Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9146/18.8T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
SOCIEDADE
GERENTES
CITAÇÃO
FALTA DE CITAÇÃO
Data do Acordão: 11/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.187 A), 188, 223, 225, 228, 230, 246, 381 CPC, 391 Nº4 CSC
Sumário: I – No âmbito de um procedimento cautelar de suspensão da deliberação social que procedeu à designação dos gerentes e estando já inscrita no registo essa designação, é na pessoa desses gerentes – ou na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração (cfr. artigo 223º do CPC) – que a sociedade deve ser citada para deduzir oposição, a tal não obstando o disposto no artigo 381º, nº 3, do CPC, quando estabelece que, a partir da citação, não é lícita a execução da deliberação impugnada.

II – Não se considera citada a sociedade requerida – ocorrendo, por isso, falta de citação – se a carta que lhe foi dirigida com essa finalidade não foi entregue e recepcionada por nenhum dos aludidos gerentes – que eram, à data, os seus representantes legais – e nunca chegou ao seu conhecimento, tendo sido entregue, fora da respectiva sede (num apartado), a pessoa que, apesar de já ter sido gerente da sociedade, recepcionou a carta na qualidade de terceiro com o compromisso de a entregar à destinatária sem que, apesar disso, tivesse procedido à entrega dessa carta aos actuais gerentes da sociedade.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

F (…), residente em (…) em (...) , veio instaurar procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais contra A (…) Ldª, com sede na (…) (...) , pedindo a suspensão da execução das deliberações tomadas na assembleia geral da sociedade requerida que teve lugar em 22/11/2018 e onde se elegeram os gerentes para o triénio de 2018 a 2020.

Ordenada a citação da Requerida para deduzir oposição à providência, foi enviada carta registada com aviso de recepção para a sede da Requerida. Tal carta foi recepcionada – em 12/12/2018 – por A (…), tendo ficado a constar do aviso que a carta havia sido entregue a pessoa que, após a devida advertência, se comprometeu a entregá-la prontamente ao destinatário.

Mediante requerimento apresentado em 30/01/2019, a Requerida – representada por J (…) e D (…) (que haviam sido designados gerentes pela deliberação cuja suspensão era peticionada nos autos) – veio apresentar requerimento onde alegou:

- Que a carta expedida para a sua citação, não foi recebida por nenhum empregado da Requerida nem por quem legalmente a representasse;

- Que tal carta não chegou ao conhecimento de nenhum dos gerentes da Requerida, uma vez que o Eng. (…)– que a recebeu – não lhes entregou a carta nem lhes deu conhecimento de tal citação;

- Que o referido Eng. (…) – que é casado com a Requerente – não é empregado, gerente ou mandatário da Requerida (apesar de ter sido gerente, o seu mandato de gerência caducou por ter sido conferido para o período de 1999 a 2001);

- Que a recepção da carta por parte do Eng (…) visou apenas impedir a oportuna dedução de defesa e, com tal, produzir um efeito contrário ao pretendido pela lei e com violação das regras e princípios processuais;

- Que a citação em questão, além de nula, sempre seria ineficaz relativamente à Requerida, uma vez que foi recebida pelo marido da Requerente, Eng.º (…) que não é legal representante nem empregado da ora requerida;

- Que, ainda que se considerasse que essa citação era válida – por se considerar que o Eng. (…) ainda é gerente da Requerida –, sempre existiria um conflito de interesses entre esse gerente e a sociedade dada a circunstância de ser casado com a Requerente e, nessas circunstâncias, deveria ter sido designado um representante especial para receber a citação;

- Que, em qualquer caso e nas circunstâncias referidas, a não apresentação da oposição no momento oportuno não é imputável à Requerida, devendo julgar-se verificado o justo impedimento para o efeito de lhe ser permitido deduzir (agora) a sua oposição.

Com estes fundamentos, pede que seja decretada a nulidade da citação ou, pelo menos, a sua ineficácia.

Caso assim não se entenda, pede que se julgue verificada a irregularidade de representação da Requerida e que tal vício seja sanado por meio de citação por contacto pessoal dos respectivos gerentes.

Caso assim não se entenda, pede que se decrete que a citação efectuada consubstancia abuso de direito, devendo concluir-se pela ilegitimidade da citação da Requerida.

Caso assim não se entenda, pede que se julgue verificado o justo impedimento da Requerida e que seja admitida a oposição que agora veio apresentar.

Na resposta que apresentou, a Requerente começa por invocar a irregularidade de representação da Requerida, dizendo que quem assume a sua representação são os gerentes que foram designados na deliberação cuja suspensão foi peticionada nos autos – que veio a ser decretada por decisão de 25/01/2019 – e, após a citação para o presente procedimento cautelar, essa deliberação não poderia ser executada conforme dispõe o artigo 381º,nº 3, do CPC, razão pela qual o anterior gerente (Eng. …) continua a manter as funções de gerência.

No mais, sustenta que a citação efectuada é válida e eficaz, uma vez que foi recebida e conhecida pela pessoa que a podia representar (o Eng. …) e acrescenta: que não há incompatibilidades de interesses entre a Requerente e o referido gerente, que não existiu qualquer uso anormal do processo e que não existe qualquer justo impedimento, reafirmando que, à data da citação da requerida (em 12/12/2018), só o gerente Engº. (…) poderia dizer alguma coisa em nome da sociedade, uma vez que os gerentes designados em 22 de Novembro de 2018 estavam impedidos de o fazer, por força do determinado no artº. 381º., nº. 3 do Cod. Proc. Civil (se o fizessem estavam a executar a deliberação que não era já executável, por força da citação feita).

A Requerida respondeu, reafirmando a sua posição inicial.

