Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
313/14.4GDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTE
CONSUMO
CONSUMO DIÁRIO INDIVIDUAL
Data do Acordão: 10/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA - – INSTÂNCIA LOCAL DE LEIRIA – SECÇÃO CRIMINAL – JUIZ 1.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 40.º, Nº 2.º, DO DL 15/93; PORTARIA N.º 94/96; LEI N.º 30/2000
Sumário: I - Importa apurar se a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido é suficiente para se concluir que é superior à quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, para lhe ser imputado o crime de detenção, para consumo próprio, de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C a ele anexa e portaria 94/96 de 26-03, conjugado com os art. 2.º e 28.º, da Lei 3/2000, de 29/11.

II - As quantidades diárias indicadas na portaria 94/96 e o exame pericial não devem ser de aplicação automática.

III - Podemos dizer que o conceito de quantidade necessária superior para o consumo médio individual durante o período de 10 dias poderá ser encontrado segundo vários critérios a ponderar em cada caso concreto, como seja o modo de consumo do arguido, mas deve ter em conta sempre o grau de pureza, o que poderá em casos limites determinar que a infracção seja contra-ordenação ou crime, conforme exceda ou não aquele período.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

No processo sumário supra identificado foi julgado o arguido A... , filho de B... e de C... , natural do concelho de Lisboa, nascido em 26-10-1992, com domicílio na (...) Amadora, pela prática de um crime de detenção ilícita de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C a ele anexa e portaria 94/96 de 26-03, pelo qual foi condenado:

a) Na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de 5 (cinco) euros, o que perfaz a multa global de 375 (trezentos e setenta e cinco) euros, a que correspondem 50 dias de prisão subsidiária.

b) Em 1 UC de taxa de justiça, reduzida a metade, por via da confissão integral e sem reservas.

c) Foi declarada perdido a droga apreendida, ordenando-se, após trânsito, a sua destruição.


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Inconformado com a sentença recorreu apenas o arguido, formulando as seguintes conclusões:

«I. o Tribunal "a Quo" julgou erradamente a matéria de facto e fez errada aplicação do direito, por isso não pode o recorrente concordar com a sentença em apreço, nem com a fundamentação nela invocada designadamente

II. A douta sentença recorrida violou o n.º 2 do art. 40.º do Decreto, Lei n.º 15/93, de 22/01, o n.º 2, do art. 32.º, da Constituição da República Portuguesa e o art. 9.º e mapa anexo da Portaria 94/96, de 26-03.

III. O arguido vinha acusado de no dia 7 de Dezembro de 2014, pelas 2h20m, se encontrar no interior de um autocarro, na Rua D. Dinis, na praia do Pedrógão e ao ser fiscalizado pelos agentes da GNR, se ter apurado que o mesmo trazia consigo uma caixa com canábis resina, sendo que tal produto pesava no seu total 5,756 gramas, tinha um grau de pureza de 26,9% e era suficiente para 32 doses bem como detinha tal produto para seu consumo pessoa e exclusivo e estava ciente da sua natureza e características com sendo produto estupefaciente.

IV. Foi realizada a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal, tendo resultado provados os factos constantes da douta acusação, e o arguido sido condenado pela prática do crime de detenção ilícita de estupefacientes, previsto no art. 40.º, n.º 2, do Dec.-Lei 15/93, de I22-1, com referência à tabela I-C a ele anexa e Portaria 94/96, de 26-3, na pena de 75 dias e multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz o total de €375,00.

V. Ora, o tribunal a quo ao condenar o arguido entendeu que a substância apreendida ao mesmo excedia a quantidade necessária para o consumo médio do mesmo durante o período de dez dias, o que salvo mais avisada opinião, não podia ter dado como provado.

VI. Segundo o acórdão de fixação de jurisprudência 3/2008, DR 150, Série I, de 5/8, do STJ “Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29/11, o art. 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

VII. Por sua vez, o art. 2.º da Lei 30/2000, de 29-11, qualifica como contra-ordenação a conduta de quem adquire ou detém para consumo próprio aquelas substâncias em quantidade inferior à necessária para o consumo médio individua] durante 10 dias. 

