Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/22.8PTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA COSTA RIBEIRO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
PROVA DO CUMPRIMENTO DAS INJUNÇÕES
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 282.º, N.ºS 3 E 4, 368.º, N.º 2, ALÍNEA E), 379.º, N.º 1, ALÍNEA C), 389.º-A, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), E 391.º-F DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – À semelhança do que sucede com a suspensão da execução da pena de prisão, o incumprimento das injunções ou regras de conduta só determina a revogação da suspensão provisória do processo se resultar de culpa grosseira ou reiterada.
II – Estando em discussão, em sede de julgamento, factos relativos ao cumprimento da injunção da entrega de quantia e à prova deste cumprimento, o tribunal tem que se pronunciar sobre estes factos, aquando da fixação da matéria de facto, e tirar, depois, as respectivas consequências, «valorando o impacto dessa factualidade em sede de sentença».
Decisão Texto Integral: Relator: Alcina Costa Ribeiro
1º Adjunto: Paulo Guerra
2º Adjunto: José Eduardo Martins


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I. RELATÓRIO

1. Por sentença datada de 12 de maio de 2023, foi o arguido,, condenado:

a) pela prática em 10-06-2022, como autor material, de 01 (um) crime de desobediência, p.p. pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, aquele com referência ao artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros).

b) … na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 04 (quatro) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal. identificado nos autos, absolvido do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, alínea a) e nº 3, do Código da Estrada e artigo 348º, nº 1, alínea a) e 69º, nº 1, alínea c), do Código Penal.

2. Inconformado com esta condenação, recorre o arguido formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:

1ª – Deve ser dado como provado que o arguido cumpriu as injunções que lhe foram impostas …

2ª – Também deve ser dado como provado que o arguido entregou o titulo de condução …, bem como, procedeu ao pagamento da quantia de 400 euros no dia 16 de fevereiro de 2023.

3ª – Bem como deve ser provado que o arguido efetuou a prova do pagamento da injunção dos …

3. O arguido respondeu à motivação do Recorrente, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

4. O Digno Procurador, nesta Relação, pronunciou-se pela procedência do Recurso.

5 – …

II. A SENTENÇA RECORRIDA

1. No dia 10 de Junho de 2022, pelas 02:28 horas, na Avenida ..., na cidade e concelho ..., o arguido … conduzia o veículo automóvel … após ter ingerido bebidas alcoólicas, quando foi fiscalizado pela Polícia de Segurança Pública de ....

2. Na sequência da fiscalização levada a cabo pelos agentes da P.S.P. foi solicitado ao arguido … que efetuasse o teste de despistagem de álcool em aparelho qualitativo, ao que o arguido acedeu.

3. Como o mesmo acusou a presença de álcool, foi solicitado ao arguido … que efetuasse o teste de pesquisa de álcool no sangue, em aparelho quantitativo, …, o que o arguido acatou.

4. Contudo, quando lhe foi indicado para realizar o sopro no aparelho Drager Alcooteste 7510PT, série ARPL-0475, a fim de ser submetido ao teste de alcoolemia quantitativo, por ar expirado, o arguido …, em quatro ocasiões distintas, iniciou e interrompeu o sopro necessário à realização do teste,

5. Tendo o aparelho emitido, após o período de espera, os talões de teste n.ºs 270, 271, 272 e 273, com indicação de “sopro insuficiente”.

6. Em consequência, foi o arguido … informado que poderia, em alternativa, submeter-se a recolha de sangue …

7. O que o arguido … se recusou a efetuar.

8. Foi então advertido, pelos agentes da PSP, das sanções legais em que incorria em caso de não cumprimento e não realização de qualquer um dos testes, …

9. Não obstante, o arguido … manteve a sua recusa …

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Estando em causa a questão e saber se o arguido cumpriu as injunções que lhe foram impostas na suspensão provisória do processo, questão que o Tribunal não decidiu, pretende o Recorrente aditar à matéria de facto provado, que cumpriu as injunções que lhe foram impostas na suspensão provisória do processo.