Após inquirição das testemunhas arroladas, foi proferida decisão que, julgando improcedente o incidente suscitado, decidiu nos seguintes termos:

a) – Considera-se válida e eficaz a citação realizada, não havendo lugar à repetição da mesma, não se verificando irregularidade de representação da sociedade requerida, abuso de direito, violação do principio da boa fé, uso anormal do processo.

b) - Relativamente às demais questões suscitadas, pelo facto de contenderem com a questão de fundo, tendo sido proferida decisão, encontra-se esgotado o poder jurisdicional (artº 613º, nºs 1 a 3, do CPC)”.

Inconformada com essa decisão, a Requerida A (…), Ldª, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

A Requerente F (…) apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…)


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II.

Questão prévia

Antes de entrar na apreciação do objecto do recurso, importa analisar a questão – suscitada pela Apelada nas suas contra-alegações – referente à admissibilidade do recurso.

Na perspectiva da Apelada, o recurso foi interposto quando já havia decorrido o prazo estabelecido na lei, uma vez que, estando em causa um processo urgente, o prazo para o recurso era de quinze dias acrescido de dez dias por estar em causa a reapreciação da prova gravada e, sendo certo que a decisão se presume notificada em 01/07/2019, esse prazo terminou em 26/07/2019.

Mais sustenta a Apelada que o recurso não pode ser admitido em virtude de a pessoa que o interpõe em nome da Requerida não poder legalmente representá-la, uma vez que, tendo sido julgada válida a citação, não é lícita a execução da deliberação que nomeou os novos gerentes e, não podendo ser executada essa deliberação, não poderia o aí nomeado gerente – J (...) – vir exercer direitos processuais em nome da Requerida.

Não assiste razão à Apelada.

É certo que, estando em causa um processo urgente, o prazo para a interposição de recurso era de quinze dias (artigo 638º, nº 1, do CPC), sendo acrescido de dez dias em virtude de o seu objecto incluir a reapreciação da prova gravada (nº 7 do citado artigo 638º). Assim e sendo certo que a decisão recorrida se presume notificada em 01/07/2019, o prazo para interposição do recurso terminaria – como diz a Apelada – em 26/07/2019. Mas, em conformidade com o disposto no artigo 139º, nº 5, do CPC, o acto poderia ainda ser praticado nos três primeiros dias úteis subsequentes mediante o pagamento de multa. O acto poderia, portanto, ser praticado nos dias 29, 30 e 31 de Julho (sendo certo que os dias 27 e 28 recaíram em fim de semana) e foi isso que aconteceu, já que o recurso foi interposto em 31/07/2019, tendo sido paga a multa a que alude a citada disposição legal.

O recurso foi, portanto, interposto dentro do prazo legal.

Relativamente à segunda questão, diremos que não faz sentido dizer que o recurso não pode ser admitido em virtude de a Recorrente não estar representada por quem detém legitimamente o poder de a representar quando é certo que o objecto do recurso consiste precisamente em saber se tais poderes pertencem a A (…) que recebeu a citação – conforme se considerou na decisão recorrida – ou se pertencem aos gerentes que foram eleitos pela deliberação impugnada e que nessa qualidade se apresentaram a arguir a falta de citação da sociedade e se apresentam agora a interpor recurso da decisão que indeferiu essa arguição e considerou a citação validamente efectuada.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que nada obsta à apreciação do objecto do recurso.


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III.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – as questões a apreciar e decidir reconduzem-se, no essencial, às seguintes:

- Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos propostos pela Apelante;

- Saber se a decisão recorrida padece de nulidade por ter omitido pronuncia relativamente às seguintes questões: apreciação da conduta processual do receptor da carta de citação, à luz dos princípios da proibição do abuso do Direito, do uso anormal do processo, da boa-fé, incluindo a boa-fé processual e pedido de admissão da oposição que condicionalmente integrou o articulado de arguição de nulidade com base na situação de justo impedimento prevista no artigo 140.º do CPC;

- Saber se está configurada uma situação de falta de citação da sociedade requerida, apurando, designadamente, se o receptor da carta de citação detinha (ou não) poderes de representação da sociedade para, em nome dela, receber a citação;

- Saber se, em qualquer caso, deveria ter sido admitida a oposição apresentada condicionalmente com fundamento na situação de justo impedimento, por ter ficado demonstrada a falta de conhecimento da citação pelos gerentes da sociedade;

- Saber se o comportamento de A (...) , ao receber a carta de citação, configura abuso de direito, uso anormal do processo e ofende o princípio da boa-fé.


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IV.

Matéria de facto

Comecemos por analisar as questões suscitadas a propósito da decisão proferida sobre a matéria de facto, uma vez que tais questões têm prioridade lógica sobre as demais.

(…)

A matéria de facto provada – com as alterações agora efectuadas – é a seguinte:

1º Os presentes autos de procedimento cautelar de suspensão de deliberação social com pedido de inversão do contencioso, em que é Requerente F (…), residente em (…) (...) , e Requerida A (…), LDª., sociedade comercial por quotas com sede (…) na cidade de (...) , (…) foram instaurados em 02/12/2018.

2º De acordo com a certidão de matrícula junta, a Requerida, da A (…)Ldª, tem a sua sede em x (...) .

3º Nos presentes autos, tendo sido determinada a citação prévia da Requerida foi enviada nota de citação para a morada da Requerida “A (…)Lda referida em 1º (conforme resulta da consulta dos autos-Refª 78872396-nota essa que se considera integralmente reproduzida);

4º O aviso de recepção foi assinado em 2018-12-12 por A (…) (conforme resulta do aviso de recepção junto aos autos-Refª 4708506).

5º Não foi apresentada oposição no prazo legal.

