Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
306/11.3TBCDR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
PRÉDIO ENCRAVADO
ENCRAVE ABSOLUTO
ENCRAVE RELATIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - C.DAIRE - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.342 Nº1, 1550, 1553 CC
Sumário: 1.- O direito de exigir a constituição de uma servidão de passagem, nos termos do art.1550 CC, pressupõe uma situação de encrave absoluto ou relativo do prédio em benefício do qual se requer a constituição da servidão.

2. - O encrave é absoluto quando o prédio não tenha qualquer comunicação com a via pública.

3.- O encrave é relativo quando corresponde às situações em que o prédio poderia ter comunicação à via pública, mas apenas com excessivo incómodo ou dispêndio e às situações em que a comunicação do prédio com a via pública é insuficiente.

4.- O preenchimento deste conceito legal (comunicação insuficiente com a via pública) terá que ser aferido através da definição daquelas que são as necessidades normais do prédio face à afectação que, em dado momento, lhe está atribuída e à exploração de que está a ser objecto, pelo que a comunicação à via pública será insuficiente se o acesso de que dispõe não permite a normal utilização e exploração do prédio, tendo em conta a sua afectação e a concreta exploração que dele está a ser efectuada.

5. O dono do prédio encravado não tem a faculdade ou direito de escolher, como lhe aprouver, o local de constituição da servidão e os prédios que por ela devam ser afectados.

6. Tendo os autores demandado apenas os réus com vista à constituição de uma servidão a onerar os respectivos prédios, sem que tenham sido demandados quaisquer outros proprietários de prédios vizinhos – tinham os autores o ónus de alegar e provar que os prédios pertencentes aos réus eram os que sofriam menor prejuízo com a constituição da servidão, por se tratar de facto constitutivo do direito à constituição da concreta servidão que reclamam.

7.- Os autores – para ver satisfeita a sua pretensão – estavam obrigados a alegar e provar uma de duas coisas: ou alegavam e provavam que a constituição da servidão sobre o prédio dos réus era a única possibilidade viável para estabelecer o acesso à via pública (alegando e provando a eventual inexistência de outros prédios confinantes ou a eventual existência de obstáculos que impedissem o acesso através desses prédios) ou alegavam e provavam que, de entre as várias alternativas possíveis, eram esses os prédios que sofriam menor prejuízo (e tal implicava que alegassem quais eram as várias alternativas possíveis para estabelecer o acesso.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

J (…) (entretanto falecido e actualmente representado pelos seus herdeiros devidamente habilitados R (…) e mulher, S (…); C (…)e mulher M (…) e A (…) e marido L (…)) e mulher, M (…) residentes no (...) , requerendo a intervenção provocada – como seus associados – de M (…) e marido, M (…), vieram instaurar a presente acção contra:

1ª- M (…), residente na rua da (...) ;

2ª – H (…), residente na rua da (...) (entretanto falecida e actualmente representada pelos seus herdeiros devidamente habilitados M (…), M (…), S (…), M (…), E (…) e L (…) e

3ºs- N (…), e mulher, M (…), residentes na rua (...) .

Alegam, em resumo: que os Autores e os interessados cuja intervenção requerem são donos de um prédio rústico que adquiriram por usucapião, na proporção de 2/3 para os primeiros e 1/3 para os segundos; que a 1ª Ré, a 2ª Ré e os 3ºs Réus são donos (cada um deles) de um prédio rústico; que, apesar de não estar constituída qualquer servidão de passagem, os Autores e os interessados cuja intervenção requerem têm vindo a aceder ao seu prédio através dos aludidos prédios dos Réus, atravessando-os pelo lado sul, a pé, com carros de bois, tractor e outros veículos e com animais, o que tem acontecido por mero favor dos proprietários desses prédios; que, a partir de 22 de Setembro de 2010, a 1.ª R deixou de permitir essa passagem, razão pela qual os AA. e demais comproprietários do seu prédio deixaram de poder cultivar o seu prédio, por não poderem a ele aceder; que, para agricultar o prédio e dele retirar as suas utilidades, têm a faculdade de constituir uma servidão de passagem e o acesso à via pública mais fácil, que menos prejuízos e incómodos causa, é pelos prédios dos RR segundo o trajecto que descrevem.