Apreciando: 

A suspensão provisória do processo constitui uma limitação ao dever de o Ministério Público deduzir acusação sempre que tenha indícios suficientes de que certa pessoa foi o autor de um crime (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), através da qual o Ministério Público se compromete a desistir da pretensão punitiva e a arquivar o processo, se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta resultantes do consenso dos sujeitos processuais - (Ministério Público, arguido e assistente) -  com intervenção do juiz de instrução [Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 7/87 e n.º 67/2006].

Tal como prevê o artigo 282.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, «[se] o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto».

Em caso de incumprimento das regras de conduta ou injunções, a suspensão provisória do processo é revogada, implica a dedução da acusação e o prosseguimento do processo, com a submissão do arguido a julgamento [artigo 282.º, n.º 4, do Código e Processo Penal].

Por isso, a revogação da suspensão provisória do processo não é automática, não bastando a constatação do incumprimento para a decretar, devendo o Ministério Público indagar das razões do não cumprimento.

À semelhança do que sucede com a suspensão da execução da pena de prisão, o incumprimento das injunções ou regras de conduta, só determina a revogação da suspensão provisória do processo, se o arguido incumprimento resultar de culpa grosseira ou reiterada.

«Não há revogação automática da suspensão provisória do processo, pois ela depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento. O critério estabelecido é o do incumprimento das injunções e regras de conduta com culpa grosseira ou reiterada do arguido, tal como prevê o artigo 56.º do CP» [Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, página 741].

Ou como afirma Maia Costa, «o incumprimento deverá ser culposo, ou repetido, em termos idênticos aos que o Código Penal prevê para a revogação da suspensão da pena, no art. 56º, nº 1, a). Ou seja, o incumprimento não terá que ser doloso, mas deverá ser imputável pelo menos a título de negligência grosseira ao arguido, ou então repetidamente assumido (…)» - [Código de Processo Penal Comentado, página 989].

Assim, «a constatação do incumprimento não pode conduzir necessariamente à “revogação” da suspensão, devendo o Ministério Público (ou o juiz de instrução, se a suspensão tiver sido decretada nessa fase) indagar das razões do incumprimento, em ordem a decidir-se do prosseguimento do processo para julgamento ou pelo decurso do prazo da suspensão, consoante apure haver, ou não, comportamento culposo, ou repetido, por parte do arguido» [Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, página 946].

De facto «há que avaliar o grau de culpa, antes de qualquer decisão revogatória» [F. Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4ª. Edição, página 604] sob pena de violação do princípio da culpa e da própria dignidade da pessoa humana, pedras angulares e transversais a todo o ordenamento jurídico-penal, por respeito pelos direitos de defesa, designadamente pelo princípio do contraditório, como decorre da Constituição e da Lei, só assim se garantindo um processo penal justo e equitativo [cf. de forma desenvolvida, João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, III, 2021, páginas 1125 e ss., § 15 e ss.].

No caso vertente, foi determinada a suspensão provisória do processo, pelo período de 6 (seis) meses e mediante o cumprimento, pelo arguido das seguintes injunções:

a) entregar a quantia de 400,00EUR (quatrocentos Euros) ao Estado, durante o período da suspensão, devendo comprovar documentalmente nos autos o referido pagamento;

c) proibição de conduzir qualquer veículo com motor durante 3 (três) meses, devendo, para tanto, entregar nos autos, no prazo de 10 (dez) dias a contar da notificação do despacho que determinar a suspensão provisória do processo, todos os títulos de condução que o habilitem a conduzir veículos motorizados.

Tal prazo terminou a 20 de janeiro de 2023.

O arguido cumpriu a injunção de proibição de conduzir veículos com motos pelo prazo de 3 meses.

Durante o período da suspensão, o arguido não demonstrou nos autos a entrega da quantia de quatrocentos Euros ao Estado.

