Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
661/08.2TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: FALSAS DECLARAÇÕES
ARGUIDO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
INQUÉRITO
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 359.º, N.ºS 1 E 2 CÓDIGO PENAL
Sumário: Incorre no crime de falsidade de depoimento ou declaração o arguido que , quando interrogado em inquérito perante técnica de justiça auxiliar, nos termos do art. 144.º do CPP, presta falsas declarações sobre os seus antecedentes criminais.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal singular, o arguido J..., solteiro, trabalhador rural, natural de CH..., Chamusca, nascido em 24 de Agosto de 1965, residente no Bairro …, em Albergaria dos Doze, acusado da prática de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo artigo 359.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal.


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2. Por sentença de 2 de Março de 2009, o tribunal julgou totalmente improcedente a acusação e, em consequência, absolveu o arguido da prática de ambos os crimes.

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3. Inconformado com a decisão, na parte relativa à absolvição do arguido pela prática do crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo artigo 359.º, n.ºs 1 e 2, do CP, dela recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – Na douta sentença proferida, o M.mo Juiz absolveu o arguido do crime de falsidade de declaração quanto aos antecedentes criminais, p. e p. pelo art. 359.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por entender que o mesmo, quando interrogado em inquérito, nos termos do art. 144.º do CPP, e pese embora prestar falsas declarações sobre os seus antecedentes criminais, não incorre, apesar de devidamente advertido, na prática de um crime de falsidade de declaração.

2.ª - Tal questão foi já objecto de apreciação no acórdão de fixação de jurisprudência n.° 9/2007, de 14/03, onde foi firmada jurisprudência no seguinte sentido:

“O arguido em liberdade, que, em inquérito, ao ser interrogado, nos termos do artigo 144.º do Código de Processo Penal, se legalmente advertido, presta falsas declarações a respeito dos seus antecedentes criminais incorre na prática de crime de falsidade de declaração, previsto e punível no artigo 359.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal”.

3.ª - Mais recentemente, o STJ reafirmou tal entendimento (Ac. de 13/12/2007, P.º 07P4377).

4.ª - Acresce que o Tribunal Constitucional vem igualmente afirmando a constitucionalidade de tal norma e entendimento (Ac. TC n.º 127/07, de 24/02/2007).

5.ª - O artigo 445.°, n.º 3, do CPP, estabelece que a decisão que fixar jurisprudência não é obrigatória para os tribunais judiciais, porém, o mesmo preceito estabelece um específico dever de fundamentação quando divergir do entendimento sufragado pelo STJ.

6.ª - No caso, na sentença em apreciação não se encontra o menor argumento novo, não apreciado no referido acórdão fixador.

7.ª - Diz a lei que recai em especial sobre o arguido o dever de responder com verdade às perguntas feitas pela entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais.

8.ª - O crime de falsidade de declaração do arguido, quanto aos seus antecedentes criminais, é um crime contra a realização da justiça, como função do Estado.

9.ª - O art.144.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estatui que os subsequentes interrogatórios de arguido preso e os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respectivo juiz, obedecendo, em tudo quanto for aplicável, às disposições deste capítulo.

10.ª - Face à remissão do n.º 1 do art. 144.°, do Código de Processo Penal, também no interrogatório de arguido em liberdade existe a obrigação deste dizer com verdade se já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes.

11.ª - Tal interpretação resulta do próprio facto da punição não ser afastada, mesmo que a acção não tenha tido consequências prejudiciais para as decisões interlocutórias ou finais a respeito produzidas e que dela não tenham resultado prejuízos para terceiro, sem a “retractação” formal do respectivo autor, conforme resulta do artigo 362.° do Código Penal.

12.ª - É certo que o conhecimento dos antecedentes criminais do arguido detido, preso ou em liberdade durante o interrogatório, pelo menos em fase anterior à do julgamento, apresenta vantagens para a realização da justiça, por conceder informação relevante, necessária para a decisão sobre a aplicação de medidas coactivas. Mas não só.