Com estes fundamentos, pedem (tendo já em consideração a ampliação do pedido que, posteriormente, foi requerida e admitida):

a) Que se declare que os AA. e os interessados cuja intervenção requerem são donos e legítimos possuidores, na proporção de 2/3 para os primeiros e de 1/3 para os segundos, do prédio identificado no artigo 1.º desta petição inicial;

b) Que se declare que a 1.ª R, a 2.ª R e os 3.ºs RR. são donos, respectivamente, dos prédios identificados nos artigos 11.º, 12.º e 13.º desta petição inicial;

c) Que se declare que o prédio dos AA. encontra-se sem qualquer acesso à via pública que nele possibilite a entrada de carros de bois, tractores e outros veículos;

d) Que seja constituída a favor do prédio dos AA. e dos interessados cuja intervenção requerem uma servidão de passagem durante todos os dias de cada ano e a qualquer hora, que possibilite a entrada e saída dele, com carros de bois e a pé, tractores e outros veículos, sendo onerados os prédios dos RR. em conformidade com o alegados nos artigos 28.º a 34.º desta petição inicial, devendo o modo e o lugar da servidão fazer-se nessa conformidade ou por modo e lugar que o Tribunal considere menos inconvenientes para esses prédios;

e) Que os Réus sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade dos AA. e dos referidos interessados sobre o prédio identificado no artigo 1.º desta petição inicial;

f) Que os Réus sejam condenados a, logo que constituída a servidão de passagem, absterem-se de impedirem ou, por qualquer forma dificultarem, o exercício dessa servidão que onera os seus prédios, deixando livre e desocupado de pessoas e bens o espaço da passagem.

Na contestação que apresentaram, as Rés, M (…) e H (…), começam por invocar a ilegitimidade da 2ª Ré em virtude de o prédio cuja propriedade os Autores alegam pertencer-lhe fazer parte de herança indivisa aberta por óbito de A (…). No mais, alegam, em resumo: que a o prédio sito a sul dos prédios dos RR e a poente do prédio dos AA. (artigo rústico 22 (...) ) pertence aos próprios AA. e não a A (…), filha dos AA, uma vez que a doação realizada em 22/11/2011 é fictícia e simulada, tendo sido feita apenas para efeitos desta acção; que os AA. continuam a ter passagem para o seu prédio, senão de carro, pelo menos de pé e com animais, sendo manifesta a desnecessidade de passagem de pé e com animais pelo terreno das Rés; que, atendendo ao uso actual do prédio dos AA. (agrícola), a passagem não necessita de ter a largura de três metros – sendo suficiente até 1,80m – e não tem que ser diária; que os Réus são os verdadeiros proprietários do prédio inscrito na matriz sob o artigo 22 (...) por onde podem fazer a maior parte da passagem, sendo abusiva a pretensão de obter uma servidão de passagem por terreno de terceiros declarando ficticiamente ter dado a um filho um prédio por onde pode fazer essa passagem com os mesmos cómodos que os terrenos de terceiros lhes possibilitam.

Com estes fundamentos, pedem:

- Que sejam absolvidas da instância caso não seja sanada a sua ilegitimidade;

- Que, caso seja sanada a ilegitimidade Rés, seja declara nula, por simulada, a doação feita pelos AA. do seu prédio art. matricial rústico nº 22 (...) da referida freguesia de x (...) com o consequente cancelamento do respectivo registo e respectivas consequências ao nível desta acção;

- Que, caso assim não se entenda, seja declarado que a pretensão dos AA. traduz um exercício abusivo do direito potestativo de constituição de servidões de passagem em virtude da declarada doação, devendo a acção ser julgada improcedente;

- Caso assim não se entenda, a servidão a constituir não deverá ter largura superior a 1,80 m.

Os demais Réus não contestaram.

Os Autores replicaram e, em resposta à excepção de ilegitimidade, requereram a intervenção provocada da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A (…), representada pelos herdeiros H (…).M (…), M (…), S (…), M (…) E (…) e L (…).

Os incidentes de intervenção de terceiros foram deferidos e, consequentemente, foram admitidos a intervir nos autos:

- M (…) e M (…) como associados dos Autores;

2º - M (…), M (…), S (…), M (…), E (…) e L (…), como associados da 2ª Ré.

Tais intervenientes foram citados e apenas M (…)veio dizer nada ter a ver com o processo e não ter qualquer interesse no mesmo.