6º Em 25/01/2019 foi proferido despacho final do seguinte teor:

julga-se procedente, por provado, o presente procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, requerido por F (…) contra A (…), LDª, ordenando a suspensão da execução das deliberações tomadas na assembleia geral da sociedade A (…), Ldª, com sede na x (...) , do concelho e distrito de (...) , que se encontra matriculada na Conservatória do Registo Comercial de (...) , sob o (...) , que é também o seu NIPC, com o capital social de 10.114,08 Euros, realizada no dia 22 de Novembro de 2018, e, nos termos dos artºs. 369º. e 382º., ambos do Cod. Proc. Civil, em inversão do contencioso, determina-se a dispensa da requerente em propor a acção de anulação das deliberações, por ser manifesta, em face dos documentos juntos que a assembleia geral de 22 de Novembro de 2018 é legalmente uma assembleia geral não convocada e consequentemente são nulas as deliberações nela tomadas (Cfr. artº. artº. 56º., nº. 1, al. a) do Cod. Soc. Comerciais).

7º A notificação do despacho final foi enviado em 28/01/2019 para A (…), Ldª., x (...) - x (...) (...) e recebida (conforme resulta dos autos-Refª 79234368).

8º Em 17-01-2019 foi lavrada pela Secretaria uma cota do seguinte teor: em 17-01-2019 deixo consignado que procedi à pesquisa da base de dados da certidão permanente atualizada da devedora, mediante prévia autorização da Juíza de Direito, a fim de se proceder à identificação dos autuais gerentes da devedor, que se encontravam presentes nesta secretaria para consultar os autos.”

9º J (…), A (…) e D (…), eleitos gerentes através da deliberação em apreço nos autos tomaram conhecimento da instauração desta providência em 17 de Janeiro de 2019, por meio de consulta dos autos, a pedido do Exmo. Senhor Dr. (…)Advogado com escritório em Penacova, que, naquele dia, se disponibilizou para os acompanhar à Secretaria deste Tribunal, uma vez que aquele Causídico é Patrono de outros sócios da Requerida, a saber, U (…) e A (…)que por sua vez são autores numa acção de anulação de deliberação social – outra deliberação – contra a A (…) que, sob o Proc. n.º 9394/17.8T8CBR, corre termos por este Juízo do Comércio – Juiz 2, pelo menos, por via do qual aquele Senhor Advogado tomou conhecimento da pendência dos presentes autos em data não concretamente apurada.

10º O referido Dr. (…), informou o Dr. (…) da pendência desta providência, tendo-se deslocado a este Tribunal com os demais eleitos gerentes, (…).

11º Da consulta dos autos foi possível, pelo menos, conhecer, na data de 17 de Janeiro de 2019, o conteúdo do requerimento inicial.

12º O Exmo. Senhor Dr. (…) teve que se ausentar, por ter outra diligência que o impediu de os acompanhar a consultar os autos.

13º Constataram, pelo menos, que já havia sido expedida pelo Tribunal carta registada com aviso de recepção para citação da sociedade requerida no âmbito dos presentes autos e que foi dirigida para a sede da Requerida, em x (...) , (...) e recepcionada por A (…), tendo assinado o respectivo aviso de recepção.

14º A recepção da citação não foi entregue aos referidos J (…), A (…) e D (…) eleitos gerentes através da deliberação objecto de pedido de suspensão e declaração de nulidade.

15º A carta remetida pelo Tribunal para citação da Requerida não foi entregue na morada correspondente à sede da sociedade da Requerida, tendo ficado disponível para levantamento no apartado e tendo o destinatário sido notificado para levantar objecto no apartado, no seguimento do que acabou por ser recebida por A (…) na Estação de Correios sita em (...) – (...) , tendo sido aposta no aviso de recepção a menção de que a carta foi entregue e o aviso de recepção assinado por pessoa que se comprometeu após a devida advertência a entregar a carta prontamente ao destinatário.

16º O referido A (…) está de relações, pelo menos, tensas com os referidos Dr. (…) Eng.º (…)e Sr. (…).

17º A sociedade requerida obriga-se apenas com a assinatura de um só gerente (cfr. certidão de matrícula junta aos autos).

18º A (…) foi designado gerente da sociedade comercial requerida em 24/7/1999 (certidão de matrícula da sociedade requerida).

19º O mandato de gerência do referido A (…) foi conferido para o período de 1999 a 2001, por deliberação social de 24 de Julho de 1999, exarada em acta de deliberação da Assembleia Geral da Requerida e foi levado ao registo comercial por meio do Av. 2 - Ap. 30/20180910 15:03:42 UT – RETIFICAÇÃO: “O gerente A (…) foi designado em 1999-07-24, para o triénio 1999-2001” (cfr. certidão do registo comercial junta), sendo que depois deste triénio não foi destituído, nem renunciou à gerência, como consta da ausência desses actos do registo comercial (cfr. certidão de matrícula junta aos autos).

20º Encontra-se inscrita na matrícula da referida sociedade pela Ap.4/20181204, a designação de membros de órgãos sociais: A (…), D (…) e J (…)tendo como data da deliberação 2018-11-22 objecto dos presentes autos (cfr. certidão de matrícula junta aos autos);

21º A (…) é casado com a Requerente F (…), com quem se consorciou em 22 de Dezembro de 1973 (cfr. certidões de fls.57 verso a 60).

22º A Requerente, em sede de requerimento inicial entrado em 2/12/2018, refere que na assembleia geral “Tendo sido eleitos 2 gerentes, que a ora requerente ainda não sabe quem são”.

23º A Requerente não esteve presente, nem se fez representar na referida Assembleia Geral (cfr. certidão da acta da referida assembleia geral junta).

24º Encontra-se junta certidão da “ATA DA REUNIÃO DA ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA DA SOCIEDADE “A (…), LDA”, que se considera integralmente reproduzida, e que se extraí o seguinte teor considerado relevante:

-----“ No dia vinte e dois de novembro de dois mil e dezoito, às dez horas, na sede a sociedade em x (...) , localidade de x (...) , União de Freguesias de x (...) e y (...) , concelho de (...) , perante mim, M (…), presente a este ato a requisição do sócio J (…) (…).

