciencialização ético-social da actualidade, não podem nunca entender-se como não ilícitas à luz de uma qualquer causa de exclusão da ilicitude.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

RELATÓRIO


1. Por sentença de 17 de abril de 2023, … foi decidido:

Absolver a arguida AA … da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, n.º 1 alínea a) do Código Penal.


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2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem na íntegra):

- Vem o presente recurso da não conformação do MP com a douta sentença … absolveu a arguida …, da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de maus tratos, … na pessoa do seu enteado BB …, nascido em .../.../2012.

- O Tribunal a quo valorou, … as “declarações prestadas pela arguida, … que assumiu, na essencialidade os factos provados, … contudo, o mesmo Tribunal a quo, preteriu … segmentos prevalentes das declarações da arguida, …

3º - As declarações acima enunciadas e o visionamento do vídeo junto aos autos, impõem nos termos do artigo 431º, als. a) e b), do Código de Processo Penal, a alteração da matéria de facto …

4.º - Quanto aos factos “não provados”, ínsitos de xi. a xvii., … também deveriam ter sido dados como provados, tendo incorrido a sentença a quo, em erro de julgamento;

5.º - … a arguida não atuou “com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa de …”, como se refere em 28 dos factos provados, ….

6.º - As referidas condutas da arguida foram-no conscientes e dolosas e colocaram em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica do menor, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto criança e ser humano, inseridos numa realidade parental (ou quasi-parental) que se quereria harmoniosa e protetora, …

8.º - A apreciação dos factos pelo Tribunal a quo, contém contradições … fez, uma compartimentação dos factos (mesmo do episódio filmado), que esvazia, na panorâmica geral dos factos, a gravidade que os mesmos tiveram.

10º - A arguida descontrolou-se, excedeu-se, sendo ela a adulta da relação e a quem incumbia naquele momento atuar in loco parentis. Pelo que, atendendo à imagem global do facto – mormente de uma situação – a que foi filmada, de humilhação, coação física e psicológica, de uma pessoa já devidamente formada na sua personalidade, …

11º - Tal corresponde a uma situação clara de recurso a punição física, injustificada e inadmissível contra um comportamento não grave por parte da criança, não tendo o menor lesado qualquer bem jurídico penalmente tutelado.

12.º - As crianças, são sujeitos jurídicos, em formação, e que como tal, têm o direito a serem protegidos, sendo que a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão.

13º - Com a atuação da arguida é atingido o bem jurídico protegido pelo tipo legal de maus tratos (art.º 152º-A do CP), bem como do crime de violência doméstica (art. 152º do CP), - …

14º - O caso dos autos não se resume, a uma criança que faz “birras”, não quer fazer tabuadas, e foi corrigido pela madrasta com uma palmada na mão ou na cabeça, e a uma mera ameaça; e numa outra situação, em que bufou para a madrasta, a mesma o corrigiu, dando-lhe uma palmada na perna.

15º - Na situação do vídeo, foi dado como provado desde manhã que a arguida mantinha ali o menor, de manhã à tarde, numa mesa para fazer deveres, tendo culminado com os cinco minutos finais de intensidade, pressão, humilhação, ameaça e agressão que o menor sofreu, ou seja, maus tratos; …

16.º - … este tipo de violência física e psicológica a que o menor … esteve sujeito, deve ser integrado no conceito de maus tratos físicos previstos no artigo 152.º-A do Código Penal, …

Mesmo que assim não fosse, e SUBSIDIARIAMENTE,

17º - Admitindo por mera facilidade de raciocínio, a desqualificação, ainda assim, os dois crimes de ofensas à integridade física e a ameaça, deveriam ser qualificadas, por revelarem especial censurabilidade.

18.º - O Tribunal a quo deveria ter valorizado a circunstância desses atos terem sido perpetrados pela arguida contra um menor, conferindo uma especial censurabilidade ou perversidade à conduta, …

19.º - O enteado é uma pessoa particularmente indefesa, e a panorâmica geral relevam de forma a que a conduta de 12 a 26, deveria, pelo menos ter sido integrada no tipo qualificado, p. e p. pelo artigo 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 1, alíneas a), do Código Penal.

20º - E não se diga, como fez o Tribunal a quo, que a conduta da arguida poder-se-ia considerar justificada à luz de um pretenso poder de correção, ocorrendo uma exclusão da ilicitude (artigo 31.º, n.º 1 e 2 do Código Penal).

21º - O poder de correção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal donde se possa retirar tal conclusão.”

22º - Se aos pais, para educarem os filhos, não é permitido agredi-los, ofendê-los na sua dignidade, na sua integridade física e psíquica ou na sua liberdade, muito mais tal permissão é negada aos educadores.

23º - Mesmo a existir um poder de correção, este sempre imporia, que o agente atue com essa finalidade e, por outro, que os castigos infligidos sejam criteriosamente ponderados e proporcionais à falta ou faltas cometidas, o que é de todo incompatível com a violência física, com castigos corporais ou com castigos humilhantes e atentatórios da dignidade do menor, pois estes nunca serão adequados ou justificados pelo dever de educar – o que não sucedeu com a arguida dos autos.

24º - O direito de correção, quanto muito, dependerá de uma ação muito grave do educando, a qual se mede por ser dirigida contra bens jurídicos protegidos pelo direito penal, não sendo admissíveis castigos por faltas do educando que não lesem bens jurídico-penais (como +e o caso da desobediência) - a conduta da criança, não é grave e muito menos atinge bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal (em lado nenhum se demonstrou que o menor tivesse insultado, ameaçado ou batido à madrasta).

25º - Assim, a existir um dever de correção, dever-se-ia considerar, que as condutas da arguida, extravasaram o mesmo, …

26º - A ser, como se pugnou, crimes de natureza pública, do mesmo modo, inexiste qualquer vício de caducidade, tendo o exercício da queixa sido efetuado tempestivamente, pelo que, subsidiariamente, deveria a arguida ter sido condenada pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, …

27º - Da factualidade de 9 a 22, o Tribunal a quo retirou, ainda, factos que qualificou como sendo uma ameaça simples, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, a qual reveste a natureza de crime semipúblico (cfr. artigo 153º, n.º 3 do Código Penal), concluindo que a queixa quanto aos factos em apreço não foi exercida tempestivamente, …

28º - O Ministério Público respeitosamente discorda desta interpretação, considerando que pelo menos, quanto a estes factos a arguida deveria ser condenada pela prática de um crime de ameaça agravado, …


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3. Não foi apresentada resposta ao recurso.

*

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, …

«»


*

II.

SENTENÇA RECORRIDA


(transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso)

«(…) A MATÉRIA DE FACTO PROVADA

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. BB …, nasceu em .../.../2012, … sendo filho de CC … e DD …

2. Os respetivos progenitores separaram-se.

3. No âmbito da sentença proferida em 20-03-2019, transitada em julgado em 04-04-2019, … foi determinado que o exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente do BB seriam exercidas pela mãe, com quem o menor reside habitualmente, sem prejuízo do respetivo exercício exercido pelo pai, quando o BB com este esteja temporariamente, …

4. Nos termos de tal regulação, o menor passou a visitar o respetivo progenitor, com ele pernoitando, aos fins de semana, de 15 em 15 dias, … e passando 15 dias nas férias de verão com o mesmo.

5. O pai de BB, … refez a sua vida com a arguida …, com quem iniciou uma relação em 2010, passando a viver juntos em 2017 e veio depois a casar em 12 de novembro de 2020.