13.ª - Não sendo exacto que a possibilidade actualmente existente (graças às modernas tecnologias) de pronto conhecimento pelos serviços de justiça do conteúdo do certificado do registo criminal de um arguido corresponda (como vem pressuposto na douta decisão recorrida) à de efectiva demonstração dos (de todos) os antecedentes criminais do mesmo, e não apenas à dos no momento já constantes daquele registo criminal, que não é actualizado imediatamente na data da verificação dos factos a ele sujeitos, conforme todos nós operadores da justiça sabemos e constatamos diariamente, face aos atrasos no cumprimento dos processos (é a realidade).

14.ª - Por outro lado, o arguido está obrigado a responder não só quanto às condenações sofridas, como também relativamente ao facto de ter já estado preso, incluindo-se a prisão preventiva, a qual não é sujeita a registo, não havendo o acesso a tal informação através das ditas “modernas tecnologias”.

15.ª - Por outro lado, não decorre a necessidade processual do conhecimento e análise dos efectivos antecedentes criminais do arguido apenas ou principalmente do facto de os mesmos poderem relevar significativamente para as decisões a tomar relativamente à respectiva situação processual e às medidas de coacção que lhe devam ser aplicadas, designadamente numa situação de detenção (em que a urgência de uma decisão decorre da situação de privação da liberdade do arguido), mas também, nesse aspecto, decorre antes a necessidade do conhecimento e análise dos efectivos antecedentes criminais do arguido com carácter pronto, célere ou urgente pelas autoridades judiciárias a quem em inquérito incumbe suscitar a tomada ou tomar uma decisão a respeito, da urgência (independentemente de qualquer situação de detenção do arguido) com que se façam sentir em qualquer momento processual as exigências processuais de natureza cautelar a que se refere o número 1 dos artigos 191.° e 193.° do Código de Processo Penal, tanto por ocasião dos interrogatórios a que se referem os artigos 141.° e 143.° daquele diploma como em qualquer outra fase processual.

16.ª - A sentença em apreciação, ao absolver o arguido do crime de falsidade de declaração quanto aos seus antecedentes criminais, violou as normas previstas nos artigos 359.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, e 61.º, n.º 3, a), 141.°, n.º 3, 143.°, n.º 2, e 144.°, n.º 1, do Código de Processo Penal.

17.ª - Deve, pois, ser revogada a sentença proferida e ser substituída por outra que condene o arguido pelo crime de falsidade de declarações, p. e p. nos termos do disposto no artigo 359.°, n.ºs l e 2, do Código Penal.


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4. O arguido não apresentou resposta ao recurso.

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5. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
No vertente caso, apenas uma questão constitui o objecto do recurso, que consiste em saber se os factos provados são ou não subsumíveis ao preceito incriminador do artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal.


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2. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 2 de Novembro de 2007, pelas 10 horas, no âmbito do Processo Comum Singular n.º 286/04.1TAPBL, do 1.º Juízo deste tribunal, no decurso da audiência de julgamento, em que era arguido M..., acusado da prática de um crime de ameaças, p. e p. pelo artigo 153.º n.º 1 do Código Penal, foi o ora arguido inquirido como testemunha;

2. No início do seu depoimento, perante a Sra. Juiz, o arguido prestou juramento, afirmando responder com verdade às perguntas que lhe fossem efectuadas;

3. No decurso do depoimento afirmou que tinha estado no local à data da prática dos factos que ali estavam em discussão, deles tendo tido conhecimento;

4. O arguido, porém, havia escrito uma carta ao ali arguido M..., encontrando-se junta ao processo, onde afirmava: “sou obrigado a ir falar de uma coisa que eu não sei nem sequer aqui estava”;

5. Perante a contradição do seu depoimento com os dizeres da carta referida, o arguido foi advertido de que podia incorrer em responsabilidade criminal caso prestasse falsas declarações, tendo, não obstante, continuado a afirmar que tinha estado no local à data da prática dos factos;

