Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1654/17.4JAPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: DECISÃO QUE MANTÉM MEDIDA DE COACÇÃO
RECURSO
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 04/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JC CRIMINAL DE VISEU – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO
Legislação Nacional: ART. 401.º DO CPP
Sumário: O assistente carece de legitimidade e de interesse em agir para recorrer de decisão judicial que mantém medida de coacção – nomeadamente, como no caso concreto, obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meio técnico de controlo à distância (vigilância electrónica) –, antes imposta ao arguido.
Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO

No processo comum n.º 1654/17.4JAPRT supra identificado, após a realização da audiência de julgamento foi proferido acórdão que decidiu:

1) Condenar o arguido A. pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 10 (dez) anos de prisão;

2) Condenar o arguido/demandado A. a pagar:

a. A quantia de 50.000,00€ (cinquenta mil euros), a título de indemnização por perda do direito à vida de (…), a (…), (…), (…), (…) e (…), na proporção de 10.000,00€ (dez mil euros) por cada um deles;

b. A quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros)), a título de indemnização pelos danos patrimoniais de (…);

c. A quantia de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), a título de indemnização pelo sofrimento da própria assistente, por danos não patrimoniais;

d. A quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros), a título de indemnização, por danos não patrimoniais, a cada um dos demandantes filhos (num total de oitenta mil euros);

e. Juros à taxa legal de 4 % que se vencerem sobre as referidas quantias, desde a data da notificação do presente acórdão até integral e efetivo pagamento.

f. A quantia de 1.100,00€ (mil e cem euros) a título de indemnização pelas despesas com o funeral de (…);

g. Juros vencidos e vincendos à taxa legal de 4 % sobre a quantia referida na alínea anterior, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral e efetivo pagamento.

- Absolver o arguido/demandado do mais peticionado contra si por (…) (viúva), (…), (…), (…) e (…) (filhos).


***

O arguido (…) e a assistente (…), por discordarem da decisão proferida em 1ª instância interpuseram recurso da mesma, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes conclusões:

A) O arguido (…):


***

B) A assistente (…):

(…).

QUANTO AO ESTATUTO COATIVO DO ARGUIDO

1- Embora a decisão de condenação possa ser alterada, uma vez que não transitou ainda em julgado o douto Acórdão, também é evidente que os indícios sobre a existência de factos que levaram à aplicação ao arguido de uma medida de coação pela prática de um crime de homicídio estão agora reforçados pela prolação do Acórdão condenatório que aplica uma pena de 10 anos de prisão.

2- Nesta fase processual já não se trata de indícios nem é necessário fazer juízos de prognose acerca da medida da pena a aplicar ao arguido por forma a decidir sobre a escolha da medida de coação.

3- Nesta fase processual o arguido teve já a possibilidade de se defender, de depor, requerer produção de prova, de contraditório face à prova existente no processo e à prova produzida em julgamento.

4- Realizadas todas as diligências de prova com pleno respeito pelos direitos processuais do arguido, considerou o Tribunal provada a acusação pública e condenou o arguido numa pena de prisão de 10 anos.

5- Decisão de condenação que, no entender da assistente e com o devido respeito, não é conciliável com a manutenção do estatuto coativo aplicado ao arguido, permanecendo este, depois de condenado numa pena de prisão de 10 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, sujeito a prisão domiciliária com vigilância eletrónica.

6- A manutenção deste regime gera na assistente e nos seus filhos e em qualquer cidadão, um sentimento de impunidade e incompreensão quando se procura conciliar estas duas decisões, a condenação numa pena de prisão de 10 anos e a medida de coação de prisão domiciliária.

7- A ideia que estas duas decisões geram na sociedade é a de que no caso não existiu uma verdadeira decisão condenatória de 10 anos de prisão, pois após essa decisão o arguido dirigiu-se para casa e não para o estabelecimento prisional.

8- Foi por certo considerado, aquando da escolha da prisão domiciliária como medida de coação o disposto no artigo 192.º n.º 2 do CPP. Contudo, a possibilidade, em sede de inquérito ou de instrução, de existirem causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal, são substancialmente maiores do que após julgamento e prolação de decisão condenatória, ainda mais quando proferida por um coletivo de juízes.

9- Foi também por certo considerado, aquando da decisão de aplicar como medida de coação ao arguido o regime de permanência na habitação, o disposto no artigo 193.º do CPP, sendo que, em fase de inquérito, as dúvidas acerca dos factos de que o arguido está indiciado e posteriormente é acusado e o desconhecimento sobre as sanções a aplicar face à gravidade do crime, são substancialmente maiores do que após a prolação de decisão condenatória por um coletivo de juízes, pela prática de um crime de homicídio numa pena de prisão de 10 anos.