Foi proferido despacho saneador e foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu:

1) Reconhecer que os Autores e os Requeridos são donos e legítimos possuidores na proporção de 2/3 para os primeiros e de 1/3 para os segundos do prédio rústico, sito no (...) , a confrontar de Norte com (…), de Sul com (…), de Nascente com (…) e rego e de Poente com (…), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de x (...) sob o artigo 00 (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) com inscrição a favor dos Autores e Requeridos.

2) Reconhecer que a 1.ª Ré, a 2.ª Ré e os 3.º RR, são donos dos prédios identificados nos artigos 11, 12 e 13 da petição inicial.

3) Absolver os Réus, do demais peticionado”.

Mais decidiu que as custas seriam suportadas em partes iguais pelos Autores e pelos Réus.

Inconformados com essa decisão, os Autores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

A Ré, M (…), apresentou contra-alegações, requerendo a ampliação do objecto do recurso e formulando as seguintes conclusões:

(…)


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto no que toca aos pontos de facto que são impugnados, seja pelos Apelantes, seja pela Apelada em sede de ampliação do objecto do recurso;

• Saber se estão verificados os pressupostos necessários para a constituição de uma servidão de passagem em benefício do prédio dos Autores e a onerar o prédio dos Réus;

• Saber – caso seja necessário – se existiu má-fé e simulação na transmissão, por parte dos Autores, do direito de propriedade do prédio inscrito no artigo matricial 22 (...) e se, em função disso, existe abuso de direito na pretensão formulada pelos AA de constituição da servidão peticionada na p.i. (questão suscitada pela Apelada em ampliação do objecto do recurso);

• Saber de deve ser reformada a decisão no que toca a custas.


/////

III.

Matéria de facto

(…)

Em face do exposto, a matéria de facto provada é a seguinte:

1- Mostra-se registada a favor da Autora M (…)casada no regime da comunhão de adquiridos com o Autor J (…) na proporção de 2/3 e a favor da requerida M (…), casada no regime comunhão de adquiridos com requerido M (…), na proporção de 1/3 a aquisição da propriedade – por legado instituído por escritura outorgada a 12-03-1997 do prédio rústico, composto de cultura de sequeiro com videiras, situado em x (...) – (...) , a confrontar de Norte com (…), de Sul com (…), de nascente (…) e rego e de Poente com (…), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de x (...) sob o artigo 00 (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 11 (...) /20010725, com a área de 420m2 e valor patrimonial determinado no ano de 1989 de 5.92 euros.

2- A Autora e os requeridos referidos em 1 estão no uso e fruição do referido prédio cultivando-o e colhendo os seus frutos, neles semeando milho, feijão, batatas e outros produtos agrícolas e dele retirando as demais utilidades.

3- Está inscrito na matriz predial rústica de (...) sob o artigo 55 (...) da freguesia de x (...) , a favor da 1.ª Ré, M (…), o prédio sito em x (...) (...) , descrito como cultura de sequeiro, com as confrontações de Norte com (…) e outro, de Sul com (…), de Nascente com (…)e de Poente com caminho, com a área de 620m2 e valor patrimonial determinado no ano de 1989 de 11.49 euros.

4- Está inscrito na matriz predial rústica de (...) , sob o artigo 44 (...) da freguesia de x (...) , a favor de “A (…)- Cabeça de Casal da Herança de” o prédio sito em x (...) – (...) , descrito como cultura de sequeiro, com as confrontações de Norte com (…), do Sul com (…), de nascente com (...) e de Poente com (…), com a área de 120m2 e valor patrimonial determinado no ano de 1989 de 1.25 euros.

5- Está inscrito na matriz predial rústica de (...) , sob o artigo 66 (...) da freguesia de x (...) , a favor dos 3ºs RR, N (…) e mulher, M (…)o prédio sito em x (...) - (...) , descrito como cultura de sequeiro, com as confrontações de Norte com (…), de Sul com (…), de Nascente com (...) e de Poente, com (…)com a área de 80m2 e valor patrimonial determinado no ano de 1989 de 0.80 euros.

6- A primeira Ré por si e seus antecessores, há mais de 40 anos, ininterruptamente, cultiva e colhe frutos, semeia milho, feijão, batatas e outros produtos agrícolas no prédio identificado em 3, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de sobre ele exercer um direito próprio como coisa exclusiva sua.