Em 1 de fevereiro de 2023, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:

«Notifique o arguido … e o seu Ilustre Mandatário, … para, no prazo de dez dias, juntar aos presentes autos o documento comprovativo do cumprimento da injunção a que se encontrava obrigado no âmbito da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo – entrega de 400,00EUR (quatrocentos Euros) ao Estado – ou justificar o motivo do seu não cumprimento, sob pena de nada dizendo os autos prosseguirem os seus trâmites até final, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal».

Notificados deste despacho e dentro do prazo, o arguido entregou a quantia de 400€ ao Estado, não tendo chegado aos autos, o comprovativo respetivo do pagamento.

Em 27 de fevereiro de 2023, o Ministério Público revogou a suspensão provisória do processo, como segue:

«Nos presentes autos o arguido … apesar de ter aceite a fls. 25-27 (referência 34701806) a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não cumpriu todas as injunções de que dependia essa suspensão, designadamente, …

i) entregar a quantia de 400,00EUR (quatrocentos Euros) ao Estado, durante o período da suspensão devendo comprovar documentalmente nos autos o referido pagamento; e

c) proibição de conduzir qualquer veículo com motor durante 3 (três) meses, devendo, para tanto, entregar nos autos, no prazo de 10 (dez) dias a contar da notificação do despacho que determinar a suspensão provisória do processo, todos os títulos de condução que o habilitem a conduzir veículos motorizados.

Ora, dos elementos juntos aos autos constata-se que o arguido entregou o seu título de condução à ordem dos autos para cumprimento do período de 3 (três) meses de proibição de conduzir … mas não juntou aos autos o documento comprovativo da entrega dos 400,00EUR (quatrocentos Euros) ao Estado.

Face ao exposto, … incumpriu a injunção aplicada em sede de suspensão provisoria do processo e com a qual concordou, …

Consequentemente determina-se a revogação da suspensão provisória do processo e o prosseguimento dos autos, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal.

Notifique».

No mesmo dia 27 de fevereiro de 2023, o Ministério Público, deduziu acusação contra o arguido, requerendo o julgamento em processo abreviado, pelos factos e violação das normas legais (crime de desobediência), objecto da suspensão provisória do processo.

Notificado destes despachos em 6 de março de 2023, o ilustre mandatário do arguido, apresentou no dia 7 de março de 2023, um requerimento, dando nota, que pagou o valor de 400€, em 16 de fevereiro de 2023 e que o mail que se pretendeu enviar com o comprovativo do pagamento daquela quantia, não chegou aos autos.

Ora, importa distinguir a injunção do comprovativo do cumprimento da mesma. A injunção corresponde à obrigação de entregar a quantia de 400,00€ ao Estado, esgotando-se com o acto da entrega do dinheiro, a comprovação é o meio de prova, através do qual, o arguido demonstra que realizou a obrigação de entregar a quantia fixada na injunção.

No nosso caso, apesar do arguido ter cumprido a injunção dentro do prazo de 10 dias que lhe foi concedido pelo Ministério Público, para comprovar o pagamento da quantia de 400,00€ ao Estado, o processo seguiu para julgamento, vindo a ser condenado, sem que o Ministério Público ou o Tribunal se tivessem pronunciado sobre estes factos, apesar da questão ter sido suscitada pelo arguido, logo que foi notificado da acusação, na fase de inquérito e de julgamento.

O Ministério Público, por entender que, com a dedução da acusação, se encerrou o inquérito; o Tribunal, por considerar que, tendo os autos sido remetidos à distribuição, e encontrando-se em fase de julgamento, tendo sido recebida a acusação e designado dia para julgamento, os autos não podiam regredir à fase de inquérito para que seja determinada a suspensão provisória do processo.

Ora, mesmo que se entenda que pela inadmissibilidade legal da devolução do processo ao Ministério Público, depois de remetido à Distribuição, como decidiu o Senhor Juiz da primeira instância, dúvidas não restarão que os factos relativos ao cumprimento da injunção por parte do arguido e por este invocado, são relevantes para a sua defesa, recaindo, assim sobre o Tribunal a quo o dever de os apreciar.