VIII. É mister, então, apurar qual o critério a aplicar determinar se o produto adquirido ou detido excede ou não a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

IX. O tribunal recorrido aplicou o peso total de 5,76 gramas de produto que continha resina de cannabis aos valores constantes da tabela a que se refere o art. 9.º da Portaria 94/96 de 26-03.

X. Ora, de acorde com tal mapa, é de 0,50 gramas a quantidade de canábis (resina) correspondente ao consumo médio individual diário. Há que considerar, porem, o que a jurisprudência vem entendendo a respeito dos valores fixados no mapa a que se refere a Portaria 94/96.

XL. Por um lado, tais valores devem ser apreciados nos termos da prova pericial (artigo 163.º CPP), como decorre do n.º 3 do artigo 71.º da Lei n.º 15/93 - ou seja, os mesmos não são de aplicação automática, podendo ser afastados pelo tribunal desde que acompanhados da devida fundamentação.

XII. Por outro, para se concluir pela detenção, qualquer que seja o fim; de substâncias incluídas nas referidas tabelas é essencial a demonstração científica de que estamos perante uma daquelas substâncias.

XIII. Por isso o DL n.º 15/93 impõe, no seu art. 62.º, a realização de exames laboratorial à substância, no mais curto prazo de tempo possível.

XIV. Para o caso é fundamental ter em conta, também, o disposto no art. 71.º deste diploma, cuja epígrafe é "diagnóstico e quantificação de substâncias, que diz, na al. c) do sei n.º 1, que “os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria: c) Os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes ad tabelas I a IV, de consumo mais frequente”.

XV. No desenvolvimento do disposto no art. 71.º surgiu a Portaria n.º 94/96, de 26/3, que realça, no seu preâmbulo, a importância da «definição prévia dos limites quantitativos máximos para cada dose média individual diárias das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de consumo mais frequente. .. para a aplicabilidade do n.º 3 do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 40.º…».

XVI. O valor diário estabelecido para a canábis (resina) que foi a substância identificada pelo exame laboratorial é de 0,5 gr no entanto os produtos estupefacientes adquiridos pelos consumidores finais não se encontram, mais das vezes, no seu estado puro, sendo objecto de cortes e misturas para aumento do lucro dos traficantes,

XVII. O princípio activo é a substância ou conjunto delas que é pelos efeitos da ministração de um determinado produto. No site da Apifarma (www.apifarma.pt) podemos ler que os medicamentos são compostos por substâncias activas, também chamadas de princípio activo, que “é a substância de estrutura química definida responsável por produzir uma alteração no organismo que pode ser de origem vegetal ou animal».

XVIII. Mas para além disso eles têm outras substâncias cuja função consiste em servir de suporte aos princípios activos, proporcionar a sua adequada conservação e facilitar a sua administração. A substância activa é a substância que se quer classificar e isto faz-se comparando-a a uma substância anteriormente aprovada (substância activa de referência) para determinar se ambas são equivalentes.

XIX. O princípio activo da canabis, ou seja, aquela que é responsável pela maioria dos seus efeitos psicotrópicos, é o tetrahidrocanabianol (THC).

XX. Então, para a determinação do estado de toxicodependência é essencial não só identificar a natureza da substância detida, com vista à demonstração de que ela integra as tabelas I a IV anexas do DL n.º 15/93, de 22/1, como ainda também a percentagem de tetrahidrocanabianol (THC) existente no produto apreendido.

XXI. É para nós evidente que as tabelas anexas à portaria se referem apenas ao princípio ativo das substâncias, ou seja à “droga pura” e não a um qualquer composto que tenha estupefacientes, pois só a droga pura permite uma quantificação como aquela que consta das tabelas.

