Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
631/13.9TNGRD-O.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
MODIFICAÇÃO SUBJECTIVA
INSOLVÊNCIA
CRÉDITO
GARANTIA
FIADOR
CONFUSÃO
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - GUARDA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 47º, Nº 4 DO CIRE; 868º C. CIVIL.
Sumário: I – Por via de uma cessão de créditos, opera-se apenas uma modificação subjetiva na relação obrigacional, mantendo-se intocado o conteúdo do crédito cedido.

II - No âmbito duma insolvência, se um crédito é julgado verificado e reconhecido como garantido, e vem posteriormente a ser objecto de uma cessão de créditos, o crédito cedido mantém a mesma natureza independentemente da pessoa do cessionário.

III - O facto de o cessionário ter estado em relação de domínio total com a Insolvente não tem virtualidade para desqualificar o crédito cedido, de garantido em subordinado, uma vez que tenha sido adquirido já após a declaração da insolvência e, com esta, todos os poderes de administração/disposição dos bens integrantes da massa insolvente são transmitidos para o Administrador, assim cessando os poderes de ingerência directa ou tutelar nos assuntos da Insolvente por parte da sociedade dominante.

IV - Reunindo-se na mesma pessoa a qualidade de fiador e a de beneficiário da fiança, opera-se a confusão (art. 868º do CC), extinguindo-se a garantia.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            Na sequência de um plano de recuperação não cumprido, veio a ser declarada a insolvência de “N..., SA” (de futuro, apenas a Insolvente) por sentença proferida em 09.07.2013, transitada em julgado em 25.07.2013.

                Tal insolvência foi requerida pela credora “T..., L.da” (de futuro, apenas T...).

                Aberto o concurso de credores, veio o Banco C..., SA reclamar a verificação de dois créditos, no montante total de € 1.606.240,09, créditos esses garantidos por hipotecas sobre o imóvel onde funcionam as instalações fabris da Insolvente, bem como por fiança da “G..., SA”, que se constituiu “fiadora solidária e principal pagadora”.

                Esses créditos do Banco C... vieram a ser reconhecidos pelo Administrador da Insolvente nos seguintes termos:
· € 793.994,47, crédito garantido (garantias: hipotecas)
· € 793.994,47, crédito garantido (garantias: hipotecas e penhor de equipamento)
· € 333.58, crédito comum
· € 17.917,57, crédito comum sob condição (art. 50º do CIRE)

                Em 12.12.2013, o Banco C... declarou ceder à G... esses dois créditos, pelo montante total de € 1.587.988,94 (quantia total em dívida em 08/07/2013), bem como as garantias hipotecárias de que os créditos beneficiavam.

                A G... veio então ao processo de insolvência deduzir incidente de habilitação de cessionário.

                A habilitação foi impugnada pela Massa Insolvente.

                Tal incidente veio a ser julgado procedente, declarando-se “habilitada a cessionária G..., SA para seguir na acção em substituição do cedente Banco C..., SA”.

                Tal decisão transitou em julgado e nela foram considerados assentes, para além de outros, os seguintes factos:

«4. No âmbito do apenso de reclamação de créditos, (…), e na sequência da tentativa de conciliação aí efectuada, a S... LIMITED desistiu do pedido relativamente à impugnação da lista de credores por si deduzida no apenso de Reclamação de Créditos, com fundamento num contrato promessa de cessão de créditos celebrado com J..., LDA, actual G..., LDA, no valor total – um no valor de € 5.038,948,82, acrescido de juros de mora (contabilizados em € 1.945.955,70), proveniente de uma cessão de créditos efectuada pela sociedade J..., Lda, por reconhecer tratar-se do mesmo crédito pertencente ao Banco C..., restringindo o mesmo apenas a outro crédito no valor de € 1.867.654,22, acrescido de juros de mora (contabilizados em € 721.255,78), proveniente de uma outra cessão de créditos efectuada pela sociedade J..., Lda e respeitante a um outro crédito que o mesmo detinha sobre a insolvente.

(…)

6. Até 31.12.2012 a G..., SA era a única titular do capital social da aqui Insolvente.

7. O Administrador Único da ora insolvente na altura referida em 6. era o Sr. L... que era também administrador na G..., SA na mesma data.»