*

7. Num piquenique, em data e local não concretamente apurados, mas entre agosto e setembro de 2018, o menor BB sentiu uma dor de barriga e necessidade de defecar.

8. O BB acabou por sujar as cuecas, tendo a arguida limpo o mesmo e trocado a sua roupa.

*

9. Em dia não concretamente apurado de 2020 ou 2021, enquanto as escolas estavam encerradas em virtude da pandemia covid 19 e quanto o BB estava em casa da arguida, sob os seus cuidados e vigilância, esta tentou, desde o inicio da manhã que o BB fizesse os trabalhos da escola, o que este nunca cumpriu.

10.Apenas no período da tarde a arguida conseguiu que o BB começasse a fazer os trabalhos, o que fez contrariado e lento.

11.Ao aperceber-se de que o BB pouco estava a fazer, a arguida disse à irmã de BB, …, para filmar com o telemóvel o comportamento do mesmo, para posteriormente mostrar aos pais do BB, como haviam combinado, tendo a mesma remetido o vídeo à sua mãe nesse mesmo dia.

12.Quando a arguida foi corrigir os trabalhos do menor BB, estando este sentado à mesa da sala de estar, abeirou-se do mesmo e disse-lhe em tom alto: “Esta ficha está toda mal. Tu não percebes nada disto” em quando este deitou a cabeça em cima da mesa a arguida disse-lhe “Levanta a cabeça faz favor” ao mesmo tempo que, agarrando-lhe o braço, puxou a criança para trás de forma a que esta se sentasse direito, e quando lhe disse “pega no lápis, se faz favor”, aquele pegou no lápis e riscou o caderno no qual deveria fazer os trabalhos de casa.

13.Acto contínuo a arguida disse-lhe “Estás a fazer o quê BB” e desferiu uma palmada atingindo a mão do menor,

14.Com o que lhe causou dores e mau estar físico.

15.O menor começou a chorar e disse à arguida que queria ir para a sua mãe.

16.A arguida, a gritar, junto do menor, respondeu “então vai a pé”.

17.Continuando sempre a ralhar ao menor, de forma ríspida, viva e alta voz, a arguida continuou a dizer ao mesmo “Tu não voltas a fazer aquilo que estás a fazer agora.”, e continuando o menor a chamar e dizer que queria a mãe, respondeu a arguida, “Aqui não há mãe nem pai. Tu não tens quereres. Eu também quero que tu faças as tabuadas e tu não fazes.”, “Estás a tirar-me do sério”.

18.A arguida disse-lhe “Se não fizeres as tabuadas, sei lá, eu juro-te, mas juro-te que dou-te um puxão de orelhas que ficas com as orelhas maiores”.

19.O menor continuando o seu choro e verbalizando “mas”, a arguida a gritar continuou dizer ao mesmo “Mas nada, não quero respostas”.

20.Acto contínuo o BB deitou os braços e cabeça em cima da mesa, afastando o caderno de si, e a arguida agarrou-lhe o braço, puxando-o ligeiramente para trás, para que aquele se sentasse direito e disse-lhe “Tu não estejas a provocar-me”, respondendo este a chorar “quero a mãe”.

21.A arguida disse-lhe “Se voltas a empurrar o caderno, eu venho aqui e levas uma galheta à séria que te parto os dentes”.

22.Toda esta situação durou pelo menos cinco minutos.

*

23.No dia 11 de julho de 2022, a arguida estava a sair com os filhos e enteados para o dentista.

24.Como o BB queria fazer-se acompanhar do telemóvel e tablet e como a arguida apenas lhe permitiu levar um daqueles objetos, o BB, depois de fazer uma birra que levou a arguida a contactar o pai do mesmo acabou por deixar o tablet em casa.

25.Ao entrar no carro o BB, dirigindo-se à arguida, revirou os olhos e soprou (bufou).

26.Então, a arguida desferiu-lhe uma palmada na perna esquerda, a qual ficou vermelha, com que lhe causou dores e mau estar físico.

*

27.A arguida sabe que o menor é filho do seu companheiro e marido e que, na ausência do pai, e como adulta, sobre si impendem deveres de cuidado, respeito e salvaguarda da integridade física e psíquica deste,

28.Ao atuar da forma descrita em 13 e 26 agiu a arguida livre e conscientemente com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa de BB, sabendo que a sua atuação era apta a provocar dor no corpo do menor, com o que se conformou, convicta que atuava com o consentimento dos pais do menor.

29.Ao proferir as expressões referidas em 18 e 21 a arguida admitiu como possível que causasse medo a BB …, fazendo-o temer pela sua integridade física, possibilidade com a qual se conformou.

30.Ao atuar da forma descrita em 18 e 21 arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas.

31. O referido em 9 ocorreu no final do referido confinamento em virtude da pandemia covid 19, tendo o BB permanecido em casa da arguida, sob os seus cuidados e vigilância, durante todo o confinamento.

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32.No CRC da arguida não consta averbada qualquer condenação.

36.A arguida possui um filho, atualmente com 15 anos de idade

37. … AA … iniciou relacionamento afetivo com CC …, … Deste relacionamento, que se mantém, nasceu um filho, atualmente com 7 anos de idade.

38.O marido possui ainda fruto de um relacionamento anterior, uma filha de 13 anos de idade, e um filho - BB … (vítima no presente processo).

40. AA … reside com o cônjuge, de 39 anos de idade, empresário no setor da pintura da construção civil, com uma enteada, de 13 anos de idade, e um filho de 7 anos, ambos estudantes.

41.O enteado BB … (vítima no presente processo), atualmente com 15 anos de idade, reside com a mãe …, e desloca-se de forma irregular e de acordo com a sua vontade, a casa do pai e da arguida.

42.O ambiente familiar é-nos descrito como positivo, embora se verifique, por vezes, nos períodos em que o jovem BB visita o pai, alguma instabilidade relacional, sobretudo entre a arguida e este enteado, em virtude de, segundo … e o cônjuge, o jovem BB apresentar alguns problemas e alguma instabilidade comportamental. Contudo, alegam que nos últimos tempos este tem apresentado melhorias ao nível da sua conduta, estando atualmente a ser acompanhado em consultas de psicologia na escola.

47.AA … refere tomar diariamente, desde há cerca de dois meses, medicação do foro da saúde mental, prescrita pelo seu médico de família, alegando alterações do seu sistema nervoso e alguma impulsividade ao nível comportamental.

48.A arguida e seu marido, encontram-se também a ser acompanhados pelo CAFAP - Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental de ..., para onde foram encaminhados pela CPCJ ..., no âmbito de um processo de promoção e proteção relativo ao enteado BB ….

50.AA … justifica o seu envolvimento na presente situação judicial com o facto do enteado BB … apresentar alguma instabilidade e alguns problemas ao nível comportamental, e com a inconsistência das práticas educativas da mãe do enteado, situação que considera influenciar de forma nefasta o comportamento do jovem.

51.A arguida revela fraca consciência critica face ao tipo de crime semelhante ao de que vem sendo acusada no âmbito do presente processo.