7- A segunda Ré, por si e seus antecessores, há mais de 40 anos ininterruptamente, cultiva e colhe frutos, semeia milho, feijão, batatas e outros produtos agrícolas no prédio identificado em 4, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de sobre ele exercer um direito em nome da herança ainda indivisa aberta por óbito de A (…), convicta que tal prédio é daquela integrante.

8- Os terceiros Réus por si e seus antecessores, há mais de 40 anos, ininterruptamente, cultivam e colhem frutos, semeiam milho, feijão, batatas e outros produtos agrícolas no prédio identificado em 5, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de sobre ele exercerem um direito próprio como coisa exclusiva sua.

9- Por documento escrito outorgado na Conservatória Registo Predial de (...) a 22-11-2011, os Autores J (…) e M (…) declararam doar à sua filha A (…), que aceitou, o prédio rustico sito em (...) , x (...) , composto de cultura e sequeiro com a área de 620m2 e o valor patrimonial de 9.98 euros inscrito na matriz rustica sob o n.º 22 (...) e descrito na CRP de (...) , sob o n.º 33 (...) /20070517.

10- O prédio identificado em 1 confronta do poente com N (…)

11- O prédio identificado em 3 confronta actualmente de Norte com (…) e outro e ainda com caminho público, de Nascente com herdeiros de (…) e de Poente com caminho Público.

12- Na sequência do acordo referido 9, o prédio identificado em 3 passou a confrontar de Sul com (…) e caminho.

13- O prédio identificado em 4 confronta actualmente de Norte com (…), de Nascente com (…) e de Poente com a 1.ª Ré.

14- Na sequência do acordo referido em 9 o prédio identificado em 4 passou a confrontar de Sul com (…).

15- O prédio identificado em 5 confronta actualmente de Norte com (…)de Nascente com a Autora e (…) e do Poente com herdeiros de (…)

16- Na sequência do acordo referido em 9 o prédio identificado em 5 passou a confrontar de Sul com (…)

17- O prédio identificado em 1 não tem qualquer acesso à via pública que nele possibilite a entrada de carros de bois e tractores para o cultivarem.

18- Os Autores e M (…) e M (…) acederam até 22 de Setembro de 2010 ao prédio identificado em 1 através dos prédios identificados em 3, 4 e 5 por mero favor dos RR e seus antepossuidores, atravessando-os pelo lado Sul de cada um deles, a pé, com carros de bois e tractores, para o cultivarem e colherem os seus frutos.

19- O prédio identificado em 1 tem 432.98m2 de área e confronta de poente com o prédio identificado em 9.

20- A partir de 22 de Setembro de 2010 a 1.ª Ré deixou de permitir que os AA e M (…) e M (…) acedessem ao prédio identificado em 1 por se terem desavindo.

21- A partir de 22 de Setembro de 2010, os AA e M (…) e M (…) deixaram de poder cultivar o prédio identificado em 1 por não poderem a ele aceder.

22- O acesso mais curto e de menor desnível da via pública ao prédio identificado em 1 tem o seu início no prédio identificado em 3, do lado norte, flectindo, neste prédio, no sentido Sul e por onde prossegue na direcção nascente, atingindo, de seguida, primeiro, o prédio identificado em 4 e, depois, o prédio identificado em 5, prosseguindo também nestes últimos pelo lado Sul, atingindo finalmente o prédio identificado em 1.

23- No prédio identificado em 3 esse acesso importa uma extensão de 60.23 metros e em toda essa extensão uma largura de três metros.

24- No prédio identificado em 4 esse acesso importa uma extensão de 5.71 metros e, em toda essa extensão a largura de 3 metros.

25- No prédio identificado em 5 o acesso importa uma extensão de 4.48 metros e em toda essa extensão a mesma largura de 3 metros.

26. É possível estabelecer o acesso do prédio dos Autores à via pública através dos prédios referidos nos pontos 3 e 9, acesso que teria início no prédio referido em 3 e que se desenvolveria nesse prédio numa extensão de 29,75m, prosseguindo depois pelo prédio referido em 9 numa extensão de 55,65m até atingir o prédio dos Autores.

27. Dado o desnível existente entre o prédio dos Autores e o prédio referido em 9, o estabelecimento do acesso a que se reporta o ponto anterior, para permitir a passagem de carros, implica a necessidade de realização de trabalhos para construção de uma rampa cujo custo será de 245,00€.