10- Existe agora um Acórdão condenatório que decidiu pela aplicação de uma pena de prisão de 10 anos, sendo que o que é adequado, proporcional e necessário após a prolação de uma decisão destas é que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação mais gravosa, a prisão preventiva.

11- Assim o impõe agora, nesta fase, o disposto no artigo 193.º do CPP, sendo que o arguido começou por estar sujeito a essa medida de coação, tendo a mesma sido substituída pela prisão domiciliária nos termos e pelos fundamentos do douto despacho de 10/07/2017.

12- Nesta fase, após Acórdão condenatório, a certeza sobre a prática do crime, a gravidade e a forma como foi praticado está reforçada e fortalecida pela aplicação de uma pena de prisão de 10 anos, pelo que, a manutenção de uma medida de coação que não seja a prisão preventiva, cria na sociedade e nos sujeitos processuais um sentimento de incumprimento da decisão judicial proferida e que é socialmente difícil de explicar e de ser compreendida.

13- É importante o impacto que as medidas de coação causam no processo, mas não é menos importante o impacto que causam nos sujeitos processuais (e o arguido não é o único sujeito processual) e na sociedade.

14- Não é social e processualmente expectável que depois da leitura de um Acórdão como o que foi proferido nos autos, o estatuto coactivo do arguido não seja objeto de alteração, sendo que a única medida de coação capaz de não criar alarme social e de ser socialmente aceite e compreendida é a prisão preventiva.

Termos em que, deve o presente recurso ser aceite e julgado procedente e, consequentemente, ser o arguido condenado numa pena de, pelo menos, 15 anos de prisão, e o estatuto coativo do arguido alterado passando a aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.


***
Ao recurso do arguido, responderam a assistente e o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo, defendendo ambos que o recurso deve ser julgado improcedente.
Ao recurso da assistente, respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo, defendendo a sua improcedência.
Nesta instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.
Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido respondeu, pugnando pela procedência do recurso que interpôs e, pela improcedência do recurso interposto pela assistente.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta da decisão recorrida:

“ FACTOS  PROVADOS

(…).


*

FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevância para a decisão a proferir, ficaram por provar os seguintes factos:

(…).


***

APRECIANDO

É pacífica a jurisprudência de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso ([1]).

Assim, perante as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões suscitadas:

a) pelo arguido (…):

(…).

 

b) pela assistente (... ) :

(…).

   - a alteração do estatuto coactivo do arguido (entendendo a recorrente que deveria aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva).


*

Questão prévia: da rejeição do recurso da assistente, quanto ao estatuto coactivo do arguido

Consta do acórdão recorrido:

«ESTATUTO COATIVO DO ARGUIDO

De acordo com o disposto no artigo 213º, n.º1, alínea b) do Código de Processo Penal sempre que no processo seja proferida decisão que conheça, a final, do objeto do processo e não se determine a extinção da medida de coação, impõe-se proceder ao reexame dos seus pressupostos.

Ora, tendo em conta a decisão acabada de proferir e não se verificando qualquer circunstância que justifique a alteração da medida de coação aplicada ao arguido, mantendo-se, na verdade, reforçados os pressupostos que determinaram a sua aplicação, e não se mostrando decorrido o prazo máximo de duração da medida de coação, determina-se que o mesmo continue a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância eletrónica.»

Ora, é contra este segmento do acórdão que se insurge a assistente/recorrente, por considerar que “Não é social e processualmente expectável que depois da leitura de um Acórdão como o que foi proferido nos autos, o estatuto coactivo do arguido não seja objecto de alteração, sendo que a única medida de coacção capaz de não criar alarme social e de ser socialmente aceite e compreendida é a prisão preventiva.

São as medidas de coacção e de garantia patrimonial “meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais responsáveis por prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias” – Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, págs. 231/2.

Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, competindo-lhe, todavia, interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o MP não o tenha feito (art. 69º, n.º 2, al. c) do CPP). Esta legitimidade de interposição de recurso por banda dos assistentes quanto às decisões contra eles proferidas, encontra-se também prevista na al. b) do n.º 1 do art. 401º; contudo, o n.º 2 deste preceito estabelece que não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

A legitimidade para recorrer pressupõe um interesse directo na impugnação do acto ([2]). Como refere Gonçalves da Costa ([3]) “a legitimidade é uma posição de um sujeito processual relativamente a uma determinada decisão proferida em processo penal que justifica que ele possa impugnar tal decisão através de recurso”.