*

B MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

Não resultaram provados os seguintes factos:

ii. O referido em 2 ocorreu no ano de 2018, ficando o menor a residir com a mãe, em ..., e depois em ....

iii. A arguida, na sequência do referido em 8 e 9 disse ao menor “se te cagares todo, parto-te os dentes”.

iv. A arguida desferiu-lhe, então, bofetadas na cara e palmadas nas nádegas, com o que lhe causou dores e mau estar físico.

v. A palmada referida em 13 tenha atingido a cabeça e face do BB.

vi. Em 20 a arguida tenha agitado o braço de BB.

vii. No dia 11.07.2022 à hora de almoço, na casa da arguida, esta mandou o ofendido BB comer brócolos, alimento que o menor referiu não gostar e não quis comer.

viii. Após o almoço, e quando o menor saiu com a arguida, o progenitor e outros familiares, a arguida discutiu com o mesmo por causa dos brócolos.

ix. No mesmo dia ao lanche, a arguida deu os brócolos do almoço ao menor BB para ele comer, como castigo.

x. O referido em 29 ocorresse de forma permanente

xi. A arguida agia do modo descrito sabendo que infligia maus tratos ao ofendido e que, assim, o molestava física, moral e psicologicamente, o que fazia com o propósito de exercer, de forma abusiva, uma relação de poder sobre pessoas particularmente indefesas, em função da idade e por estarem na dependência daquele.

xii. Sabia a arguida que as referidas expressões que dirigiu ao ofendido são ofensivas da sua honra e consideração; todavia, tal conhecimento não coibiu a arguida de agir como acima referido, o que quis e concretizou

xiii. Em consequência das descritas condutas, vinha a arguida molestando física e psicologicamente o ofendido BB …, causando-lhe um estado de humilhação e ansiedade permanentes,

xiv. Mais, sabia a arguida que, ao adotar os comportamentos supra descritos, colocava em causa o sentimento de autonomia, liberdade e sensação de segurança da vítima menor.

xv. bem como sabia que o mesmo não tinha forma de se defender ou de obstar à sua atuação, desde logo em face do seu tamanho, condição e força física.

xvi. Mais sabia a arguida, que enquanto madrasta e pessoa adulta com o menor a seu cargo, não lhe podia infligir castigos corporais os quais não se encontram compreendidos no dever de correção dos seus educandos.

xvii. A arguida agiu da forma descrita com a clara intenção de molestar a saúde e o corpo de BB … e de lhe provocar as dores verificadas, o que concretizou, causando-lhe ainda sofrimento, como quis e conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

(…)

C MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

(…)

Assim, o Tribunal valorou, em primeira linha, as declarações prestadas pela arguida, … que assumiu, na essencialidade os factos provados, em consonância com o teor da gravação que consta dos autos (efetuada, …, a seu próprio pedido) e da fotografia que consta dos autos …

Os depoimentos dos menores BB … e … pareceram-nos muito pouco espontâneos, … Assim, estes depoimentos pouco contribuíram para a prova dos factos descritos.

DD …, mãe do BB, relatou o que percecionou quanto à situação ocorrida em 11.07.2022, em que falou com o filho através de telefone dentro da viatura e imediatamente após os factos, tendo confirmado ter recebido a mensagem e fotografia de fls. 84.

Os militares da GNR …, que se deslocaram a casa da arguida depois o referido episódio, dando conta do estado do menor, perfeitamente calmo, bem como da versão que aquele lhes contou, consistente com os factos provados e que, quando perguntado se queria ir para casa da mãe, BB respondeu que não, que estava bem ali.

No que diz respeito aos factos atinentes ao elemento subjetivo os mesmos resultam das condutas objetivas da arguida, que demonstram, quanto às aludidas expressões. conhecimento e vontade de realização do crime, bem como das suas próprias declarações, assumindo singelamente que atuou com intenção de BB … efetuasse os trabalhos de casa, que o fizesse corretamente, o que desde aquela manhã não estava a acontecer, demonstrando sempre o menor uma postura de desleixo e até desafiadora, desobedecendo às instruções que lhe foram dadas, pelo que lhe deu aquela palmada quando ele riscou propositadamente o caderno, mas assumindo também que ao proferir as expressões em causa se excedeu, tendo perdido a cabeça e na segunda situação, com intenção e corrigir o mesmo, tendo atuado sempre na convicção que tinha o consentimento dos pais do menor para tanto, …

Resulta do princípio in dubio pro reo, em síntese, que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. …

O presente caso, não só não é evidente que a Arguida tivesse que saber que a sua conduta era proibida por lei (porque os métodos educativos com recurso à punição física são ainda muito aceites na comunidade), como porque a intenção de molestar fisicamente o BB não é a única causa provável para a sua ação, sendo perfeitamente admissível que tenha agido com a intenção de corrigir a atitude reprovável deste, convencida que essa ação era legítima, como, aliás, afirmou.

Não pode, pois, dizer-se que o cidadão médio tem a consciência de que é sempre ilícito o uso de punição física como método educativo.

Pode-se dizer que, na normalidade dos casos, quem dá uma palmada sabe que esta causa algum grau de sofrimento físico, pelo que, havendo dúvidas quanto ao dolo da Arguida e aplicando o princípio in dubio pro reo, o que se pode concluir com suficiente segurança, por presunção judicial, é que agiu com intenção de corrigir a atitude reprovável do menor que tinha a seu cargo, conformando-se com a necessária consequência da sua conduta: o sofrimento físico que tal bofetada causou neste.

Por aplicação do mesmo princípio, quanto a tal factualidade, resulta não provado que tenha agido sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

A decisão quanto à matéria de facto considerada como não provada decorre da ausência de elementos de prova credíveis e concludentes que permitam afirmar, para além da dúvida razoável, a sua ocorrência.

*

III FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Vertendo ao caso dos autos, e tendo em conta os factos dados como provados, verifica-se ter resultado provado dois atos concretizados no tempo, perfeitamente delimitados.

Ora, atendendo aos factos assim dados como provados, coloca-se a questão de saber se estes são de molde a, de per se, consubstanciar o crime de maus tratos ou violência doméstica em apreço. …

E neste circunspecto, apesar de ser inegável que qualquer agressão a uma pessoa, para mais no âmbito de uma relação familiar, em que o dever de respeito assume uma relevância particular, se reveste de gravidade, a verdade é que estamos perante um ato isolado, perpetrado num contexto de discussão e em que BB … adota uma postura desafiadora perante a arguida, sua madrasta. Por outro lado, as agressões perpetradas pela arguida traduziram-se, em cada uma das vezes, numa única palmada, que atingiu o menor na mão, numa primeira vez e na segunda situação em apreço, na perna, não se tendo apurado que das mesmas tenham resultado lesões mais gravosas.

De facto, não se entende que os factos demonstrados no caso concreto sejam subsumíveis ao crime de maus tratos ou de violência doméstica.

Faltando estes elementos, conformadores de uma maior ilicitude, os respetivos factos serão elementos de ofensa à integridade física simples, ameaça ou crime contra a honra, constituindo, em si mesmos, estes mesmos crimes. …

Importa, pois, aferir, se os contornos da atuação da arguida são suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, como exigido pelo n.º 1 do citado artigo 145.º.

É que, como vêm acentuando de modo uniforme a jurisprudência e a doutrina, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º não são de funcionamento automático.

Assim, para que o crime seja qualificado é necessário que as referidas circunstâncias “exprimam, no caso concreto, insofismavelmente, uma especial perversidade ou censurabilidade do agente” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/09/2008, processo n.º 0841369, publicado em www.dgsi.pt).

Ora, no caso vertente não cremos que a factualidade apurada seja de molde a exprimir uma especial perversidade ou censurabilidade do agente, desde logo atendendo à reduzida gravidade das ofensas perpetradas, que, em cada uma das situações, se esgotou num único ato, bem como ao contexto em que a arguida atuou e à postura prévia assumida pelo menor, de evidente desafio.