28- Para cultivarem e apanharem os frutos do prédio identificado em 1 necessitam os AA e os Requeridos M (…) e M (…)de lhe aceder durante todos os dias de cada ano.

29- A filha dos AA esta emigrada na Suíça.


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E julgaram-se não provados os seguintes factos:

1. A 1.ª Ré já propôs em data anterior a 22 de Setembro de 2010, ceder gratuitamente aos Autores parte do terreno referido em 3 em área necessária para a construção de um acesso directo ao prédio identificado em 1 e 9 à via pública.

2. Proposta que os AA não aceitaram.

3. Com o acordo referido em 9 visaram somente os AA transferir para terceiros a propriedade do terreno confinante como descrito em 1.


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IV.

Não obstante a formulação de outros pedidos laterais ou acessórios, o que os Autores pretendem, por via da presente acção, é a constituição de uma servidão de passagem (de pé e carro) a favor do seu prédio e a onerar o prédio dos Réus.

Tal pretensão foi julgada improcedente pela sentença recorrida por se ter entendido que, não obstante ter ficado provado que o prédio dos Autores não tem acesso à via pública, nenhuma factualidade se apurou em função da qual seja possível concluir que os prédios dos Réus são, de todos os prédios que comunicam com a via pública, os que menos prejuízos sofrem com a constituição da servidão de passagem.

Os Apelantes têm, porém, diverso entendimento, uma vez que, depois de impugnar a decisão proferida sobre determinados pontos de facto, sustentam que está provado que é pelos prédios dos RR., e pelo lugar indicado na petição inicial, que deve ser constituída a servidão de passagem em benefício do prédio dos AA, em conformidade com o disposto no artigo 1553º do C. Civil. Mais sustentam os Apelantes que, ainda que se entendesse que a servidão deveria passar noutro local, sempre a acção deveria ser julgada procedente, uma vez que o pedido foi ampliado com vista a abranger qualquer outro local que se entendesse ser menos inconveniente para o prédio dos Réus.

A verdade, porém, é que a pretensão dos Apelantes não está em condições de proceder.

Vejamos porquê.

Dispõe o art. 1550º, nº 1, do Código Civil[1] que: “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos”. E, dispõe o nº 2, “de igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio”.

A faculdade de exigir a constituição de uma servidão de passagem pressupõe, pois, uma situação de encrave (seja ele absoluto ou relativo) do prédio em benefício do qual se requer a constituição da servidão, até porque, de outra forma, não faria sentido impor ao proprietário vizinho o encargo inerente a uma servidão; tal encargo só pode e deve ser imposto para fazer face a uma necessidade real de determinado prédio que, por força do seu encrave, não pode ser fruído e explorado normalmente sem que lhe seja permitido o acesso através de um prédio vizinho.

 Um prédio está encravado – como resulta do disposto no nº 1 do art. 1550º - quando não tenha qualquer comunicação com a via pública, situação que é definida pela doutrina como correspondendo ao encrave absoluto[2]. Mas, a esse conceito de encrave absoluto acresce ainda aquilo que se designa por encrave relativo[3] e que, como resulta do disposto no citado art. 1550º, também dá ao respectivo proprietário a faculdade de exigir a constituição de uma servidão. Corresponde este encrave às situações em que o prédio poderia ter comunicação à via pública, mas apenas com excessivo incómodo ou dispêndio e às situações em que a comunicação do prédio com a via pública é insuficiente. O preenchimento deste conceito legal (comunicação insuficiente com a via pública) terá que ser aferido através da definição daquelas que são as necessidades normais do prédio face à afectação que, em dado momento, lhe está atribuída e à exploração de que está a ser objecto, pelo que a comunicação à via pública será insuficiente se o acesso de que dispõe não permite a normal utilização e exploração do prédio, tendo em conta a sua afectação e a concreta exploração que dele está a ser efectuada.

Ora, perante a matéria de facto provada, parece não haver dúvidas relativamente à situação de encrave – pelo menos relativo – em que se encontra o prédio dos Autores, uma vez que não dispõe de qualquer acesso que permita a entrada de carros de bois e tractores, acesso que é necessário para cultivar o prédio e para prover à sua normal exploração.

É certo, portanto, que os Autores têm o direito – à luz do disposto no artigo 1550º, nº 1, do Código Civil – de exigir a constituição de uma servidão de passagem sobre os prédios vizinhos.