XXII. Só depois, com estes valores fixados no exame laboratorial, e que podemos socorrer-nos dos valores referidos na tabela anexa à Porta n.º 94/96, de 26/3: só perante a percentagem do princípio activo constante da substância apreendida, só perante um produto “puro”, conforme se diz em linguagem corrente – seja canábis, seja com qualquer outra substância, mormente heroína ou cocaína é que podemos avaliar se a quantidade detida é “superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

XXIII. O acórdão do TC n.º 534/98, decidiu interpretar a norma da al, c) do n.º 1 do art. 71, já citado, no sentido de que ao remeter para a portaria a definição dos limites quantitativos máximos do princípio activo para cada dose média individuai diária das substâncias ou preparações constantes da tabela I a IV, de consumo mais frequente, anexas ao mesmo diploma, o faz com o valor de prova pericial.

XXIV. Diz este acórdão na sua fundamentação que «os limites fixado na portaria, tendo meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não constituem verdadeiramente, dentro do espírito e da letra do art. 71.º do Decreto –Lei n.º 15/93, uma delimitação negativa da norma penal que prevê o tipo de crime privilegiado.   Não está em causa a remissão para regulamento da definição dos comportamentos puníveis através do artigo 26.º, mas tão só, bem mais modestamente, a remissão para valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhado de devida fundamentação. Claro que esta conclusão só é legítima porque, por um lado, está em causa uma determinação de natureza eminentemente técnica, própria de prova pericial; e porque, por outro lado, é sempre por decisão do juiz e não por força da portaria n.º 94/96 que se concretiza o conceito de princípio activo para cada dose média individual diária utilizado na lei».

XXV, No caso sub judice, o exame ao produto apreendido, efectuado pelo Laboratório de Polícia Científica, quantifica a percentagem do principie activo (THC), dizendo que a substancia apreendida tem um grau de pureza de 26,9%.

XXVI. É pois forçoso concluir que das 5,766g de produto apreendido, apenas 1,551g do produto se referia ao THC, o principie activo cuja posse é proibida.

XXVII. Portanto, por todas as razões apontadas - a começar pela falta de prova – não era possível afirmar que a quantidade de canabis (resina) detida pelo arguido era superior ao necessário para consumo durante 10 dias.

XXVIII. Dessa forma impõe-se a absolvição do arguido pela prática do crime de que vem acusado, constituindo antes o seu comportamento a prática de uma contra-ordenação.

XXIX. A detenção de droga para consumo próprio constitui crime ou contra-ordenação se, respectivamente, ocorrer relativamente a quantidade superior ou não superior à necessária para o consumo médio individuai durante o período de 10 (dez) dias.

XXX, A determinação do consumo médio individual de quem detém droga para consumo próprio revela-se, pois, fundamental para determinar o tipo de ilícito cometido.

XXXI. Trata-se de aspecto que a factualidade provada não contém e que é indispensável à decisão da causa.

XXXII. Ocorre, por isso insuficiência da matéria de facto para a decisão, vício prevenido na al. a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que expressamente se invoca.

XXXIII. E que determina o reenvio do processo para novo julgamento, restrito à questão enunciada.

Conclui pela absolvição do crime por que foi condenado ou ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento para determinação do consumo médio individual do arguido».


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Respondeu o Ministério Público na 1.ª instância ao recurso interposto, nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, pugnando pela sua improcedência, pois, em seu entender a sentença não padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, formulando as seguintes conclusões:

«1. Não assiste qualquer razão ao recorrente, devendo a sentença recorrida manter-se na íntegra.

2. A jurisprudência das Relações tem vindo a sustentar que no caso do produto estupefaciente estar destinado ao consumo pessoal e não se conhecendo o grau de pureza da correspondente ao princípio activo está vedado o recurso aos valores constantes na tabela em anexo à Portaria n.º 94/96, não sendo, por isso, tais valores de aplicação automática.

3. No entanto, o exame laboratorial junto aos autos identifica o princípio activo (THC), o seu peso bruto, o peso líquido, bem como a percentagem de concentração de A9THC (cfr. fls. 32).