-----A assembleia geral foi regularmente convocada, com a seguinte ordem de trabalhos:------------------------------------------------------------------------------------

-----Ponto Único-Eleger o gerentes para o triénio 2018 a 2020, fixação das condições, termos e poderes para o exercício dessas funções e respectiva remuneração.----------------------

-----À hora marcada estavam presentes ou representados os sócios titulares de quarenta vírgula sessenta e um por cento do capital social, (…).

------Presidiu a esta assembleia o Senhor F (…) de acordo com o disposto no nº 4 do artigo 248º do Código das Sociedades Comerciais.

(…), tendo o Senhor F (…) tomado a palavra para, em representação dos herdeiros de F (…), apresentar a seguinte proposta:

-----“Eleger para efeitos de gerência para o triénio de 2018 a 2020, A (…), D (…) e J (…)que exercerão a função de gerentes.--------

-------Os três gerentes obrigar-se-ão a elaborar e aprovar por unanimidade um manual de procedimentos de funcionamento da gerência, no prazo de dois meses.------

- A remuneração mensal de cada gerente será de dois mil e oitocentos euros ilíquidos, tendo direito a subsídio de férias, a subsídio de Natal, a subsídio de almoço em montante a partir do qual passa a estar sujeito a IRS e a utilização de automóvel de serviço”.------------------

------Posta à votação aquela proposta, a mesma obteve o voto favorável dos presentes com direito de voto, ou seja, do representante das quotas da herança de F (…), o Senhor F (…) e do sócio Senhor J (…), ficando assim aprovada por unanimidade (…).”

25º A deliberação não foi, formalmente, fornecida/enviada à Requerente e a A (…).


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Não se julgou provou que:

- o referido A (…) se encontre reformado já há vários anos pelo Centro Nacional de Pensões.

- há muito A (…) propale que já nada tem a ver com a sociedade requerida.

- a recepção da carta de citação pelo referido A (…) tenha visado apenas impedir a oportuna dedução de defesa.


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V.

Fixada a matéria de facto, analisemos as demais questões.

Nulidade da decisão

A Apelante invoca a nulidade da decisão, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC, por não ter apreciado a conduta processual do receptor da carta de citação, à luz dos princípios da proibição do abuso do Direito, do uso anormal do processo, da boa-fé, incluindo a boa-fé processual e por não ter apreciado o pedido de admissão da oposição que condicionalmente integrou o articulado de arguição de nulidade com base na situação de justo impedimento prevista no artigo 140.º do CPC.

É certo que, nos termos da citada disposição legal, a sentença (e também o despacho – cfr. artigo 613º, nº 3) é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. Essas questões – que o juiz tem o dever de apreciar sob pena de nulidade da sentença/despacho – são aquelas que estão enunciadas no artigo 608º, nº 2, onde se determina que, além das questões de conhecimento oficioso, o juiz “…deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

No entanto e ao contrário do que diz a Apelada, as questões a que se reporta foram apreciadas na decisão recorrida e, para o efeito, basta ter em conta os seguintes excertos da decisão:

Quanto aos invocados conflitos de interesses entre requerente F (…) e A (…), abuso de direito, violação do principio da boa fé, uso anormal do processo afigura-se-nos que se trata já de apreciar fundo da causa, sendo que, após a prolação do despacho final se encontra esgotado o poder jurisdicional, conforme resulta do disposto no artº 613º, nºs 1 a 3, do CPC…”.

Igualmente, entende-se que não existe qualquer uso anormal do processo, pois que o objecto do mesmo e a pretensão da requerente atingir-se-ia atentas as razões formais e objectivas invocadas e que foram os fundamentos da decisão já proferida – veja-se os fundamentos invocados para suspensão e declaração de nulidade da deliberação-, não se vislumbrando, pois, abuso de direito, violação do principio da boa fé e faculdades processuais, tomando em consideração o que supra se exarou, designadamente quanto à propositura da presente providência e da citação”.

Além disso, não existe qualquer justo impedimento, pois com a citação da requerida em 12/12/2018, só o gerente A (…) poderia dizer alguma coisa em nome da sociedade, em virtude dos gerentes designados em 22 de Novembro de 2018 estarem impedidos de o fazer, por força do determinado no artº. 381º., nº. 3 do Cod. Proc. Civil, pois que se o fizessem estavam a executar a deliberação que não era já executável, por força da citação feita, pelo que os gerentes então designados careciam de poderes para o efeito, sendo certo que não estando em causa a nulidade/falta de citação, não se vislumbra como se pode justificar qualquer impedimento, que não existe”.

Em face dos excertos citados, não poderá afirmar-se – como faz a Apelante – que a decisão recorrida não se pronunciou sobre as aludidas questões. Poder-se-á discordar dos termos em que essas questões foram apreciadas na decisão mas isso, salvo o devido respeito, já diz respeito ao mérito da decisão e não interfere com a sua validade formal. Bem ou mal, de forma suficiente ou insuficiente, essas questões foram apreciadas e, como tal, não poderá afirmar-se que a decisão é nula por não ter apreciado essas questões.

Além do mais, se tivermos em conta os pressupostos em que laborou a decisão recorrida – de acordo com os quais A (…) era o legal representante da sociedade, razão pela qual a citação efectuada mediante carta por ele recebida era perfeitamente válida e eficaz – as questões supra mencionadas até teriam ficado prejudicadas pela solução dada a outras questões, o que dispensaria a sua apreciação à luz do disposto no citado artigo 608º, nº 2.

Não se configura, portanto, a apontada nulidade.