Como decidiu o Acórdão desta Relação, de datado de 11 de outubro de 2023 [Relator: Desembargador Jorge Jacob, subscrito, também, pelo Sr. Desembargador, José Eduardo Martins, aqui 1.º Adjunto, em www.dgsi.pt]:     

«(…) não estamos perante uma pura omissão de cumprimento da injunção, mas perante um cumprimento que apenas parcialmente foi efectuado para além do prazo assinalado. E se é certo que não foi dado conhecimento do cumprimento no momento ajustado, esse cumprimento veio ao conhecimento do processo em momento anterior ao julgamento e foi expressamente invocado pelo arguido, razão pela qual, ainda que os autos prosseguissem para julgamento, em sede de sentença não poderia ter deixado de ser fixada a matéria pertinente alegada na contestação e dela retiradas as consequências tidas como as ajustadas ao caso, posto que o processo penal é muito mais do que um Kafkiano amontoado de papéis ou uma sacramental sucessão de actos tendentes a uma finalidade pré-determinada. É, essencialmente, um meio actuante e dinâmico ao serviço da realização da justiça, postulando a observância de procedimentos que funcionem como garantia de uma efectiva defesa do arguido.

Assim, a partir do momento em que se verificou que o arguido tinha procurado cumprir a injunção, ainda que com algum atraso na sua realização, sendo essa a finalidade essencial da injunção, havia que retirar daí as consequências que tal constatação impunha, primeiro, fixando a correspondente matéria de facto; depois, valorando o impacto dessa factualidade em sede de sentença, desde logo, por força da necessidade de verificar, face ao disposto no nº 2, al. e), do art. 368º do CPP, «se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança», sabido que a partir do momento em que é determinada a suspensão provisória do processo, a possibilidade de ulterior condenação do arguido pelos factos que determinaram a suspensão pressupõe o incumprimento da injunção. Havia assim que verificar, como condição de validade do prosseguimento do processo e da condenação penal, se ocorria um verdadeiro incumprimento da injunção, nos termos previstos no art. 282º, nº 4, do CPP.

De resto, não tendo o M.P. tomado declarações ao arguido sobre o não cumprimento atempado da injunção e a falta de junção dos comprovativos, tal iniciativa deveria ter sido desenvolvida em audiência, desde logo porque constituía matéria com relevo para a defesa do arguido e alegada na contestação; depois, porque se impunha verificar se o sucedido tinha decorrido de má vontade ou de grosseira negligência, ou se não constituía senão reflexo das suas limitações literárias, ou seja, de uma verdadeira dificuldade em compreender o sentido da obrigação que sobre ele impendia, tanto mais que a demonstração nos autos do pagamento efectuado desempenha uma função meramente acessória relativamente à injunção propriamente dita.  Por outro lado, sempre estaria salva ao tribunal a possibilidade de, suscitando-se dúvidas, indagar junto da entidade beneficiária do valor da injunção aquilo que tivesse por conveniente. Nessa medida, (…) ocorreu violação desproporcional dos direitos de defesa do arguido, além do mais, quando a matéria alegada pela defesa foi tratada nos termos constantes do despacho que supra se transcreveu, retirando ao arguido qualquer possibilidade de reacção, tanto assim que em sede de processo abreviado apenas é admissível recurso da sentença ou do despacho que puser termo ao processo.».

Vale isto para dizer, que a sentença recorrida não observou o disposto no artigo 389º-A, nºs 1, alíneas a) e b), por remissão do artigo 391º-F, sendo nula quer por essa via, quer pela omissão de pronúncia relativamente a questões que o tribunal deveria ter apreciado, conforme decorre do artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

IV. DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em declarar a nulidade da sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra, que aprecie as questões de facto e de direito que o caso suscita, tal como se apontaram, podendo, se necessário, reabrir a audiência para esse efeito.

Coimbra, 8 de novembro de 2023