6. Por sentença de 12 de Novembro de 2007, o ali arguido M... foi absolvido do crime de que se encontrava acusado;

7. No dia 7 de Outubro de 2008, nos Serviços do Ministério Público de Pombal, o arguido foi constituído e interrogado nessa qualidade, no âmbito do Inquérito que teve lugar nos presentes Autos;

8. A diligência foi realizada pela funcionária técnica de justiça auxiliar, que depois de proceder à sua identificação perguntou-lhe se alguma vez tinha estado preso, quando e porquê e se alguma vez foi condenado e por que crimes;

9. Após ter sido advertido de que deveria responder com verdade quer quanto à sua identificação, quer quanto aos seus antecedentes criminais, respondeu que nunca tinha respondido nem estado preso, bem sabendo que omitia factos verdadeiros e que os que declarava não correspondiam à verdade.

10. Com efeito, em 1 de Fevereiro de 2002, o arguido fora julgado no âmbito do processo comum singular n.º 77/99.0AGAVNO, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, tendo sido condenado na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 5,00€, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;

11. E, não obstante saber que já havia sido julgado e condenado, e que devia responder com verdade à funcionária técnica de justiça auxiliar, quando esta o questionou acerca dos seus antecedentes criminais, o arguido quis omitir o seu passado criminal.

12. O arguido é solteiro e trabalhador agrícola, auferindo 5€/hora de vencimento, trabalhando 6 a 7 dias por semana, quando está bom tempo;

13. Vive sozinho numa casa que lhe foi atribuída pela Segurança Social;

14. Não possui encargos, além dos normais com alimentação, água, luz, gás, vestuário e medicamentos, gastando com estes últimos quantia não inferior a 16€ mensais;

15. Os seus antecedentes criminais são os referidos em 10.


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3. Relativamente aos factos não provados está escrito:
Em audiência de julgamento não resultou provado que os factos tenham ocorrido noutro circunstancialismo ou com outras motivações que não os supra descritos, designadamente que:
1. O arguido tenha agido de forma livre voluntária e consciente, sabendo que na qualidade de testemunha se encontrava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe estavam a ser efectuadas no decurso da audiência de julgamento, tendo consciência de que as declarações que prestava não correspondiam à verdade, atentando dessa forma contra a boa administração da justiça, procurando viciar a decisão judicial a proferir, ou que tivesse consciência de ser a sua conduta prevista e punida por lei;
2. O arguido tenha sido julgado no dia 24 de Março de 2004, no âmbito do processo comum singular 77/99.0GAVNO, do 2.º Juízo do Tribunal de Ourém;

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4. Quanto à fundamentação da decisão de facto, ficou consignado:

Tendo o arguido optado por não prestar declarações, a convicção do Tribunal alicerçou-se na prova documental junta aos autos, conjugada com os depoimentos das duas testemunhas inquiridas em audiência de julgamento: I... e Z....

Assim, teve o Tribunal em consideração o documento de fls. 3 e 4, constituído por uma carta subscrita pelo arguido e dirigida a M..., que era arguido no âmbito do Processo Comum Singular n.º 286/04.1TAPBL, dando-lhe conta que fora indicado como testemunha pela ali queixosa, A..., e que não sabia o que poderia ir dizer, visto que os factos haviam ocorrido em 2004 e nessa altura “nem cá estava”.

O teor do documento referido, conjugou-o o Tribunal com a Acta da Audiência de Julgamento, de 2 de Novembro de 2007 (fls. 5 e seg.), da qual resulta que, quando o arguido prestava declarações como testemunha, o defensor do referido M… pediu a palavra e no seu uso requereu a junção aos autos do mencionado documento, tendo o arguido sido confrontado com o seu teor. Nessa altura, não obstante confirmar ter sido o autor do mesmo, continuou a dizer ter estado no local à data da prática dos factos, o que levou o Ministério Público a requerer a extracção de certidão para efeitos de procedimento criminal.