 Falta de citação

A decisão recorrida julgou improcedente o incidente suscitado e considerou que a citação havia sido efectuada de forma válida e eficaz com base nos pressupostos que poderemos resumir nos seguintes termos:

- Apesar de ter sido nomeado gerente para o triénio de 1999/2001, A (…) manteve-se em funções após o termo desse período em virtude de não terem sido designados novos gerentes;

- Com a citação da sociedade para o presente procedimento cautelar – onde se peticionava a suspensão da deliberação que havia nomeado novos gerentes – a sociedade ficou impedida, por força do disposto no artigo 381º,nº 3, do CPC, de dar execução à deliberação impugnada, pelo que os gerentes nomeados não podem assumir a representação da sociedade (se o fizessem era em execução da deliberação cuja suspensão se requeria);

- Nessas circunstâncias, A (…) continua a ser o gerente e, tendo sido ele quem recebeu a carta, a citação é válida e eficaz por ter sido recebida pela única pessoa que, à data, podia representar a sociedade requerida.

A Apelante discorda dessa decisão e das respectivas premissas, sustentando, no essencial:

- Que A (…) não era gerente da sociedade, porque o seu mandato havia terminado em 2001 e, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, a regra estabelecida no art. 391º, nº 4, do CSC não é aplicável às sociedades por quotas;

- Que, à data da citação, já se encontravam nomeados novos gerentes e esse facto já havia sido levado ao registo comercial, pelo que, em qualquer caso, já teriam cessado as funções de gerência que A (…) ainda exercesse;

- Que o disposto no art. 381º, nº. 3 do Cód. Proc. Civil, não prejudica, mesmo no caso em que a deliberação de suspensão tem por objecto a designação de novos gerentes, que sejam os gerentes nomeados, de novo, os destinatários da citação, tanto mais que o impedimento de execução da deliberação que aí se encontra previsto apenas opera a partir da citação;

- Que, nessas circunstâncias, a citação recebida por A (…)– e não comunicada aos gerentes nomeados pela deliberação cuja suspensão aqui se peticionava – corporiza falta de citação e determina a anulação de todo o processado posterior à petição inicial.

Analisemos, então, a questão.

De acordo com o disposto no artigo 187º, alínea a), do CPC, é nulo tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando-se apenas esta, quando o réu não tenha sido citado. E, a não ser que deva considerar-se sanada, tal nulidade pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal e pode ser arguida em qualquer estado do processo (cfr. artigos 196º, 198º, nº 2 e 200º, nº 1, do CPC).

Enunciando as situações que integram essa nulidade, determina o artigo 188º que há falta de citação nas seguintes situações:

a) Quando o acto tenha sido completamente omitido;

b) Quando tenha havido erro de identidade do citado;

c) Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;

d) Quando se mostre que foi efectuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade;

e) Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável.

Importa, portanto, saber se a situação dos autos pode (ou não) ser integrada em alguma dessas situações.

É o que passamos a analisar.

Estando em causa – como acontece nos autos – uma pessoa colectiva (sociedade), dispõe o artigo 223º do CPC que ela é citada na pessoa dos seus legais representantes (bastando que o seja na pessoa de um dos representantes quando a representação pertença a mais de uma pessoa, ainda que cumulativamente), considerando-se ainda pessoalmente citada na pessoa e qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração. E, em conformidade com o disposto no artigo 246º, nº 2, tal citação é efectuada mediante carta endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas do Registo Nacional de Pessoas Colectivas.

No caso que analisamos, a carta para citação da Requerida foi expedida – nos termos previstos na lei – para a sua sede (facto que não é posto em causa), sucedendo, porém, que ela não foi recepcionada pelos seus representantes ou por qualquer empregado que aí se encontrasse, tendo sido recebida por A (…) que, à data, não era representante legal da Requerida.

Conforme dissemos, a decisão recorrida considerou que a citação era válida e eficaz em virtude de o referido A (…) (que recebeu a carta para citação) continuar a ser o gerente da Requerida (sendo, por isso, a única pessoa que, à data, podia representar a sociedade) uma vez que, apesar de ter terminado (em 2001) o período para o qual havia sido eleito, continuava a exercer essas funções em virtude de não terem sido designados novos gerentes e uma vez que, por força do disposto no artigo 381º, nº 3, do CPC, a deliberação que havia procedido à eleição/designação de gerentes – cuja suspensão de execução era peticionada nos autos – não podia ser executada.

Pensamos, porém, que não será bem assim.

Vejamos.

Independentemente da solução a dar à questão de saber se a gerência de uma sociedade por quotas se mantém (ou não) em funções enquanto não forem designados novos gerentes (questão que se prende com a eventual aplicabilidade às sociedades por quotas do regime que a esse propósito está previsto no artigo 391º, nº 4, do CSC para as sociedades anónimas), temos como certo que, à data em que recebeu a carta para citação, A (…) não era gerente da sociedade. E não era gerente da sociedade porque, ainda que o tivesse continuado a ser após o termo do mandato para o qual havia sido designado (2001) – conforme considerou a decisão recorrida por aplicação do disposto no citado artigo 391º, nº4, do CSC –, a verdade é que nessa data (12/12/2018) já haviam sido nomeados novos gerentes (por via da deliberação tomada na assembleia geral de 22/11/2018) e essa designação já havia sido inscrita no registo (o que sucedeu em 04/12/2018).

E não se argumente – como faz a decisão recorrida – que essa deliberação não podia ser executada por força do disposto no artigo 381º, nº 3, do CPC e que, como tal, os gerentes por ela nomeados não podiam assumir a representação da sociedade, não podendo a sociedade ser citada na pessoa desses gerentes.

Com efeito, a ilicitude de execução da deliberação impugnada que aí se encontra prevista apenas ocorre a partir da citação e, como tal, não releva para efeitos de efectivação dessa mesma citação. À data da citação, os representantes legais da sociedade requerida eram os gerentes que haviam sido nomeados pela deliberação de 22/11/2018 (cuja suspensão de execução era peticionada no presente procedimento cautelar), sendo certo que esse facto já estava inscrito no registo e, portanto, era na pessoa desses representantes que a sociedade teria que ser citada, uma vez que, nesse momento, ainda não vigorava a ilicitude de execução da deliberação que decorre do disposto no citado artigo 381º, nº 3.