                Posteriormente, o Administrador da Insolvente veio requerer ao processo o seguinte:

«a) – Atendendo ao conhecimento superveniente da natureza do crédito que operou com a habilitação, requer-se a vossa excelência se digne consignar que na lista de credores reconhecidos nos termos do 129º todos e quaisquer créditos detidos pela G... passem a constar como subordinados, atendendo às relações societárias e de domínio que esta exerce sobre a insolvente nos termos dos arts. 48º e 49º do CIRE, sendo tal alteração tomada em consideração para efeitos de sentença de verificação e graduação de créditos;

b) – Pugna o administrador da insolvência para que a mesma não seja admitida na comissão de credores atenta a qualidade do credor;

c) – Porque na comissão de credores devem estar representadas as várias classes de credores (e não diversos tipos de créditos), requer-se que o Banco C... seja substituído na presidência da comissão pelo Banco F...».

                A M.mª Juíza decidiu o seguinte:

«Por outro lado, importa consignar que por força da habilitação efectuada, a credora habilitada passou a ocupar no processo a posição da credora cedente, com todos as consequências jurídico-processuais daí decorrentes, designadamente a natureza desse mesmo crédito que sendo já hipotecário e como tal reconhecido na competente sentença de verificação e graduação de créditos não perde essas características não obstante a qualidade do credor que o adquire. Situação totalmente diferente seria se a transmissão de créditos tivesse operado em momento anterior ao processo de insolvência, em que a especial relação da cessionária com a insolvente determinaria a sua “desqualificação”.

Veja-se que nenhum dos credores pode, neste momento, sustentar um prejuízo na medida em que caso a habilitação não tivesse ocorrido o pagamento daquele crédito seria efectuado ao Banco C... nos exactos termos por aquela reclamada, pelo que por força da habilitação o mesmo pagamento terá que ser efectuado à credora cessionária.

Em face do exposto, decide-se indeferir a alteração da sentença de verificação e graduação de créditos nos termos requeridos pelo Exmo. Sr. Administrador de Insolvência.

Situação totalmente diferente é a suscitada em segundo lugar pelos credores supra melhor identificados e pelo Exmo. Sr. Administrador de Insolvência e que contende com a actual composição da comissão de credores.

Na realidade, e se numa primeira análise poderíamos ser levados a defender que a habilitação julgada procedente determinaria a substituição da posição da credora cedente em toda a sua extensão, designadamente no lugar que aquela ocupa na comissão de credores, melhor analisado o regime previsto no C.I.R.E. quanto à constituição deste órgão não podemos deixar de concordar com o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência quando defende que ab initio jamais a G..., S.A. poderia ou deveria ser admitida a intervir na comissão de credores atentas as especiais relações que detém com a insolvente e que resultam sobejamente demonstradas nos autos, cfr. artigos 49º e 66º do C.I.R.E..

Em face do exposto, importa, pois, decidir, em face da habilitação de cessionário já decidida nos autos, a futura composição da comissão de credores.

Não obstante, e porque para este efeito não foi ainda cumprido o competente contraditório, decide-se conceder aos restantes membros da comissão de credores, efectivos e suplentes, e ainda à G..., S.A., o prazo de 5 dias a fim de se pronunciarem.

Em face do quadro processual desenhado nos autos, e sem prejuízo dos considerandos a este respeito tecidos pelo Exmo. Sr. Administrador de Insolvência aos quais aderimos quanto ao fim da reunião para hoje agendada, resulta obviamente comprometida a validade de qualquer deliberação que hoje aí viesse a ser tomada.

Notifique imediatamente, devendo, ainda, estabelecer-se contacto telefónico com os Ilustres Mandatários da G..., S.A. e dos demais membros da Comissão de Credores dando-lhes conta do teor do presente despacho.».

2.            Inconformado com tal decisão, dela vem apelar o Administrador da Insolvente, formulando as seguintes conclusões:

...

Nestes termos, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que decida pela alteração da sentença de verificação e graduação de créditos nos termos requeridos pelo Apelante.»