Em face do exposto, há que concluir que a conduta da arguida integra tão só, em cada uma das referidas situações constantes de 13) e 25), o tipo matricial, previsto no artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, …

Sob outra perspetiva, atenta a postura de afronta que BB … adotou relativamente à arguida, sua madrasta e pessoa que dele cuidava na altura em causa, pode a conduta desta considerar-se justificada à luz de um pretenso poder de correção.

Decorre do disposto no artigo 31.º, n.º 1 do Código Penal que «o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade». Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: a) em legitima defesa; b) no exercício de um direito; c) no cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou d), com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado». …

… será de excluir a tipicidade ou a ilicitude da conduta castigadora leve, moderada e proporcional, enquanto reflexo do direito-dever de educação, … “…, embora desejável, a abolição completa da punição física, não corresponde ao estado atual da consciência jurídica da generalidade da população, não só por desconhecimento ou crença (para que se atinja um tal estado é necessário, como diz vária doutrina, que se faça uma campanha publica de esclarecimento e capacitação), como, muitas vezes, por falta de recursos educativos alternativos…

Aderimos assim à posição defendida por Leandra Correia (In “Direito de Correção dos Pais ou Poder-Dever de Educação - Corrigir Como Educar e não Como Punir”, Universidade de Coimbra, 01/2017, págs. 39/40.), no sentido de que “... a aplicação de CF pelos progenitores deve considerar-se justificada, contudo a exclusão da ilicitude só ocorrerá quando verificados um conjunto de pressupostos que só num juízo casuístico, perante uma situação concreta, poderão ser aferidos.

Aplicando estes entendimento e parâmetros ao nosso caso, entendemos que a punição física que a arguida, em ambas as vezes, infligiu em BB … cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do art.º 31º/1/2-b) do CP (exercício de um direito).

Na verdade, a punição foi legítima, porque a arguida se encontrava, basicamente, a exercer as responsabilidades parentais em representação do pai do menor; agiu com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa do BB; uma palmada (na perna e na mão) foi um castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa; adequada, atenta a idade do menor; necessária, atento todo o seu comportamento; atual, uma vez que produzida no momento imediatamente seguinte ao comportamento censurável.

Concluímos, assim, que embora a conduta da Arguida preencha, em abstrato, os elementos do tipo da ofensa à integridade física, a ilicitude dessa conduta está excluída, nos termos do art.º 31º/1/2-b) do Código Penal.

Sem prejuízo de todo o exposto, diga-se ainda que sendo a ofensa à integridade física um crime de natureza semipública (cfr. artigo 143º, n.º 2 do Código Penal), carece, para o prosseguimento do procedimento criminal, do exercício do direito de queixa.

Ora, no caso em apreço, sendo o ofendido menor, o direito de queixa cabia aos seus pais (artigo 113.º, n.º 4 do Código Penal) e não obstante a sua mãe ter apresentado queixa quanto a ambas as situações em apreço (vide fls. 3 e 4) esta não foi, quanto à primeira das referidas situações, exercida tempestivamente.

Assim, quanto aos factos descritos em 13, sempre se dirá não se encontra preenchida a referida condição objetiva de procedibilidade.

Por outro lado, verificamos resultar ainda provado que na já referida situação ocorrida em dia não concretamente apurado de 2020 ou 2021, enquanto as escolas estavam encerradas em virtude da pandemia covid 19 e enquanto o BB estava em casa da arguida, e melhor descrita de 9 a 22, a arguida dirigindo-se a BB … disse “Se não fizeres as tabuadas, sei lá, eu juro-te, mas juro-te que dou-te um puxão de orelhas que ficas com as orelhas maiores” e ainda “Se voltas a empurrar o caderno, eu venho aqui e levas uma galheta à séria que te parto os dentes”, o que fez admitindo como possível que causasse medo a BB …, fazendo-o temer pela sua integridade física, possibilidade com a qual se conformou, atuando de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas.

Parece-nos que tal conduta da arguida preenche o crime de ameaça, p. e p. pelo o artigo 153.º, nº1, do Código Penal, …

Sucede que a ameaça simples, …, reveste a natureza de crime semipúblico …, carece, para o prosseguimento do procedimento criminal, do exercício do direito de queixa.

Ora, no caso em apreço, sendo o ofendido menor, o direito de queixa cabia aos seus pais (artigo 113.º, n.º 4 do Código Penal) e não obstante a sua mãe ter apresentado queixa … que não foi quanto aos factos em apreço exercida tempestivamente.

»


*


III.

QUESTÕES A DECIDIR


… ([1]).

            Assim, são as seguintes as questões a decidir:

A) Impugnação da matéria de facto;

B) Qualificação jurídica dos factos como:

a) Crime de maus tratos; ou

b) Crime de ofensa à integridade física qualificada. 


*

IV.

APRECIAÇÃO DO RECURSO


A) IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

O recorrente pretende sindicar a valorização dos meios de prova efetuada pelo tribunal quanto aos seguintes factos:

- Provados nos pontos 9 e 13; e

 - Não provados sob os pontos v., vi., xi., xii., xiii., xiv. e xvii.

Encontramo-nos, assim, no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, a que alude o art. 412º, n.ºs 3 a 6, do Código de Processo Penal.

Neste caso, o recorrente tem de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância, devendo especificar, sob pena de rejeição:

- os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e

- as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal).

            Quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo a recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).

            Estas exigências recursivas resultam da competência jurisdicional atribuída ao tribunal de recurso: o julgamento da matéria de facto em primeira instância é efetuado segundo o princípio da imediação, sendo assegurado um contato direto e pessoal entre o julgador e a prova, encontrando-se o juiz de primeira instância em melhores condições que o tribunal de recurso para apreender a verdade histórica e, assim, a verdade material. Os princípios da oralidade e da imediação permitem um maior contacto entre o julgador e as provas, que “virão a ser apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” ([2]).

O tribunal de segunda instância procede à audição das provas registadas que lhe forem sugeridas no recurso e sem visualização, ou seja, ficando inibido de verificar as manifestações físicas e expressões das pessoas inquiridas.

Por estas razões, a reapreciação da prova em recurso nunca pode constituir um segundo julgamento (retirando-se da motivação recursiva pretenderem os recorrentes a obtenção de tal desiderato): o duplo grau de jurisdição garante ao interessado o controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através de reexame parcial da prova, e não um novo julgamento.

… ([3]). 

            Assim, só poderá a Relação concluir pelo erro de julgamento da matéria de facto nos casos em que o recorrente demonstre que a convicção do tribunal de primeira instância sobre determinado facto concreto é inadmissível, porque não foi sustentada por quaisquer dados objetivos, ou porque existem hipóteses decorrentes da prova produzida que impõem resposta diversa à adotada na decisão recorrida.


*

            …

Ø Factos provados em 9, 13 e 14 (e não provados em v. e vi.):

Coloca o recorrente em causa, quanto ao ponto 9, exclusivamente a data em que ocorreram os factos (que, constando concretamente da acusação, não foi, no entanto, dada como não provada). Ora, conforme a prova oferecida (parte das declarações da arguida), admite esta que os factos ocorreram a 9.5.2021.

Assim, altera-se o facto 9 nos seguintes termos:

9- No dia 9 de maio de 2021, da parte da tarde, o BB estava em casa da arguida, sob os seus cuidados e vigilância, tendo esta solicitado que o BB fizesse os trabalhos da escola, o que este não cumpriu.