Refira-se, aliás, que nem sequer é líquido e incontroverso que a ilicitude de execução da deliberação resultante da referida norma impedisse os aludidos gerentes de assumirem a representação da sociedade e determinasse que essa representação fosse assegurada pelas pessoas que exerciam anteriormente as funções de gerência. Com efeito, o exacto sentido e alcance da aludida disposição legal tem sido objecto de controvérsia na doutrina e na jurisprudência onde se debatem duas posições. De acordo com uma dessas posições, a citação teria, ainda que provisoriamente, os mesmos efeitos da suspensão da deliberação, operando, portanto, uma verdadeira antecipação dos efeitos da suspensão que se pretende ver decretada, efeitos que seriam ou não consolidados conforme a providência viesse ou não a ser decretada[1]; de acordo com a outra posição, os efeitos decorrentes da citação não coincidem com os efeitos que resultam da efectiva suspensão da deliberação e relevam, sobretudo, ao nível da responsabilidade civil dos gerentes ou administradores que executem a deliberação. Assim, se há quem entenda que os actos praticados após a citação em execução da deliberação são nulos – cfr. Carlos Olavo[2] e o Acórdão da Relação do Porto de 10/09/2018[3] - há também quem considere que os efeitos da ilicitude da execução da deliberação entre a citação e a decisão do procedimento cautelar relevam, sobretudo, ao nível da responsabilidade civil dos gerentes ou administradores que executem a deliberação e não afectam a validade ou eficácia do acto (ilícito) de cumprimento ou execução da deliberação. Neste sentido se pronuncia Coutinho de Abreu[4], dizendo que os efeitos resultantes da citação não podem equivaler à procedência do procedimento (até porque – diz – a citação não tem na sua base apreciação consistente sobre a realidade dos factos articulados pelo requerente da providência e, nessa medida, a equivalência daqueles efeitos potenciaria a utilização abusiva do procedimento cautelar) e sustentando que a execução ilícita da deliberação após a citação apenas determina responsabilidade civil do gerente ou administrador, dizendo, a propósito dos efeitos da citação, o seguinte: “Não é lícito à sociedade executar a deliberação impugnada – mas esta não se torna, por causa da citação e da ilicitude da execução, ineficaz ou de eficácia suspensa (nem inválida) (….) Por exemplo, (a) os administradores eleitos não perdem legitimidade para exercer os cargos, e têm poderes de representação – tanto mais quanto é certo que a citação não está sujeita a registo; todavia, se exercerem actividade de administração, porque essa actividade executória da deliberação impugnada é considerada ilícita, teremos aí um pressuposto de eventual responsabilidade civil para com o requerente da providência e/ou a sociedade requerida….”. Em sentido próximo, pronunciam-se José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[5], dizendo que aquilo que se pretende com a citada disposição legal é responsabilizar a sociedade ou associação pelas consequências da execução da deliberação, de tal modo que a decisão de procedência cautelar, operando um efeito retroactivo, sujeita a responsabilidade civil, desde a citação, a sociedade e o gerente ou administrador que execute a deliberação impugnada.

Não iremos, por ora, fazer uma análise exaustiva e mais aprofundada dessa questão porque ela não releva directamente para a situação que estamos agora a analisar, uma vez que a ilicitude da execução da deliberação aí prevista apenas opera a partir da citação e, nessa medida, não relevará para efeitos de realização da citação, relevando apenas para o efeito de saber a quem caberá – após a citação – o poder de representar a sociedade no âmbito dos presentes autos.  

Sempre diremos, no entanto e a propósito dessa questão, que, independentemente da solução que lhe seja dada, não nos parece razoável admitir que a ilicitude de execução da deliberação impugnada decorrente do disposto no citado artigo 381º, nº 3, possa ser levada ao ponto de impedir que os gerentes eleitos pela deliberação impugnada possam, após a citação, continuar a assegurar a representação da sociedade no âmbito do procedimento cautelar. Na verdade, à data da citação (momento em que, conforme dissemos, ainda não existia qualquer obstáculo à execução da deliberação), esses gerentes eram, indiscutivelmente, os legais representantes da sociedade e, portanto, era na sua pessoa que a sociedade deveria ser citada e não nos parece ser de admitir que possam receber a citação em representação da sociedade e não possam depois dar continuidade a esse acto assegurando no processo a sua representação e a sua defesa. Aliás, a entender-se que os gerentes designados na deliberação impugnada não poderiam, após a citação, assegurar a representação da sociedade nos presentes autos e que, como tal, essa representação caberia ao anterior gerente (conforme se considerou na decisão recorrida), tal significaria que, na maioria dos casos, a representação da sociedade ficaria entregue a quem nenhum interesse tem na subsistência da deliberação. Nessas circunstâncias, o representante da sociedade não teria interesse em trazer aos autos os factos e elementos probatórios que pudessem ser relevantes para sustentar a validade da deliberação e o litígio desenvolver-se-ia entre sujeitos com interesses iguais ou próximos sem que o verdadeiro conflito de interesses (o interesse na suspensão e posterior anulação da deliberação e o interesse na manutenção dessa deliberação) tivesse qualquer expressão nos autos.

De qualquer forma – reafirmamos –, essa questão apenas se colocará após a realização da citação; tal questão não releva para efeitos de realização ou efectivação da própria citação que, conforme dissemos, teria que ser efectuada na pessoa de um dos gerentes que haviam sido nomeados pela deliberação de 22/11/2018 uma vez que, à data e estando esse facto inscrito no registo, eram eles os representantes legais da sociedade requerida e ainda não vigorava a ilicitude de execução da deliberação que decorre do disposto no citado artigo 381º, nº 3.