3.            O Ministério Público contra-alegou, CONCLUINDO:            
...

Termos em que sendo concedido provimento ao recurso, revogando-se consequentemente o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que considere o crédito em causa de natureza subordinado e consequentemente altere a sentença de verificação e graduação de créditos.

4.            Também a G..., SA contra-alegou e CONCLUIU:  

...

Termos em que deve o recurso ser julgado improcedente e não provido, quando não deva antes ser liminarmente rejeitado e dele não se conhecer.

Delineadas as posições das partes, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

5.         O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 635º nº 3 e 4, 639º nº 1, 640º nº 1 e 608º n.º 2, ex vi do art. 663º nº 2, todos do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

QUESTÕES A DECIDIR:
· Rejeição do recurso?
· Caso julgado formado no incidente de habilitação cessionário?
· Se o crédito do Banco C..., porque agora detido pela G..., deve ser desqualificado como crédito garantido e passar a ser qualificado como crédito subordinado?

5.1.         REJEIÇÃO DO RECURSO

Questão suscitada pela apelada, com fundamento em que não se indicam as normas jurídicas violadas pela decisão recorrida.

                No caso de recurso sobre a matéria de direito, como aqui acontece, a falta de indicação das normas jurídicas violadas não implica a rejeição imediata do recurso, antes se impondo um prévio convite ao aperfeiçoamento: art. 639º nº 3 do CPC.

                De qualquer forma, nem esse convite se justifica uma vez que foram invocadas as normas jurídicas que o Recorrente considera contrariadas pela decisão, como se extrai das conclusões j), s) e u).

                Não se verifica, portanto, o vício invocado.

5.2.         CASO JULGADO DA SENTENÇA DE HABILITAÇÃO CESSIONÁRIO

                Questão também suscitada pela Apelada e que incumbe julgar previamente dado que o seu resultado pode influenciar as questões suscitadas pelo Recorrente.

                Quando se trata de apurar da influência de uma decisão anterior num processo que lhe é posterior, trata-se do caso julgado material.

Visa-se com ele obstar a que o tribunal possa vir a repetir ou contradizer a decisão anterior, invalidando a certeza e segurança jurídicas subjacentes às decisões dos tribunais.

E, como é sabido, ele pode ser visto ou influenciar a sorte da ação numa dupla perspetiva, consoante os seus efeitos se repercutirem na esfera processual/adjetiva, ou na esfera substantiva.

No primeiro caso, estamos perante um efeito impeditivo ou negativo: o tribunal fica impedido de repetir ou contradizer a decisão anterior, e, daí, a sua operatividade como exceção dilatória (natureza simplesmente adjetiva): art. 577º al. i) do CPC.

No segundo caso, está em causa o seu efeito positivo, dirigindo-se um comando ao tribunal, vinculando-o ao mesmo resultado (o de não repetir ou contradizer decisão anterior) com a autoridade de caso julgado, (natureza simultaneamente adjetiva e substantiva).

Utilizando as palavras de Lebre de Freitas [[1]]: «Seja qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (…). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sobre a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (...), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade do caso julgado).».

                No caso, a sentença de habilitação de cessionário não foi objeto de recurso.

“Transitada em julgado a sentença (…) [[2]], a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º”, assim o preceitua o art. 619º nº 1 do CPC.

Significa isto que, não tendo sido interposto recurso ou reclamação, nem se tratando de um dos casos passíveis de recurso de revisão, a decisão proferida obriga as partes e o juiz.

Reportando-se ao caso julgado material, em tal artigo está em causa apenas a específica “relação material controvertida” [[3]] que foi acionada no processo e o conteúdo da sentença de mérito que a apreciou (“nos precisos limites e termos em que julga”, diz o art. 621º do CPC).

Essa “relação material controvertida” é disputada entre determinados sujeitos, tem um pedido e uma causa de pedir.

A ora Insolvente era sujeito processual e foi chamado à demanda no incidente de habilitação de cessionário.

O pedido e a causa de pedir delimitam o objeto do litígio.

A G... pedia expressamente nesse incidente, como não podia deixar de ser, que fosse julgada habilitada a prosseguir nos autos no lugar do credor reclamante Banco C...