Quanto ao facto 13, tendo o tribunal a quo atribuído credibilidade às declarações da arguida (ao que parece, não a totalidade), declarou esta que atingiu o menor na cabeça, o que foi declarado como não provado no ponto v. Resulta ainda da visualização do vídeo junto aos autos, que não afasta a veracidade do declarado.

De igual forma admitiu a arguida, a instância da Exma. Juíza, ter agitado o braço do menor, devendo ser dado como provado o facto declarado não provado em vi.

Desta forma, passará o facto 13 a ter a seguinte redação:

13.Acto contínuo a arguida disse-lhe “Estás a fazer o quê BB”, desferiu uma palmada atingindo a cabeça do menor; após, sacudiu agitou o braço do menor.

Retirando-se a expressão “a cabeça” do facto não provado em v. e dando como não escrito o ponto vi.

Ø Factos não provados em xi. a xvii.:

Trata-se dos factos concernentes ao elemento subjetivo do crime.

Fundamentou o tribunal a quo a não prova destes factos da seguinte forma: “no que concerne aos factos atinentes ao elemento subjetivo constantes de xi a xvii parece-nos claro que os mesmos se mostram em ostensiva contradição com os factos provados, quer ao nível objetivo, quer subjetivo”.

Para melhor perceção do que está em causa, importa considerar os factos que o tribunal a quo apurou quanto ao elemento subjetivo, que são os seguintes:
27.A arguida sabe que o menor é filho do seu companheiro e marido e que, na ausência do pai, e como adulta, sobre si impendem deveres de cuidado, respeito e salvaguarda da integridade física e psíquica deste,

28.Ao atuar da forma descrita em 13 e 26 agiu a arguida livre e conscientemente com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa de BB, sabendo que a sua atuação era apta a provocar dor no corpo do menor, com o que se conformou, convicta que atuava com o consentimento dos pais do menor.

29.Ao proferir as expressões referidas em 18 e 21 a arguida admitiu como possível que causasse medo a BB, fazendo-o temer pela sua integridade física, possibilidade com a qual se conformou.

30.Ao atuar da forma descrita em 18 e 21 arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas.

Ou seja, o tribunal a quo deu como provado que a conduta da arguida se destinou a corrigir as atitudes desrespeitosas do menor, convicta de que os pais nisso consentiriam.

O dolo encontra-se provado na forma de dolo eventual (admitiu como possível…. Sabia que era apta… com o que se conformou) – art. 14º, n.º 3, do Código Penal.

Fundou o tribunal a sua convicção no seguinte: “No que diz respeito aos factos atinentes ao elemento subjetivo os mesmos resultam das condutas objetivas da arguida, que demonstram, quanto às aludidas expressões. conhecimento e vontade de realização do crime, bem como das suas próprias declarações, assumindo singelamente que atuou com intenção de BB … efetuasse os trabalhos de casa, que o fizesse corretamente, o que desde aquela manhã não estava a acontecer, demonstrando sempre o menor uma postura de desleixo e até desafiadora, desobedecendo às instruções que lhe foram dadas, pelo que lhe deu aquela palmada quando ele riscou propositadamente o caderno, mas assumindo também que ao proferir as expressões em causa se excedeu, tendo perdido a cabeça e na segunda situação, com intenção e corrigir o mesmo, tendo atuado sempre na convicção que tinha o consentimento dos pais do menor para tanto, o que é aliás, perfeitamente com a gravação do episódio dos trabalhos de casa, efetuado a pedido da própria arguida e a sua posterior remessa para ambos os pais da criança.

… não só não é evidente que a Arguida tivesse que saber que a sua conduta era proibida por lei (porque os métodos educativos com recurso à punição física são ainda muito aceites na comunidade), como porque a intenção de molestar fisicamente o BB não é a única causa provável para a sua ação, sendo perfeitamente admissível que tenha agido com a intenção de corrigir a atitude reprovável deste, convencida que essa ação era legítima, como, aliás, afirmou.
Não pode, pois, dizer-se que o cidadão médio tem a consciência de que é sempre ilícito o uso de punição física como método educativo.

Pode-se dizer que, na normalidade dos casos, quem dá uma palmada sabe que esta causa algum grau de sofrimento físico, pelo que, havendo dúvidas quanto ao dolo da Arguida e aplicando o princípio in dubio pro reo, o que se pode concluir com suficiente segurança, por presunção judicial, é que agiu com intenção de corrigir a atitude reprovável do menor que tinha a seu cargo, conformando-se com a necessária consequência da sua conduta: o sofrimento físico que tal bofetada causou neste”.

Para contrariar esta fundamentação, alega o recorrente:

o elemento subjetivo do tipo há de extrair-se a partir da factualidade apurada …

E com muito relevo, para esta questão, resulta que a arguida por diversas vezes admitiu que excedeu-se, e que chegou ao seu limite.

As diversas condutas da arguida … vistas globalmente e não de forma dissecada e amputada, como acaba por fazer o Tribunal a quo, resulta, indubitavelmente, que tal conduta consciente e dolosa da arguida colocou seguramente em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica do menor, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto criança e ser humano, inseridos numa realidade parental ….”

Que dizer?

Como é sabido, os factos integrantes do tipo subjetivo – que se desdobra, muito sinteticamente, nas componentes cognoscitiva ou intelectual e volitiva ou intencional do dolo, correspondentes ao conhecer ou saber e ao querer o desvalor do facto – raramente se provam diretamente.

Na ausência de confissão/admissão destes factos – e dificilmente se concebendo outra prova que incida diretamente sobre eles – resta ao julgador a apreciação de prova indireta, aquela que lhe permite, sempre com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto ao facto probando. E são muito frequentes os casos em que a prova é indireta, precisamente no que respeita ao elemento subjetivo do crime. Daí a grande importância dessa prova no processo penal.

Terá aqui o julgador de retirar dos factos externos as necessárias ilações, de forma a poder ou não concluir que o agente se comportou internamente da forma como o revelou externamente. A convicção obter-se-á através de conclusões baseadas em raciocínios e não diretamente verificadas, ou seja, num juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando. ([4]).

Sublinhe-se que de acordo com o disposto no art. 127.º do CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

A livre apreciação não significa, porém, livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e motivável.

Dito de outro modo, a valoração da prova há-de ser uma liberdade de acordo com um dever de tal forma que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo.

            Posto isto,

            Baseou o tribunal a quo a sua convicção no que respeita à prova do elemento subjetivo no seguinte:

· A arguida demonstrou conhecimento e vontade em realizar o crime: assumiu ter atuado com intenção de o menor fazer os trabalhos de casa e assumindo ter perdido a cabeça na 2ª situação, razão porque se excedeu;

· Invocando o princípio in dubio pro reo, o tribunal a quo afirma que não é evidente que a arguida tivesse de saber que a sua conduta era proibida por lei, porque os métodos educativos com recurso à punição física são ainda muito aceites na comunidade.

Ora, trata-se de uma posição que não é defensável, nem socialmente aceite hodiernamente, não passando de considerações sobre a educação das crianças totalmente descontextualizada e socialmente inaceitável.

O poder-dever de correção ([5]) foi eliminado do Código Civil português já em 1977 (Dec.-Lei n.º 496/77, de 25.9), tendo sido emitidas várias recomendações pela ONU e pelo Conselho da Europa vincando que as crianças são verdadeiras titulares de direitos necessitando, devido à sua vulnerabilidade, de ume especial atenção e proteção, no que assume um papel muito especial a família.