Ora, a citação não foi efectuada na pessoa de nenhum desses gerentes e representantes legais da sociedade requerida e tão pouco foi efectuada – nos termos previstos no artigo 223º do CPC – na pessoa de qualquer empregado que se encontrasse na sede ou local onde funciona normalmente a sua administração. Na verdade, a carta de citação foi entregue e foi recepcionada por A (…) que, nesse momento, não era o legal representante legal da Requerida e tal entrega nem sequer foi efectuada na sede da sociedade mas sim num apartado.

Perante essas circunstâncias, temos como certo que não se verifica a situação prevista nas alíneas a) e b) do artigo 188º do CPC; o acto de citação não foi completamente omitido, uma vez que a carta de citação foi efectivamente enviada para a sede da Requerida nos termos previstos na lei e foi recepcionada e também não existiu qualquer erro de identidade do citado, uma vez que a carta foi efectivamente dirigida à Requerida.

É certo, por outro lado, que as situações previstas nas alíneas c) e d) da norma citada não têm qualquer relação com a situação dos autos.

Resta saber se a situação pode ser enquadrada na alínea e), onde se dispõe – conforme referimos – que há falta de citação quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável.

Essa previsão legal dirige-se aos casos em que, nos termos previstos na lei, a citação é efectuada em pessoa diversa do citando e encarregada de lhe transmitir o conteúdo do acto – artigos 228º, nºs 1 a 4 e 232º, nº 2, b) – ou mediante afixação de nota de citação nos termos previsto no artigo 232º, nº 4, situações que são equiparadas à citação pessoal, presumindo a lei, salvo demonstração em contrário, que a citação chegou ao conhecimento do destinatário (artigo 225º, nº 4 e 230º, nº 1). Sucede que essas normas reportam-se à citação de pessoas singulares e, portanto, só serão aplicáveis à citação de pessoas colectivas quando esta citação é dirigida directamente ao respectivo representante legal (pessoa singular). De facto, a citação dirigida à pessoa colectiva é efectuada, nos termos do artigo 246º, por carta registada com aviso de recepção endereçada para a respectiva sede que deverá ser entregue ao seu representante legal ou a qualquer empregado que se aí se encontre (artigos 223º e 246º), não prevendo a lei a possibilidade de essa carta ser entregue a terceiro (pessoa que não seja gerente ou funcionário) que se comprometa a proceder à sua entrega. Daí que a situação prevista na alínea e) do citado artigo 188º não seja, em princípio, aplicável à citação da pessoa colectiva quando efectuada via postal mediante carta endereçada para a respectiva sede.

Sucede, no entanto, que, apesar de esse procedimento não se adequar às normas legais, a carta de citação que foi endereçada à sociedade requerida e enviada para a sua sede não foi entregue ao seu legal representante nem a qualquer funcionário que aí se encontrasse e tão pouco foi entregue a alguém que se tivesse apresentado com uma dessas qualidades. Com efeito, a carta foi entregue, conforme dissemos, a A (…) e, conforme resulta do aviso de recepção, este não a recebeu na qualidade de representante ou funcionário da Requerida mas sim na qualidade de terceiro que, após a devida advertência, se comprometeu a entregá-la prontamente ao destinatário.

Nessas circunstâncias, resultando provado que essa carta não foi entregue a nenhuma das pessoas que, nessa data, tinha a qualidade de legal representante da Requerida, pensamos ser de concluir pela verificação da situação prevista na alínea e) do citado artigo 188º e, consequentemente, pela falta de citação da Requerida.

Não ignoramos que situações parecidas com a dos autos já foram abordadas na doutrina e na jurisprudência como correspondendo a uma situação de irregularidade de representação e não propriamente de falta de citação.

A esse propósito e aludindo a uma situação em que, no âmbito de um processo para consignação em depósito de rendas, a citação de uma pessoa colectiva havia sido efectuada em pessoa que não tinha poderes para a representar porque era apenas um mandatário constituído para o efeito de arrendar o prédio e receber as respectivas rendas, considerou Alberto dos Reis que não estava em causa uma falta de citação mas sim um problema de representação (a pessoa colectiva não estava devidamente representada no processo)[6].

Também Antunes Varela[7], aludindo a uma situação em que, no âmbito de um procedimento cautelar para suspensão da deliberação social que havia procedido à eleição de novos dirigentes da sociedade, a citação da sociedade não havia sido efectuada na pessoa dos novos administradores mas sim na pessoa do administrador anterior (que, à data, não era, portanto, legal representante da Ré nem seu empregado), considerou que não havia falta de citação mas sim uma representação irregular; a sociedade havia sido citada, sucedendo apenas que tal citação havia sido efectuada em pessoa que carecia de poderes para a representar.

Idêntica solução foi adoptada pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 02/03/2000[8], em cujo sumário se escreveu o seguinte: “I - Não constitui falta de citação, nem nulidade, nos termos dos arts. 195º e 198º do CPC (redacção resultante do DL nº 224/85, de 9 de Julho), a situação resultante de citação por carta registada com aviso de recepção de uma sociedade, verificando-se mais tarde que o aviso devolvido foi assinado por pessoa que afinal não era legal representante da sociedade, mas mero procurador para a prática de determinados actos comerciais (…) II – Constitui irregularidade de representação, a sanar nos termos dos arts. 23º e 24º do CPC, a situação em que alguém se assume como representante da uma sociedade, independentemente do seu convencimento pessoal quanto à efectiva regularidade ou irregularidade da sua posição face à sociedade”.

