Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
145/13.7TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL TRIBUTÁRIO
EXECUÇÃO FISCAL
ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 211, 212 CRP, 4 ETAF, 256, 276 CPPT, 824, 1057 CC
Sumário: 1. Se no âmbito de execução fiscal movida contra o respectivo proprietário é vendido prédio locado a terceiro e depois o adquirente pede a entrega de tal imóvel livre de pessoas e bens, e chaves do mesmo, nos termos do art. 256º, nº 2, do CPPT (equivalente ao art. 901º do CPC), pedido deferido pelo serviço de finanças executor, o terceiro arrendatário pode reclamar para o tribunal tributário de 1ª instância pedindo a revogação desse despacho, com o fundamento de que o arrendamento não caducou com a venda judicial, não devendo ser feita a entrega do locado ao referido adquirente;

2. O tribunal tributário tem competência para decidir tal questão;

3. Se o arrendatário propuser acção declarativa contra o referido adquirente do imóvel locado para apreciação primacial de tal questão – vigência ou não caducidade do dito arrendamento – o tribunal judicial cível é incompetente em razão da matéria.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. P (…), residente em Miranda do Corvo, instaurou a presente acção declarativa contra Caixa Económica Montepio Geral, com sede em Lisboa, pedindo que esta:
a) Fosse condenada a reconhecer a validade, eficácia e vigência do contrato de arrendamento celebrado com A (…) em 1.1.2011;
b) Fosse condenada a indicar onde deverá o autor efectuar, doravante, o pagamento das rendas vincendas;
c) Fosse condenada a reconhecer a alteração contratual que, por acordo, determinou que as rendas se vençam no mês a que disserem respeito.
Alegou a celebração do dito arrendamento, que outorgou na qualidade de arrendatário, relativo a um prédio urbano, propriedade do Amílcar, que foi posteriormente vendido à ré, no âmbito de uma execução fiscal em que o referido A (…) figura como executado. Que perguntou à ré como deveria fazer o pagamento das rendas mas esta não respondeu, passando, então a depositá-las. A falta de resposta da ré equivale a não reconhecimento ou da validade ou da eficácia ou da vigência do dito arrendamento. A venda em processo fiscal não fez cessar o dito arrendamento.
Juntou docs. dos quais resulta que no âmbito da execução fiscal a adquirente, aqui ré, requereu a entrega coerciva do imóvel, o que foi determinado pelo serviço de finanças.
A Ré contestou a presente acção declarativa, alegando que era credora hipotecária, com registos de 9.5.2007, tendo adquirido o prédio em Setembro de 2012, no âmbito da referida execução fiscal, impugnando o contrato de arrendamento, que mesmo que seja válido caducou com a venda do locado na dita execução, ao abrigo do art. 824º do CPC.
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Com base na validade, eficácia e vigência daquele contrato de arrendamento face à venda executiva e na lesão grave e dificilmente reparável gerada com a concretização da determinada entrega do imóvel à adquirente, o autor, também, instaurou por apenso (apenso A) procedimento cautelar não especificado com a finalidade de evitar que esse imóvel, que constitui a habitação do autor, seja entregue à ré/ requerida.
No âmbito de tal procedimento cautelar foram, entretanto, juntos docs. emanados do referido processo fiscal reportando que a determinada entrega judicial foi revogada e de novo ordenada pelo serviço de finanças, diligência entretanto suspensa até ser proferida sentença pelo tribunal administrativo e fiscal, porque o ora autor aí apresentou reclamação, nos termos do art. 276º do CPPT, pedindo além do mais que o despacho que de novo ordenou a entrega judicial seja revogado, por o seu arrendamento não se ter extinguido com a venda judicial no processo fiscal (vide fls. 65 a 70, 75 e 149 a 156 deste apenso A).
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Foi, depois, proferida decisão que declarou a incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria por tal competência pertencer aos Tribunais Fiscais e, consequentemente, absolveu a ré da instância (da acção e do procedimento cautelar).
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2. O A. interpôs recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
Primeiro Violou o douto Tribunal recorrido, com a decisão em crise, ao declarar-se incompetente, o art. 64º, do Código de Processo Civil (e à data de proferimento da decisão em crise, o art. 66º, do Código de Processo Civil);
Segundo Pois a validade e a eficácia do contrato de arrendamento não são matéria da competência do douto Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, nem a questão de onde deverá o Autor ((…)) efectuar, doravante, o pagamento das rendas vincendas, é matéria da competência de tal douto Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, nem a alteração contratual é matéria da competência de tal douto Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra;
Terceiro Todas estas matérias são matérias não administrativas e a nenhum Tribunal em especial é atribuída competência para o julgamento das mesmas;
Quarto Devendo a decisão em crise ser revogada e substituída por uma outra que ordene o prosseguimento dos autos
Com o que o douto Tribunal da Relação de Coimbra fará a costumada
Justiça.
3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que resultam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º, nº 3, e 685º-A, do CPC).
Nesta conformidade a única questão a decidir é a seguinte.
- Competência material do tribunal recorrido. 