E, como causa de pedir, invocou a cessão dos créditos reclamados que o Banco C... lhe havia feito.

Como decorre do art. 356º, nº 1, al. a) do CPC, seria na contestação ao incidente de habilitação que a Massa Insolvente poderia “impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo”.

E, como se colhe da análise da sentença proferida, a Massa Insolvente deduziu efetiva impugnação, invocando a nulidade da cessão de créditos ora efetuada e que a transmissão debilita atentas as relações de domínio existentes entre o cessionário e a devedora ora Insolvente.

Tais questões foram analisadas e julgadas improcedentes, acabando a sentença por julgar habilitada a G... a prosseguir na ação em substituição do Banco C...

Porque não sujeita a recurso, tal sentença transitou em julgado.

Ora, como referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto [[4]], «(…), embora o caso julgado não se estenda aos fundamentos da decisão (…) há que ter em conta que: com ele precludem, em caso de condenação no pedido, as excepções invocadas ou invocáveis, contra o pedido deduzido.».

No mesmo sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [[5]]: «Advirta-se, porém, que, em relação à pretensão formulada pelo autor e eventualmente considerada procedente na sentença, ficam precludidos, quer na acção, quer fora dela, todos os meios de defesa que o réu tenha invocado ou pudesse ter invocado contra ela. Essa é já, como vimos, a solução resultante da preclusão consagrada no artigo 489º, quanto aos meios de defesa que o réu não invocou, mas poderia e deveria ter alegado, na contestação.».

                E esse tem sido também o entendimento jurisprudencial: «Nos limites objectivos do caso julgado material incluem-se todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como pressupostos necessários e fundamentadores da decisão final.». [[6]]

                Concluindo, não pode agora voltar a questionar-se, nem este Tribunal pode conhecer, de qualquer nulidade/invalidade atinente ao contrato de cessão de créditos outorgado entre a G... e o Banco C..., nem do prejuízo que a transmissão possa causar à Massa Insolvente.

5.3         SE O CRÉDITO do Banco C..., PORQUE AGORA DETIDO PELA G..., DEVE SER “DESQUALIFICADO”, DEIXANDO DE SER CRÉDITO GARANTIDO PARA PASSAR A CRÉDITO SUBORDINADO

OS CRÉDITOS SUBORDINADOS

Mostra-se consagrado entre nós o princípio da igualdade de credores ou da par conditio creditorum: art. 604º nº 1 do Código Civil (de futuro, apenas CC).

Porém, essa igualdade de credores não é sinónimo de igualdade de satisfação dos créditos que venham a ser reclamados.

Assim, o art. 47º nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de futuro, apenas CIRE) distingue três classes de créditos: os garantidos, os subordinados e os comuns, classificação esta que irá condicionar a posição de cada um no concurso de credores e, naturalmente, a possibilidade de ver o seu crédito satisfeito face às regras estipuladas para o pagamento: art. 172º e seguintes do CIRE.

Assim, os credores classificados como subordinados vêm os seus créditos graduados em último lugar e o seu pagamento “só tem lugar depois de integralmente pagos os créditos comuns”: art. 48º e art. 177º nº 1 do CIRE.

Para além disso, a classificação dos créditos releva ainda para outros efeitos, uma vez que “os créditos subordinados não conferem direito de voto” na Assembleia de Credores: art. 73º nº 3 do CIRE.

Uma tal posição de desfavor «Não se afigura desproporcionada, situando-nos na perspectiva de tais pessoas, a sujeição dos seus créditos ao regime de subordinação, face à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores.

O combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar actos prejudiciais aos credores (…).». [[7]]

A classificação dos créditos como subordinados pode resultar da própria natureza do crédito ou em função da qualidade do respetivo titular: art. 48º do CIRE.

No caso, interessa esta segunda vertente, os créditos das “pessoas especialmente relacionadas com o devedor”, sendo o respetivo elenco fixado, de forma taxativa, no art. 49º do CIRE.