Pensamos, contudo, que a situação dos autos não é absolutamente idêntica às situações a que aludem os citados autores e acórdão. Na verdade, ao contrário do que acontece nesses casos (onde, ao que tudo indica, a carta foi entregue a determinada pessoa no pressuposto de que era a legal representante da sociedade), no caso que analisamos a carta não foi entregue a A (…) no pressuposto de que ele era o legal representante da sociedade e não foi por ele recebida nessa qualidade. Com efeito e conforme resulta da anotação aposta no aviso de recepção, a carta foi entregue a J (…) – e por ele recepcionada – na qualidade de terceiro que se prontificou a entregá-la ao destinatário, sendo certo, portanto, que J (…) não se arrogou nesse momento (nem posteriormente, uma vez que nenhum acto praticou no processo) representante da Ré e tão pouco foi considerado nesses termos pela pessoa (funcionário dos CTT) que lhe entregou a carta. O referido J (…) não assinou o aviso de recepção na qualidade de destinatário (como aconteceria se a carta lhe fosse entregue e por ele fosse recepcionada na qualidade de legal representante da sociedade), mas sim na qualidade de terceiro que se prontificou a entregar a carta ao destinatário.

Pensamos, na verdade, que, para que se possa falar em irregularidade de representação será necessário que a citação seja efectuada em determinada pessoa no pressuposto (errado) de que ela é a representante da pessoa colectiva que se pretende citar, ou seja, pretende-se citar a pessoa colectiva na pessoa do seu representante, constando-se depois que, afinal, a pessoa em questão não tinha poderes de representação. Situação diferente é aquela onde a citação é entregue, de forma consciente e deliberada, a terceiro que não é e não se assume como representante da pessoa a citar nem como tal é considerado por quem lhe entrega a citação. Na primeira situação, quem procedeu à citação pretendeu concretizá-la na pessoa do representante do citando; na segunda situação, não se pretendeu fazer a citação na pessoa do representante do citando mas sim na pessoa de um terceiro que não era e não se assumiu – nem foi considerado – como representante da pessoa a citar.

Conforme referimos, é a segunda situação que se verifica nos autos, uma vez que a carta não foi entregue a J (…) no pressuposto de que ele o representante da citanda; a carta foi-lhe entregue – e foi por ele recepcionada – na qualidade de terceiro (como era efectivamente já que, nesse momento, não era legal representante da sociedade) que se prontificou a entregar a carta ao destinatário. Nessas circunstâncias e resultando provado que J (…) não cumpriu o compromisso que havia assumido e não entregou a carta aos legais representantes da sociedade que, como tal e por razões que não lhe podem ser imputadas, não chegaram a ter conhecimento dela (só tomaram conhecimento desse acto em 17/01/2019), pensamos estar configurada a situação prevista na alínea e) do artigo 188º do CPC e, consequentemente, a falta de citação da sociedade requerida.

Impõe-se, portanto, em conformidade com o disposto no artigo 187º, al. a), declarar a nulidade de tudo o que se processou depois da petição inicial (salvando-se apenas esta) com a consequente repetição da citação da sociedade requerida – a efectuar, nos termos legais, na pessoa de um dos seus gerentes que foi designado na deliberação impugnada ou na pessoa de qualquer empregado que se encontre na respectiva sede – com vista à dedução de oposição no presente procedimento cautelar.

  Em face do exposto, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso, resultando ainda evidente – em face dessas considerações – que, ao contrário do que sustenta a Apelada, não há fundamento para considerar que o gerente da Apelante litigou de má-fé por ter feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – No âmbito de um procedimento cautelar de suspensão da deliberação social que procedeu à designação dos gerentes e estando já inscrita no registo essa designação, é na pessoa desses gerentes – ou na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração (cfr. artigo 223º do CPC) – que a sociedade deve ser citada para deduzir oposição, a tal não obstando o disposto no artigo 381º, nº 3, do CPC, quando estabelece que, a partir da citação, não é lícita a execução da deliberação impugnada.

II – Não se considera citada a sociedade requerida – ocorrendo, por isso, falta de citação – se a carta que lhe foi dirigida com essa finalidade não foi entregue e recepcionada por nenhum dos aludidos gerentes – que eram, à data, os seus representantes legais – e nunca chegou ao seu conhecimento, tendo sido entregue, fora da respectiva sede (num apartado), a pessoa que, apesar de já ter sido gerente da sociedade, recepcionou a carta na qualidade de terceiro com o compromisso de a entregar à destinatária sem que, apesar disso, tivesse procedido à entrega dessa carta aos actuais gerentes da sociedade.


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VI.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, revogando-se a decisão recorrida, julga-se verificada a falta de citação da Requerida, declarando-se, em conformidade com o disposto no artigo 187º, al. a), do CPC, a nulidade de tudo o que se processou depois da petição inicial (salvando-se apenas esta) com a consequente repetição da citação da sociedade requerida – a efectuar, nos termos legais, na pessoa de um dos seus gerentes que foi designado na deliberação impugnada ou na pessoa de qualquer empregado que se encontre na respectiva sede – com vista à dedução de oposição no presente procedimento cautelar.
Custas a cargo da Apelada.
Notifique.

Coimbra, 2019/11/26

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora)

Maria João Areias

Ferreira Lopes


[1] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 26/01/1993, Col. Jur., Ano XVIII, tomo 1,pág.26; Acórdão da Relação de Lisboa de 22/11/1990, Col. Jur., Ano XV, tomo 5, pág.125 e Acórdão do STJ de 11/10/1995, Col. Jur., Acórdãos do STJ, Ano III, tomo 3, pág. 60.
[2] Col. Jur., Ano XIII, tomo 3, pág. 30.
[3] Proferido no processo nº 5293/15.6T8VNG.P1, disponível em http://www.dgsi.

[4] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. I, 2ª edição, págs. 736 e 737.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, pág. 101.
[6] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, pág. 413.
[7] Col. Jur., Ano XII, tomo 5º, pág. 7 a 10.
[8] Col. Jur., Ano XXV, tomo II, pág. 75.