É certo, no entanto, que o dono do prédio encravado não tem a faculdade ou direito de escolher, como lhe aprouver, o local de constituição da servidão e os prédios que por ela devam ser afectados; de acordo com o disposto no artigo 1553º, a servidão deve ser constituída através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados.

Nestas circunstâncias, e tendo optado por demandar apenas os Réus com vista à constituição de uma servidão a onerar os respectivos prédios – sem que tenham sido demandados quaisquer outros proprietários de prédios vizinhos – os Autores tinham o ónus de alegar e provar que esses prédios (dos Réus) eram os que sofriam menor prejuízo com a constituição da servidão, uma vez que esse era um facto constitutivo do direito à constituição da concreta servidão que vinham reclamar. E, quando dizemos que os Autores tinham que alegar e provar que eram esses os prédios que sofriam menor prejuízo, o que queremos dizer – naturalmente – é que os Autores tinham o ónus de alegar e provar os factos concretos com base nos quais se pudesse retirar a aludida conclusão que está contida e reflectida na previsão legal.

Estava em causa, portanto, uma causa de pedir complexa que envolvia a alegação de um conjunto de factos. Na verdade, os Autores – para ver satisfeita a sua pretensão – estavam obrigados a alegar e provar uma de duas coisas: ou alegavam e provavam que a constituição da servidão sobre o prédio dos Réus era a única possibilidade viável para estabelecer o acesso à via pública (alegando e provando a eventual inexistência de outros prédios confinantes ou a eventual existência de obstáculos que impedissem o acesso através desses prédios) ou alegavam e provavam que, de entre as várias alternativas possíveis, eram esses os prédios que sofriam menor prejuízo (e tal implicava que alegassem quais eram as várias alternativas possíveis para estabelecer o acesso; quais os prédios que seriam afectados em cada uma delas; qual a área dos prédios que seria afectada em cada uma daquelas possibilidades; quais os concretos prejuízos e incómodos que seriam sofridos por cada um desses prédios em cada uma daquelas possibilidades com a consequente alegação de factos relacionados com as características e utilização desses prédios e outros factos relevantes para o apuramento do prejuízo decorrente da implantação da servidão)[4].

Não obstante a complexidade da causa de pedir que estava subjacente à pretensão formulada (que, conforme referimos, envolvia um conjunto de factos), os Autores limitaram-se a alegar que “o acesso à via pública mais fácil, que menos prejuízo causa, e bem assim menos incómodos, é pelos prédios dos RR….”. Ou seja, os Autores limitaram a sua alegação a um juízo conclusivo, genérico e abstracto, sem qualquer concretização e, consequentemente, sem qualquer relevância e sem qualquer aptidão para fundamentar a constituição da concreta servidão que vinham solicitar.

Os Autores não alegaram, desde logo, um qualquer facto com base no qual se pudesse concluir que a constituição da servidão sobre o prédio dos Réus era a única possibilidade viável para estabelecer o acesso à via pública, sendo certo que nada alegaram a propósito da existência (ou não) de outros prédios confinantes e a propósito da existência (ou não) de eventuais obstáculos físicos à implementação de um acesso em qualquer outro prédio vizinho. Provou-se, no entanto, que existirá, pelo menos, uma outra possibilidade, já que, conforme resulta da matéria de facto provada, o acesso pode ser estabelecido através do prédio referido no ponto 3 (pertencente à 1ª Ré) e através do prédio referido em 9 (prédio que pertencia aos Autores e que, actualmente, pertence à filha por força de doação que lhe efectuaram).

E sabendo-se que existe, pelo menos, uma outra alternativa ou possibilidade, a verdade é que não resultaram provados factos bastantes para concluir se a servidão causa mais prejuízo aos Réus, caso passe pelos três prédios de que são proprietários, conforme pretendem os Autores, ou se causaria mais prejuízo ao prédio da 1ª Ré e ao prédio da filha dos Autores, caso passasse por estes prédios. Não existem, portanto, quaisquer factos com base nos quais se possa concluir que são os prédios dos Réus aqueles que sofrem menor prejuízo e que, como tal, devem ser onerados com a servidão à luz do critério estabelecido pelo artigo 1553, importando notar que os Autores nada alegaram a esse propósito.