 E, como tal, a lei considera as pessoas que tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do art. 21º do Código de Valores Mobiliários (de futuro, apenas CVM) nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência [al. b) do nº 2 do art. 49º do CIRE]

Sobre as relações de domínio e de grupo, estipula o art. 21º do CVM:

1 - Para efeitos deste Código, considera-se relação de domínio a relação existente entre uma pessoa singular ou colectiva e uma sociedade quando, (…), aquela possa exercer sobre esta, directa ou indirectamente, uma influência dominante.

2 - Existe, em qualquer caso, relação de domínio quando uma pessoa singular ou colectiva:

a) Disponha da maioria dos direitos de voto;

b) Possa exercer a maioria dos direitos de voto, nos termos de acordo parassocial;

c) Possa nomear ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fiscalização.

3 - Para efeitos deste Código consideram-se em relação de grupo as sociedades como tal qualificadas pelo Código das Sociedades Comerciais, independentemente de as respectivas sedes se situarem em Portugal ou no estrangeiro.

Ora, resulta dos factos provados que até 31.12.2012 a G... era a única titular do capital social da aqui Insolvente e que, para além disso, ambas as empresas tinham o mesmo Administrador Único, L...

Fácil é, portanto, concluir que a G... se encontrava numa situação de domínio total da ora Insolvente, situação essa que perdurou nos últimos dois anos relativamente ao início do processo de insolvência.

Era uma “pessoa especialmente relacionada” com a Insolvente, exercendo sobre ela uma influência e um domínio totais.

Nessa perspetiva, qualquer crédito da G... haveria de ser classificado como subordinado.

Porém, para a classificação de crédito subordinado não basta a existência dessa “relação pessoal”; a lei exige ainda um outro pressuposto, de índole temporal: que essa relação especial já existisse aquando da aquisição do crédito: art. 48º al. a) do CIRE.

Será o caso?

Vimos que o Banco C... era credora da Insolvente por um montante de € 1.587.988,94 e que cedeu esse crédito à G... em 12.12.2013.

Ou seja, a G... adquire o crédito já após a declaração de insolvência.

Ora, uma vez que com a declaração de insolvência todos os poderes de administração/disposição dos bens integrantes da massa insolvente são transmitidos para o administrador (art. 81º nº 1 do CIRE), pode dizer-se que a G... deixou de poder exercer os poderes de ingerência direta ou tutelar nos assuntos da Insolvente.

Ou, dito de outra forma, a declaração de insolvência extinguiu a possibilidade de exercício da influência e domínio totais por parte da G... na administração da Insolvente.

A ser assim, temos de concluir não se verificar o requisito imposto pela al. a) do art. 48º do CIRE: quando o crédito é adquirido pela G..., já não se verifica a “relação especial” [[8]] e, portanto, o crédito adquirido não pode ser “transmutado” de crédito garantido (classificação que detinha enquanto na titularidade do Banco C...) para crédito subordinado.

Tal solução afigura-se-nos totalmente consentânea com a razão de ser da classificação dos créditos subordinados.

Na verdade, ao reportar o elemento temporal da “relação especial” aos dois anos anteriores à insolvência, o que se pretendeu foi prevenir que qualquer ato praticado pelo Insolvente, tendente a beneficiar essas pessoas com quem tinha “relações especiais”, ou que estas pudessem influenciar as suas decisões em benefício próprio, não viesse a redundar num prejuízo para os demais credores.

Uma vez declarada a insolvência, e entregues os poderes de administração/disposição ao Administrador da Insolvência, a influência decorrente de relações de domínio deixa de existir, anulando também qualquer risco de favorecimento dessas pessoas ou de prejuízo para os restantes credores.

A CESSÃO DE CRÉDITOS E AS GARANTIAS

Consistindo numa forma de transmissão —— «(mediante a qual a posição de credor vem a ser ocupada por sujeito diferente daquele que era o credor originário num programa obrigacional já existente)» [[9]] ——, a cessão de créditos opera apenas uma modificação subjetiva na obrigação, deixando intocado o conteúdo do crédito cedido.