Igualmente teve o Tribunal em consideração a acusação deduzida nos autos referidos contra M... (fls. 12 e seg.) e a sentença que o absolveu (fls. 15 e seg.). Nesta sede, sublinha-se o facto de a Sra. Juiz, em sede de motivação, ter declarado que “nenhum dos depoimentos prestados se afigurou espontâneo e credível. Pelo contrário todos os depoimentos se mostraram hesitantes, contraditórios, forçados, inseguros, ficando o Tribunal na dúvida acerca do terá acontecido e como terá acontecido”.

Por fim, o Tribunal considerou o Auto de interrogatório do arguido de fls. 29, tão só na parte da resposta à questão dos seus antecedentes criminais.

No que concerne aos depoimentos das testemunhas inquiridas, I... e Z..., ambas funcionárias de justiça, o Tribunal valorou-os integralmente, já que ambas as testemunhas demonstraram ter um conhecimento pessoal dos factos, que relataram de forma espontânea e credível.

Assim, a testemunha I..., que era a funcionária de serviço à sala de audiências, em 2 de Novembro de 2007, confirmou o teor da acta de fls. 5 e seg. já referida, que foi por si elaborada, e informou o tribunal sobre a dinâmica dos factos a que assistiu. Mencionou que, ao ser inquirido na qualidade de testemunha, o arguido afirmou que tinha presenciado os factos que ali estavam em discussão e que, nessa altura, o defensor do ali arguido M… requereu a junção aos autos de uma carta subscrita pelo arguido e dirigida ao identificado M…, na qual afirmava que não havia estado presente nem assistido a nada. Tendo sido confrontado com tal missiva, o arguido confirmou ser o seu subscritor. Porém, sendo-lhe dada a possibilidade de se retractar, continuou a dizer que havia estado presente e assistido aos factos em causa.

A testemunha Z..., confirmou ao Tribunal ter sido a funcionária que, em sede de inquérito, constituiu e interrogou nessa qualidade o arguido. Embora tenha afirmado não se recordar dos pormenores do caso concreto, deu conta do procedimento que toma habitualmente neste tipo de casos, designadamente de que adverte sempre as pessoas que constitui e interroga como arguidos de que devem responder com verdade às perguntas que lhe são feitas sobre a sua identificação e antecedentes criminais, sob pena de incorrerem em responsabilidade criminal. E – mencionou – se consta do auto que tal advertência foi feita, então é porque tal corresponde à verdade.

No que ao elemento intencional concerne, dúvidas não temos de que tendo o arguido sido advertido pelas Sra. funcionária de que deveria responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade e antecedentes criminais e tendo procedido de modo diferente, fê-lo intencionalmente, até porque foi julgado uma única vez, tendo pago a pena de multa, sendo um facto, atenta a sua natureza, que o mesmo não se poderia ter esquecido.

Atenta a prova produzida, porém, permanece a dívida sobre se, em sede de julgamento o arguido faltou efectivamente à verdade, querendo com isso entorpecer a acção da justiça. Na verdade, embora na carta que escreveu o arguido tenha dito que estava obrigado a falar de uma coisa que não sabia nem sequer tinha presenciado, quando confrontado com este facto, ao prestar declarações como testemunha, não reconheceu que estava a mentir, mantendo sempre a mesma versão dos factos, ou seja, de que estivera presente e assistira a tudo o que ali estava em discussão. E, não obstante a testemunha I... ter ficado com a impressão de que o arguido estaria a mentir, trata-se de uma convicção pessoal da referida testemunha que não pode o tribunal valorar.

Perante a matéria de facto carreada, uma de duas situações é possível: ou os factos que estão redigidos na carta são falsos, tendo o arguido falado verdade em julgamento, ou o contrário.