4. Tendo em consideração os limites fixados na referida tabela, o juízo a fazer sobre a suficiência ou insuficiência desses limites se presume subtraído à livre convicção do julgador, devendo este fundamentar qualquer divergência desse juízo.

S. O exame pericial realizado ao produto apreendido tem inteira aptidão para servir de base à aplicação dos valores considerados na tabela, pelo que não vislumbramos qualquer razão que justifique que deles nos afastemos».


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Neste Tribunal da Relação, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual emitiu douto parecer acompanhando de perto a resposta do Ministério Público na 1.ª instância.

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Foram colhidos os vistos legais.

Remetidos os autos à conferência, cumpre decidir.

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Questão prévia:
Para apreciação das questões suscitadas na motivação e conclusões do recurso importa ter em conta a matéria de facto e a respectiva fundamentação que consta da sentença oral recorrida.
Como solucionar esta questão?
A sentença foi proferida oralmente, apenas constando o dispositivo da acta, nos termos do art. 389.º-A, n.ºs 1 e 2, do CPP.

O arguido recorre com o fundamento de que a sentença padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.

Ora, tal vício deve decorrer do texto da sentença, isto é, dos factos dados como provados e da fundamentação que consta da mesma.

Como foi proferida oralmente em processo sumário, despido de formalismos nesta parte, encontra-se gravada no CD junto aos autos.

Porém, contrariamente a alguma jurisprudência de tribunais superiores que manda transcrever a sentença, em caso de recurso, dada a sua simplicidade e por razões de celeridade, optámos por ouvir a sentença nessa parte, passando a reproduzir o seu teor, que relativamente á factualidade integradora do crime imputado ao arguido reproduz integralmente a acusação de fls. 38 e 39, uma vez que houve confissão integral e sem reservas, como consta da fundamentação oral que ouvimos e ainda do despacho de fls. 45, de acordo com o art. 344.º, n.º 2, do CPP.     
É a seguinte a matéria de facto provada e respectiva fundamentação:
Factos provados:

«1 - No dia 7 de Dezembro de 2014, pelas 2h20m, o arguido encontrava-se no interior de um autocarro, na Rua D. Dinis na praia do Pedrógão.

2 - Ao ser fiscalizado pelos agentes da GNR, apurou-se que o mesmo trazia consigo uma caixa com cannabis resina, sendo que tal produto pesava no seu total 5,766 gramas, tinha um grau de pureza de 26,9% e era suficiente para 32 doses.

3 - O arguido detinha tal produto para o seu consumo pessoal e exclusivo e estava o mesmo ciente da natureza e características como sendo produto estupefaciente.

4 - O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a detenção de cannabis, ainda que para seu consumo, mas em quantidade superiores à permitida por lei como era o caso, era censurada por lei penal.

(...).

Fundamentação:
- Confissão integral sem reservas do arguido, conforme consta da sentença oral e do despacho proferido na acta de fls. 45.
- Auto de notícia de fls. 3.
- Auto de apreensão de fls. 4.
- Relatório fotográfico de fls. 14.
Exame pericial do Laboratório de Polícia Científica de fls. 32.
- CRC de fls. 17 a 24».

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II- O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.


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Questão a decidir:

Apreciar se a sentença padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não se ter pronunciado sobre o consumo médio individual do arguido, para dessa forma concluir se a quantidade é superior ou não à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Apreciando:

O arguido foi condenado por um crime de detenção de estupefacientes p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22/1, com referência à tabela anexa I-C e Portaria 94/96, de 26/3 2.
O arguido, apesar de constar da acta que confessou integralmente e sem reservas os factos, interpôs recurso alegando que o tribunal interpretou erradamente a matéria de facto e fez errada aplicação do direito e não fundamentou devidamente a decisão.

O arguido foi condenado pelo crime acima aludido nos autos, no pressuposto de que a substância apreendida excedia a quantidade necessária para o consumo médio durante o período de dez dias, o que na opinião do recorrente não podia ter dado como provado.