Não deve é confundir-se a cessão de créditos com o negócio que lhe serve de base, «(…) já que a expressão cessão de créditos designa a transmissão dos créditos com fonte negocial e não a própria fonte que a desencadeia. Em consequência, o regime da cessão de créditos não constitui um tipo negocial autónomo, mas antes uma disciplina de efeitos jurídicos, que podem ser desencadeados por qualquer negócio transmissivo.». [[10]]

E, porque é mediante o negócio que serve de base à cessão de créditos que o cessionário se torna titular do crédito, será a data desse negócio de base o momento relevante a atender, quer para a determinação da “relação especial”, quer para o momento da aquisição do crédito.

Assim, no que toca à G..., ela adquiriu o crédito por um negócio de compra e venda oneroso, que ocorreu em 12.12.2013, já depois de decretada a insolvência.

Ou seja, também por esta via não ocorre o segundo requisito imposto pela al. a) do art. 48º do CIRE: que a aquisição do crédito se situe nos dois anos anteriores ao início do processo.

Quanto às garantias do crédito cedido, por força do art. 582º nº 1 do CC elas têm-se por transmitidas juntamente com o crédito, à exceção das que forem “inseparáveis da pessoa do cedente” e desde que não haja convenção em contrário.

Já vimos que o crédito do Banco C..., agora cedido, beneficiava das garantias de hipoteca e de fiança da G...

Na escritura da cessão de créditos (cf. doc. fls. 139/146) fez-se consignar expressamente que o cedente Banco C... apenas transmitiu as garantias hipotecárias (cláusula 4ª), o que significa que a fiança da G... não foi abrangida pela transmissão.

E nem o poderia ser, sob pena de se desvirtuar totalmente a garantia uma vez que se destruiria a relação tripartida (credor/devedor/fiador) que é caraterística da fiança e não poderia a G... ser fiadora de si própria.

Abordando especificamente a questão, refere Menezes Leitão [[11]]: «Assim, parece claro que as garantias do crédito como a fiança (…) se transmitem para o cessionário, a menos que o cedente as reserve ao consentir na cessão. Neste último caso, normalmente as garantias extinguir-se-ão, já que não ficarão a garantir qualquer crédito.

Há, no entanto, alguns problemas a colocar em relação a algumas garantias. Assim, relativamente à fiança, é manifesto que esta se transmite em resultado da cessão, até como consequência da sua acessoriedade. Tem sido, porém, questionado se as partes podem excluir a transmissão, reservando o cedente a faculdade de exigir que o fiador pague ao cessionário ou determinar a transmissão autónoma da fiança, passando para o cessionário a faculdade de exigir do fiador que este efectue o pagamento ao cedente. Grande parte da doutrina contestou a possibilidade de a fiança ser cedida autonomamente ao crédito garantido, ou ser estipulada a sua não transmissão em caso de cessão do crédito, por considerar que a regra da acessoriedade a tal impediria, determinando que a fiança ficasse sem objecto, caso a cessão fosse realizada por forma a separar os dois créditos. Efectivamente, o fiador deixaria de estar pessoalmente obrigado perante o credor da obrigação principal (art. 627º) para o passar a estar perante um terceiro, que não possui qualquer interesse digno de protecção legal relativo à satisfação do direito de crédito. Esta posição é, no entanto, contraditada por outros autores, para quem a tutela dos interesses em jogo deveria autorizar a separação da fiança em relação ao crédito principal, uma vez que essa separação não agrava a responsabilidade do fiador nem prejudica a posição das partes em presença. Pensamos igualmente ser essa a melhor solução, já que a acessoriedade da fiança não é obstáculo à cessão da garantia dissociada do crédito (uma vez que ela ocorre igualmente noutras garantias acessórias, como o penhor e a hipoteca), pelo que não o deve ser igualmente em relação à sua reserva, e a situação do fiador não é alterada, podendo continuar a opor ao cessionário as mesmas excepções que possuía em relação ao cedente.».

Contudo, como é bom de ver, uma e outra das correntes doutrinais têm por pressuposto o facto de se tratar de uma cessão de créditos a uma qualquer outra pessoa que não o próprio fiador.

E aqui é precisamente o caso: o crédito foi cedido exatamente à pessoa que se havia obrigado perante o credor a garantir a satisfação do crédito, o fiador!