A dúvida subsiste, porém, tratando-se de dúvida séria.     

E sendo dúvida séria, considerando o princípio do in dubio pro reo, – correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido (artigo 32.º n.º 2 da CRP) – não podem os factos em causa ser havidos como provados.

Sobre as condições económicas do arguido, o Tribunal teve em conta o que o mesmo declarou a este respeito.

Relativamente aos seus antecedentes criminais, teve-se em conta o CRC junto aos Autos, daí resultando a data correcta em que o mesmo foi submetido a julgamento.

Todas as provas foram, assim, valoradas de acordo com o princípio da livre apreciação, tendo em conta as regras da experiência e da normalidade do acontecer.

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5. Do mérito do recurso:
Sem nos retermos em inúteis considerações, cabe lembrar desde já a jurisprudência fixada no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão n.º 9/2007, de 14 de Março de 2007[1], do seguinte teor:
«O arguido em liberdade, que, em inquérito, ao ser interrogado nos termos do artigo 144.º do Código de Processo Penal, se legalmente advertido, presta falsas declarações a respeito dos seus antecedentes criminais, incorre na prática do crime de falsidade de declaração, previsto e punível no artigo 359.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal».
 Entre os fundamentos jurídicos da decisão recorrida e aqueloutros expressos no acórdão[2] de que foi interposto recurso extraordinário, no âmbito do qual foi fixada a jurisprudência citada supra, não existem diferenças relevantes.
Sucede que esses fundamentos, apesar de amplamente ponderados no Supremo Tribunal de Justiça, não prevaleceram. Pelo contrário, vingou tese contrária, a vertida no acórdão fundamento[3].
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  Aquela jurisprudência foi posteriormente confirmada pelo Acórdão do STJ de 13-12-2007[4].
Por seu turno, também o Tribunal Constitucional, em Acórdão (n.º 127/2007) de 14-02-2007, considerou não ser violadora do artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 5 da CRP a imposição, contida em norma ordinária, de o arguido responder com verdade sobre os seus antecedentes criminais, sob pena de incorrer em responsabilidade penal, quando seja interrogado por órgão de polícia criminal, e ainda que se mostre nos autos o respectivo certificado de registo criminal.
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É de seguir, sem qualquer reserva,  a jurisprudência fixada sobre a matéria em debate, dando valor acrescido, conforme relatório preambular do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro) à «normal autoridade e força persuasiva da decisão do Supremo Tribunal de Justiça».
Até porque não se antevêem (novos) argumentos susceptíveis de fundamentar convincentemente divergências relativas à jurisprudência já fixada.
E como regularmente vem acentuando o STJ, a propósito do texto-norma do artigo 445.º, n.º 3, do CPP, a lei indica com suficiente clareza que os Acórdãos para fixação de jurisprudência, ainda que não sejam obrigatórios para os tribunais judiciais já que o STJ não “faz lei”, têm um peso próprio que lhes é conferido pelo facto de provirem do Pleno das Secções Criminais daquele Tribunal Superior. Daí que haja uma presunção de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existente sobre o assunto.
Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, parece descabido tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostra já ultrapassada[5].
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O caso concreto dos autos apresenta uma particularidade não especificamente tratada no Ac. de fixação de jurisprudência, traduzida na circunstância de as declarações do arguido, em sede de inquérito, terem sido prestadas perante técnica de justiça auxiliar.
Contudo, como bem ficou referido no Ac. desta Relação de Coimbra de 09-03-2005[6], «temos de atender, porém, a que existe uma norma genérica, o art. 215.º da Lei 60/98, de 27 de Agosto, que concede ao Ministério Público a possibilidade de coadjuvação de funcionários judiciais no apoio às suas funções, nomeadamente, de prevenção e de investigação criminal.
Assim, parece defensável que o Ministério Público possa realizar actos de inquérito por intermédio de funcionário judicial que o coadjuva, quando também os pode fazer por intermédio de órgão de polícia criminal, através de delegação».
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Em síntese conclusiva: no vertente caso, o arguido cometeu, em autoria material, um crime de um crime de falsidade de depoimento ou declaração do artigo 359.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, havendo, assim, que alterar, neste segmento, a decisão recorrida.