Porém, não se basta a lei processual penal com a legitimidade para se poder recorrer de uma decisão; exige um outro requisito, ter o recorrente interesse em agir, entendendo-se este como “a necessidade deste meio de impugnação para defender o seu direito”.

O interesse em agir não é apreciado de acordo com a opinião pessoal do recorrente, mas sim em termos objectivos.

Simas Santos e Leal-Henriques ([4]) justificam a necessidade deste requisito por duas ordens de razões: pela consideração de que o tempo e a actividade dos tribunais só devem ser tomadas quando os direitos careçam efectivamente de tutela, para defesa da própria utilidade dessa mesma actividade, e de que é injusto que, sem mais, alguém possa solicitar tutela judicial.

Assim, esta condição de admissão do recurso “não se destina a assegurar eficácia à decisão; o que está em jogo é a sua utilidade; não fora o interesse e a actividade processual exercer-se-ia em vão”([5]).

Por conseguinte, numa situação em que a escolha de uma qualquer medida de coacção está subtraída ao controlo do assistente, este carece de legitimidade e interesse em agir para recorrer das decisões sobre as medidas de coacção – cfr. Ac. RP de 22-4-1992, proc. n.º 247/92.

No mesmo sentido se pronunciou Maia Costa ([6]) quando refere que “O assistente não tem o direito de requerer ou de se pronunciar sobre a revogação e a substituição das medidas de coacção (como o não tem de requerer a sua aplicação). Tal medida não é inconstitucional, pois o assistente não é o titular da acção penal e a defesa dos seus interesses não implica a pronúncia sobre as medidas de coacção do arguido. A salvaguarda do princípio da igualdade de armas está garantida com a intervenção do MP”.

Em sentido contrário, Paulo Pinto de Albuquerque ([7]) por defender que “os artigos 268º, n.º 1, al. b) e n.º 2, e 215º, n.º 4 do CPP reconhecem o direito autónomo do assistente se pronunciar sobre a situação da liberdade do arguido. Estes direitos constituem, pois, o conteúdo constitucional de intervenção do assistente no processo penal, pois são eles que lhe permitem influir de modo decisivo no resultado final do processo e nas restrições à liberdade do arguido.”.

Com efeito, as citadas disposições legais permitem, respectivamente, que durante o inquérito o juiz de instrução aplique uma medida de coacção (à excepção da prevista no art. 196º) que tenha sido requerida pelo assistente; assim como, a excepcional complexidade a que se refere o artigo 215º (Prazos de duração máxima da prisão preventiva) pode ser declarada durante a primeira instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente. Sendo certo que, a não audição do arguido e do assistente constitui irregularidade processual.

Ora, entendemos que este requerimento e audição do assistente, cujo sentido/teor não se impõe ao juiz, terão a sua relevância quando estejam em causa crimes (v.g. violência doméstica, ameaça, coacção) em que o estatuto de vítima (dos assistentes) lhe conferem especiais direitos e regalias, e daí o seu interesse que se pronunciem sobre a necessidade da aplicação de uma medida de coacção. Todavia, como sublinha o citado acórdão da Relação do Porto “a escolha de uma qualquer medida de coacção está subtraída ao controlo do assistente”, assim como a decisão sobre a sua manutenção, substituição ou revogação.

Nestes termos, carecendo a assistente de legitimidade e de interesse em agir para recorrer sobre a manutenção da medida de coacção de OPHVE que havia sido imposta ao arguido, há que concluir pela irrecorribilidade desta parte do acórdão (relativo ao estatuto coactivo do arguido), o que constitui motivo de rejeição – artigo 414º, n.º 2 do CPP.

De salientar que a decisão que admite o recurso ou que determina o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior, conforme o disposto no n.º 3 do mesmo preceito.


***

A- Recurso do arguido:

***

B- Recurso da assistente:

(…).


****

III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Rejeitar o recurso da assistente sobre o estatuto coactivo do arguido.

- Negar provimento aos recursos do arguido e da assistente.

Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça.


*****                                                         

Coimbra, 3 de Abril de 2019

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Ac. do Plenário do STJ, de 19-10-95, in DR I-A Série de 28-12-95.
[2] - Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, 1988, pág. 32.
[3] - in Jornadas de Processo Penal, pág. 412.
[4] - in Código de Processo Penal anotado, II Vol., 2ª edição, 2004, pág. 682.
[5] - Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório II, Almedina 1982, pág. 252 e segs.
[6] - em anotação ao art. 212º do Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 886.
[7] - Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição, Univ. Católica Editora, págs. 215/216 e 551.