É certo que – conforme resulta da matéria de facto – o trajecto mais curto – e, portanto, aquele que ocupa uma área menor – é aquele que passa pelos prédios dos Réus e é invocado pelos Autores; este acesso tem a extensão total de 70,42m (60.23m no prédio identificado em 3., 5.71m no prédio identificado em 4. e 4.48m no prédio identificado em 5.) e o outro acesso a que nos reportámos tem a extensão total de 85,40m (29,75m no prédio referido em 3. e 55,65m no prédio referido em 9.).

Isso não basta, porém, para concluir que o 1º acesso (reclamado pelos Autores) cause menos prejuízos aos prédios afectados do que aqueles que seriam sofridos pelos prédios afectados com o 2º acesso, já que, como nos parece evidente, a mera circunstância de estar em causa um trajecto mais curto não equivale a dizer que é esse o que causa menor prejuízo, ainda mais quando a diferença se resume a uns escassos 15 metros. Na verdade, o prejuízo resultante de uma servidão de passagem depende de muitos factores, onde se incluem, não apenas a área ocupada, mas também a área global do prédio a onerar e o tipo de utilização/exploração a que está afecto. Com efeito, ainda que a área da servidão seja idêntica, o prejuízo que dela resulta para um prédio de grande dimensão não é idêntico ao prejuízo que dela resulta para um prédio pequeno cuja exploração fique inviabilizada pelo facto de estar ocupado, na quase totalidade, com a servidão; da mesma forma, o prejuízo resultante da servidão não é idêntico para um prédio com aptidão construtiva, para um prédio com aptidão agrícola ou para um prédio com aptidão florestal ou de mato. Será necessário, portanto, ponderar todos esses factores para concluir qual é o prédio – ou prédios – que sofrerá maior prejuízo com a implantação da servidão, podendo suceder, naturalmente, que um trajecto curto de servidão cause maior prejuízo a determinado prédio relativamente ao prejuízo que será sofrido por outro prédio ainda que o trajecto da servidão seja bem mais extenso.

Ora, nestas circunstâncias, pensamos ser evidente que nada resultou provado que nos permita concluir qual o concreto prejuízo que irão sofrer os prédios dos Réus com a implantação da servidão pretendida pelos Autores e qual o concreto prejuízo que sofreriam os prédios referidos em 3. e 9. caso a servidão fosse aí implantada nos termos referidos no ponto 26. e sem esses factos não será possível, naturalmente, formular o juízo comparativo que seria necessário para concluir quais eram os prédios que sofreriam menor prejuízo. Ora – reafirmamos – os Autores tinham o ónus de alegar e provar esses factos que eram constitutivos do direito que vinham invocar, sendo certo que nem sequer os alegaram.

Não desconhecemos que, como resulta da matéria de facto, o acesso mais fácil e menos oneroso será aquele que é invocado pelos Autores/Apelantes, uma vez que o acesso através dos prédios referidos em 3. e 9. implicará a necessidade de realização de obras, dado o desnível existentes entre os prédios. Mas o estabelecimento desse acesso não é, em todo o caso, excessivamente oneroso, uma vez que apenas implica a necessidade de construção de uma rampa cujo custo será de 245,00€ e, como tal, essa circunstância não teria idoneidade para impedir a constituição da servidão através desse prédio, caso se concluísse que era esse prédio que sofreria o menor prejuízo no confronto com o prejuízo sofrido pelos outros prédios vizinhos que viessem a ser afectados pela servidão.

Além do mais, no processo de apuramento dos prédios a afectar com a servidão não poderia ser ignorada a questão – levantada pela Ré/Apelada – de o prédio referido em 9. ter sido doado pelos Autores à sua filha poucos dias antes da propositura da acção.

Com efeito, na nossa perspectiva, se os Autores fossem proprietários desse prédio – através do qual, como referimos, poderia ser efectuado a maior parte do acesso à via pública em condições que, como também referimos, não seriam excessivamente onerosas –, não haveria justificação para onerar prédios vizinhos (ressalvando a oneração do prédio referido em 3 que seria sempre necessária, ainda que em trajecto mais curto). E a verdade é que, não obstante estarem privados de acesso (pelo menos de carro) ao seu prédio desde 22/09/2010, os Autores doaram à filha o referido imóvel em 22/11/2011 e, portanto, poucos dias antes de instaurarem a presente acção (o que fizeram em 05/12/2011).