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6. Espécie e medida da pena:

O referido crime é punível com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.

Cabe, assim, previamente, analisar, no seguimento da orientação inserta no art. 70.º do Código Penal, se será de dar preferência à pena de multa em detrimento da pena de prisão.

O critério legal a seguir é simplesmente este: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa (de multa) sempre que verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição.

O que o mesmo é dizer que a aplicação de uma pena alternativa à pena de prisão, no caso a pena de multa, depende tão somente de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».

«...Sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie da pena. Por outras palavras: a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da pena de prisão..., quer da medida da pena alternativa...» [7].

Mais adiante, na obra citada, § 500, pág. 333, escreve o mesmo ilustre professor:

«Em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa...quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela pena; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o...carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração.

A prevenção geral «deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico..., como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa...só não será aplicada se a execução da prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias»[8].

O quadro factológico provado não aponta minimamente no sentido de o arguido estar carecido de socialização, a concretizar através da aplicação de pena privativa de liberdade. Na verdade, o mesmo está socialmente inserido.

Na vertente das exigências de prevenção geral, também não se vislumbra que a preferência pela pena de multa abale o reforço da consciência jurídica comunitária e o sentimento de segurança face à violação da norma violada. O passado do arguido, traduzido apenas numa condenação, em 2002, pela prática de crime de condução em estado de embriaguez, leva à conclusão segura de a conduta ora em causa radicar numa situação de mera ocasionalidade.

Crê-se, por isso, que a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, cabendo de imediato proceder à sua determinação concreta.

Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

O art. 71.º do mesmo diploma, estipula, por outro lado, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção» (n.º1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2, do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Assim, ponderando:

- Que a gravidade da violação jurídica cometida pelo arguido se apresenta em mui reduzido grau;

- Que é acentuado o conhecimento e a intensidade da vontade no dolo (directo) revelado;

- O referido passado criminal do arguido;

- A situação pessoal, económica e social do arguido (é solteiro, trabalhador agrícola, em cuja actividade - desenvolvida 6/7 dias por semana, nos períodos em que o tempo permite - aufere € 5 à hora; vive sozinho, numa casa que lhe foi atribuída pela Segurança Social; não possui encargos, além dos normais com alimentação, água, luz, gás, vestuário e medicamentos);

julgamos adequada a pena de 60 dias de multa, à razão diária de € 6 (seis euros).

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III - Dispositivo:

Posto o que precede, os Juízes que compõem a 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra concedem provimento ao recurso e, em consequência, alteram a decisão recorrida, na parte ora em causa, ficando o arguido J... condenado, pela prática, em autoria material, de um crime falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo artigo 359.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 6 (seis euros).

Sem tributação.

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(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 24 de Fevereiro de 2010

……………………………………...
(Alberto Mira)

……………………………………...
(Elisa Sales)


[1] Publicado no DR, 1.ª série, n.º 129, de 6 de Julho de 2007.
[2] Da Relação de Coimbra, proferido no recurso n.º 343/2006.
[3] Também da Relação de Coimbra, de 9 de Março de 2005, proc. n.º 108/05.
[4] Proferido no proc. n.º 07P4377.
[5] Cfr. Acórdão do STJ de 05-11-2009, proc. n.º 418/07.8PSBCL-A.S1, publicado em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, entre muitos, vide Ac. do mesmo Tribunal, de 20-04-05, CJ, tomo II, 181.
[6] Publicado na CJ, tomo II/2005, pág. 41. No mesmo sentido, vide Ac. da Relação do Porto de 09-05-2007, in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, § 497 e 499, págs. 331 e 332.
[8] Idem, pág. 333.