Ora, de acordo com art. 2.º da Lei 30/2000, de 29/11, a conduta é qualificada como contra-ordenação se o agente detém para consumo próprio aquelas substâncias em quantidade inferior à necessária para o consumo médio individua durante 10 dias. 

Nesta conformidade, importa apurar qual o critério a aplicar para determinar se o produto detido excede ou não a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Antes de mais, importa referir que embora estejamos perante uma questão simples o tribunal a quo complicou o que era simples, enveredando por um facilitismo que põe em causa a decisão.

Em primeiro lugar diremos que a confissão integral e sem reservas não implica a condenação automática do arguido, pois a confissão deste não pode ser acolhida de forma acrítica e apenas é relevante, quanto aos factos de que tem conhecimento e que estão na sua faculdade de sobre eles se pronunciar, por não estarem subtraídos à susceptibilidade da confissão.

Aliás, a confissão integral e sem reservas implica, nos termos do art. 344.º, n.º 2, al. a), do CPP, à renúncia à produção de prova relativa aos factos imputados e consequentemente como provados, mas tão somente restrita àqueles factos que pode confessar, estando subtraídos à confissão os factos que dependem de prova pericial, por a sua prova depender de conhecimento técnicos e científicos, por força do art. 151.º.  

Porém, no caso dos autos houve nulidade, nos termos do art. 344.º, n.º 1, por o juiz não ter questionado o arguido se confessava os factos de livre vontade e fora de qualquer coacção e se se propunha fazer a confissão integral e sem reservas, nulidade que se encontra no entanto sanada por não ter sido arguida, de acordo com o disposto no art. 120.º, n.º 1 e 3, al. a) e 121.º, n.º1, al. c).

Da acta consta o despacho a fls. 45 registando que houve confissão, mas do julgamento oral, no qual apenas foi ouvido o arguido e que cujo registo ouvimos na íntegra, nada consta quanto à confissão constante do despacho e nem qualquer referência à interpelação da senhora juíza aludida no art. 344.º, n.º 1, quanto à confissão e eficácia da mesma.

Como vimos, apesar da nulidade apontada, a mesma encontra-se sanada e por isso nenhuma relevância tem a ver com a questão trazida em sede de recurso.

O que importa decidir é saber se o tribunal a quo dispõe de dados suficientes para condenar o arguido pelo crime de detenção de estupefacientes.

O tribunal a quo quanto à factualidade objectiva, no segmento que nos importa analisar, face à motivação do recurso interposto, integradora do crime de detenção de estupefacientes p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22/1, com referência à tabela anexa I-C e Portaria 94/96, de 26/3 2 limitou-se a dar como provado que o arguido «…trazia consigo uma caixa com cannabis resina, sendo que tal produto pesava no seu total 5,766 gramas, tinha um grau de pureza de 26,9% e era suficiente para 32 doses».

É pacífico nos autos que o produto se destinava ao consumo pessoal e exclusivo do arguido e este estava ciente da sua natureza e características com sendo produto estupefaciente.
Para dar como assentes aqueles factos fundamentou a sua convicção na seguinte prova:
- Confissão integral e sem reservas do arguido.
- Auto de notícia de fls. 3.
- Auto de apreensão de fls. 4.
- Exame pericial do Laboratório de Polícia Científica de fls. 32.
Do exame pericial constante de fls. 32 apenas consta que estamos perante a substância activa presente de “canábis (resina”, enquadrável, no DL 15/93 – Tabela anexa I-C, com o peso líquido de 5,766 gramas, com um grau de pureza de THC de 26,9%, quantidade suficiente para 32 doses, calculado segundo a Portaria 94/96.  

Estes são os dados objectivos do exame pericial.

Importa agora saber se a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido é suficiente para se concluir que é superior à quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, para lhe ser imputado o crime de detenção, para consumo próprio, de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C a ele anexa e portaria 94/96 de 26-03, conjugado com os art. 2.º e 28.º, da Lei 3/2000, d e29/11.