Ora, reunindo-se na mesma pessoa a qualidade de fiador e a de beneficiário da fiança, opera-se a confusão (art. 868º do CC), extinguindo-se a garantia.

Concluindo, (i) dado que a cessão de créditos deixa intocado o conteúdo do crédito cedido, (ii) tendo já transitado em julgado no incidente de habilitação de cessionário as questões suscitadas sobre a nulidade da cessão de créditos e o prejuízo para a Recorrente, (iii) bem como precludida a possibilidade de invocar outras causas de nulidade, há que considerar que a G... deve manter a posição que era ocupada pelo Banco C... nos seus exatos termos: titular de créditos garantidos por hipoteca.

Por fim, uma breve referência.

O facto de o crédito da G... manter exatamente o mesmo conteúdo de quanto estava na titularidade do Banco C... é questão diferente da possibilidade da sua manutenção na comissão de credores.

Contudo, não podemos pronunciar-nos sobre essa questão, por extravasar o âmbito do recurso e por estar ainda dependente de decisão da 1ª Instância.

Na verdade, como se deixou consignado no relatório, foi também requerido que a G... “não seja admitida na comissão de credores atenta a qualidade do credor”, sendo que a M.mª Juíza entendeu dever primeiro exercer o direito ao contraditório quanto a esse ponto, pelo que ordenou a notificação da G... e dos restantes membros da comissão de credores para se pronunciarem, relegando a decisão para momento posterior.

                6.         SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) Por via de uma cessão de créditos, opera-se apenas uma modificação subjetiva na relação obrigacional, mantendo-se intocado o conteúdo do crédito cedido.
b) No âmbito duma insolvência, se um crédito é julgado verificado e reconhecido como garantido, e vem posteriormente a ser objeto de uma cessão de créditos, o crédito cedido mantém a mesma natureza independentemente da pessoa do cessionário.
c) O facto de o cessionário ter estado em relação de domínio total com a Insolvente não tem virtualidade para desqualificar o crédito cedido, de garantido em subordinado, uma vez que foi adquirido já após a declaração da insolvência e, com esta, todos os poderes de administração/disposição dos bens integrantes da massa insolvente são transmitidos para o Administrador, assim cessando os poderes de ingerência direta ou tutelar nos assuntos da Insolvente por parte da sociedade dominante.
d) Reunindo-se na mesma pessoa a qualidade de fiador e a de beneficiário da fiança, opera-se a confusão (art. 868º do CC), extinguindo-se a garantia.

                III.      DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em julgar não provido o recurso.

Custas a cargo da Recorrente.

                                                               Coimbra, 14/04/2015

       Relatora, Isabel Silva

1ª Adjunto, Alexandre Reis

2º Adjunto, Jaime Ferreira

***


      [[1]]Com Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil, Anotado”, Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 713/714.
      No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, "O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material", estudo publicado no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), nº 325, pág. 167.
[[2]] O que ocorre logo que ultrapassado o prazo de recurso ou de reclamação: art. 628º do CPC.

[[3]] Tomada no seu sentido estrito, a relação jurídica tem por conteúdo um direito (e o correspondente dever), cuja afirmação no processo constitui o conteúdo da pretensão de um direito. Se se formula uma nova pretensão e, simultaneamente, se invocam os factos constitutivos de um novo direito, tal implica, rigorosamente, a convolação para uma relação jurídica diversa.
[[4]] In obra citada, pág. 350.
[[5]] In “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 713, nota (2).

[[6]] Acórdão do STJ, de 05.05.2005 (Processo 05B602, nº do Documento: SJ200505050006027), disponível em www.dgsi.pt, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[[7]] In ponto 25 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 16.03, que aprovou o CIRE.
[[8]] Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, editora Quid Juris, 2008, pág. 233: «Com efeito, sempre que se confere relevância a situações ocorridas em certo período de tempo anterior à insolvência, o momento determinante para fixar a contagem é, como a lei claramente expressa, o do início do processo de insolvência e não qualquer outro __ nomeadamente o do proferimento da sentença declaratória.».
[[9]] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Cessão de Créditos”, Almedina, 2005, pág. 286.
[[10]] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, obra citada, pág. 285.
[[11]] Obra citada, pág. 325/326.