Assim, dispõe o art. 29º da Convenção Europeia dos Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 21.9.1990: “a educação deve destinar-se a promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas potencialidades. E deve preparar a criança para uma vida adulta ativa numa sociedade livre e inculcar o respeito pelos pais, pela sua identidade, pela sua língua e valores culturais, bem como pelas culturas e valores diferentes dos seus”. O que é totalmente incompatível com o modelo de educação que o tribunal a quo pretende que seja socialmente aceite.

Urge cada vez mais abandonar “métodos educativos” que anteriormente vigoraram numa sociedade que aceitava pacificamente intolerâncias e abusos na educação das crianças geradores de enormes malefícios no seu desenvolvimento, cabendo aos tribunais um papel relevante nos poucos resquícios que ainda restam em algumas comunidades desse tipo de violência a coberto de uma pretensa “educação”.

Como já referiu esta Relação de Coimbra ([6]), «A “mudança de consciências” é assunto que no tempo presente faz parte da ordem do dia, sendo quotidianamente veiculada e divulgada nos mais diversos fóruns e, como tal, não compatível com uma narrativa arreigada a um estilo de vivência, cuja repetição, de acordo com uma “consciência” minimamente crítica, seria de abandonar

Se é verdade que as finalidades educativas abrangem o poder de correção de condutas incorretas das crianças, também é por todos sabido que esse poder se manifesta através do exemplo e da palavra, nunca por via de posturas agressivas e violentas, física e psicologicamente ([7]).

«A criança tem o direito e os pais e educadores ou quem tenha a guarda de facto têm o dever de lhe impor regras e limites, porquanto os mesmos são estruturantes da sua personalidade. Mas em caso algum estas regras podem incluir castigos corporais. Castigos não são regras. São punições.

E nem se argumente “que já assim foi”. Pois não pode ser agora, nem o podia no passado (não obstante os usos e costumes vigentes) pois consubstancia um tratamento desumano e degradante violador dos direitos humanos da criança ([8]).

“O Comité vem reiteradamente deixando claro nas suas observações conclusivas que o uso do castigo físico não respeita a dignidade inerente à criança nem os limites estritos da disciplina…”([9]).

Violência não para violência. Nem educa. Só transmite modelos desadequados, desumanos e degradantes inculcando simultaneamente sentimentos de culpabilização desorganizam e marginalizam cada vez mais o maltratado.

Tudo isto assume maior gravidade, ainda, quando a violência é exercida sobre uma criança. Não só pelo sofrimento que lhe inflige e que prejudica o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade mas também pela mensagem e modelo educacional que lhe transmite.» ([10])

Continuando,

No caso dos autos, temos as seguintes condutas objetivas da arguida sobre o menor como provadas:

- Quando o menor não fazia os trabalhos de casa, a arguida disse à irmã para filmar o seu comportamento, tendo enviado o vídeo à mãe do menor;

- Quando foi corrigir os trabalhos do menor, disse-lhe “Esta ficha está toda mal. Tu não percebes nada disto”;

- O menor deitou a cabeça na mesa e arguida agarrou-lhe o braço, puxou-o para trás para que se sentasse direito, e disse: “levanta a cabeça faz favor; pega no lápis, se faz favor”;

- O menor pegou no lápis e riscou o caderno, tendo-lhe a arguida desferido uma palmada na cabeça, sacudindo-lhe ainda o braço, dizendo: “Estás a fazer o quê BB”, causando dores e mal-estar físico ao menor;

- Este começou a chorar e a pedir para ir para a sua mãe, tendo-lhe a arguida respondido a gritar, junto do menor: “então vai a pé”, continuando a ralhar com o menor de forma ríspida dizendo-lhe: “Tu não voltas a fazer aquilo que estás a fazer agora.”, e continuando o menor a chamar e dizer que queria a mãe, respondeu a arguida, “Aqui não há mãe nem pai. Tu não tens quereres. Eu também quero que tu faças as tabuadas e tu não fazes.”, “Estás a tirar-me do sério”;

- A arguida disse-lhe “Se não fizeres as tabuadas, sei lá, eu juro-te, mas juro-te que dou-te um puxão de orelhas que ficas com as orelhas maiores”.

- O menor continuou a chorar, verbalizando “mas”, enquanto a arguida a gritar continuou dizer ao mesmo “Mas nada, não quero respostas”;

- Ato contínuo o BB deitou os braços e cabeça em cima da mesa, afastando o caderno de si, e a arguida agarrou-lhe o braço, puxando-o ligeiramente para trás, para que aquele se sentasse direito e disse-lhe “Tu não estejas a provocar-me”, respondendo este a chorar “quero a mãe”.

-A arguida disse-lhe “Se voltas a empurrar o caderno, eu venho aqui e levas uma galheta à séria que te parto os dentes”;

- A 11.7.2022, ma sequência de proibição de transportar o tablet, o menor dirigiu-se à arguida, revirou os olhos e “bufou”, tendo-lhe a arguida desferido uma palmada na perna, que ficou vermelha, causando ao menor dores e mal-estar físico.

Estes episódios de filmagem, gritos, humilhações, ameaças e palmadas nunca se poderão considerar como toleráveis e muito menos adequados às situações em que foram praticados.

A arguida, madrasta e responsável na altura em que ocorreram os factos pela proteção, desenvolvimento e educação do menor, tinha de saber que no cumprimento do seu dever de educação não são aptos nem admissíveis comportamentos de intimidação, agressão física e psicológica, violação da reserva da vida privada e retaliação. A arguida não podia ignorar, como pessoa de nível cultural médio, que com o seu comportamento colocava em causa o equilíbrio emocional, afetivo e a liberdade do menor, atendendo ainda à sua 28 a idade (entre 8 e 10 anos de idade).

Assim, contrariamente às inaceitáveis considerações insertas na sentença recorrida, conjugando entre si toda a factualidade provada, acima descrita, e utilizando as mais elementares regras da experiência comum, conclui-se, sem margem para dúvidas, que ao atuar da forma referida a arguida pretendeu humilhar, menosprezar, amedrontar e agredir o menor BB.

Obviamente sabia a arguida que tal conduta é proibida por lei, não se podendo aceitar como sendo consentâneo com a experiência comum, contrariamente ao afirmando na sentença, a afirmação que “Não pode, pois, dizer-se que o cidadão médio tem a consciência de que é sempre ilícito o uso de punição física como método educativo”. Atualmente todos têm essa consciência, não sendo aceitável o tipo de reações provadas nos autos.

Aliás, da simples leitura da matéria de facto provada impõe-se concluir ter atuado a arguida com dolo.

Mais: naturalmente que a própria arguida admitiu nas suas declarações ter essa consciência, sabendo que se excedeu, que “perdeu a cabeça”. Não se vislumbra como é possível que reste alguma dúvida sobre a verificação do elemento subjetivo do crime, concluindo-se que o raciocínio vertido na sentença viola os mais básicos princípios atualmente vigentes nas sociedades modernas.

Em consequência, procede igualmente nesta parte a impugnação deduzida, eliminando-se os factos provados sob os n.ºs 28 a 31, bem como os factos não provados objeto de impugnação, passando os factos 28 a 31 a ter a seguinte redação:

28. Sabia a arguida que as referidas expressões que dirigiu ao ofendido são ofensivas da sua honra e consideração; todavia, tal conhecimento não coibiu a arguida de agir como acima referido, o que quis e concretizou

29. Em consequência das descritas condutas, vinha a arguida molestando física e psicologicamente o ofendido BB, seu enteado, causando-lhe um estado de humilhação e ansiedade permanentes,

30 Mais, sabia a arguida que, ao adotar os comportamentos supra descritos, colocava em causa o sentimento de autonomia, liberdade e sensação de segurança da vítima menor.