Por outro lado importa apurar se a matéria de facto dada como provada permite a condenação do arguido.

Achamos que é insuficiente.

Se não vejamos.

O art. 2.º da Lei 30/2000, de 29/11, qualifica como contra-ordenação a conduta de quem adquire ou detém para consumo próprio aquelas substâncias em quantidade inferior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias. 

Numa perspectiva de lógica e coerência o acórdão de fixação de jurisprudência 3/2008, DR 150, Série I, de 5/8, do STJ decidiu que não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29/11, o art. 40.º, n.º 2, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
O tribunal a quo para a decisão deu como provado que ao arguido foi apreendida a quantidade de “canábis (resina) ”, com o peso líquido de 5,766 gramas, com um grau de pureza de THC de 26,9%, quantidade suficiente para 32 doses.
Não fundamentou como chegou às 32 doses, limitando-se a dizer na fundamentação que atendeu ao exame pericial do Laboratório de Polícia Científica de fls. 32.
O valor da prova pericial presume-se livre à apreciação do julgador, nos termos do art. 163.º, n.º 1, do CPP, mas pode divergir do juízo contido no parecer, desde que fundamente a divergência.
A portaria 94/96 e o exame pericial não devem ser de aplicação automática.
O exame pericial dos autos junto a fls. 32 apenas identifica a substância activa presente “canabis” (resina), com o peso de 5.766 gramas, com grau de pureza de 26,9 %, suficiente para 32 doses.
O mesmo exame limita-se a referir que o número de doses foi calculado segundo a portaria 94/96, de 26/3, sem explicar a razão por que chegou àquele número no caso concreto, função da qual não se deve imiscuir o julgador.
O Ministério da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria, designadamente, conforme dispõe o art. 71.º, n.º 1, al. c), do DL 15/93, de 22/1, os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente. 

O art. 9.º, da Portaria 94/96, de 26/3 prevê os limites de quantitativos máximos para cada dose média individual diárias das plantas, substâncias ou preparações de consumo mais frequente, estipulando para a canábis (resina), incluída na tabela I-C, anexa ao DL 15/93, de 22/1 a quantidade de 0,5 gramas.

Os valores não são de aplicação automática.

Nos termos do art. 71.º, n.º 4, do DL 15/93, de 22/1, o valor probatório dos exames periciais e dos limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária, devem ser apreciados segundo o disposto no art. 163.º, do CPP, sem esquecer o papel do julgador, com o seu espírito crítico que deve ter na apreciação da prova.

O mapa anexo à Portaria 94/96 quando se refere aos limites quantitativos máximos de princípio activo, tem em conta a percentagem de princípio activo, isto é, tem de referir-se às substâncias ou preparações em estado puro.

Contudo, como bem sabemos e nos ensinam as regras da experiência comum, “as drogas” encontram-se adulteradas no mercado, com adicionantes ou misturas para aumentar a quantidade e o consequente lucro dos traficantes.

O LPC no caso concreto quantifica a percentagem do princípio activo, indicando o grau de pureza de 26, 9%.

Na realização do exame pericial referido no art. 62.º, do DL 15/93 de 22/1, segundo o art. 10.º, n.º 1, da Portaria 94/96, “…o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respectivo princípio activo ou substância de referência”.

Conforme se depreende do preâmbulo da referida portaria “…a definição prévia dos limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao DL 15/93, de consumo mais frequente constitui elemento importante para a punibilidade do art. 40.º, n.º 2”.

O princípio activo é a substância ou substâncias responsáveis pelos efeitos da ministração de um determinado produto.

O princípio activo da canabis, que é responsável pela maioria dos seus efeitos psicotrópicos é o tetrahidrocanabinol (THC) existente no produto, a que se faz referência nas tabelas anexas, enquanto “droga pura”.

Ora, tendo o exame quantificado a percentagem do princípio activo, o tribunal a quo devia tê-lo em conta para se socorrer dos valores constantes do mapa anexo à Portaria 94/96 e adequá-los ao caso concreto.