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:
“De facto, para se aferir da competência dos Tribunais em razão da matéria deve atender-se à relação jurídica material controvertida e ao pedido dela emergente segundo a versão apresentada em juízo pelos demandantes.
A competência em razão da matéria é pois fixada em função dos termos em que a acção é proposta, tendo em conta o teor da pretensão do autor e dos fundamentos em que a baseia. Cfr. Ac T. Conflitos. 23.09.2004, proc. 05/04, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário reza assim: I - A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo Autor deve partir do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se baseia sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão). II - A competência terá, por isso, de se aferir pelos termos da relação jurídico-processual tal como foi apresentada em juízo.
No caso vertente, a pretensão do autor, quer nesta acção quer no procedimento cautelar apenso pressupõe a questão de saber se caducou ou não o arrendamento de que se arroga titular com a venda executiva do prédio que dele foi objecto e que teve lugar na execução fiscal que corre termos do serviço de finanças de Miranda do Corvo que prossegue como incidente para entrega ao adquirente nos termos do art. 901º do CPC.
Dispõe o art. 211º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) que Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Da conjugação deste preceito com as normas constantes dos arts. 66º do Código de Processo Civil (CPC) e 26º da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 52/08 de 28.08), que dispõem em sentido idêntico resulta que a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual sendo-lhe atribuídas todas as matérias que não estiverem conferidas aos Tribunais de competência especializada.
Por sua vez o art. 212º, nº 3 da CRP preceitua nos seguintes termos: Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Este preceito constitucional consagra uma reserva relativa de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos e fiscais, daí resultando serem estes os Tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal. Significa isto que o conhecimento de uma questão de natureza administrativa e/ou fiscal pertence aos Tribunais da ordem administrativa e fiscal se não estiver expressamente atribuída a nenhuma outra jurisdição (quanto ao alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa, vd. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 6ª ed. Almedina, pag. 109 e ss e Ac. STA de 28.11.2007, proc. 06/07).
Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são assim os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 1º, nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF).
Em concretização daquela norma constitucional dispõe o art. 4º, nº 1, al. a) do ETAF que Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: … e os artigos 26º, 2º, 38º e 49º desse diploma distribuem a competência, em razão da hierarquia, pelos diversos tribunais da jurisdição fiscal.
Ora, em conformidade com o disposto no art. 49º, nº 1 als. a) iii), d), e e) iv) compete aos tribunais tributários conhecer das acções de impugnação dos actos praticados pela entidade competente nos processos de execução fiscal, dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de actos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal e dos pedidos de de providências cautelares relativas aos actos administrativos impugnados ou impugnáveis.
Tal atribuição de competência está em consonância com o disposto no art. 10º, nº 1, al. f) do CPPT que preceitua que aos serviços da administração tributária cabe instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do artigo 151.º do presente Código e com o estabelecido neste último normativo que reza assim: 1 - Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos actos praticados pelos órgãos da execução fiscal.
2 - O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o integral conhecimento das questões referidas no número anterior.
Note-se ainda que o processo judicial tributário compreende a impugnação do indeferimento total ou parcial das reclamações graciosas dos actos tributários; as providências cautelares de natureza judicial; o recurso dos atos praticados na execução fiscal, no próprio processo ou, nos casos de subida imediata, por apenso; a oposição, os embargos de terceiros e outros incidentes, bem como a reclamação da decisão da verificação e graduação de créditos cfr. art. 97º, nº 1, als. c), i), n) e o) do CPPT.
Ressuma com alguma evidência das normas referenciadas que todos os incidentes jurisdicionais relativos ao processo de execução fiscal que corra nas repartições das finanças são da competência dos tribunais tributários da respectiva área.
A pretensão do autor, quer nesta acção quer no apenso, mais não traduz que uma impugnação do (ou oposição ao) acto do serviço de finanças que determinou a entrega do bem a si arrendado ao adquirente, quando, na perspectiva no autor, o arrendamento não caducou com a venda em execução fiscal, e um pedido de providência cautelar adequada a evitar a lesão que advirá da execução imediata de tal decisão.
Tal pretensão insere-se no âmbito do incidente de entrega judicial previsto no actual art. 256º, nº 2 do CPPT (correspondente ao art. 901º do CPC) o qual tem lugar no próprio processo executivo onde foi efectuada a venda.
E tanto assim é, que o aqui autor, aparentemente já depois de interposta a presente acção, com os mesmos fundamentos (a titularidade do contrato de arrendamento que não caducou com a venda em execução fiscal) reclamou para o tribunal tributário da decisão que determinou a entrega do imóvel com vista à respectiva revogação, encontrando-se a execução da mesma suspensa por força de tal reacção processual (cfr. fls. 65 a 70, 75 e 149 a 156 do apenso A).