De qualquer forma e independentemente desta questão, a verdade é que os Autores/Apelantes não provaram que a constituição da servidão através dos três prédios dos Réus seja a solução que causa menor prejuízo aos prédios afectados no confronto com o prejuízo que seria sofridos por outros prédios vizinhos – designadamente o prédio referido em 9 – caso viessem a ser onerados com tal servidão, importando reafirmar que os Autores nem sequer alegaram os factos concretos que, uma vez provados, permitiriam formular esse juízo comparativo.

Nessas circunstâncias, não estão reunidos os pressupostos de que dependia a pretensão dos Autores/Apelantes.

Refira-se, por último, que é totalmente irrelevante a circunstância – a que aludem os Apelantes nas suas alegações – de o pedido ter sido ampliado de forma a abranger a possibilidade de constituição da servidão em qualquer outro lugar que se considerasse menos inconveniente e é irrelevante porque – como é evidente – essa ampliação nunca permitiria constituir a servidão através de um prédio cujo proprietário não foi demandado, como é caso do prédio referido em 9 por onde também poderia ser constituída (embora – reafirma-se – não existam factos em função dos quais se possa concluir quais são os prédios que sofrem menor prejuízo com a servidão).

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a sentença recorrida e ficando prejudicada a apreciação das questões suscitadas pela Apelada em ampliação do objecto do recurso.


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A Apelada veio ainda requerer – nas suas contra-alegações e ao abrigo do disposto no artigo 616º do CPC – a reforma da sentença quanto a custas, dizendo que os Réus não deram causa à acção e que, como tal, não há fundamento para a sua condenação em custas e muito menos na proporção que foi fixada na sentença.

Apesar de a requerida reforma não ter sido apreciada em 1ª instância como impunha o artigo 617º, nº 1, do CPC, pensamos ser desnecessário mandar baixar o processo para esse efeito.

De acordo com o disposto no artigo 527º do CPC, as custas deverão ser suportadas pela parte que lhes houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, pela parte que tirou proveito do processo. E, conforme também se diz na citada disposição legal, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.

No caso sub judice, os Autores formularam uma série de pedidos, sendo certo, porém, que alguns deles são mero pressuposto ou antecedente lógico daquela que era a sua pretensão essencial e que correspondia à constituição de uma servidão de passagem a favor de um prédio de sua propriedade e a onerar prédios dos Réus.

Ora, aquela que era a pretensão essencial dos Autores foi julgada improcedente e apenas se julgaram procedentes os pedidos de reconhecimento dos direitos de propriedade de Autores e Réus sobre os prédios em causa.

Tais pedidos – os únicos que foram julgados procedentes – correspondem a meros antecedentes lógicos do pedido essencial; eram, portanto, pedidos laterais que apenas se destinavam a estabelecer a titularidade dos interesses relevantes na questão que correspondia o objecto do litígio: a constituição de uma servidão de passagem. Na verdade, esses direitos de propriedade não estavam em litígio e nem sequer foram contestados pelos Réus; no que toca a esses direitos, os Réus apenas alegaram que um dos prédios não pertencia exclusivamente à 2ª Ré mas sim a uma herança indivisa, facto que veio a ser julgado provado (cfr. ponto 7. da matéria de facto).

Nessas circunstâncias, entendemos que os Réus não deram causa à acção e às respectivas custas; a pretensão que correspondia ao verdadeiro objecto do litígio foi julgada improcedente; os pedidos que foram julgados procedentes eram meramente acessórios e laterais e não foram, no essencial, contestados e aquilo que foi contestado veio a ser julgado provado nos termos alegados pelos Réus.

Assim sendo, as custas devidas em 1ª instância deverão ser suportadas integralmente pelos Autores.

 E recai igualmente sobre os Autores/Apelantes a responsabilidade pelo pagamento das custas referentes ao presente recurso, uma vez que decaíram na pretensão que aqui vieram formular.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, com excepção do segmento que se reporta a custas que se revoga, determinando-se que as custas devidas em 1ª instância serão suportadas pelos Autores.
Custas do presente recurso a cargo dos Apelantes.
Notifique.

Coimbra, 19/12/2019

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr., designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol III, 2ª ed. Revista e Actualizada (Reimpressão), pág. 636.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. págs. 636 e 637.
[4] Cfr. Acórdãos do STJ de 02/12/2010 (proc. nº 5202/04.8TBLRA.C1.S1) e de 10/12/2013 (proc. nº 719/07.5TBBCL.G1.S1), disponíveis em http://www.dgsi.pt.