Podemos dizer que o conceito de quantidade necessária superior para o consumo médio individual durante o período de 10 dias poderá ser encontrado segundo vários critérios a ponderar em cada caso concreto, como seja o modo de consumo do arguido, mas deve ter em conta sempre o grau de pureza, o que poderá em casos limites determinar que a infracção seja contra-ordenação ou crime, conforme exceda ou não aquele período.

Sem a percentagem do princípio activo no estupefaciente não é possível concluir que a quantidade na posse do arguido excedia o consumo médio individual de 10 dias, sob pena de ofensa do princípio in dubio pro reo.

Os limites fixados na portaria têm um valor de meio de prova, a apreciar, como atrás referimos, nos termos da prova pericial, mas deve entender-se que a remissão para a portaria são valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhado da devida fundamentação.

É neste sentido que aponta o Ac. do TC 534/98, de 7/8/1998 – Proc. 545/98 – 3.ª Secção, relatado pela Ex.ma Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acrescentado ainda quanto à intervenção do julgador: “…Claro que esta conclusão só é legítima porque, por um lado, está em causa uma determinação de natureza eminentemente técnica, própria de prova pericial; e porque, por outro lado, é sempre por decisão do juiz e não por força da portaria n.º 94/96 que se concretiza o conceito de princípio activo para cada dose média individual diária utilizado na lei”.

Os valores dos quantitativos máximos para cada dose média individual diária referidos nas tabelas anexas à Portaria 94/96 não são assim de aplicação automática, e por isso, tratando-se de valores de referência, devem ser interpretados e integrados pelo conjunto da prova produzida para concretizar o conceito de “princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente”, a que alude o art. 71.º, n.º 1, al. c), do DL 15/93. 

E para tal não deve ser ignorado o grau de pureza da substância submetida a exame pericial no LPC, que no caso concreto é de 26,9%.

O tribunal a quo com a simples matéria de facto dada como provada de que o arguido detinha “cannabis” (resina), com o peso de 5,766 gramas, com um grau de pureza de 26,9% e que era suficiente para 32 doses, não podia sem mais levar à decisão de condenação do arguido.

Impunha-se que ficasse apurado o consumo médio individual do arguido, para daí podermos concluir se excedia ou não a quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

A condenação do arguido é meramente conclusiva, sem o tribunal se ter pronunciado sobre factos fundamentais para levarem àquela decisão de condenação, além da decisão não se encontrar devidamente fundamentada, limitando-se a identificar a prova, sem explicar em que termos foi apreciada, particularmente naquela segmento em análise, pese embora se trate de processos simplificado, como é o processo sumário.

Nesta conformidade padece a decisão recorrida de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, do 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.

Estamos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando há factos importantes para a decisão que ficaram por apurar e que eventualmente poderão implicar alteração da decisão.
Resulta do art. 339.º, n.º 4, do CPP que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre aqueles factos e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento nos termos constantes na decisão.
Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal “a quo” através dos meios de prova disponíveis, apreciados de forma crítica e segundos os princípios da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, seriam dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas – Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 2.ª Ed., pág. 737 a 739.
Verifica-se pois o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição – Cfr. entre outros os Acórdãos do STJ de 6/4/2000, in BMJ n.º 496, pág. 169 e de 13/1/1999, in BMJ n.º 483, pág. 49.

Concluímos pois que há vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, constante do art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP, impondo-se que o tribunal a quo se pronuncie sobre o consumo médio individual do arguido, tendo em conta todos os elementos probatórios, e dessa forma concluir se a quantidade é superior, e em que termos, à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.


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III- Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A... , e, em consequência, se ordena o reenvio do processo para novo julgamento, para apurar o consumo médio individual do arguido e dessa forma concluir se a quantidade é superior ou não à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, decidindo-se em conformidade.
 Sem tributação.


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NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

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Coimbra, 21 de Outubro de 2015


(Inácio Monteiro - relator)


(Alice Santos - adjunta)