Face ao exposto, entende-se que a competência para conhecer da acção e procedimento cautelar apenso é da jurisdição fiscal, pelo que este tribunal é materialmente incompetente para apreciar a pretensão do autor.
A incompetência do Tribunal em razão da matéria é uma excepção dilatória insanável, de conhecimento oficioso, determinando a absolvição do réu da instância (arts. 101º, 102º, nº 1, 105º, nº 1, 288º, nº 1, al. a), 493º, nºs 1 e 2, 494º, al. a) e 495º, todos do Código de Processo Civil)”.
Acompanhamos este discurso jurídico.
Na verdade, na presente acção declarativa proposta pelo autor contra a ré Montepio Geral a questão essencial que o autor/recorrente coloca é a que consta da a) do seu pedido, a saber, que a ré, adquirente no processo executivo fiscal, seja condenada a reconhecer a validade, eficácia e vigência do contrato de arrendamento celebrado com A (…) em 1.1.2011, porquanto os pedidos formulados em b) e c) daquele são dependentes. Aprofundando, podemos mesmo dizer, sem ousadia interpretativa, que o que está verdadeiramente em jogo na a) do seu pedido é que se reconheça, e que a ré seja condenada a reconhecer que o dito contrato continua vigente. É esta a questão primacial.   
E fá-lo porquê ? Porque na sua perspectiva, o arrendamento não caducou com a venda em execução fiscal.
Desta maneira, o autor/recorrente pretende controverter o acto do serviço de finanças que determinou a entrega do bem a si arrendado ao adquirente, ora ré, pretensão que esta ré inseriu no âmbito do incidente de entrega judicial previsto no actual art. 256º, nº 2 do CPPT (correspondente ao art. 901º do CPC), incidente que tem lugar no próprio processo executivo onde foi efectuada a venda.
Assim, a pretensão do autor/recorrente mais não traduz que uma impugnação/oposição ao acto do serviço de finanças que determinou a entrega do bem a si arrendado ao adquirente (e um pedido de providência cautelar adequada a evitar a lesão que advirá da execução imediata de tal decisão).
Na verdade, como acima se mencionou no relatório supra, no âmbito do referido processo fiscal sabemos que a entrega judicial inicialmente determinada foi revogada e de novo ordenada pelo serviço de finanças, diligência que contudo foi suspensa até ser proferida sentença pelo tribunal administrativo e fiscal, porque o ora autor aí apresentou reclamação, nos termos do art. 276º do CPPT – que reza assim “as decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal e outras entidades da administração tributária que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do interessado ou de terceiro são susceptíveis de reclamação para o tribunal tributário de 1ª instância” - pedindo que o despacho que de novo ordenou a entrega judicial seja revogado, por o arrendamento não se ter extinguido com a venda judicial no processo fiscal.
Quer dizer, o aqui autor/recorrente, com os mesmos fundamentos - a titularidade do contrato de arrendamento que não caducou com a venda em execução fiscal - reclamou para o tribunal tributário, da decisão do órgão de execução fiscal que determinou a entrega do imóvel, com vista à respectiva revogação, encontrando-se, aliás, a execução da mesma suspensa por força de tal reacção processual.
Saber se houve caducidade ou não do arrendamento com a aludida venda fiscal é matéria que envolve normas de direito civil substantivo, nomeadamente aplicação e interpretação dos arts. 824º e 1057º do CC, e cuja decisão comete perfeitamente à jurisdição tributária.
E o ora recorrente tem perfeita consciência de que é assim, como resulta do ponto 4º do corpo das suas alegações, pois aí diz, e transcrevemos, que “Todavia, a validade e a eficácia do contrato de arrendamento não são matéria de apreciação de tal douto Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, que, em sede de reclamação contra acto da Autoridade Tributária, aprecia somente a vigência de tal contrato de arrendamento, decidindo se o mesmo se extinguiu ou não, face à adjudicação do bem” – o sublinhado é da nossa autoria.
Como assim, se o tribunal tributário é o competente para decidir a questão primacial e essencial posta na presente acção, é ele o tribunal competente em razão da matéria para decidir tal questão (e consequente procedimento cautelar apenso).
Por conseguinte, sendo o tribunal recorrido incompetente em razão da matéria para a dita acção civil (bem como para o procedimento cautelar apenso), bem andou a decisão recorrida ao decidir como decidiu.
3. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):
i) Se no âmbito de execução fiscal movida contra o respectivo proprietário é vendido prédio locado a terceiro e depois o adquirente pede a entrega de tal imóvel livre de pessoas e bens, e chaves do mesmo, nos termos do art. 256º, nº 2, do CPPT (equivalente ao art. 901º do CPC), pedido deferido pelo serviço de finanças executor, o terceiro arrendatário pode reclamar para o tribunal tributário de 1ª instância pedindo a revogação desse despacho, com o fundamento de que o arrendamento não caducou com a venda judicial, não devendo ser feita a entrega do locado ao referido adquirente;
ii) O tribunal tributário tem competência para decidir tal questão;
iii) Se o arrendatário propuser acção declarativa contra o referido adquirente do imóvel locado para apreciação primacial de tal questão – vigência ou não caducidade do dito arrendamento – o tribunal judicial cível é incompetente em razão da matéria.


IV – Decisão


Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, assim se confirmando a decisão recorrida.   
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Custas pelo recorrente.
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      Coimbra, 18.12.2013

Moreira do Carmo ( Relator )