31. bem como sabia que o mesmo não tinha forma de se defender ou de obstar à sua atuação, desde logo em face do seu tamanho, condição e força física.

31-A. Mais sabia a arguida, que enquanto madrasta e pessoa adulta com o menor a seu cargo, não lhe podia infligir castigos corporais os quais não se encontram compreendidos no dever de correção dos seus educandos.

31-B. A arguida agiu da forma descrita com a clara intenção de molestar a saúde e o corpo de BB e de lhe provocar as dores verificadas, o que concretizou, causando-lhe ainda sofrimento, como quis e conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.


*

Atenta a procedência do recurso incidente sobre a impugnação da matéria de facto, os factos provados na sentença respeitantes à acusação ficam alinhados da seguinte forma:


*

B) Qualificação jurídica dos factos:

A arguida encontrava-se acusada da prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, n.º 1 alínea a) do Código Penal, que dispõe o seguinte:

1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:

a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; (…)

A sentença sob recurso afastou a prática deste crime e qualificou as condutas da arguida como integradoras de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, e de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, n.º 1, ambos do Código Penal.

Tendo em conta a determinada alteração da matéria de facto, vejamos se se mostram agora preenchidos os pressupostos do crime pelo qual a arguida se encontrava acusada.

O tipo legal de crime em causa está inserido no capítulo dos crimes contra a integridade física, visando proteger a pessoa individual na sua dignidade humana e prevenir formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho.

A norma incriminadora em causa foi introduzida pela Lei n.º 59/2007, de de 4.9, constando da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X (ponto 2) que a alteração procurava fortalecer a defesa dos bens jurídicos e, especialmente, “o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação”. A introdução do crime a que se refere o art. 152º-A do Código Penal teve em vista alargar a punibilidade dos maus tratos para além das pessoas com a relação especial com a vítima exigida no crime de violência doméstica – art. 152º, n.º 1, do Código Penal. Assim, o art. 152º-A não exige a coabitação com as vítimas especialmente indefesas como requisito do crime, como sucede no ar5t. 152º, n.º 1, al. d), do Código Penal.

O crime de maus tratos abrange no seu âmbito os maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a atividades perigosas, desumanas ou proibidas ([11]).

Uma simples leitura da al. a) do n.º 1 do art. 152º-A torna inequívoca a possibilidade de existência de maus tratos resultantes de conduta que não seja reiterada, tendo ficado resolvida a querela anteriormente existente.

Na definição de maus tratos, mormente sobre menores, importa ter presente que se trata de uma área em constante e rápida evolução, resultante de tomadas de consciência coletiva, de alterações legislativas e dos compromissos internacionais assumidos, que tornam cada vez mais exigente e cuidada a educação e formação das crianças, impondo-se que se coloque o acento tónico no poder da palavra, na persuasão, no exemplo e na palavra, sem necessidade de provocar dor física ou danos de natureza psíquica.

Já em 2008 o Conselho da Europa ([12]) vincava a necessidade de alteração do paradigma relacional entre adultos e crianças, já em curso nas últimas décadas, com suporte atual na lei, “Podemos definir o castigo corporal como um ato cometido para punir uma criança e que, se fosse infligido a um adulto, constituiria uma ofensa corporal ilegal. Os adultos têm muito jeito para inventar palavras específicas que os fazem sentir-se melhor ao baterem nas crianças – dar um açoite ou umas palmadas, smacking, spanking, donner des fessées, picchiare, dar un azote. Mas a verdade nua e crua para uma criança é que tudo isso não passa de violência. O Comité dos Direitos da Criança (CDC), o órgão que controla a aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CNUDC), sublinhou que os direitos humanos exigem a eliminação de todos os castigos corporais, por mais ligeiros que sejam, assim como de todo e qualquer outro castigo cruel e degradante. Num comentário geral (uma interpretação autorizada das obrigações dos Estados, de acordo com o CDC) emitido em 2006, o Comité define o castigo corporal ou físico como sendo: “qualquer castigo implicando a força física e visando causar um certo grau de dor ou desconforto, por mais ligeiro que seja. A maior parte dos castigos envolve bater (“palmadas”, “bofetadas”, “sova”) numa criança, com a mão ou um objeto – chicote, pau, cinto, sapato, colher de pau, etc. Contudo, pode também envolver, por exemplo, pontapear, abanar ou projetar uma criança, arranhar, beliscar, morder, puxar cabelos, puxar as orelhas, obrigar as crianças a permanecer em posições desconfortáveis, queimar, escaldar ou forçar a ingestão de algo (por exemplo, lavar a boca de uma criança com sabão ou obrigá-la a engolir especiarias picantes). Na opinião do Comité, o castigo corporal é, invariavelmente, degradante. Além disso, certas formas não físicas de castigo são igualmente cruéis e degradantes e, portanto, incompatíveis com a convenção. Entre elas incluem-se, por exemplo, os castigos que procuram rebaixar, humilhar, denegrir, ameaçar, assustar, ridicularizar ou fazer da criança bode expiatório.»

No caso dos autos, a arguida até pode ter atuado julgando, de algum modo, que se justificava o recurso a alguma violência sobre o menor, física e verbal, mas não deixou de demonstrar consciência do exagero da sua atuação. Na verdade, tendo em conta os comportamentos do menor que geraram as reações dadas como provadas da arguida, não se pode deixar de classificar as condutas desta como claramente desproporcionais e desadequadas ao fim visado, tendo excedido de forma inaceitável o poder-dever de correção/educação à luz da consciencialização ético-social da atualidade.

Por essa razão não poderemos nunca aplicar in casu uma qualquer causa de exclusão da ilicitude, como efetuou a instância, nomeadamente a prevista no art. 32º do Código Penal. Citando Paulo Pinto de Albuquerque, “O direito de correção depende de uma ação muito grave do educando. A gravidade da ação do educando mede-se por ela ser dirigida contra bens jurídicos protegidos pelo próprio direito penal, não sendo admissíveis castigos por faltas do educando que não lesem bens jurídico-penais (por exemplo, a estrita desobediência aos pais não é passível de castigo, mas o palavrão dirigido aos pais ou a terceiros é passível de castigo).” ([13]).

Por outro lado, analisando globalmente os contornos do caso estamos perante dois episódios de agressão da arguida ao menor BB, filmando-o, humilhando-o, ameaçando-o, gritando, agarrando-o e agredindo-o fisicamente, tendo a primeira situação tido uma duração relevante (5 minutos), não há como não concluir que a arguida colocou em causa a dignidade e condição humana da vítima, revelando crueldade, insensibilidade e desejo de retaliação (repetindo-se que estes modelos desadequados, desumanos e degradantes de pretensa “educação” inculcam simultaneamente na criança sentimentos de culpabilização, desorganização e marginalização, extremamente prejudiciais para o seu saudável crescimento).

Encontram-se, assim, preenchidos todos os elementos típicos, objetivos e subjetivo, do crime de maus tratos, a que se refere o art. 152º-A, n.º 1, al. a), do Código Penal.


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C) Medida da pena:

            Concluindo ter a arguida praticado o crime pelo qual se encontrava acusada, cabe agora apurar a pena concreta a aplicar.

            Nos termos do arts. 152º-A, n.º 1, do Código Penal, o crime de maus tratos praticado pela arguida é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos.

Considerando os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa - artigo 40º, nºs 1e 2, do Código Penal)a sua escolha  e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – artigo 71º, nº1, do Código Penal) deve àquela (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.

            Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena, principio este tendencial uma vez que podem apresentar incompatibilidade.

            Considerando as circunstâncias previstas no art. 71º, n.º 2, do Código Penal, imporá considerar que o nível de culpa é elevado, na forma de dolo direto; a ilicitude e consequências do crime não são de reputar como graves; a idade do ofendido e o grau de violação dos deveres da arguida, a relevar contra a arguida; finalmente, são baixas as exigências de prevenção especial, considerando a integração da arguida, as suas condições de vida constantes dos factos provados e a ausência de antecedentes criminais.

Por outro lado, estamos perante um crime que oblitera uma das mais valiosas conquistas civilizacionais, os direitos das crianças. O resultado da violação do direito da criança a um tratamento respeitador é suscetível de comprometer a formação da sua personalidade e o seu comportamento futuro. 

            Assim, a mensagem que a comunidade deve transmitir em relação a estes crimes terá de ser vigorosa, sendo muito relevante a necessidade de afirmação da norma violada e assim elevadas as necessidades de prevenção geral;

            Face às circunstâncias enunciadas, dentro da moldura abstrata referida, entende-se adequada e proporcional a fixação da pena concreta em 1 ano e 6 meses de prisão.


*

         - Suspensão da execução da pena de prisão

Não se mostra adequada ao caso a substituição da pena de prisão aplicada por prestação de trabalho a favor da comunidade, por esta pena substitutiva não ser suficiente à prossecução das exigências de prevenção (art. 58º do Código Penal).

Decorre dos arts. 70º, 50º, n.º 1, 58º, n.º 1, e 60º, n.º 2, do CP que o tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – preventivas, nos termos dos arts. 40º, n.ºs 1 e 2, e 46º, n.º 1, do CP -, verificados que estejam os respetivos pressupostos formais. Constitui a aplicação das penas de substituição da pena de prisão um poder estritamente vinculado, ou um poder-dever do julgador.

Dispõe o n.º 1 do art. 50º do CP que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

O fundamento desta pena reside, como é sabido, na ideia político-criminal que a simples ameaça da prisão poderá, em muitos casos (nomeadamente nos designados delinquentes primários -[14]), bastar para o pleno cumprimento das finalidades da punição.

O pressuposto formal para a aplicação desta pena de substituição é que a medida da pena aplicada não seja superior a 5 anos de prisão – pressuposto que in casu se encontra preenchido.

O pressuposto material é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do agente, de modo a extrair que a simples censura do facto e a ameaça de cumprimento da pena bastarão para o afastar da criminalidade.

O que o legislador pretende com o instituto da suspensão da execução da pena é o afastamento do delinquente da prática de novos crimes, ou seja, a prevenção da reincidência. Assim, no juízo de prognose terá de ser efetuada uma valoração conjunta de todas as circunstâncias que permitam antever a conduta futura do agente.

Ao mandar atender às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior aos factos, a lei clarifica que para a formulação do prognóstico referido o tribunal tem de se reportar ao momento da decisão, e não ao momento da prática dos factos ([15]).

Assim, e no tocante às exigências de prevenção especial, referimos já que não são de relevo, sendo certo que não mantém contactos muito regulares com a vítima e não tem antecedentes criminais, encontrando-se familiar e socialmente inserida.

Resultando dos factos provados que a arguida terá recuado na prática de atos como os que estão em causa nos autos, o juízo a efetuar é positivo, pelo que se aplicará a pena substitutiva.

Quanto ao período de suspensão, é fixado entre 1 e 5 anos – art. 50º, n.º 5, do Código Penal. Para o efeito, haverá de ser considerado o período necessário à consciencialização pela arguida do desvalor das condutas pelas quais vai condenada, atentos os factos provados em 50 e 51.

Face ao exposto, entende-se adequado fixar o período de suspensão em 2 anos.


*

           

V.

DECISÃO


Nos termos expostos na procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, condena-se a arguida …, pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º-A, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de dois anos.

Sem tributação.

Coimbra, 25 de outubro de 2023

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

José Eduardo Martins (1º adjunto)

Isabel Valongo (2ª adjunta)





[1]
[2] Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212..
[3]
[4] Cf. Ac. da Relação de Évora de 28.2.2012, proc. 468/06.1GFSTB.W1, em www.dgsi.pt
[5] O art. 1884º, n.º 1, do Código Civil até então vigente atribuía aos pais o “poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas”, tendo sido eliminado.
[6] Ac. de 10.11.2021, rel. Maria José Nogueira, proc. 110/17.5GASAT.C2, em www.dgsi.pt
[7] No mesmo sentido do aqui defendido se tem pronunciado a grande maioria da jurisprudência; a título exemplificativo, cf., para além do aresto cit. na nota anterior, os Acórdãos desta Relação de 28.1.2009 (rel. Jorge Raposo), da Relação do Porto de 16.12.2020 (rel. Maria Dolores Silva e Sousa), da Relação de Lisboa de 23.4.2019 (rel. Cid Geraldo), de 7.2.2021 (rel. Cristina Almeida e Sousa), de 12.10.2016 (rel. Ana Paramés), de 17.5.2022 (rel. Anabela Cardoso), de 5.6.2019 (rel. Maria Perquilhas) e da Relação de Évora de 8.10.2019 (rel. João Amaro), entre outros.
[8] V. Manual de legislação europeia sobre os Direitos da Criança, pag. 124 (disponível in https://www.echr.coe.int/Documents/Handbook_rights_child_POR.PDF). Comentário Geral n.º 8 (2006), do Comité dos Direitos da Criança (2007), ONU: O direito da criança à proteção contra os castigos corporais e outras formas de penas cruéis ou degradantes (artigos 19.º; 28, parágrafo 2; e 37.º, inter alia), CRC/C/GC/8, 2 de março de 2007. Estratégia do Conselho da Europa sobre os Direitos da Criança (2016-2021) Albuquerque, Catarina, As Nações Unidas e a Proteção das Crianças contra a Violência, disponível in http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/crc_and_vac.pdf A abolição dos castigos corporais infligidos às crianças, disponível https://rm.coe. int/16806a456a.. Alves, Diego Gomes, Violência física contra crianças: uma análise jurídica e crítica acerca do limite entre e o poder‑dever de educar e a prática do delito de maus tratos (artigo 152‑A do Código Penal). Convenção sobre os Direitos da Criança, tradução das Observações finais sobre o terceiro e quarto relatórios periódicos de Portugal, disponível in http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/cdc_recomendacoes_a_portugal.pdf
[9] COMENTÁRIO GERAL N. 8 (2006), O direito da criança à proteção contra o castigo físico e outras formas cruéis ou degradantes de castigo (artigos 19, 28(2) e 37, inter alia), Disponível in  http://www.naobataeduque.org.br/documentos/d9891e21b98d60dfce7318f013c0091d.pdf
[10] Cf. Ac. da Relação de Lisboa de 5.6.2019, rel. Maria Perquilhas, em www.dgsi.pt
[11] Cf. Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, I, pág. 332 e ss.
[12] Pertinentemente citado pelo Exmo. Procurador-geral Adjunto no parecer emitido nos autos.
[13] Cit. na resposta do Ministério Público. V. “Comentário do Código de Processo Penal”, p. 166, UCP, out. 2010. V. ainda o Ac. da Relação de Lisboa de 17.5.2022 (rel. Anabela Cardoso), em www.dgsi.pt
[14] cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 338.
[15] cf. Figueiredo Dias, Direito Penal - Consequências Jurídicas do Crime, pág. 343.